OsmusikéCadernos 2

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Ficha técnica

Título: OsmusikéCadernos2 Conceção e organização

Jorge do Nascimento Silva, Joaquim Salgado Almeida, Agostinho Ferreira, João Silva Pereira

Abertura

Domingos Bragança

Introdução

Jorge do Nascimento Silva Prefácio Adelina Paula Pinto Revisão

Agostinho Ferreira, Jorge do Nascimento Silva, João Silva Pereira

Capa

Joaquim António Salgado Almeida

Fotografias

Arquivo Osmusiké

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Autores

Textos produzidos por elementos de Osmusiké, autores de Associações/instituições diversas e gente da cultura e da educação da sociedade vimaranense.

Associações/ Instituições

A Muralha - Associação de Guimarães para a Defesa do Património

AAELG - Velhos Nicolinos

ADCL – Associação para o Desenvolvimento das Comunidades Locais

ASMAV – Associação Artística Vimaranenses

Câmara Municipal de Guimarães

Chorus Anima Populi

Convívio - Associação Cultural e Recreativa

CPI – Comissão de Proteção ao Idoso (CMG)

Delegação da Cruz Vermelha de Guimarães EB 1/JI de Mascotelos

Grã Ordem Afonsina

Irmandade de Nossa Senhora do Carmo da Penha Núcleo de Estudos 25 de Abril

Osmusiké – Associação Musical e Artística Paço dos Duques de Bragança

Santa Casa da Misericórdia de Guimarães

Adelina Paula Pinto

Agostinho Ferreira Albino Baptista

Alunos EB 1/JI de Mascotelos Álvaro Nunes

Amélia Ribeiro Faria Ana Maria Bastos André Marques

António da Rocha e Costa António Jorge Extremina

António José Oliveira António Mota Armando Joel Barb Maciel

Armindo Cachada Armindo R. da Costa Ferreira Bernardino Freitas

Branco de Matos César Machado Clarisse Nunes

Domingos Bragança

Dulce Silva Elvira Oliveira Emília Ribeiro Eva Machado Filipe Guimarães Filomena Bento Firmino Mendes

Autores

Florentino Cardoso Francisco Teixeira Franklim Fernandes Gabriela Nunes Guilherme Ribeiro Helena Pinto Isabel Fernandes Isabel Viana Joaquim A Salgado Almeida Joaquim Machado

Jorge Cristino Jorge do Nascimento Silva José Alexandre Marques José Bastos

José Fernandes de Matos José Fernando Alves Pinto

José Leite F. Lopes José Maria Gomes José Pedro Namora José Pinheiro José Ribeiro Júlio Borges

Júlio Esteves Dias Laura Pontes Lucinda Namora Manuel Alves Barbosa Manuel Roriz Mendes

Manuela Ribeiro

Maria Albertina Amaral Maria Beatriz Roberto Maria da Luz

Maria Madalena Macedo Mário Macieira Mário Rebelo de Sousa

Marta Mota Miguel do Sul Ofélia Ribeiro Olívia Freitas

Paula Machado Paula Marques Paula Rios

Paulo Freitas do Amaral Raúl Rocha Rui Galiano

Rui Vítor Costa Teresa Almeida Teresa Macedo Teresa Portal Torcato Ribeiro Vergílio Alberto Vieira Vicente Machado Vítor Oliveira Vitorino Costa

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Maquetagem

João Silva Pereira

Jorge do Nascimento Silva

Apoio Informático

João Silva Pereira

Apoio musical no lançamento online

Júlio Dias Local de edição Guimarães Propriedade e Edição Osmusiké

Escola Secundária Francisco de Holanda

Alameda Dr. Alfredo Pimenta – 4814 528 Guimarães osmusike@gmail.com www.osmusike.pt

Ano e mês: 2021, abril

Páginas: 329

ISBN: 978-989-33-1766-2

Nota: Todos os artigos que integram OsmusikéCadernos2 são da responsabilidade dos seus autores e, respeitando a opção individual de cada um, apresenta-se, em simultâneo, a ortografia portuguesa com e sem o acordo ortográfico.

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ÍNDICE

Abril, Liberdade para Expressar! 9 Apresentação 11 Celebremos ABRIL 14

I. TESTEMUNHOS 17

Vivências do 25 de Abril de 1974 19 Onde estavas no 25 de Abril?! 30 25 de Abril, Quarenta e sete anos depois! 34 25 de Abril Aquela velha e teimosa senhora chamada Utopia 41 Memórias de Abril 46 Recordações que marcaram 49 A Minha Memória e a Cidade 56 Onde estava no 25 de Abril? 60 47 anos depois, o 25 de Abril na 1ª pessoa 62 Falar do 25 de abril de 1974 em situação de pandemia pela Covid-19 68 Que viva Abril, sempre! 70

O meu 25 de Abril – o antes, o durante e o depois 74 25 de Abril Sempre 78 Mudanças 81 Conquistas de Abril 83

II. LIBERDADE E DEMOCRACIA ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------85 25 de abril em Guimarães 87

A Soma e a Combinação 93 Abril com primavera nos cravos liberdade 95 Com perfume de cravo vermelho 98 Meias tintas e uma aguarela 101 Guimarães: Tesouros Clandestinos 104 Crónica da democracia. Era uma vez um país… 110

Liberdade no feminino 114 Liberdade religiosa 117 A minha visão do 25 de Abril 120

Liberdade 123 Velhos e novos de Abril 126 O 25 de Abril e a oportunidade perdida 127 A Educação Sexual na Escola e o 25 de Abril 129

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Serviço Nacional de Saúde - Uma conquista do 25 de Abril 132

Liberdade… ou… a falta dela… 135 Análise sumária sobre 25 de Abril 137 Liberdade 139

Aprender o valor da Liberdade: o papel das aulas de história 141

III. AS CANÇÕES

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Canções de Abril-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------149 Memórias do 25 de Abril ... 155 25 de Abril sempre! 159 A poesia está na rua 162

IV. A POESIA 165

E abril se fez Abril 167 Abril 168 Asas da Liberdade 169 Poemas de Abril 171 Em busca da Liberdade--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------172 Liberdade! 173 A madrugada dos sonhos 174 Coronam virumque cano 178 A Cidade 179

V. ARTES PLÁSTICAS

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Linhas de Liberdade do SAL (comentadas) 183 Torres de Babel 190 Desenho metade toque. A imagem é (aqui) outra coisa 191 Para onde vai toda esta gente? / Talvez morrer no mar... 192 Agarra-te à luz 193 Ícaro 194 A Liberdade 195 Desprender amarras 196 Cartoons de Abril - SAL do Povo 197

VI. VIVÊNCIAS E REGISTOS 203

A terra onde nascemos 205 A Política e a Democracia Cultural 213 Canto de Mulheres 223 - Vozes dos campos vão ser património da humanidade 223

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Santa Rosa de Lima em Guimarães 228

O monte de Santo Antonino 232

VII. RECENSÕES E SINOPSES 235

Novo livro de Lino Moreira da Silva 237 Ferreira de Castro e(m) Guimarães 239 A Aldeia de Santa Teresa 240 Do miolo da vida ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------241

VIII. ARTE DA ESCRITA 243

Bem prega Frei Tomás 245 Melro de bico amarelo 248 O rapaz que tinha dois corações 251 Quem sou eu? 255 Sonhos de Criança 257 Sonhos meus -258

IX. A NOSSA LÍNGUA E OS NOSSOS ESCRITORES----------------------------------------------------------------------------------------259

Ferreira de Castro – A propósito de Abril 261 5 de maio - dia mundial da Língua Portuguesa 267 Dia do Livro Português 270

A propósito do dia Mundial do Teatro 276 Gil Vicente fez 556 anos 279 150 anos das Conferências do Casino -282

X. A VOZ DAS ORGANIZAÇÕES

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Democracia Rima com Cidadania-------------------------------------------------------------------------------------------------------287

A Muralha 291

O caminho para a Democracia e a Misericórdia de Guimarães 294 Abril e a Liberdade – Osmusiké Teatro 297

O nosso sentir… sem cultura não há liberdade…-----------------------------------------------------------------------------------303 Cravos e Nicolinas - as Festas nos anos de 1974-1975 306

A presença da Cruz Vermelha Portuguesa em Guimarães 315 Grã Ordem Afonsina - “Protocolos de Criatividade Turística” 318 Momento de perseverança e esperança 321 Escola de Abril! 324

XI. IN MEMORIAM 325

Obrigado Francisca 327

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Abril, Liberdade para Expressar!

Abril é sinónimo de Democracia e Liberdade. Esse mês dos cravos que marcou o fim do governo de um homem, e de um séquito, que começara a ganhar forma, em 1926, com a Ditadura Nacional.

Abril é reconhecimento do valor dos homens e da comunidade, do poder da existência conjunta e da cooperação. E só em Democracia se pode promover uma sociedade mais justa. Só em Democracia se pode escolher um governo, livremente.

Mas com Democracia e Liberdade emerge o conceito de responsabilidade. Para os eleitos, esta implica estar ao serviço do bem comum, do interesse comunitário. Para os eleitores, significa a obrigação de um permanente escrutínio, que tenha igualmente por base o bem comum, e não apenas visões subjetivas que se adequem a interesses pessoais.

É esta ideia de bem comum que gostaria de reforçar. Numa altura em que vivemos uma polarização nunca antes vista na nossa Democracia, pode pensar-se o bem comum como algo subordinado a diferentes conceitos, que variam ideologicamente. Mas não. O princípio de bem comum tem uma dimensão ética e essa está ao serviço da sociedade no seu conjunto, ainda que vários caminhos, necessariamente democráticos, se abram para alcançar esse objetivo.

A livre expressão de ideias e pensamentos é também uma conquista de Abril. Ideias e pensamentos que podem ser lidos nesta edição de OsmusikéCadernos2, sobre Abril e a Liberdade e as vivências da Democracia na nossa cidade.

Uma publicação que é um espaço de cultura e de liberdade, em Guimarães. Um sinal de vitalidade do pensamento dos cidadãos, unidos por um objetivo comum, materializado através de mais um direito alcançado pela Revolução, o direito à livre associação de pessoas, que também se reúnem em prol de um objetivo comum.

A grandeza da vida política, em que me revejo, é poder trabalhar para esse grande objetivo coletivo. E

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isso só me foi dado como possibilidade por ter havido quem, em Abril de 1974, tenha tido a coragem de lutar pela Liberdade, não de uns, mas de toda uma nação. Se hoje vivemos em Democracia e Liberdade, tudo devemos à “Revolução dos Cravos”.

Aos que estão à frente dos destinos de um coletivo, exige-se-lhes o merecimento da confiança dos seus concidadãos, para que Abril se possa cumprir, sempre.

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Jorge do Nascimento Silva, Presidente da direção d’Osmusiké jorgenascimentosilva@gmail.com

Osmusiké – Associação Musical e Artística – foi criada em junho de 2002 pelo então diretor do CFFH, como Valência cultural. Ao longo destes 19 anos, tem desempenhado um papel relevante no panorama cultural e educativo do concelho de Guimarães. Cantou e canta a cidade, os seus monumentos, as suas ruas, os seus heróis, os seus símbolos, a sua toponímia, as suas gentes, nos mais variados espaços e palcos. Calcorreou as ruas e calçadas de Guimarães levando alegria aos vimaranenses e a quem os visita. Descobriu a cidade em muitas manhãs domingueiras com alegria e espírito crítico. Levou o teatro infantil a todos os Agrupamentos de escolas do Concelho e para além dele. Criou um estilo muito próprio na animação da cidade, que começa a ser replicado, o que nos honra. Percorreu as vilas e aldeias do concelho com espetáculos diversos integrando a música, o teatro e a poesia. Paulatinamente granjeou o apoio do público dos vários níveis etários e de diversas instituições da educação, da cultura, do domínio social, etc., semeando alegria, recordando e ensinando a história as tradições locais, desenvolvendo concertos que marcaram indelevelmente a cultura local. Passou a ser um exemplo para outros territórios…

Com a chegada do confinamento imprevisto, preocupante e sacrificador, que parecia pôr em causa toda a dinâmica social, Osmusiké reinventou-se e deu início a uma linha editorial E-book consubstanciada em OsmusikéCadernos, um espaço plural e agregador, livre e independente, onde todos têm voz. O número 1 foi lançado na plataforma ZOOM, em junho de 2020, com a presença de mais de cem participantes, redundando num êxito. Agregou sessenta e quatro colaboradores e nove Associações concelhias em torno de um projeto único na vida associativa vimaranense que, livremente, envolveu as artes e as letras e foi um marco histórico no percurso educativo e cultural da Associação. Surgiu do nada, mas vingou, como outros projetos identitários que prosseguiram com paixão e envolvimento. O reconhecimento do valor desta publicação foi confirmado pelo apoio que a Câmara Municipal de Guimarães, na pessoa do Sr. Presidente, Dr. Domingos Bragança, deu à edição impressa, que acaba de ser concretizada. Infelizmente, a pandemia tem impedido a apresentação pública dessa obra.

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Apresentação

Fechado este capítulo, aí está o número 2 de OsmusikéCadernos que tem como grande tema ABRIL E

A LIBERDADE, sem abandonar ou esquecer as vivências de Guimarães, enquanto território, património e gentes que o habitam e o sentem. Foi esta a forma encontrada para comemorar quarenta e sete anos do ABRIL. Desde a primeira hora, Guimarães aderiu aos novos ventos. Recordamos os dias 26 e 29 de abril de 1974, datas em que a população vimaranense vitoriou a revolução dos cravos e agradeceu, como é seu timbre, aos militares de abril em manifestações em que tive o prazer e a honra de participar como membro ativo das Forças Armadas e de que guardo memórias inapagáveis.

Comungo das palavras de Helena Pereira1, que conheci nesta vida de luta pelas causas coletivas da Cultura, quando afirma, no dia 29 de março, no Facebook, “Sei também, sem nenhuma dúvida, que quero continuar ao lado dos que fazem, dos que se reinventam, dos que combatem a inércia, dos que se superam em ideias e em pensamento, em ação coletiva e em crescimento individual, dos que querem mudar o mundo!

É desse lado que quero estar: dos que não se contentam com a vida-vidinha, com o vai se andando e o assim-assim. Ao lado dos que ousam, arriscam, não têm medo. É ao lado desses que quero estar, dos que sabem a diferença entre ser e parecer, dos que vão ao fundo de si mesmos e não resumem as suas vidas a ser como toda a gente.”

É este pensamento forte que nos anima, nestes projetos coletivos, desde sempre e de que OsmusikéCadernos é um dos exemplos.

Aí estão centenas páginas de textos, em prosa e em verso, de imagens, de pinturas, de desenhos, que nos dão conta de testemunhos, visões, vivências, perceções, alegrias e tristezas deste tempo em que tentamos (sobre)viver e de outros tempos guardados na memória. Recordar ABRIL faz bem à mente. Fazê-lo de forma tão plural enobrece a liberdade que nos torna cidadãos de corpo inteiro. Descobrir a história, os recantos e encantos de Guimarães alimenta o bairrismo dos vimaranenses.

Este é o resultado final de meses de trabalho colaborativo. Textos e imagens implicados e comprometidos. Textos gerados com um misto de prazer, de apreensão, mas também de confiança no futuro. A nossa gratidão a quem tornou possível este projeto coletivo, desde as crianças da EB 1/JI de Mascotelos a diversas Instituições da cidade de Guimarães e de tantos homens e mulheres que aderiram incondicionalmente a esta iniciativa. Poetas, contistas, romancistas, pintores, cartoonistas, desenhadores consti-

1 ProfessoraconvidadanaUniversidadedoMinho;CuradoranaFundaçãoBienaldeArtedeCerveira;CuradoriaeDireçãoGeralnaempresaZetgallery; DoutoradaemCiênciasdaComunicaçãopelaUniversidadedoMinho.

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tuem o que de melhor tem Guimarães - as suas gentes. Tive o privilégio de ler devagarinho todos os textos em primeira mão e de comprovar a qualidade de escrita e a riqueza de abordagens e pontos de vista, e de apreciar a arte, nas suas diversas vertentes e ângulos. Um trabalho demorado de meses, mas que me encheu de prazer pela adesão de autores e instituições, num trabalho de rede, a quem, enquanto primeiro responsável de Osmusiké, quero manifestar a nossa gratidão plural pela elevadíssima qualidade dos trabalhos apresentados. Uma palavra muito especial para a Câmara Municipal de Guimarães, na pessoa do Sr. Presidente da Câmara, Dr. Domingos Bragança, que está com o este Projeto Editorial desde a primeira hora. Um reconhecimento pessoal e institucional à Vice-presidente e Vereadora da Educação e Cultura, Dr.ª Adelina Pinto, pelo apoio, mas sobretudo pela dinâmica que imprime ao desenvolvimento da Cultura vimaranense, que se distingue de outras paragens, que bem conheço. Um abraço para o Dr. Vítor Oliveira, Chefe de Gabinete do Sr. Presidente da Câmara Municipal, peça charneira silenciosa, mas que faz andar a “máquina”.

Um bem-haja a todos!

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Celebremos ABRIL

Celebremos Abril! Celebremos a Liberdade! Celebremos o Associativismo! Celebremos a Poesia! Celebremos a Cultura! Celebremos Osmusiké e Guimarães.

Não sei falar de Osmusiké sem que a emoção e a gratidão me invadam o coração. Olho sempre para elas e eles, todos aqueles que fazem parte desta Associação, com um misto de emoção e orgulho. Tive o grato prazer de os ver nascer, nos idos tempos em que “habitava” o Centro de Formação Francisco de Holanda, e lembro a alegria contagiante dos primeiros ensaios e das primeiras participações públicas (e até cantei com eles, imaginese!!!). Fui vendo como cresciam, como agregavam outras pessoas, de outros contextos, com outras formações, unidos sempre num duplo desígnio, promover a Cultura e promover Guimarães. E assisti, mais uma vez, à forma como a liderança é fundamental, como o timoneiro Jorge do Nascimento conseguiu fazer crescer, dar rumo e motivação a um grupo tão heterogéneo e tão interessante!

E chegamos a abril de 2021, a um abril diferente. Um abril em que a maior conquista parece que nos foi retirada, a LIBERDADE! Liberdade de estar com os outros, liberdade de sair, liberdade de conviver, de promover Cultura.

Mas OsMusiké mostram mais uma vez a sua irreverência e tal como em 2020 lançaram o Cadernos 1, meteram novamente mãos à obra e apresentam o Caderno 2, agora com o mote de Abril e a Liberdade! E mostram, com grande orgulho, que em Guimarães há poetas, prosadores de grande qualidade, artistas plásticos, desenhadores, crianças, jovens, homens e mulheres de idades e formações diferentes que são livres, que aproveitam o que A LIBERDADE ABRIL nos trouxe para nos deliciarem com a sua criatividade. Mostram, orgulhosos, que a pandemia não acabou com a Cultura, que ela existe em cada um de nós e que esta se faz, mais do que nunca, nesta partilha, nesta construção coletiva dum novo tempo que se sustenta nas nossas vivências de um outro tempo!

Tal como Cadernos 1, também Cadernos 2 ficará na história de Guimarães. Será um documento fiel da forma como se viveu a pandemia em Guimarães, como a Cultura sobreviveu e se alicerçou, se reconstruiu e

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Adelina Paula Pinto, Vereadora da Cultura Adelina.pinto@cm-guimaraes.pt

nos deu alento para continuar. Mostrará aos vindouros a forma como continuamos a recordar ABRIL e a celebrar a LIBERDADE. Mostra e mostrará que nos tiraram a LIBERDADE de circulação, de convívio, de animação pública, mas não nos tiraram a LIBERDADE de pensar, de escrever, de pintar, de desenhar, de continuar a construir um mundo melhor!

E essa é a minha maior gratidão para com Osmusiké. Fazem todos os dias de Guimarães um território melhor, pelos valores que nos trazem, pela Cultura que constroem e divulgam! Por este novo Cadernos que prova a qualidade artística dos seus membros e dos muitos convidados que se associaram, mas que mostra acima de tudo a qualidade humana de todos eles!

OBRIGADA!

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Vivências do 25 de Abril de 19742

Jorge do Nascimento Silva3 Jorgenascimentosilva@gmsil.com

Cheguei a Guimarães, no Carnaval de 1970, em plena Primavera Marcelista. Frequentei o Colégio Egas Moniz e concluí o Ensino Secundário no Liceu Sá de Miranda, em Braga e no Liceu Nacional de Guimarães. Sou natural de Mujães, Viana do Castelo, estive em Braga a estudar no Seminário diocesano mais de 6 anos, antes de me radicar em Guimarães. A integração na comunidade vimaranense foi rápida. Os jovens têm esta caraterística. Frequentávamos o célebre snack-bar Avenida, o Café do Toural, o Café Arlequim, isto durante o dia. Parava lá muita gente. Depois, fomos parar ao Nicolino e, finalmente, ao Café Óscar, que foi o meu café durante uma década. Fui para Coimbra frequentar Direito em 1971 e fui incorporado em 10 de outubro de 1972 no serviço militar obrigatório por necessidade de recrutar militares para a Guerra colonial, interrompendo, deste modo, o curso de Direito, em Coimbra.

Nesses grupos de cafés, as ideias políticas não eram muito abordadas. Havia um ou outro mais informado, mas havia receios. As coisas eram como eram. Fora dos cafés, havia um grande descontentamento pois os jovens, nessa época, tinham um cutelo sobre a cabeça, que era a guerra, nas Ex-Colónias. Muitos iam, alguns fugiam para França ou para a Alemanha ou Inglaterra. Muito poucos conseguiam “livrarse”. No café, quando havia conversas mais “coisa”, como se dizia, sentia-se um certo temor, um certo medo. Em África, morriam soldados. Havia sempre um certo pesar. Gui-

2 Texto adaptado e atualizado do testemunho, publicado no livro “Guimarães. Daqui

3 Ex Alferes Miliciano em 1974

“(2014)

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Houve resistência Imagem 1 - Foto de Oficiais do RI 8, em 1973/74 Imagem 2 - Almoço em abril de 1974, no RI 8

marães era um meio com conhecidos resistentes, tínhamos conhecimento de cidadãos que, volta e meia, iam presos. Tínhamos algumas preocupações. A guerra era o destino de quase todos nós. Ou éramos mobilizados, normalmente, como alferes ou, passados dois ou três anos da passagem à disponibilidade, éramos chamados de novo para frequentar um curso de Capitães e íamos para África comandando uma companhia.

Prestei serviço militar cerca de três anos. Se não fosse a revolução de abril, poderia ficar seis anos ou mais, na vida militar. E houve mortes de amigos nossos no exército, mesmo cá em Portugal. Nos cursos de Comandos ou Rangers havia um ou outro acidente. Na tentativa do golpe das Caldas da Rainha de 16 de março, foram presos os oficiais que nele participaram e recrutaram oficiais e outros graduados de vários Regimentos de Infantaria, para completar a instrução dos Instruendos do curso de Sargentos que ficaram sem Comandantes de pelotão e/ou Companhia com o objetivo de concluírem as recrutas. Do RI 8 (Braga) também foram alguns oficiais, entre os quais o Dantas da freguesia do Pinheiro, que viria a falecer num acidente já no final da recruta. Foi um enorme pesar para todos. Um momento de muito pesar em Guimarães, no funeral deste colega e amigo. Mas o abortado golpe das Caldas levou a deslocar compulsivamente para unidades militares distantes das dos grandes Centros a que pertenciam aqueles que demonstrassem alguma simpatia pelo golpe de 16 de março das Caldas, pensávamos nós. Mas, segundo parece, também se dizia que houve uma tentativa de antecipação. Nunca ninguém percebeu como veio parar ao RI 8 o destacado Major Carlos Fabião, que passava quase despercebido no quartel, mas que no pós 25 de abril desempenhou funções importantes. Foi governador da Guiné Portuguesa de maio a 15 de outubro de 1974. Fez parte da Junta de Salvação Nacional assim como do Conselho de Estado, tendo também sido chefe do Estado-Maior do Exército (1974-75). A partir de 14 de março de 1975 fez parte do Conselho da Revolução. Só depois, viemos a saber que veio para Braga castigado por ter dito aos alunos do Instituto de Altos Estudos Militares algo que não agradou às Chefias. Era um grande amigo do general Spínola.

3 - Oficiais do RI 8

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Imagem

A respeito de cidadãos que foram presos, conheci o caso do Dr. Santos Simões, meu professor no Colégio Egas Moniz, depois colega de profissão e amigo. Um excelente Homem. Foi muito castigado na sua própria carreira docente por motivos políticos. Por isso é que estava no ensino privado, no Colégio Egas Moniz. Tinha conhecimento de outras figuras da resistência que foram muito incomodadas, como Eduardo Ribeiro e as pessoas ligadas, mais tarde, ao MDP-CDE (Movimento Democrático Português – Comissões Democráticas Eleitorais). O professor Hélio Alves, um grande amigo e também colega, mais tarde, na Escola Secundária Francisco de Holanda. Também frequentava o Café Óscar, onde convivíamos. Quando entrei na Universidade, em Coimbra, para uma passagem curta, entre 1971 e 1972, a Crise de 69 ainda estava presente, e ouvia-se contar o que se tinha passado. Aliás Alberto Martins era o presidente da Direção Geral da Associação Académica. Em Coimbra, já havia um pequeno grupo rebelde e muito politizado que até contestava o próprio líder dos estudantes porque lhe atribuíam ter sido recebido oficialmente, em Lisboa, entendendo eles ser uma espécie de desculpa pelo que tinha acontecido em 69. Nessa época, Zeca Afonso passava por Coimbra de vez em quando, mas nem sempre seria por acaso. Houve alguns desacatos no final de alguns espetáculos. Falava-se num que teve lugar no ginásio abarrotado junto à velha e única cantina da velha Coimbra. Pretendiam contrariar a ideia de que o que estava a acontecer, ao mesmo tempo, no Teatro Gil Vicente, promovido por gente ligada ao poder, era suficiente para dar a ideia de uma pacificação da população estudantil de Coimbra. Mas a maior parte da malta passava ao lado destas questões. Havia receios. Nunca se sabia quem estava ao lado.

Quando estes estudantes, saídos da Crise de 69, foram integrados na Marinha, na Força Aérea ou no Exército, já eram indivíduos muito mais politizados, do que outros das incorporações anteriores. Muito politizados e, muitos deles, muito revoltados. Sobretudo os que tinham sido expulsos da universidade, na sequência da Crise de 69, e que eu já não conheci como colegas. Muitos não se aperceberam do papel que os milicianos desempenharam no 25 de Abril. Fala-se nos Capitães de Abril e no MFA (Movimento das Forças Armadas), e bem, mas os milicianos tiveram um papel importante na adesão ao golpe, fruto da rebeldia da juventude e de alguma formação que tinham e que introduziram nos quarteis. Acabar com a guerra era importante para toda a gente, para os do quadro, para os milicianos e para a população em geral. Era a forma de se mudar de regime. E os milicianos foram importantes nas ações do 25 de Abril. Disseram "presente". Há figuras do 25 de Abril que destacaram o papel dos milicianos, sobretudo os vindos de Coimbra, depois de 69. Traziam uma cultura política, que foi muito importante para a formação política de capitães, designadamente, aqueles que vieram a formar o Movimento dos Capitães, mais tarde MFA. Salgueiro Maia confessou que a presença daqueles milicianos foi fundamental para a sua formação política. Melo Antunes,

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altamente politizado, também salientou o papel dos milicianos. É bom não esquecer que os milicianos aderiram à primeira, não questionaram. Quando o capitão, hoje, Coronel, Rui Guimarães perguntou: “Posso contar consigo?” Apenas respondíamos: “Claro que sim, Capitão! Consigo vamos para qualquer lado”.

A cidade de Guimarães, ao tempo, estava bem representada em Braga, pois para além do capitão Rui Guimarães também estavam no RI 8, o capitão Machado Ferreira, o capitão Sidónio, o capitão Soares Leite. Fui lá colocado em abril de 1973 com um grupo de amigos que ainda nos mantemos unidos, tantos anos depois.

Recordo que o RI 8 teve vários comandantes, mas a gente do meu tempo retém sempre dois nomes: o coronel Passos Esmoriz, que depois foi para o Porto, para o RI 6, que foi um dos homens da Revolução e que, após o 25 de abril, foi comandante da Região Militar Norte. Já o coronel Rui Mendonça, visivelmente um conservador, era o Comandante nessa madrugada. Foi tratado dignamente porque tinha boa relação com os oficiais do Regimento e aceitou ser apenas formalmente o Comandante não obstruindo a “linha nova do comando”, que passou, cremos nós, a pertencer ao capitão Rui Guimarães. Segundo parece, a distribuição de um panfleto anónimo, pouco tempo depois, ligando-o ao regime, levou-o a abandonar as funções por se considerar desautorizado e apresentou-se no Quartel General. A ideia que eu tenho é que o Coronel estava fora do quartel a pernoitar quando foi abordado pelo capitão Rui Guimarães. E, quando chegou ao quartel, foi o capitão Rui Guimarães que o recebeu e informou da

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Imagem 4 - Alferes de abril, colegas no R I 8, mais de 40 anos depois de 1974 Imagem 6 - Alferes de abril, colegas no RI 8, mais de 40 anos depois de 1974 Imagem 6 - Alferes de abril, colegas no RI 8, mais de 40 anos depois de 1974

situação que ele terá compreendido e aceite. No dia 25 de Abril, o Coronel Passos Esmoriz, que tinha sido comandante do R I 8, em Braga, já nos conhecia, tendo tido o RI 8 uma participação ativa na Região Militar Norte. E foi por isso que colaborámos em várias ações, na região Norte, sobretudo no Porto. As coisas aconteceram em Lisboa, sobretudo, e no Porto. No resto do país estava tudo mais calmo. Alguns alferes e furriéis formaram algumas secções e estavam disponíveis para prestar apoio ao comando da Região Militar Norte. Saímos de Braga comandados pelo capitão Rui Guimarães, em algumas missões, e pelo capitão Machado Ferreira, noutras, que eu me lembre.

Viemos a Guimarães, como retrata o Convite da Comissão Concelhia de Guimarães do Movimento Democrático do Distrito de Braga, comandados pelo capitão Machado Ferreira no dia 26 de abril, uma tarde de sol, e subimos para as varandas do Café Oriental, de onde várias pessoas se dirigiram ao povo: Eduardo Ribeiro, Santos Simões, José Augusto Silva, o primeiro presidente da Comissão Administrativa que dirigiu a Câmara Municipal, e julgo que também terá falado o Dr. Mota Prego. O então capitão Machado Ferreira, hoje também coronel, falou, em nome dos militares. Eu estive lá!

Entretanto, o Capitão Rui Guimarães já estava no Porto, acompanhado por outros colegas do R i 8, pois integrou, desde o início, o Movimento dos Capitães que deu origem ao MFA e tinha missões a desempenhar.

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Imagem 7 - Convite à população de Guimarães para participar numa manifestação de júbilo ao MFA

No Porto, estávamos de prevenção no CICA 2 (Centro de Instrução e Condução Auto n.º 2), onde víamos as notícias das televisões, para ver e ouvir o que era dito e o que estava a ser feito. Fomos, depois, fazer o controle do aeroporto de Pedras Rubras, que já estava tomado, mas com necessidade de reforço de segurança. Também colaboramos nessa missão. No aeroporto eram, normalmente, grupos de alferes que estavam presentes. Fiz equipa com o alferes José Castelar, também de Guimarães. Estivemos nesse tipo de missões durante bastante tempo, mas revezávamo-nos ao fim de um determinado período de tempo, regressando a Braga.

No regresso do Porto, parávamos nas cidades situadas no percurso. Numa dessas vindas do Porto

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Imagem 9 - O MFA agradece ao povo de Guimarães da varanda do Café Oriental - Largo do Toural, 26 de abril de 1974 Imagem 9 - O MFA agradece ao povo de Guimarães da varanda do Café Oriental - Largo do Toural, 26 de abril de 1974 Imagem 11 - O povo no Largo do Toural, 26 de abril de 1974 Imagem 11 - - Capitão Rui Guimarães no Largo do Toural em 29 de abril de 1974

viemos por Guimarães. Foi no dia 29 de abril, um momento alto para quem conhecia a cidade, como eu, voltar a vir a Guimarães com os companheiros de armas, neste dia comandados pelo então capitão Rui Guimarães, agradecer, informar e receber o apoio do povo. Reencontramos, de novo, o Dr. Santos Simões e aquele grupo de pessoas mais politizadas que apareceram na altura, uns mais jovens, outros mais adultos. Foi inesquecível. Foram momentos únicos que se viveram no Toural. Estamos a ver isto à distância de quarenta e sete anos, mas continuo a sentir muito aquelas tardes de abril. O capitão Rui Guimarães falou, improvisadamente, ao povo que nos envolvia em cima do próprio Jeep.

Quem viveu estas situações sente de forma diferente Abril. Foi uma alegria, um orgulho, poder participar num movimento que estava a libertar o país. Uns mais politizados, outros menos, mas sabíamos que estávamos a fazer História. Vir agradecer ao povo a adesão pacífica em nome do MFA. Esse é um momento fantástico e único que não esqueço. A forte adesão em Guimarães, mais ou menos consciente, foi muito natural e genuína.

Já não estive lá no 1.º de Maio de 1974, mas no Porto, para onde fomos destacados, de novo, e foi fantástico ver e conviver com a multidão a jorrar, como dizia Fernão Lopes. Saudavam-nos, acarinhavamnos, abraçavam-nos, traziam-nos de comer e de beber. Onde estávamos era sempre motivo de enorme alegria. Era um mar de gente e de cravos. Todos os dias muita gente ia ao CICA, a nossa base no Porto, saudar-nos e oferecer-nos coisas! Fomos sempre muito bem tratados.

Aquele 1.º de Maio de 1974 foi genuíno, como já referi. Todo o Povo aderiu. Hoje as pessoas são consideradas de direita, de esquerda, mas naquele dia era Portugal que estava ali. Uma vontade coletiva. Quem faz a Revolução é o Povo e o Povo estava ali. Nesse sentido, foi uma felicidade, a circunstância revolução do 25 de Abril ter sido uma semana antes do 1.º de Maio. Fez-se um ciclo de tempo muito curto e o Povo saiu para a rua a festejar a liberdade no dia do trabalhador. Como muitos, estive lá. Inicialmente foi um golpe de Estado que correu bem. Mas pode dizer-se que o 1.º de Maio de 1974 foi a festa do 25 de Abril, uma festa coletiva. Abril em maio parece-me bem.

No Porto, fizemos segurança à sede do MDP-CDE, situada acima da Trindade, já não me recordo do número de polícia. Movimentávamo-nos dali em direção ao edifício da Câmara, na Avenida dos Aliados. Era um mar de gente, era uma alegria. Era sobretudo uma cidadania enorme, o povo deu uma lição de cidadania, que deixa saudades. As pessoas, provenientes de diferentes quadrantes, jovens, velhos, todos, entendiam-se em torno do mesmo objetivo.

Entretanto, fomos vivendo o pós 25 de Abril, os movimentos que foram aparecendo e todas as convulsões que foram surgindo. Chegámos a ter de intervir em coisas desagradáveis, distúrbios em empresas, em

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estações do Caminho de Ferro, em comícios, em diversos locais e situações. Estava ali um país cheio de contradições.

Naqueles tempos, logo após o 25 de Abril, houve necessidade de ter os comandantes nos quartéis, até para não haver retaliações sobre o golpe militar. Nós também ficávamos muito tempo no quartel. Havia muitos dias e noites em que, de repente, entrávamos de prevenção. Quartéis de prevenção ao longo de muito tempo, com frequência. Uma reserva sempre pronta para acudir aqui ou ali. Quaisquer complicações que houvesse no exterior, como manifestações, problemas com trabalhadores e outras situações que viriam a agravar-se no tempo que se seguiu.

Começaram a surgir sinais complicados. Lembro-me, em Guimarães, no Teatro Jordão, de um comício do CDS. Mas outros houve. Em Braga, havia problemas todos os dias. Destruíram a Sede do PCP. O nosso distrito era difícil. Guimarães, Famalicão, Braga, o distrito não era pacífico.

Começaram a aparecer grupos mais rebeldes e esclarecidos, ditos de extrema-esquerda, que criavam sempre alguns desaguisados. Quando havia manifestações ou comícios, havia sempre militares de prevenção.

Um dos momentos mais difíceis que vivi, e estive em muitas situações nada simples, foi na Estação dos Caminhos de Ferro de Nine. O comandante da estação deparou-se com um grupo de soldados que se recusavam a pagar bilhete, mandando reter os comboios no cruzamento das linhas para Braga e para o Alto Minho, numa sexta feira à noite. Gerou-se uma situação explosiva entre pessoas civis(ansiosas), muitos soldados e o chefe da Estação. Uma multidão! Muitos soldados de tropas especiais (paraquedistas, marinheiros, comandos, rangers) e muitos outros exigiram da nossa ação ponderação, sensatez e equilíbrio na decisão. Liderei esse grupo de intervenção e pareceu-me adequado mandar seguir os comboios e foi o que fiz. Tínhamos 22 ou 23 anos! Mas sabíamos que corríamos o risco de pôr soldados contra soldados ou contra a população civil que já ali estavam ali, há horas, cansados e com vontade de chegar às suas casas. Foi a decisão certa. Fomos ovacionados e os comboios iniciaram a sua marcha em direção aos seus destinos.

Ainda era militar no “28 de setembro” e no “11 de março”. As coisas ficaram mais quentes. Só saí da tropa depois do 11 de março. Lembro-me que estava de licença nesse dia e tive de regressar ao quartel.

Do tempo dos quartéis, a memória que eu tenho é a de muitas reuniões envolvendo oficiais e sargentos. Recordo-me, por exemplo, da questão da unicidade sindical, em torno da CGTP, defendida pelo PCP, e da posição dos que defendiam a existência de diversas “Centrais Sindicais” (Unidade Sindical), defendida pelo PS. Dentro do quartel também havia um grande debate em volta desses temas. Tínhamos colegas nossos que já eram muito politizados. Uns militavam ou simpatizavam com o MES, outros com o MRPP, para

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falar dos mais à esquerda. O meu amigo e colega de quarto, António Mota, alferes como eu, era um dos bem formados ao nível da ciência política. Aprendi imenso com ele. Éramos todos colegas, amigos uns dos outros, cada um aderia ao que lhe parecia melhor e não pessoalizávamos as nossas opções e divergências.

No caso do nosso quartel, em Braga, logo que surgiu a discussão em torno da questão sindical, perdeu quem defendia a unicidade sindical. Ganharam os mais moderados do lado do Salgado Zenha. Os capitães de Abril, em geral, tinham uma ligação mais forte ao setor do Vasco Lourenço e do Melo Antunes, o que viria a ser o movimento dos NOVE, como veio a suceder. Eu revia-me nessa linha mais moderada.

Mas julgo que, por vezes, nem temos bem noção de como isto andou próximo de um embate mais sério, com consequências imprevisíveis. As divisões entre os militares, que geravam discussões bem acaloradas dentro dos quartéis, não eram mais do que o reflexo das divergências e contradições que a sociedade portuguesa estava a resolver consigo mesma. De repente, saltou tudo cá para fora, sucederam coisas extraordinárias, algumas inéditas. E não é por acaso que o mundo estava com os olhos postos em Portugal, desde intelectuais, militares, políticos. Éramos um balão de ensaio, uma revolução ao vivo, em direto. Tivemos o que se designou de “turismo revolucionário”. Hoje, a esta distância, é curioso ver as fotografias de Jean-Paul Sartre com uma G3 na mão a confraternizar com os militares. Contaram-me que Sartre chegou de total surpresa, sem conhecimento de ninguém e tocou à campainha de um quartel e disse: “sou o Jean Paul Sartre”. Passados momentos está com uma arma na mão a confraternizar entre os soldados e, dias depois, está a sugerir numa conferência no Instituto de Altos Estudos Militares que, em Portugal, as hierarquias militares tinham demasiado poder. Isto é um tanto estranho, para não dizer arriscado. Só naquele tempo se compreendia.

O debate era intenso e a política vivida com fúria, por vezes. O episódio do militante do MRPP atirado ao Tejo, e que morreu, é um exemplo de como as coisas nem sempre eram pacíficas. As prisões em série de militantes do MRPP são mais um exemplo disso mesmo. Contou-me o meu colega mais próximo, no RI 8, que, numa só noite, foram presos, sem qualquer mandato, 432 militantes do MRPP. Aliás ele escapou de ser detido mesmo por pouco, em Lisboa, no final de uma conferência do partido em que participou. Também queriam as gravações da conferência e a identificação de quem nela participou. Aqueles que ficaram detidos durante mais de três meses sem acusação ou julgamento, contavam que sofreram, no mínimo, humilhações constantes, mas houve quem sofresse mais ainda do que simples humilhações. Soltaram-nos sem qualquer explicação depois de muitas manifestações dos colegas em frente às prisões onde havia chaimites, tanques de água e o COPCON, claro. E, na nossa região, houve inúmeros casos bem graves. Um deles deu dois mortos na Têxtil Manuel Gonçalves, em Famalicão, empresa onde houve vários problemas. E

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aí foi com intervenção de militares. As coisas estavam muito quentes. A política era o assunto e, de um momento para o outro, toda a gente era política, discutia política, uma coisa incrível. Como é possível hoje pensar num debate político em direto na televisão durar quatro horas? E com uma audiência impressionante, tudo colado no ecrã. Mas foi o que sucedeu com o histórico debate entre Mário Soares e Álvaro Cunhal. Quatro horas. Ficou célebre aquele olhe que não Sr. Dr., olhe que não, com que Cunhal comentava as afirmações de Soares.

Participei neste período político muito especial com o prazer de um jovem rebelde. Depois, com a vida aprende-se e vamo-nos tornando mais maduros e moderados.

Não é por acaso que António Lobo Antunes – que não é propriamente conotado com a direita – quando lhe perguntaram qual foi o dia mais importante da vida dele, respondeu que tinha sido o 25 de Abril, mas também logo acrescentou que um dos primeiros sentimentos que então o assaltaram foi o de medo. Dizia ele que, até aí, tínhamos uma referência que já vinha feita, só tínhamos que recusar, ser do contra. Vinha daquele lado, éramos do contra. A partir dali, tínhamos de construir e construir dá muito mais trabalho. Temos de errar, levantarmo-nos de novo, caminhar. O primeiro sentimento foi de errar. Faz todo o sentido. Esse sentimento também passou por nós. Esse sentimento passava por todos. Éramos jovens, o 25 de Abril disse muito a todos, mas aos que estavam no serviço militar disse muito mais, porque nos retirava o risco de ir para uma guerra injusta e que não tinha solução militar. Depois daquele período inicial, fui para o serviço de informação interna. Criou-se, no quartel, um serviço de informação interna e colocaram-me lá. Todos lá iam ter: empresários e trabalhadores iam lá pedir auxílio, tantas coisas que não lhes podíamos dar. Esse serviço era da nossa responsabilidade. Estive lá com o Tarroso Gomes, praticamente até passar à disponibilidade. Controlava-se o material que vinha da Legião Portuguesa, da PIDE, e íamos armazenando, fazíamos relatórios diários para enviar para o Quartel General. Os responsáveis do serviço foram os capitães Rui Guimarães e, depois, o capitão Machado Ferreira. Quando havia eleições nos corpos gerentes de uma escola, por exemplo, ia a lista dos nomes candidatos a uma verificação prévia que passava pelo nosso serviço. Algumas vezes corriam boatos. A partir de certa altura, queria-se deitar abaixo alguém, dizia-se que tinha pertencido à PIDE ou até à Legião. Era a pior coisa que se podia dizer de alguém na altura, eram olhados de lado. O Eduardo Ribeiro fala disso no seu livro.

Mais tarde, estive nas sessões de esclarecimento do MFA, no distrito de Braga, e recordo-me de ter ido para as zonas de Vieira do Minho e Cabeceiras. Cheguei a ir com colegas, uma vez ou outra, com os mais politizados, que lideravam, e principalmente os capitães. Ia-se explicar ao povo o que era o MFA, como as coisas funcionavam, mas, já aí, de vez em quando, havia problemas. Várias tendências políticas ten-

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taram ser dominantes e as mensagens iam passando de modo muito contraditório, com divergências muito acentuadas. As aldeias eram mais conservadoras, pacatas. Havia sempre alguém que ia lá tentar fazer passar a sua mensagem e, se não agradasse, por vezes dava conflitos.

Na altura tínhamos o então capitão Rui Guimarães como grande referência para muitos de nós dentro de uma linha equilibrada e era o Comandante da minha companhia. Não tinham nada a ver com os radicais do pós 11 de Março. Era de formação dos comandos, militarmente com regras, competente, determinado e de grande humanismo. Como homem também era fantástico, um amigo que encontrei e mantenho para sempre.

E era muito necessário termos homens firmes, até para sabermos resistir àqueles períodos cheios de episódios contraditórios. Constou que, logo no dia 26 de abril de 1974, um grupo militar do Caçadores 9 trouxe alguns agentes da PIDE, cerca de 20, e libertou-os perto da Trofa. Uns discordavam e outros ignoravam. Havia notícias que não caíam bem. Uns prendiam-se, outros libertavam-se. Havia ordens superiores contraditórias. Não era fácil, naqueles momentos, assegurar uma atuação unívoca. Havia muitos setores militares a atuar, interesses e abordagens diferentes.

Quando saímos, no dia 25 de Abril, não sabíamos muito bem o impacto que aquela nossa ação viria a ter no futuro de todos nós. Os capitães perguntavam apenas: Vocês confiam em nós? Respondíamos: Confiamos! Voltavam a perguntar: Estão comigo? Respondíamos: Estamos! E lá fomos! Um pouco como a cena do Salgueiro Maia em Santarém: “quem quiser vir comigo dá um passo em frente”, disse o capitão Rui Guimarães. Demos esse passo, todos. Tivemos a felicidade de estarmos num espaço e num tempo em que pudemos intervir e fazer História. Calhou à nossa geração.

Se voltasse atrás, faria o mesmo. Hoje, estamos mais informados. A falta de informação nunca ajuda nada, nem ninguém. A minha participação deu-me gozo. Estive lá, vivi situações muito diferentes, sofremos alguns bocados, mas é um orgulho ter estado lá.

Nunca me envolvi em grandes debates sobre o 25 de Abril. Colaboro quando me solicitam. Não segui a vida política. Costumo dizer que o meu partido foi a educação, e foi-o ao longo da vida toda. E, dentro da educação, foi a formação dos professores, em particular. Ainda hoje, o que faço na Universidade Católica é em prol da educação. Vivo o 25 de Abril, sinto-o à minha maneira e nunca mais o esquecerei. Quando vejo aquelas imagens a passar na televisão, não deixo de me emocionar, claro. Ter estado lá faz muita diferença. É o problema da representação e da vivência. Entre a vivência e a representação, vai uma grande distância.

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Onde estavas no 25 de Abril?!4

É de Baptista Bastos esta pergunta irreverente, que se tornou popular durante vários anos.

Curiosamente, nessa ocasião, no dia 25, o Alferes Almeida em vez de estar em Moçambique como seria de esperar, ali não estava.

Ia quase a meio a sua comissão de serviço militar, pelo que, entendeu ser altura de tirar férias, indo à metrópole matar saudades.

E assim foi.

Foi em Abril de setenta e quatro…

Quando chegou a Guimarães, encontrou tudo na mesma. A única coisa que então lhe deu nas vistas, foi um edifício alto perto da estação. Era um hotel novo.

Os amigos da sua idade, não os encontrou que, como ele, tinham ido para as colónias. Era a guerra.

Na sua terra natal nada se passava. Era uma pasmaceira.

Por isso, esses dias de férias eram passados em Guimarães. Quer dizer, havia um motivo bem mais válido lá na cidade.

Conhecera pessoalmente a sua madrinha de guerra, a Fernanda.

A Fernanda era amiga da irmã do Alferes Almeida, a Maria do Carmo. Eram colegas no Magistério Primário de Guimarães.

Combinaram encontro na Clarinha e o miliciano gostou dela. Era faladora e bonita. Já estão casados há mais de quarenta anos.

Ora regressando a Abril de 74, um dia houve, que o militar em férias não foi à cidade.

Era quinta feira, 25. Às quintas, ia a sua mãe fazer a feira da Póvoa de Lanhoso e como o militar se encontrava em S. Martinho, serviu de motorista para a levar à terra da Maria da Fonte.

Manhã cedo, já estava na rua à espera da Dona Teresinha que, entretanto, tinha ido à mercearia da 4 Do livro por publicar “CRÓNICAS DE UM PAISANO- MEMÓRIAS DA VIDA MILITAR”.

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Areosa.

Vem a senhora num alvoroço, que houve uma revolta em Lisboa e até tinham prendido o Tomás e o Marcelo.

Foram os militares, dizia ela.

- Ai meu filho, isso será bom?!...

- Ó mãe, se prenderam esses dois, é um golpe de estado, para mudar o regime. E, se foram os militares, é para acabar com a guerra. Logo, é bom…mas o melhor é esperar para ver.

Não ficou o filho lá muito convencido dessa dita revolta, pois não era a primeira vez que os militares se movimentavam contra o sistema. Ainda não há muito, isso acontecera no quartel das Caldas da Rainha e o golpe falhara…por isso, as reservas…

No entanto, tudo isto se encaixava com o que dissera à sua mãe. Acabar com a guerra.

Em Moçambique sentia-se nos últimos tempos um certo desconforto da parte de muitos oficiais e comentavam entre si que a solução para o conflito não era a via militar. Essa já estava esgotada e cada vez se deteriorava mais a situação no terreno.

A solução passava pelas palavras e não pelas balas…

E foi com estas conjeturas que abalou para terras da patuleia.

Por lá foram sabendo que a coisa estava a vingar, mas o alferes ainda estava receoso.

No dia seguinte, logo cedo, foi para Guimarães.

A manhã encheu-se de estudantes que deixando as escolas, desfilaram pelas ruas da cidade com cartazes improvisados e palavras de ordem. Assistiu e ficou positivamente surpreendido.

Da parte da tarde, o largo do Toural foi-se enchendo de gente até ficar repleto.

A Comissão Concelhia do Movimento Democrático do Distrito de Braga, convocara uma manifestação em Guimarães.

Perante um mar de gente, nas varandas do Oriental, elementos das Forças Armadas, vindos do Regimento de Infantaria 8 e os democratas organizadores. Entre eles, o seu amigo, Jorge do Nascimento, jovem oficial miliciano.

Falou um capitão, falaram o Dr. José Augusto, Eduardo Ribeiro e Dr. Santos Simões.

Soaram bem ao paisano militar as palavras dos oradores, especialmente quando aquele que fora seu professor de matemática se referiu à Guerra Colonial, exigindo o seu fim e imediata descolonização.

A coisa vingara mesmo.

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Sinceramente, não sei ao certo o dia de embarque para Moçambique.

Mas foi quase logo, logo.

No aeroporto da Portela, era noite e já dentro do avião, recebemos ordens para voltarmos a sair.

Eramos quase todos militares, saindo ordeiramente da nave.

No aeroporto ficamos a saber de um aviso de ameaça de bomba no avião.

Aguardamos serenamente e, horas volvidas, surgiu o aviso de novo embarque. Fora falso alarme.

A viagem correu longa e enfadonha.

Chegado ao quartel, todos queriam saber novas da revolução.

- Ó meus amigos, aquilo vai uma festa. Querem acabar com esta guerra. E até dizem “Nem mais um soldado para o ultramar!”

Cheguei mesmo a pensar que já não vinha…

Pouco depois da minha chegada, tivemos a visita do estratega do golpe.

O Otelo reuniu com os graduados e deu-nos conta do que pretendiam.

Quase todos eramos analfabetos políticos.

Criaram-se mesas redondas onde os graduados opinavam. A maior parte pouco dizia…era a expectativa. Alguns, até então apagados, deram nas vistas com saberes escondidos.

Entretanto, eram notórios os diferentes estados de espírito das pessoas.

Os soldados brancos eufóricos com um regresso antecipado que se perspetivava…

Os militares nativos angustiados com possíveis represálias da Frelimo.

Os colonos preocupados com a descolonização anunciada.

Estes últimos começaram com movimentações em tudo preocupantes, que mereceram atempados procedimentos da parte das forças armadas.

Cedo a euforia das nossas tropas esmoreceu.

Na Zona do Dondo, os soldados faziam barricadas submetendo todos os veículos a aturada inspeção. Para ali fui mobilizado várias vezes com soldados armados de G3.

As maiores vítimas eram os caçadores que vindo de Gorongosa em direção à Beira, ficavam sem as armas de caça grossa, muitas delas de mira telescópica.

Preenchíamos um formulário com o nome do proprietário das armas e a identificação do armamento.

E as movimentações prosseguem.

O quartel dos GEs passou a ser ocupado por tropas vindas do mato.

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Quem nele estava foi para o quartel do Dondo. Só que neste também foram colocadas mais tropas que, entretanto, chegaram.

Havia confusão e os soldados ali colocados, a maioria nativos, não nos respeitavam, pois só estavam acostumados a obedecer aos seus superiores diretos.

Nos fins de semana havia milando, ou seja, zaragatas, por causa do álcool.

Os graduados já não pernoitavam no Dondo, mas sim na Beira. E isso até foi bom, pois era uma maneira de mudarmos de ambiente e ainda por cima a messe dos oficiais de Macuti, mesmo em frente ao mar, era melhor que um hotel.

A comida era excelente e o bar tinha bebidas boas e baratas.

O pior era quando estávamos de serviço e dormíamos no quartel…se calhava ao fim de semana, era mesmo mau!

A Beira ficou cheia de tropa vinda do mato…

Aquilo foi um purgatório.

Só a seis de dezembro cheguei ao céu.

Era mesmo um Portugal novo, aquele que encontrei.

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25 de Abril, Quarenta e sete anos depois!

Victorino Costa5 victorinocosta2@gmail.com

Quarenta e sete anos! Parece que foi ontem!... O tempo passa, deixa as suas marcas indeléveis, indiferente, majestoso na sua imponência avassaladora. Mas os sinais, esses deixa-os, para que os possamos ler, os possamos recordar, enquanto o destino tal permitir. É na procura dessas recordações que penetro nos escaninhos do meu límbico hipocampo onde se sediam as memórias de longo prazo, que me permitem viver o ‘hoje de ontem’.

25 de abril de 1974!... Esbaforido e apressado desço em marcha rápida a rua Gil Vicente, na tentativa de superar com a maior eficácia os cerca de cinco minutos que faltam para a aula das 08.30, na Escola Comercial e Industrial de Guimarães. Concentrado na preocupação de chegar a horas, alheio-me totalmente do que me cerca. Estou a chegar ao portão. Olho o relógio e suspiro nos dois minutos de escadas que tenho pela frente até chegar à sala de professores. Ufa, ainda vou chegar a tempo!...

Só então reparo no portão semicerrado, na ausência de movimento. O sr. Constantino, chefe do pessoal auxiliar, com um olhar sorridente, mas enigmático, lança-me o aviso:

- Não corra, sr. Professor. Hoje não há aulas, a escola está fechada.

- Fechada, mas porquê, sr. Constantino? - questiono eu com um olhar de espanto.

- Foi ordem lá de baixo de Lisboa. Parece que há por lá m….

- M…, mas quem…?

- Eu sei lá. Olhe vá até casa e veja se consegue ver ou ouvir qualquer coisa, ou então vá até ali ao Toural, onde já não falta gente.

Só então me apercebo do que me rodeia. À porta do quartel dos bombeiros (onde agora é o Triângulo e o início da rua S. Gonçalo) dois ou três grupos de voluntários a conversar com ar preocupado. À entrada do ‘Meia Noite’, (mais tarde ‘La Coupole’) mais grupos, situação idêntica à que

5 IESF-Instituto de Estudos Superiores de Fafe.

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se passava à porta do ‘Café Vitória’. Algo realmente se deve passar, não há dúvida. Seja o que for, vamos lá até ao Toural.

Entro na rua Paio Galvão, envolto numa nuvem cinzento-escura, composta de incerteza e ansiedade. Percorro-a, angustiado, passo a entrada Norte para o Mercado Municipal e o Museu Martins Sarmento, apercebendo-me do movimento cada vez mais compacto. Pessoas apressadas, aos pares, a falar e a gesticular descoordenadamente. Observo e concluo que deve mesmo ter acontecido algo importante.

Entro no areópago da cidade, o Toural. Ao longo dos seus canteiros floridos (que lindos que ficavam…) grupos de pessoas, a conversar, a gesticular. No cimo das árvores que ladeiam o recinto, cirros negros que a incerteza tecia, mesclados de pequenas clareiras de um azul-esperança. À volta da fonte (agora frente à Escola Francisco de Holanda) magotes de pessoas. Vejo ali, mesmo em frente do Banco de Portugal, um grupo de conhecidos e amigos. Curioso, dirijo-me para lá, na ânsia de uma resposta, que abrande as minhas incertezas. Nada se sabe ao certo, mas parece que há uma revolução em Lisboa. Falta é saber a favor de quem. Os comunicados das Forças Armadas dizem que está em curso um movimento para libertar o país. Mas será que vence? A incerteza aumenta a cada minuto que passa, a cada notícia que surge. Numa dialética quase incompreensível, oprime, mas alimenta a esperança. Dúvidas mescladas de desejos, de sonhos amassados na desilusão.

Após perpassar por diversos grupos decido ir até casa para ver se consigo algo de mais concreto na rádio ou na televisão. São 11 horas da manhã: ligo a televisão e a rádio, que pouco mais fazem do que repetir comunicados anteriores, intervalados de marchas militares. Até que… 11.15 horas, um novo comunicado ao país. Vamos lá a ver o que se passa!...

Ah, agora sim. Agora já começamos a ver luz ao fundo do túnel, já ficamos a saber com mais clareza do que se trata “… com o objetivo de derrubar o regime que há longo tempo oprime o país, as Forças Armadas informam que de Norte a Sul domina a situação e que em breve chegará a hora da libertação”.

Mas libertação de quê e de quem? As Forças Armadas, em princípio são fiéis ao regime! Há que esperar pela hora do almoço para regressar ao Toural à procura de novidades.

A tarde passa-se num misto de esperança e euforia contida, intervalada com umas cervejas

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bem geladas, que da Docélia, do Café Toural, do Milenário ou do Mourão facilmente se alcançam. Ao fim da tarde, um ‘sururu’, um aglomerar das gentes que confluíam da Paio Galvão, o surgir carros do exército onde, em pé, num jipe, vem um oficial, um capitão. Instintivamente, como num

‘tsunami’ a multidão corre toda naquela direção. Alguns já não se contêm e gritam Vitória, Liberdade. Pouco tempo antes, soubera-se já da rendição de Marcelo.

De uma das varandas do Oriental, o capitão Machado Ferreira do RI 8 de Braga dá a notícia oficial da vitória da revolução. Fala da aliança Povo-MFA, fala de liberdade. Quando acaba, o Toural explode num clamor enorme que abraça toda a cidade, que se propaga por todo o país. As pombas dos telhados de Igreja de S. Pedro e casas contíguas irmanam-se num voo de felicitação, no que são acompanhadas por dezenas de levandiscas, entretanto regressadas aos ramos das árvores do Toural. No firmamento, o céu espelha um azul-felicidade, debruando no horizonte uma longa e intensa mancha vermelha que emoldura, naquele pôr-de-sol, as pétalas escarlates de um gigantesco cravo de uma ansiada LIBERDADE.

Agora, aqui sentado, recordo aqueles tempos, vivo-os quase com a mesma intensidade daquele dia. Imagino-me, de mãos dadas convosco a entrar no comboio do tempo, para refazer as linhas que urdiram ABRIL.

Entremos, então! Vamos esperar que as carruagens transportadoras do passado se interconectem, para nelas, sub-repticiamente, podermos penetrar. Indecisos? Também eu!

Por que carruagem começamos? Pela pintada de negro, ou vamos antes pela pintada a verde, enquanto perpassamos pela amarela?

Na indecisão, vamos arriscar e começar logo pela primeira. É a carruagem da ditadura, da desgraça, da opressão, da emigração e da miséria. É a preferida dos atuais ‘pavões’ da política que, sem terem perpassado pelos trilhos desta carruagem se apresentam hoje como corifeus salvadores de uma realidade que nunca viveram. Mas ‘Chega’! Vamos entrar!...

Reparem, logo nos primeiros assentos; eis os esbirros da opressão. PIDE, grandes monopólios, miséria, emigração, guerra colonial, exploração!...Horror de tempos silenciosa e angustiosamente vividos e que a ‘gentalha neofascista’ de agora parece querer reviver. Pena que não tenham sentido na pele o que sentimos, que não tenham sido submetidos à opressão a que nos forçaram. Teriam, certamente, outra postura,

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outra maneira de ser… Mas esperem, esperem! Reparem naquela nuvem que fugazmente perpassa. Tão densa, tão branca de esperança. É a campanha de Humberto Delgado, grávida de esperança, prenhe de sementes que florirão, pese embora a brevidade, já que a ditadura, pelas mãos da PIDE, vil e cobardemente a assassinou.

Atravessemos rapidamente, a carruagem amarela, a da desilusão. Aquela que, logo após a morte do ‘ditador’ nos deixou vislumbrar um horizonte de mudança, de imediato esmagada. Carruagem fétida, porque insidiosa, querendo parecer o que não é. Foi a época marcelista, dominada por ‘invertebrados’, pelo engano, pela insídia. Não vale a pena permanecermos aqui mais tempo. É o rosto da ditadura, imersa nas águas mornas e infetadas da podridão, da mentira e da demagogia. Por isso, vamos à carruagem seguinte, a carruagem verde.

Esperem. Não avancem já. Reparem que a ligação entre as carruagens parece querer partirse. Sente-se um vapor de frescura, de mudança a surgir no horizonte. Paira no ar um perfume de pétalas de um cravo perdido, que, esvoaçando nas asas do vento da esperança nos pedem que entremos, com audácia, sem receio. Mãos dadas, aí vamos nós.

Entremos de uma vez por todas. Esplendorosa, brilhante, assentos pétalas de cravos vermelhos a pedir a mudança, a afirmar liberdade, sustentados nos verdes caules de esperança anunciada.

Raios de um sol dessa esperança resplandecente entram a jorros pelas janelas. No teto, um firmamento sem nuvens de opressão, pleno de estrelas ponteadas de anseios, desenhando no firmamento o que de mais belo tem ABRIL: LIBERDADE!

Avancemos, depressa, antes que o tempo acabe. Mergulhemos com todas as nossas forças no seio dessas pétalas de revolta, de luta, de sofrimento; agarremo-nos com ganas a esses verdes caules de esperança, porque, mesmo ali, à nossa frente, resplandece, encantadora, a luz da LIBERDADE!

Liberdade que jorra do apito do comboio, que ecoa na voz de um povo que grita que ‘unido jamais será vencido’, que afirma com todas as forças jamais querer voltar ao passado, jamais tolerar a opressão, a miséria, os fantoches demagogos que, servindo-se do lado mais negro da empatia, procuram aliciar os mais incautos, os desiludidos.

Olhemos o horizonte, onde esvoaça a auréola dessa liberdade, em nuvens de sonho soltos

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das pétalas dos cravos, do som dos gritos incontidos de um povo que rejubila, porque finalmente livre. Comissões de Moradores, Centros Culturais e Educativos, Aliança Povo-MFA, Cooperativas… rios com águas de sonhos e margens de esperança. Mundo único, de riqueza ímpar, só plenamente compreendido, por quem ABRIL viveu!...

Ei… o que foi isto? Porque parou o comboio? Chegamos à estação da contemporaneidade. Olhamos à nossa volta. Custa a acreditar no que vemos!...

Quarenta e sete anos depois, as esperanças de ABRIL jazem por terra nas pétalas esmagadas dos cravos. Jazem na indiferença e no cansaço da desilusão valores há quarenta e sete anos ansiados, aplaudidos, com sangue e sofrimento conquistados. Nas paredes da estação brilham as cores da partidocracia, da corrupção, do compadrio, da vilania na justiça. As tintas da demagogia fácil começam a denegrir as cores da carruagem que, de verde, se vai paulatinamente mudando novamente para negro. Novos ‘vampiros’ assomam às janelas, com sorrisos amarelos, sedentos de poder e opressão. Incontida, corre-nos pelo rosto uma lágrima desiludida, escorreita no sal da desilusão de tanta esperança esmagada no oportunismo que a partidocracia a cada dia em seu venenoso ventre engendra.

Sonhámos um mundo de liberdade, de democracia. Cedo, porém, o maior cancro da democracia, a partidocracia, começou a corroer sub-reptícia, mas inexoravelmente as suas veias. Oportunismos, nepotismo, corrupção, passaram a ser moeda corrente, dando razão aos apelos de uma nova ditadura, capaz de deixar em ordem o caos em que os ‘vampiros’ querem transformar o país.

Mas, deixem-me gritar bem alto e com toda a força dos meus pulmões, nada disto foi, é, ou será ABRIL. Foi e é o resultado do oportunismo, da vilania, da ganância, da falta de escrúpulos daqueles que, alimentados nos e pelos bafientos mantos da partidocracia gangrenam a toda a hora as veias da democracia.

ABRIL foi maravilhoso. Foi o eco do grito incontido do sofrimento de meio século de opressão e tirania de um povo. Foi o clamor imenso pela liberdade, pela igualdade, pelo progresso.

É assim que recordo e quero continuar a lembrar ABRIL!

O cravo da liberdade, queiram ou não, continuará a germinar, independentemente dos esforços daqueles que o querem matar, porque traz no seu ventre, eternamente parida a essência da

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humanidade, a LIBERDADE.

Desenganem-se os corifeus da desgraça, os candidatos à ditadura, à opressão e demagogia e à vilania. Enquanto a nossa geração tiver forças, há de gritar bem alto que ABRIL está e continuará vivo, ‘queiram, ou não queiram os papões’ .

E esta certeza será a força que alimentará ABRIL nos mais jovens, naqueles que dele apenas ouviram ou ouvem falar. Dizemos-lhes, olhos nos olhos, que se não deixem enganar pelas vozes vampirescas dos demagogos, dos oportunistas, dos partidocratas. Por isso, e para que nunca o esqueçam, termino este meu grito com parte de um poema que, há meia dúzia de anos atrás, ofereci aos meus alunos, na esperança de que neles germinem as sementes da esperança, o desejo insaciável da LIBERDADE, que ABRIL pariu!

ABRIL foi um sonho. Sonho de um povo amordaçado, De um país anos a fio humilhado, Em cada esquina destroçado.

ABRIL foi o culminar de uma luta, Engendrada no silêncio dos quarteis, Na resistência, nas perseguições, No sofrimento e miséria de um povo, Que a partir da sua dor Fez raiar um dia novo!

ABRIL foi acordar, Sair de um pesadelo, Calcar com raiva o medo, Soltar-se da ligadura Que durante meio século Nos prendeu à ditadura.

Por isso, ABRIL não é só uma data, Um mero acontecimento.

ABRIL é a história de um povo, A história da sua luta, Expressão do seu sofrimento.

Dir-vos-á alguém que ABRIL foi um erro;

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Que não passou de um engano, D' infeliz acontecimento.

Não acrediteis!... Abril teve erros, é certo; Permitiu desvarios, Oportunismos, Deslealdade. Mas ABRIL, Ninguém o pode negar, Trouxe o que de mais caro há ao homem, O direito à igualdade Trouxe-nos o que de mais digno temos, a nossa liberdade!

A liberdade, O maior dom que o homem tem, Que lhe dá identidade, Que lhe permite afirmar-se como ser! Sem liberdade, não somos ninguém, Somos fantoches nas garras das ditaduras, Marionetas presas em inconfessáveis ligaduras, Carne para canhão, Daqueles que nos 'chupam' o sangue, Que nos arrancam o coração.

Disfarçados em roupagens mil, Hoje querem trucidar ABRIL. Esquecem-se, porém, Esses neofascistas e partidocratas, Que ABRIL não morre, não morreu, ABRIL está e estará vivo!

Porque ABRIL sou eu, É cada um de vós, É a história de um povo, Que somos todos, Todos nós!...

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25 de Abril

Aquela velha e teimosa senhora chamada Utopia

António Mota6 mota.antonio.mr@gmail.com

Ao Coronel Rui Guimarães e ao Dr. Jorge Nascimento Silva, em reconhecimento e homenagem.

1.

Ensinaram-me, ainda menino, nos bancos da escola, um certo sentido épico da História de Portugal. Daí, talvez, este meu arreigado apego à terra e ao povo a que pertenço. Para mal dos meus pecados, pertenço à raça daqueles que não concebem viver sem a sua terra e sem a sua gente. Trazem-nas no peito. E com elas a dor de quem muito exige, porque muito lhes quer - até aos limiares da injustiça, que é o exigir transfigurações a quem não sabe, não quer, ou não pode dar mais.

Esse sentido épico mantém-se e reforça-se criticamente com escritores que me fascinam e me apaixonam: Fernão Lopes, Camões, Vieira, Antero, Herculano, Aquilino, Jorge de Sena, Torga. Também Pessoa, na Mensagem. Em todos eles ressuma uma tensão épica, utópica e mítica que, a um tempo, me seduz e magoa. O mesmo direi daquele 25 de Abril, já quase só mito, onde pulsou o fogo da alma que alimenta a vida.

Foi a 25 de Abril. Poderia ter sido noutro dia qualquer. Mas foi a 25. A mudança era inevitável. O regi-

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António Mota, natural da Portela das Cabras, Vila Verde, Braga. Tem uma forte ligação afectiva a Guimarães, onde, dos 10 aos 14 anos estudou, no seminário do Verbo Divino, na Costa e na Madre de Deus, tendo feito o antigo 4º ano no Liceu de Guimarães. Estudou na faculdade de Direito de Coimbra, e na UM (Universidade do Minho). Professor de Língua e Literatura Portuguesa, dedica-se hoje à escrita de intervenção crítica e literária. Foi Alferes Miliciano, em Braga, no RI8, no 25 de Abril, juntamente com o também, então, Alferes Miliciano, Jorge do Nascimento Silva, hoje professor universitário, amigos de mútua confiança e cumplicidade, bem necessária nesses tempos de resistência nada fácil. Ambos tiveram por Comandante de Companhia o, então, Capitão Rui Guimarães, também de Guimarães, hoje Coronel, o homem forte do 25 de Abril, no Regimento de Braga, e não só. Dedica o autor o presente texto ao Coronel Rui Guimarães e ao Dr. Jorge do Nascimento Silva, em reconhecimento e amizade, e em homenagem.

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me fascista era uma maçã bichosa. Podre. Incapaz de se suster. Qualquer aragem a faria cair. E fez. Estava tudo cansado e descrente. Mesmo os indiferentes. Mesmo os ignorantes. Mesmo os colaboracionistas e os "bufos". Todos sabiam que a queda do fascismo era iminente.

Caiu a 25 de Abril. Sonhos secretos explodiram, contagiando tudo e todos. Rebentou-se o calendário parado num tempo que nos abafava. Acabou o pesadelo castrante da ridícula ditadura que nos mantinha isolados e imóveis numa Idade Média fora do tempo. Reencontrámos o nosso tempo. Recuperámos o nosso orgulho de pátria. Reconciliámo-nos todos numa esperançosa bebedeira de vida. Fomos actores de primeira nos palcos da rua. E, numa alegria épica de povo, pintámos tudo de cores garridas, e inventámos um mito. Demos-lhe um nome - 25 de Abril.

2.

A história, porém, não se faz num só dia. Mas há dias que fazem história, por consubstanciarem ideais que longa e sofridamente esperaram para florir. Foi o que aconteceu a 25 de Abril de 1974, neste país isolado, ofendido e humilhado, onde as espingardas floriram em cravos. Mas esse dia, que hoje é mito, não se descomprimiu abruptamente do nada, por capricho dos deuses. Nasceu de gestos e de atitudes de homens e de mulheres que ousaram sonhar e que ousaram erguer a voz contra a ditadura, pela liberdade, numa resistência de muitos e longos anos.

Foi o caso de Humberto Delgado, e de todos quantos o acompanharam no desafio à ditadura nas eleições presidenciais de 1958, cujo combate por um regime democrático abriu brechas na suposta solidez absoluta do Estado Novo, e mostrou que a conquista da liberdade exige coragem, determinação e ousadia. Foi também o caso de muitos outros, em associações clandestinas, em associações “toleradas”, em gestos de coragem individual. Todos eles deram passos decisivos para que se criasse aos poucos uma nova mentalidade e uma nova cultura política, ao recusarem ser escravos do medo, pagando, embora, um preço muito elevado – a discriminação, a perseguição, a prisão, e até a morte.

Associar, pois, todos esses homens e mulheres, e o eco positivo da sua luta pela liberdade, com o 25 de Abril de 1974, afigura-se-me não só lógico, como justo, dada a sua acção precursora pelo derrube da ditadura e pela instauração de um regime democrático.

Dizer isto não é apoucar os homens de Abril, mas sim mostrar a consequência histórica da razão do seu nobre gesto e, deste modo, dignificá-los mais, não deixando que o 25 de Abril se confunda com uma mera acção corporativista, militarista, desgarrada e voluntarista, sem ligações profundas com a história e com a alma de um povo. Na verdade, e sem deixar de reconhecer alguns dos chamados homens de Abril, e

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lhes prestar homenagem pela grande coragem que demonstraram, outros heróis há que os precederam: os que longamente resistiram, os que não desistiram, os que se sacrificaram, os que morreram.

3.

No 25 de Abril, o verdadeiro herói foi colectivo. Como em Fernão Lopes. Para legitimarem o Mestre. Foi o povo que, com a sua acção transfiguradora, épica e utópica, legitimou o golpe militar de Abril. Cada vez se vai falando menos desse povo na rua, marginalizando a sua acção, e não lhe dando a relevância histórica que por direito tem.

Nas comemorações oficiais e nacionais do 25 de Abril vê-se bem essa marginalização. Elas primam, regra geral, pela ostentação da pompa, da circunstância e do alarido, aliando a sua efemeridade a um sensacionalismo promotor dos celebrantes, à custa do apagamento da importância do acto celebrado, naquilo que ele tem de histórico, sociológico e politicamente sério.

Nessas comemorações, promovem-se uns e esquecem-se outros, de acordo com as conveniências, as circunstâncias e as simpatias. Fazem-se listas de quem é e de quem não é de Abril; de quem é e de quem não é herói. Este jogo chega a atingir os limites do brincar com a memória crítica de quem viveu os acontecimentos, tentando reescrever a história, mutilando-a. E é por isso que os oficiosamente identificados como heróis de Abril, vítimas muitas vezes de si próprios, e destas vicissitudes, vão aparecendo como heróis sem a consistência necessária para serem tais.

O povo, esse não cabe, nem poderia caber, nas listas. Deixou o palco da rua e os celebrantes subiram aos palanques das comemorações decorativas e do elogio fácil. Do elogio fútil. Do elogio mútuo, onde cabe tudo. Assim, as comemorações foram perdendo o espírito de Abril, restando-lhes quase só o simulacro.

Mas o que é que foi ou como é que foi verdadeiramente o 25 de Abril? Que resta dele? O que é que se perdeu e o que é que se ganhou? Como recuperar o seu sentido épico?

4.

O 25 de Abril foi um golpe de Estado, conduzido por oficiais intermédios, os capitães, seguido de uma revolução popular, que os militares não previram nem tiveram condições de conter ou de controlar. Vitoriosos no golpe, os capitães não entregaram o poder aos generais, quebrando desse modo a cadeia de comando, e enfraquecendo drasticamente o poder político-militar, que não mais conseguiu conter os ventos da liberdade, à solta pelas ruas do país.

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O povo saltou para a rua, e foi na rua que explodiram todas as tensões acumuladas na sociedade portuguesa, assistindo-se a uma enorme vaga de reivindicações sociais e políticas. Esse movimento popular discutia tudo, e tudo transformava num mar de esperanças, não aceitando outro limite que não fosse o sonho da criação imediata de um céu na terra. O poder político-militar, esse quase sempre seguia a reboque da acção empreendedora desse povo eufórico.

O povo perdeu o medo, que respeito já não tinha, ao aparelho de repressão política do regime, cercou, assaltou e destruiu a PIDE, a Legião, a Mocidade Portuguesa e a União Nacional. Não pediu licença a ninguém e conquistou, na rua, sem que ninguém lhas tivesse oferecido, as liberdades de associação e de expressão a todos os níveis. E isto é que foi a revolução. Isto é que fez tremer todas as hierarquias instituídas, e ousou mesmo alterar radicalmente a relação de forças existente no plano salarial, das condições de trabalho, da segurança social, da contratação colectiva, das férias pagas, da liberdade de organização sindical, da justiça social, e questionou até a própria apropriação privada dos meios de produção.

O que resta de tudo isto? Sabemos que muitas das conquistas de Abril foram traídas, derrotadas, subvertidas, abandonadas, principalmente com prejuízo, e isto é que dói, do mundo do trabalho, do mundo das preocupações sociais. Em alguns domínios, de recuo em recuo, foi-se perdendo tudo. E em muitos, que viveram esses acontecimentos, e neles participaram de forma activa, surgiu a tristeza, o desencanto, o abandono, a mágoa, o cinismo até. Foram-se embora, e a política ficou mais pobre sem eles. E continua cada vez mais pobre sem eles. E quase ninguém os veio substituir.

Nem tudo foi em vão, porém. Muito do essencial foi-se. Permanece, porém, ainda algo a realçar e a ter em atenção, quer no domínio das liberdades conquistadas, quer no domínio dos direitos sociais (cada vez mais ameaçados) e políticos então alcançados, quer no desenvolvimento alcançado, quer na abertura ao mundo.

Perdeu-se muito do 25 de Abril. E, nos tempos que correm, continua a perder-se muito do que se esperou, muito do que se sonhou, muito do que se conseguiu. Perdeu-se a ousadia, a coragem e a frontalidade; perdeu-se a motivação, a espontaneidade e a sinceridade; perdeu-se a vontade, os sentimentos e as ideias; perdeu-se a paixão; perdeu-se até a esperança e a utopia.

5.

A revolução foi uma paixão, explosão de energias incontroladas e excessivas que nos encheram a alma. Mas, naturalmente, foram-se diluindo na normalização das instituições democráticas. Tudo entrou na normalidade. Tudo ficou normal. E hoje o normal tornou-se tão assepticamente normalzinho que já é in-

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comodativo. Morreu a revolução. Morreu a paixão. Fugiu o sentido épico duma consciência de povo orgulhoso, crente e vivo.

A paixão é sempre breve e tem de morrer, pois a sua beleza excessiva absorve-nos e vira-se contra nós. Mas esse tal sentido épico não. Deveríamos recuperá-lo, por amor á liberdade, à democracia, à participação, à consciência, à responsabilidade individual e colectiva. Sem ele, aproximamo-nos a passos largos do empobrecimento catastrófico de ideias, da diluição dos valores, da política reduzida a uma coutada de profissionais, cujos lugares se pagam ao preço da obediência e do silêncio.

Precisamos de reencontrar esse sentido épico da acção como povo. A política precisa de voltar a ser vivida por todos. Se não com paixão, que não há como a primeira, pelo menos com o amor próprio que dignifica o homem no exercício das responsabilidades que lhe competem como ser. Só assim se evitará este adormecimento castrante e irresponsável, e se incentivará a fecundidade e a responsabilidade do livre pensamento, do espírito crítico e da memória crítica, cada vez mais necessários.

Esta seria a melhor forma de honrar o sentido épico que nos vem da história, dos nossos melhores pensadores e do espírito de Abril.

E o que deve dar ânimo a todos os que honradamente se bateram, ontem, e se batem, hoje, pela implantação, aprofundamento e dignificação permanente da democracia, continua a ser aquela velha e teimosa senhora, chamada utopia, e que dá também pelo nome de liberdade e de democracia, que nos deve guiar na construção de um mundo melhor para todos, com o empenho de todos e com a participação dignificante e consciente de todos.

Só essa velha e teimosa senhora, chamada utopia, nos pode dar o fogo do ser. Porque a utopia é a alma de um povo. E um povo sem alma não é povo nem nada. Porque a utopia é a alma do homem. E um homem sem alma é um cadáver adiado. Seja a utopia nossa companheira. E a ousadia.

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Memórias de Abril

Safa! Já lá vão 47 anos!?

Quem diria que a existência corresse tão rápida, nesta maratona da vida!

Porém, no sótão das coisas de antanho, tudo continua vivo neste baú da memória impressiva!

Recordo-me claramente: era o dia 25 de Abril de 1974 e estava no sul da Guiné-Bissau, nas margens do rio Cumbijã, próximo da fronteira da Guiné Conacri, conhecida pela floresta do Cantanhês e “estrada da morte”.

E lembro-me nitidamente dessa manhã e de ouvir na rádio, em língua francesa, essa notícia: “Coup d’état au Portugal”. Um tanto ou quanto estupefacto e sobranceiramente, presumi que o 16 de Março só agora chegara (tardiamente) a África! No entanto, na messe já se festejava euforicamente. O furriel Pacheco gritava a plenos pulmões impropérios de vingança contra os fascistas que não tinham autorizado a instalação de matraquilhos na sua Tabacaria Açoriana, em Ponta Delgada! Mas, agora, tudo ia ser diferente …

Então, o capitão Jorge Belo do MFA explicaria o que se estava a passar. E, ato contínuo, solicitaria a oficiais e sargentos a adesão ao Movimento das Forças Armadas, que o comandante do batalhão estaria a refutar cautelosamente. Porém, perante a resposta positiva e unânime, só restaria a detenção do tenente-coronel, comandante do batalhão, que se consumaria.

Todavia, nesse mesmo dia, ainda ocorreriam intensos bombardeamentos aéreos e, por parte do “inimigo”, a resposta com morteiros, indicativo de que as cadeias de comando ainda não estavam perfeitamente alinhadas.

Seguiu-se uma noite de alegres copos, não obstante a comissão de serviço estar prestes do fim. Mas era o fim duma guerra do gato e do rato que nos havia cau-

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Imagem 12 - Monumento de homenagem aos 13 falecidos em combate

sado 13 mortos e alguns inválidos, já muito próxima daquele tempo psicológico do final da comissão de serviço, gerador de maior “medo”.

Dias depois seríamos transferidos para a capital para manter a ordem em Bissau, face a inúmeras pilhagens e outras situações delicadas. As rondas em Bissau seriam assim preenchidas entre missões e repastos mais reparadores, no Pelicano ou Grande Hotel (não tão grande quanto se supõe), bem como a segurança a instalações variadas. Recordo o bom dormir no aquartelamento da PIDE, com excelentes quartos de ar condicionado, sem mosquitos!

Contudo, a melhor noite seria a da segurança na estação de rádio, que estava sob a alçada do Comando-Chefe das Forças Armadas. Que noite de música “revolucionária”!

“Venham mais cinco” e “Traz outro amigo também “de Zeca Afonso, nessa noite, faziam-nos companhia bem como “Grândola, vila morena” e muitas outras cantigas de Abril ou “Cantigas de Maio”, até à “Madrugada dos Trapeiros” …

Umas semanas depois chegaria o momento de “descanso” na área de Bafatá, onde permaneceríamos até fins de agosto. Coubeme o destacamento de Cambaju, na fronteira com o Senegal, controlado com um simples cancelo de arame farpado, protegido por fortes obuses, a cargo de um pelotão de artilharia.

E aí, os primeiros contactos com o “inimigo”, à volta de uma gamela de arroz comido à mão, seguido dias depois, de um opíparo almoço de retribuição, na nossa messe, com frango no churrasco, e a presença de um oficial senegalês. Mas também futebol de descalços contra calçados (que os descalços venceram!) e luta livre entre africanos. Confraternização e colaboração que se estenderia à segurança noturna e mista (tropas portuguesas e do PAIGC) a duas simpáticas jornalistas de língua inglesa, que connosco pernoitaram, a caminho de Dacar, em serviço de reportagem sobre o outro lado da “guerra”.

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Imagem 13 - Instalações da rádio, maio de 1974 Imagem 14 - Encontro amistoso com militares do PAIGC, junho de 1974

Houve ainda tempo para missões solidárias de evacuação de elementos da população doente para o Hospital de Bafatá e para uma respeitosa cerimónia final de passagem de testemunho, ao som dos hinos nacionais e do arriamento e içar emotivo de ambas as bandeiras.

Em Bafatá, esperar-me-ia ainda a destruição e rebentamento do paiol recheado, que duraria vários dias e que fez crescer na floresta uma imensa cratera artificial. Mas também o rebentamento da garrafeira bem recheada que não podíamos deixar para trás, bem como a gasolina!

Era o início de uma descolonização que poderia ter sido atempada e exemplar, mas fora tardia e desastrosa.

Apesar de tudo, cumpria-se Abril e o início do processo de descolonização … Livra!

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Recordações que marcaram

Com permissão dos leitores, vou arrancar do baú das minhas recordações sete curtas passagens que vivenciei no período pós 25 de Abril, nas duas escolas que então me acolheram –Escola Preparatória João de Meira (no atual edifício da Câmara e não só) e Escola Industrial e Comercial de Guimarães (atual Escola Francisco de Holanda).

Escola Preparatória do Professor João de Meira - 1

Na Escola Preparatória Professor João de Meira, após a saída da diretora, Maria Elvira, cavou-se uma profunda divisão, mais circunstancial do que ideológica, entre dois grupos: o dos «conservadores» e o dos «opositores». Os dois conjuntos não estavam consolidados, primavam pela heterogeneidade dos seus elementos, persistiam muitas dúvidas na cabeça da maioria dos professores, parte deles não sabia (ou não queria saber) a que fação se deveria encostar. A verdade é que a situação estava extremada, as relações pessoais tinham azedado, sobretudo entre os cabecilhas, e o ambiente tornava-se insuportável: se estávamos a falar com um, dois ou três olhavam de esguelha com ar reprovador, se passávamos a falar com outro, era o primeiro que mostrava um sorrisinho amarelo. Sinal dos tempos!...

A verdade é que a situação chegou ao ponto de fazer apelo à intervenção de um graduado do MFA (um major, creio) que, cheio de pompa e circunstância, veio presidir a uma assembleia-geral de professores, realizada na sala 1 (a mais comprida), onde eu dava aulas de Matemática a turmas de 40 alunos, ao sábado, à tarde, até às 18:20 horas.

No entretanto, realizaram-se reuniões em privado, mais ou menos secretas, com vários e distintos convidados. Até que, no meio de tão profunda baralhada, com as hostes cansadas e indiferentes, lá surgiu a primeira Comissão de Gestão (parece-me que era assim que se chamava), presidida pela Leonor Moreira e da qual faziam parte a distinta Emília Ribeiro de Abreu, eu próprio, o Rolando Guedes e o Horácio Pinto. Imaginem só! Que equipa! Que maçaricos! Que tremedeira não iria nas cabecinhas loucas daqueles cinco atiradiços!...

7 Presidente da direção do Lar de Santa Estefânia; Presidente da direção da Liga dos Amigos do Hospital Senhora da Oliveira; Presidente da Assembleia-Geral da AF Braga; Membro do Conselho Vitoriano.

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José

Escola Preparatória do Professor João de Meira - 2

Vivíamos um ambiente verdadeiramente revolucionário. As manifestações surgiam espontaneamente, abruptamente, quando menos se esperava, de onde menos se suspeitava. Um fim de tarde, antes da primeira aula do turno da noite, pelas 19:00 horas, estava a escola em ambiente calmo quando um imenso e barulhento grupo de alunos mais velhos, já homenzinhos, veda o acesso à sala de professores e, gritando repetidamente, reclama: «abaixo o fascismo, rua com os impostores, abaixo os adjuntos da diretora».

A sala de professores estava vazia. Os docentes que estavam na escola, na ocasião, dirigiam-se todos às suas salas de aula. Tinha tocado minutos antes.

Enfim, ação frustrada. Os reivindicadores não encontraram o que pretendiam. Não houve nada. A verdade, contudo, é que o episódio ecoou no fundo de quantos assistiram à cena e colocou toda a gente em alvoroço e receosa em relação à estabilidade futura da instituição. Se a moda pegava, cuidado, iriamos assistir a muita trapalhada…

Escola Preparatória do Professor João de Meira - 3

Lembro-me de me ter calhado em sorte a turma das ex-regentes escolares, que davam aulas na Escola Primária e que, para continuarem no ativo, foram obrigadas a frequentar com aproveitamento o 1º ciclo. Quando fui informado da novidade, fiquei surpreendido, satisfeito pela preferência ter recaído na minha pessoa, mas receoso: «o que é que me vai sair na rifa?».

Na primeira aula deparei-me com uma vintena de senhoras, todas aperaltadas, algumas já entradotas, que devem ter ficado perplexas quando foram confrontadas com um catraio de um professor que teria idade para ser filho de algumas delas. Não se riram. Olharam-se, levantaram-se e, em uníssono, dirigiramme um amistoso «Bom dia, senhor professor».

Ao contrário do que poderia ter prognosticado, as senhoras regentes, provindas maioritariamente de escolas primárias das freguesias mais deprimidas do concelho, tinham uma formação geral muito razoável, eram profundamente educadas, e manifestavam uma humildade e um interesse em aprender que seria exemplo para a maioria dos estudantes mais novos.

Foi um grande privilégio ter ajudado aquela gente a desembrulhar a complicação profissional que lhes foi imposta.

Dar aulas a regentes escolares!... Que mais me irá acontecer?

Escola Preparatória João de Meira e Escola Secundária Francisco de Holanda – 4

A generalização do acesso à Escola a toda a população residente e em idade escolar, uma das mais

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importantes conquistas de Abril, evidenciou a escassez de instalações existentes para acolher tamanha avalanche de crianças e jovens.

Foi preciso muita imaginação, algum arrojo, uma grande dose de improviso e uma vontade enorme de servir e de responder a toda a procura, tudo para que ninguém ficasse de fora. Fizemos o possível e o inimaginável.

A Escola João de Meira desdobrou-se pelos anexos de S. Francisco, da Escola de Santa Luzia e creio que chegou a utilizar o Seminário do Verbo Divino.

A Escola Francisco de Holanda emagreceu as Oficinas de Mecânica, transformou casas de banho em salas de aula, chegou a colocar algumas aulas na biblioteca e no refeitório! O Marques é que não gostou nada da ideia: «Vêm para cá dar aulas com isto a cheirar a fanecas fritas!... Ao que nós chegamos!...»

Foi por essa altura, perante os enormes constrangimentos que enfrentámos, que começou a forjar-se o desenho das futuras escolas EB 2/3, que hoje respondem cabalmente e em boas condições à totalidade da procura.

Sobre a Escola Preparatória Professor João de Meira, daqueles tempos, fico por aqui… falta contar quase tudo… qualquer dia…

Escola Francisco de Holanda e para além dela – 5

Sem desprimor para todos os valiosíssimos colegas com quem tive a honra de me cruzar nesses tempos pós 25 de Abril, há três com quem compartilhei as direções de duas das mais acreditadas instituições de Guimarães, a Escola Secundária Francisco de Holanda e a Sociedade Martins Sarmento. Aqui e nesta oportunidade quero recordá-los. Refiro-me ao Álvaro Lereno Cohen, ao Joaquim António dos Santos Simões e ao Hélio dos Santos Alves.

Porquê a referência a estas três ilustres personagens? Esclareçamos:

1.

Depois de uma eleição disputada acerrimamente entre listas encabeçadas pelo Álvaro Cohen e pelo João Sottomayor, ganha pela lista do Álvaro Cohen a que eu pertencia, um golpe de secretaria perpetrado nas estruturas centrais do Ministério da Educação haveria de considerar as eleições inválidas. Uma vergonha nada compaginável com os tempos que vivíamos.

Na sequência de tal eleição, anulada, dando a mão à palmatória, o Ministério, já em pleno mês de outubro, haveria de indigitar o Álvaro Cohen para presidir ao Conselho Diretivo.

Lembro-me que, quando saía da Escola, às 18:30 horas de um dia frio e chuvoso, o Cohen veio ter co-

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migo, a correr, ofegante e atirou:

- Sabes, entregaram-me agora esta carta, registada. O Ministério nomeia-me para presidir aos destinos da Escola…. Claro que conto contigo, ah?!...

- Vamos à luta, chefe… Alguma dúvida?

Ora, foi sob a batuta do Cohen que eu, o Silva Pereira, o Figueiredo e a Florentina, demos início a um processo imparável de refundação da Escola Francisco de Holanda. Com o tempo, paulatina, mas consistentemente, tornamo-la na Escola modelo do país!...

Tudo começou com o Álvaro Cohen… registo o facto, para que não esqueça.

2.

O Santos Simões viveu momentos de enorme contestação na Escola Francisco de Holanda. Escolhiame como seu confidente e conselheiro, nas ocasiões mais complexas. Confessava-me a sua inquietação face aos desaforos que iria ter que engolir nos conselhos pedagógicos. Pedia-me colaboração na organização de eventos, na apreciação de diplomas e de trabalhos que elaborava. Vejam só, ele, Santos Simões, que era um referencial de cultura e de ação!...

Foi o Santos Simões que me lançou para a liderança da Escola, num almoço, com uma vintena ou trintena de colegas de referência, no Restaurante Florêncio, a saborear bucho de porco e sardinhas assadas. Foi o Santos Simões que me escolheu para seu parceiro na direção na Sociedade Martins Sarmento. Pasmese: foi o Santos Simões uma das vozes mais influentes na decisão que tomei, em 1997, de ser candidato à presidência da Câmara Municipal de Guimarães, como independente, pelo Partido Social Democrata. Estes e muitos outros incentivos e apoios, recíprocos, que trocamos desinteressadamente ao longo de três décadas, cimentaram uma amizade e um apreço que perdurará para sempre, independentemente das circunstâncias.

O Santos Simões era um homem polivalente, dono de uma cultura vasta e multifacetada e, para além disso, o que não é despiciendo, era um homem de ação. Sempre a criar, sempre a avançar, sempre a lutar. Um dia, estava o Santos Simões no gabinete da direção quando o Lima, aluno da noite, tolo, insatisfeito com o horário que lhe tocou em sorte, avançou corredor adiante e abrindo desabridamente a porta, sem pedir licença, vociferou: - Isto é horário que se apresente? Você não percebe nada disto... tome lá e guarde-o… fascista!... Fascista!... Fascista!...

O Santos Simões, profundamente irritado, levantou-se, correu atrás do Lima, mas, uma vez chegado a

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meio do corredor, parou, respirou fundo e desabafou:

- Estou a ser tão bom como ele!… Regressou ao gabinete.

3.

O Hélio era uma personalidade discreta. Dono de uma inteligência aguda e de uma bagagem cultural profunda, era um homem reto, determinado, inflexível na defesa da justiça, da verdade e da frontalidade. Não deixava nada por dizer. Voltava as costas a tudo o que entendesse que era incorreto, desonesto, descabido.

Foi meu professor e meu colega (ainda que fugaz) na Escola Francisco de Holanda, de onde transitou para a cátedra da Universidade do Minho. Partilhei com o Hélio alguns anos na direção da Sociedade Martins Sarmento. Tive o privilégio de, com ele, em reuniões diversas, algumas em sua casa, elaborar o livro «Vivências», em cuja introdução ele escreve: «É preciso que nos lembremos que esquecer é ter de repensar tudo aquilo que já foi solucionado por outros, mas que nós não sabemos porque não queremos, ou porque não nos deixam saber. Esquecer é ficar sujeito às repetições cíclicas dos erros estúpidos do passado que nos cairão de novo em cima porque estamos esquecidos deles e porque nos ensinaram (forçaram) a querer viver o dia-a-dia como quem vai morrer amanhã.»

Aprendi com o Hélio a esboçar limericks, poemas populares ingleses difundidos a partir de 1846 por via da obra de Edward Lear «A Book Of Nonsence». De referir que o Hélio foi o introdutor dos limericks em Portugal, através da edição da obra «Pensar Sem Senso», em 2002.

Grande homem foi o Hélio Alves!...

Escola Francisco de Holanda – 6

Eram tempos diferentes e a nossa Escola era também diferente pela irreverência e humanismo que prevaleciam na relação entre professores, alunos e pessoal não docente. A propósito, lembro-me de um dia, à tarde, ter recebido no gabinete da direção o Fernando Moreira (Engenheiro Têxtil), muito revoltado, porque lhe tinham roubado do recreio o seu estimado automóvel Fiat 125.

- Imagine só ao que isto chegou!... Já têm a ousadia de roubar um carro dentro da Escola!...

Acalmei o Fernando Moreira e propus-lhe que fossemos confirmar o sucedido.

Caminhávamos escadas acima rumo ao recreio quando um grupo de jovens, liderado pelo aluno Esquível, se chegou ao Engenheiro Moreira e, envolvendo-o, absorveram-no por completo.

- Ó nosso Engenheiro, venha daí, vamos dar-lhe uma ajudazinha, você merece – diz-lhe o Esquível.

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Imaginem… foi mesmo isso. Os jovens, a braços, tinham levado o Fiat 125 do Fernando Moreira para as bandas do Refeitório (mais de 70 metros!).

Volvidos alguns vinte minutos, o Engenheiro Moreira voltava a bater à porta do Gabinete:

- Foram eles, aqueles safados… são da marca do diabo!

- E agora? O que é que merecem? Diga lá, Engenheiro Moreira…

- Olha que essa!... São bons moços… vou ter com eles e vamos tomar um cafezito…

Escola Francisco de Holanda – 7 – A autonomia conquista-se

Lembro-me do tempo em que todo o pavimento exterior da Escola estava completamente esburacado, sem remendo, a exigir uma intervenção urgente como prevenção para eventuais e indesejáveis acidentes.

Em presença do Sr. Diretor Regional que visitava a Escola, colocamos-lhe o problema:

- É imperioso proceder ao arranjo imediato deste piso, Sr. Diretor.

- Nem pensem… Não temos verba… E este ano vamos ter que cativar 10% do orçamento…

Desarmados, sempre à espreita da primeira oportunidade, com as matrículas em curso e a sobrelotarem as nossas turmas, eis que nos informam que um empreiteiro de peso está na secretaria, a tentar matricular o filho numa das turmas mais concorridas do 10º ano.

- Digam ao senhor que as turmas estão cheias e que a Escola dificilmente conseguirá receber o seu filho.

De seguida, chamamos o empreiteiro ao gabinete da direção, inteiramo-nos do que pretendia, prometemos uma ponderação cuidada do seu pedido e convidamo-lo a visitar a Escola. Uma vez chegados ao recreio, mostramos-lhe o estado lastimoso do pavimento. Sabíamos que a solução poderia estar ali. Categórico, declarou-nos:

- Dentro de duas ou três semanas, as minhas máquinas vêm pavimentar a Avenida Alfredo Pimenta. Quando tal suceder, liguem-me que eu mando o pessoal passar por cá e colocar um tapetezito novo.

Não foi um tapetezito, foi uma camada de 6 cm em toda a Escola. Uma obra que custaria ao Estado uma quantia muito avultada. Um benefício de que não usufruiríamos nos anos mais chegados.

Resta acrescentar que o filho do empreiteiro acabou por entrar na turma pretendida. Foi admitido, sim senhor, na sua vez.

A concluir:

Termino com um até logo, com um até sempre. Vamos continuar a luta por uma sociedade mais justa,

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mais humilde, mais solidária, mais humana. As revoluções abanam o esqueleto, mas não geram necessariamente um esqueleto limpo. Compete-nos continuar a tarefa.

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A Minha Memória e a Cidade

O serviço militar e a guerra colonial eram a sina de um jovem de 20 anos. Decorria o mês de junho do ano de 1972, quando recebo a ordem de embarque para Angola. Não estava preparado para uma coisa destas, tinha vinte anos. Esgotadas as possibilidades de contrariar o meu destino, o tempo era de reflexão e de resignação. Ficou para trás a família, ficaram para trás os amigos e a cidade. Tudo quanto amava e que me iria fazer falta para suportar a ideia de uma guerra, que não sabia muito bem o que isso era. Tudo me era estranho: a terra, as gentes e o meu papel de militar num pais imenso, “catorze vezes maior que Portugal” – era assim que se falava de Angola, quando se falava de grandeza – “Angola é nossa! Angola é nossa!...”. Afinal não era nada nossa. Era dos angolanos. Via e sentia que era dos angolanos porque eu não era angolano, era português de Guimarães. Em conversa com os meus amigos angolanos, ninguém tinha ouvido falar em Guimarães, o “Berço da Nação”. Insistia, que foi nesta cidade de Guimarães que nasceu D. Afonso Henriques, o 1º Rei de Portugal; a primeira “Capital de Portugal”. Não! Ninguém conhecia a minha cidade, nem a história de Guimarães. Estava noutra cidade que não era a minha e noutro país que não era nosso. O Portugal pluricontinental, multirracial e a missão civilizadora de Salazar e Caetano estavam em decomposição e a esboroar-se…

Quando deixei Guimarães, a cidade era à moda antiga, calma, serena, onde nada acontecia; durante o dia era a azáfama do trabalho, onde predominava a indústria têxtil, com um comércio e serviços insípidos e dependentes da sede do distrito. A cidade adormecia cedo. Prolongava a noite, até mais tarde um pouco, o largo do Toural e os cafés, estes frequentados só por homens. Era uma cidade de província é certo, mas carregada de história e pergaminhos que nos enchiam de orgulho. Foi esta a memória que levei comigo, o som e o silêncio da cidade. O som do dia e o silêncio da noite.

Vivi o “25 de Abril” no norte de Angola, numa zona isolada e de difícil acesso. A notícia foi-me dada pelo radiotelegrafista em segredo… (Está a passar- se qualquer coisa em Portugal, dizia ele…). As notícias eram lentas e espaçadas…

Regresso no final de 74, e logo me apercebo da agitação da cidade que fervilha de manifestações, greves e ações de rua de cariz político, mudando o ritmo, o tempo e a densidade da cidade. Os relógios adian-

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taram-se do tempo perdido e a pacatez da cidade desperta com deslumbramento para uma liberdade nunca experimentada, para uma realidade até aqui desconhecida e adormecida.

Passado o tempo de chumbo da ditadura e da Guerra Colonial, ambas anacrónicas, estávamos em pleno PREC (Período Revolucionário em Curso), envolvendo-nos a todos, jovens homens e mulheres nas várias e diferentes frentes políticas e ideológicas da época, período escaldante que exigiu vigilância.

O rescaldo do tempo de brasa do “verão quente” deu lugar à apropriação do espaço público e assunção e emergência de movimentos de cidadania pelas causas sociais e políticas, pautados pela liberdade e democracia, dando à cidade uma consciência cultural e política, assente no direito de intervir, de exprimir e agir no espaço urbano. O tempo era de mudança e de construção.

No panorama cultural da cidade, apesar de ser um concelho com boas tradições associativas, destacavam-se as associações urbanas como o CAR - Círculo de Arte e Recreio (1939), com intensa actividade cultural, recreativa e desportiva, designadamente o papel importantíssimo do “Teatro de Ensaio Raul Brandão”, dirigido por Santos Simões; o Cineclube (1958), na divulgação da cultura cinematográfica, com projecção de filmes e sessões em escolas, salões paroquiais, freguesias e associações culturais; e o Convívio Associação Cultural (1961), com palestras, conferências, exposições e o “Festival Internacional de Cinema Amador”. Associações criadas e dinamizadas por destacados democratas da cidade.

As ideias fervilhavam com determinação e militância cultural e social, criando dinâmicas próprias das grandes cidades, fazendo emergir movimentos e grupos de cidadãos mobilizadores, envolvendo as pessoas em projetos sociais e culturais. Invoco sobretudo três experiências vividas:

A primeira, é com o movimento de grande participação na fundação da “CERCIGUI” criada em 1977, com o objectivo de apoiar as famílias e as crianças com deficiência mental, abrangendo todo o concelho, na construção de uma instituição de educação, reabilitação e inclusão, acolhida por toda a população, sendo os grandes obreiros a comissão de pais, Santos Simões, Romeu Barroso, professores, psicólogos e outros cidadãos comprometidos com a emergência desta Escola de Educação Especial.

A segunda, a Cooperativa Editorial “O Povo de Guimarães”, jornal local que reuniu em torno deste projeto regionalista de comunicação social, homens e mulheres democratas da cidade, destacando-se Hélder Rocha, Salgado Lobo, Santos Simões, José Augusto da Silva, Jorge Peixoto entre muitos, firmado nos princípios e valores humanistas de informar e formar os concidadãos vimaranenses, nas diversas áreas e dimensões da vida social e cultural, política e económica do concelho de Guimarães.

E a terceira, o “CICP-Centro Infantil e Cultural Popular”, fundado em 1975, com base nas associações de moradores da rua D. João I, sendo o seu grande dinamizador e animador José Casimiro Ribeiro, (ex-

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preso político em Caxias, libertado no dia 26 de Abril de 1974), figura carismática e revolucionária do projeto em construção, cujo objectivo foi responder às grandes carências sentidas pelas famílias, nomeadamente a criação de um infantário e creche, com secção de alfabetização e atividades pós-letivas, animação cultural, designadamente o “Grupo de Teatro Juventude em Palco” com o encenador Alberto Froufe, promovendo o Festival de Teatro Amador de Guimarães (FESTAG); o “Grupo de Intervenção do Canto Popular” que, apesar de ter vida curta, cumpriu o seu papel na agitação política de divulgação da música popular e de intervenção, sendo o seu maestro José Augusto da Silva. A “Circultura” foi o projeto mais arrojado do CICP, apesar de uma existência episódica, mas extraordinariamente positiva, numa cidade deserta de palcos e de ações de cultura, com a duração de dois meses com espectáculos, tendo como palco uma tenda de circo. Na época, foi um acontecimento relevante pela singularidade, gerando grande admiração e acolhimento por parte do público e da cidade, do ponto de vista cultural. Foi uma actividade de grande impacto na cidade, denunciando a falta de estruturas para as atividades culturais, nomeadamente auditórios, salas de espetáculos, centros de cultura, etc.

Com as conquistas de Abril, nomeadamente o Poder Locar e a Lei das Autarquias e as consequentes eleições livres para as Câmaras Municipais (1976), mudaram radicalmente o perfil das cidades e o seu papel administrativo na gestão do seu património histórico e cultural, dos recursos naturais, económicos, industriais e comerciais, em benefício das populações.

Com o Centro Cultural Vila Flor, o Centro Internacional das Artes José de Guimarães, Museu Alberto Sampaio, Sociedade Martins Sarmento, a Oficina-Centro de Artes, a Casa da Memória, o Laboratório da Paisagem, entre outros, a Câmara Municipal de Guimarães deu, com estes equipamentos de cultura e com a sua política cultural, outra escala à cidade, mais cosmopolita e mais urbana, fazendo designadamente parcerias com as iniciativas das associações, apoiando as suas propostas e projetos, nomeadamente os “Festivais de Teatro Gil Vicente” (CAR), trazendo à cidade grupos de teatro, projecção de cinema na cidade pelo Cineclube, a Associação Convívio com “Os Encontro da Primavera” com música erudita, o “Guimarães Jazz” o “Grupo Coral” dirigido pelos maestros José Augusto da Silva e Domingos Salvador, o Festival de Dança Contemporânea - “Guidance”, sendo estas algumas das atividades mais significativas que dão à cidade elevada urbanidade cultural.

Culminando esta transformação rápida e acelerada da cidade e a sua exposição ao exterior, uma nova identidade emergiu na vida dos vimaranenses - a classificação da UNESCO que confere universalidade à cidade, através do seu património histórico singular, com estatuto internacional de cidade com Centro Histórico, elevado a Património Cultural da Humanidade, em 2001: é o emblema maior do espírito colectivo e

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comunitário da população de Guimarães, hoje uma referência no modo de vida e de estar numa cidade com Centro Histórico, a “Ágora” dos tempos modernos onde todos se reúnem em celebração identitária. Guimarães é uma cidade que valoriza as suas raízes, mas que soube modernizar-se, uma cidade de eleição e reconhecimento internacional: selecionada para receber o Campeonato Europeu de Futebol, em 2004; atributo de cidade Capital Europeia da Cultura (Guimarães 2012); e designada Cidade Europeia do Desporto - 2013, são dimensões que colocam hoje a cidade de Guimarães entre as melhores cidades para se viver e visitar.

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Onde estava no 25 de Abril?

Apesar de nos ter deixado há algum tempo, ainda ecoa no ar a pergunta sacramental, com que Batista Bastos, um dos melhores jornalistas da sua geração, iniciava as inúmeras entrevistas que fez às mais diferentes personagens sobre o 25 de Abril de 1974: “onde estava no 25 de Abril?”

Embora nunca me tenha feito a pergunta, até porque não passo de uma figura anónima, que se dilui na galeria dos heróis menores que pouco ou nada fizeram para que o 25 de Abril acontecesse, mesmo assim não resisto em responder, começando a entrevista imaginária com a habitual observação dos entrevistados: “ainda bem que me faz essa pergunta”. Caramba! Estava mesmo a ver que íamos chegar às comemorações dos 50 anos da efeméride e ninguém me dava a oportunidade de responder à pergunta, explanando o meu modesto papel no 25 de Abril.

O dia 25 de Abril amanheceu com o céu nublado e alguns chuviscos. No quartel de Espinho (Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº. 3 ou GACA3), mesmo junto ao mar e paredes meias com o aeródromo de Esmoriz, recebemos ordens para ocupar a estação do Rádio Clube Português, em Miramar e o aeródromo ao lado do aquartelamento, para evitar a descolagem de aeronaves com os fugitivos do costume, isto é, capitalistas que poderiam ter a tentação de promover a fuga de capitais para o estrangeiro.

Na altura tinha o posto de alferes miliciano e estava há mais de meio ano naquele quartel, depois ter passado por Mafra e Elvas, onde, no Verão de 1973, tive oportunidade de ouvir o tenente-coronel Luís Banazol, comandante da unidade, referir-se a uma reunião semiclandestina de oficiais do quadro permanente, que teve lugar num monte alentejano. Mais tarde vim a descobrir que esta reunião esteve na génese do movimento dos Capitães, que viria a desencadear o 25 de Abril.

Mas voltando a Espinho e ao dia 25 de Abril de 1974, devo confessar que a tarefa do pelotão por mim comandado foi demasiado fácil e até bastante agradável, pois calhara-nos em sorte a ocupação das instalações do Rádio Clube Português, junto à praia, tendo passado ali uns dias a ouvir a música que saía da antena e a gozar as delícias do sol e da brisa marítima.

Nos dias seguintes, de regresso ao quartel, pude constatar o desmoronamento das velhas instituições e o poder, ainda que transitório, que as forças armadas adquiriram, ao ponto de, na qualidade de oficial de dia ter que resolver conflitos entre casais e vizinhos desavindos, que, na ressaca dos festejos regados com

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algum excesso de álcool, se dirigiam ao quartel militar, em vez de se deslocarem à Polícia ou à GNR.

Com o tempo, a situação foi normalizando e, hoje, com o distanciamento temporal adequado, podemos afirmar que o 25 de Abril foi um acontecimento de relevo na História de Portugal, estando longe de ser dos momentos mais marcantes e determinantes da nossa existência enquanto nação milenar. Não podemos, contudo, esquecer que a liberdade que hoje respiramos, o nível de vida de que disfrutamos e o salto qualitativo que o país deu em termos de desenvolvimento, se devem em grande parte ao 25 de Abril.

Desiludam-se, no entanto, aqueles que pensam que a Democracia e a liberdade são valores consolidados e adquiridos, pois as ameaças que pairam à nossa volta poderão ser sinónimo de borrasca e de retrocesso. Oxalá saibamos transmitir às novas gerações uma mensagem de alerta para que não se deixem adormecer e ousem lutar pela defesa dos valores e das conquistas sociais que o 25 de Abril nos proporcionou.

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47 anos depois, o 25 de Abril na 1ª pessoa

47 anos depois do 25 de abril de 1974, falar na 1ª pessoa não é fácil pela distância temporal e por tudo quanto daí adveio tanto a nível pessoal, como profissional e interrelacional.

Frequentava o 1º ano da Faculdade de Germânicas, que abrira no Porto nesse ano, num edifício lindíssimo, casa apalaçada na Rua das Taipas por trás da Cadeia da Relação, onde esteve preso Camilo Castelo Branco, em 1860, (desde 1997 Centro Português de Fotografia, mantendo a cela onde o escritor esteve preso), quando aconteceu a Revolução dos Cravos.

Até à data, as aulas tinham decorrido normalmente e já se tinham realizado algumas das primeiras frequências. Para mim, que não “vivia” a política e não sofrera nenhuma perseguição familiar pela PIDE foi como se o mundo se virasse do avesso e aí sim, vi a minha libertada coartada, pois fui proibida de ir às aulas pelos que faziam piquete e diziam que o boicote era uma forma de luta pelos nossos direitos.

Bem, o direito às aulas já tinha voado e fartei-me de RGAs naquele grande salão do Instituto Abel Salazar, antiga Faculdade de Letras, onde se discutiam coisas que não me diziam absolutamente nada e se procurava decidir o que fazer com um ano que terminara abruptamente em abril e que ninguém queria perder.

Também voaram as praxes e o traje académico, pois a capa e batina assim como as batas dos liceus eram fascistas. Nunca entendi como um traje que igualava toda a gente podia ser fascista. Só sei que nunca trajei a não ser quase cinco anos depois quando se retomou a Queima das Fitas e o Cortejo com os estudantes de Engenharia e de Economia, todos virados para a extrema-esquerda, a atiraram-nos com ovos, tomates e outros materiais pegajosos. Andei num Orfeão Universitário do Porto em que cantávamos todos de preto, (camisola decote em V, saia e meias e eles, camisola de gola alta e calças) e usávamos a capa apenas para combater o frio, mas, em Beja, logo no ano após o 25 de abril, nem saíram à luz do dia e mesmo assim fomos vaiados. Andar a estudar era sinónimo de ser fascista. “Ide trabalhar! A terra a quem a trabalha!”

Retomando o fio à meada. Naquele ano voou a tranquilidade com as notas a transformarem-se em ap-

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tos e posteriormente em 10, mesmo que se tivesse tido um 19 na altura. Na minha Faculdade, fizeram a média das frequências positivas das cadeiras que já as tinham realizado e atribuíram essa nota às restantes. Uma maravilha, não? Pior ainda, vimos alunos que nunca tinham frequentado a Faculdade, fosse ela qual fosse, com o ano oferecido de bandeja e muitos acabaram assim os cursos em que faltavam as cadeiras de precedência ou os cadeirões que apenas meia dúzia fazia e os outros iam tentando ao longo do curso. Mais tarde, pagou-se cara a brincadeira, quando as ofertas de emprego nos jornais diziam claramente “Precisase de engenheiro, de licenciado em… que não tenha concluído o curso entre 1975 e 1980”.

Foi mais tarde que despertei para o que a ditadura fizera ao país, sonegando informações do que se passava lá fora, principalmente nos Estados Unidos, e compreendi a revolta liderada pelos estudantes desde 1968, (seguindo o “maio francês”) ano em que o professor Oliveira Salazar foi exonerado e o governo entregue ao professor Marcelo Caetano, que prometeu “renovação na continuidade”, num Portugal que continuava em ditadura e em guerra colonial desde 1961, com protestos contra essa guerra e contra a Guerra do Vietname, e a tropa obrigatória (e as mensagens dos soldados no Natal) e os milhares que perderam a vida nesses confrontos em Angola, Moçambique, Guiné…e as notícias que iam sendo difundidas de forma metaforizada para passarem na Censura.

Foi nessa altura que compreendi o porquê do Canto IX dos Lusíadas (a Ilha dos Amores) estar cortado nos livros dos alunos e de haver livros proibidos como “Os Maias” e “O Crime do Padre Amaro” de Eça de Queiroz, e muitos outros em prol de uma moral “subvertida, doentia e estupidificante”. E as regras fizeramse para ser quebradas, mesmo então, pois a Madre Isabel, uma freira e professora de Religião e Moral, deu o aparelho reprodutor feminino (que não constava nem podia ser mencionado nos livros de Ciências - os meninos vinham de Paris ou de cegonha), porque era pecado falar-se do corpo quanto mais mostrar-se (as batas tinham de ficar por baixo do joelho!) e nos falou de toda uma panóplia de assuntos que, se tivessem caído nos ouvidos da reitora, a tinham prendido por atentado ao pudor ou outro crime bem mais cabeludo encontrado pela Polícia Internacional de Defesa do Estado.

Lembro-me de uma série de proibições, completamente idiotas, mas que, formatados (?) pelo sistema aceitávamos. As meninas usarem calças, que começou em 1970, foi um bico de obra. O Liceu Carolina Michaelis (e não só) proibiu-as, porque só as mulheres da vida as usavam. Foi preciso que as mães se impusessem para que a regra fosse abolida no fim do ano letivo, andava eu no 6.º ano do liceu, ou seja, por volta de 1973.

Lembro-me dos saraus de ginástica em que todos os liceus, escolas industriais e comerciais escolhiam um grupo de alunos para, nos estádios de futebol, fazerem ginástica sincronizada com bolas, fitas, arcos…

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cumprindo um esquema recebido e apenas ensaiado duas ou três vezes na véspera para comemorar o Dia de Camões, de Portugal e da Raça.

Lembro-me de ter pertencido à Mocidade Portuguesa (que existiu de 1936 a 1974), no meu caso Mocidade Portuguesa Feminina, criada à imagem de outras ditaduras europeias, e lamentar não me fardar pois os rapazes vestiam a farda verde com o célebre cinto que tinha um S na fivela e que todos silabávamos em segredo (Sociedade Socialista Soviética Sem Salazar Saber. Se Salazar Soubesse Seria Sério Sarilho) e iam ao sábado para o liceu fazer atividades: uma espécie de instrução militar- marchar, aprender o alfabeto com bandeiras, ginástica, natação (O Liceu Nacional Manuel II era o único que tinha piscina), aulas teóricas de cidadania e o Hino da Mocidade escrito por Mário Beirão em 1937 “Lá vamos cantando e rindo/ levados, levados sim/ pela voz do som tremendo/ das tubas, clamor sem fim”... Foi quando preparava este meu depoimento que percebi porque é que o hino que ainda hoje sei de cor não é o acima mencionado. É que o Hino da Mocidade Feminina era diferente “Mocidade Lusitana/ herdeira de Portugal, / esta história nos foi dada/ para ser por nós guardada…” E a Mocidade editava revistas de BD - e lembro-me da Fagulha, a revista feminina. Até nas publicações da Mocidade havia diferenças de género. Depois do 25 de Abril…

Lembro-me da Faculdade transformada em liceu, com obrigatoriedade de assistência às aulas e assinaturas. Lembro-me dos professores universitários se vingarem nos alunos de algumas das liberdades que porventura tivessem desaparecido. Lembro-me de os alunos recusarem as aulas nos liceus e de terem feito a vida negra aos professores (no Garcia da Orta, um dia, a turma recebeu a professora sem calças nem cuecas) porque havia liberdade e de os professores se reformarem em massa. Lembro-me de ter descoberto, quando o meu pai faleceu, a licença que ele tinha de tirar para ter isqueiro a gás, para ter rádio, para ter televisão. Lembro-me da quebra total das regras, deixando de haver regulamentos e bom senso. Lembrome de, no meu 5º ano da Faculdade, se retomarem as praxes, a Queima das Fitas nos Clérigos, a Serenata na Sé, o Cortejo que já mencionei…

Lembro-me de a luta dos Capitães de Abril para garantirem a liberdade ao povo maltratado e escravizado de repente quase virar de rumo e quase descambar em uma ditadura da extrema-esquerda.

Depois a vida seguiu o seu rumo e a liberdade foi-se transformando e sendo sinónimo de acabar com tudo que o governo anterior tivesse realizado porque de cor contrária, sem se fazerem avaliações e sem se racionalizar. E a Educação foi a que mais bofetadas apanhou. O que era hoje já o não era amanhã.

E eu que andei de cravo ao peito e fui delegada sindical da minha escola pelo SPN, sindicato ligado à FENPROF, durante vinte anos ou mais, comecei a ver que nada havia verdadeiramente mudado a não ser a

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liberdade de expressão. Essa existia e existe de tal modo que hoje se insulta quem quer que seja publicamente e fica-se impune. Fazem-se afirmações sensacionalistas para se venderem jornais sem se verificarem as fontes ou a veracidade das mesmas. Os políticos, infelizmente na sua maioria, são corruptos e enriquecem à custa de quem os elege, principalmente dos funcionários públicos que têm de tapar os buracos… os buracões dos orçamentos, não se exigindo responsabilidades. Rouba-se às claras centenas de milhares de milhões e os culpados ou permanecem em liberdade em processos no tribunal que se arrastam por anos e anos… ou são presos em cadeias, autênticos hotéis de luxo de cinco estrelas. Desgraçados continuam a ser os que roubam centenas de euros para comer, porque há fome e muita, isso não mudou, ou para alimentarem o vício, a droga que também cá entrou com a liberdade.

Se chegou até aqui, está horrorizado como eu, porque das duas uma: ou eu sou uma grande fascista e andei a enganar todo o mundo, porque por onde passei antes de chegar às Taipas fiquei conotada como sendo da extrema-esquerda, ou então, Deus nos salve, resta muito pouco do 25 de Abril, aquela Revolução dos Cravos que nos devia ter trazido a liberdade e nos trouxe a libertinagem, o roubo descarado e alguns partidos de que nem é bom falar…

Serei a única a fazer uma análise tão “deprimente” do 25 de Abril? É que eu vivi-o na pele e os deputados que agora elegemos (grande parte deles) só aprenderam a revolução nos livros, no que está na Internet e no que ouviram dizer. E alguns nem isso. Os atuais ativos nos partidos falam do que não sabem, da doutrina que recebem.

Houve muita coisa má na ditadura, sem dúvida, mas os cofres do Estado estavam cheios. Hoje estamos cheios de dívidas e, como os nossos ministros são quem mais rouba (desculpem-me os sérios que se contam pelos dedos!), andamos com uma mão à frente e outra atrás.

“Deus, Pátria e Família” eram os ideais que nos norteavam.

Deus desapareceu, porque o estado é laico, dizem. Porém, não aparece em lado nenhum da Constituição de 1976 essa afirmação, pelo contrário, apenas se afirma no seu artigo 43º «O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.» Mas essa “verdade” foi propalada num estado que continua a ser católico e a ter pausas letivas no Natal e na Páscoa, não vamos mais longe, dois dos principais momentos da Sua vida: o nascimento e a morte e ressurreição.

O significado de pátria (a terra natal ou adotiva de um ser humano, que se sente ligado por vínculos afetivos, culturais, valores e história) desapareceu e com ele o ser patriótico. Eu sou-o, porque penso pela minha cabeça e sou exigente com os outros e comigo e não me considero superior a ninguém. Ser patrióti-

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ca significa aceitar a pluralidade e o que é português. Se eu quero o melhor para o meu país, então procuremos sinergias que nos permitam melhorar este cantinho à beira-mar plantado que tão bem foi cantado por Camões. Ser patriótica é ter um sonho de que a vida é uma constante mudança e cantar com Manuel Freire a Pedra Filosofal de António Gedeão “Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida, tão concreta e definida como outra coisa qualquer…” Ser patriótica é amar a bandeira nacional e ter orgulho em ser portuguesa, apesar dos erros do passado e dos trambolhões do presente, é aceitar que a mudança nem sempre é positiva.

Quanto à Família é melhor nem falar, porque os jovens de hoje desrespeitam os adultos (com muitas e honrosas exceções) a começar pelos próprios pais que se abstêm e solicitam à escola, com a mão direita, que os ajude a educá-los por se considerarem incapazes de o fazer e depois, com a esquerda, a desautorizam negando-lhe a possibilidade de ajuda.

Onde errámos? Não sei. Uma coisa é certa. A minha geração não soube educar, porque deu tudo de mão beijada aos meninos e estes também falharam como educadores porque lhes foi sonegado o modelo a seguir que deveríamos ter sido nós.

As revoluções são como as latas de feijão. Os de cima e os de baixo mudam, os que estão no meio ficam iguais. Eu, como sempre estive no meio, era e sou da classe média, fiquei igual e, com o decorrer dos tempos, como funcionária pública, fui piorando. Quem me dera receber o ordenado que recebia em 2000 e mais não digo.

Mas, pelos vistos, pertenço a uma família que não baixa a cerviz nem a uns nem a outros, razão porque nunca me partidarizei. Comigo, não há voto partidário, há voto pessoal. Sou livre para dizer bem ou mal deles todos. Quando a minha mãe faleceu (hoje teria 100 anos!) soube que ela, obrigada a pertencer à Ordem dos Farmacêuticos para exercer, foi uma das primeiras a inscrever-se no Sindicato dos Farmacêuticos, antes do 25 de abril e não autorizado pelo governo.

E, na vila de Caldas das Taipas onde praticamente moro há 40 anos, já fui há muito tempo convidada para liderar a lista do CDS para as eleições, fui contactada pelo líder do concelho de Guimarães para ser a cabeça de lista pelo PSD, soube que o meu nome foi lançado para a discussão pela CDU e, embora nunca fosse convidada pelo PS para nenhuma lista, participei num debate por eles realizado em que fui uma das cinco mulheres convidadas e dei uma mão numa exposição de mulheres que se tivessem demarcado nas Taipas no Centro Comercial Passerelle não vai há muitos anos.

Muito sinceramente, acho que os Capitães de Abril e os grandes lutadores da liberdade – Álvaro Cunhal, Mário Soares, Sá Carneiro- devem andar às voltas nos túmulos a verem toda esta democracia que

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acabou numa pseudoliberdade, em que os governos se sucedem sem respeitarem nada nem ninguém e, hoje como ontem, há quem esteja muito mal e passe fome e não tenha emprego e até seja convidado a emigrar para arranjar emprego… não me estou a referir à maldita pandemia que ainda veio dar uma ajuda.

Se todos estes desabafos são sinónimo de que sou fascista, então sê-lo-ei de cravo ao peito como no primeiro dia sem ter enxovalhado nem a democracia nem o meu país.

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Falar do 25 de abril de 1974 em situação de pandemia pela Covid-19

Fui amavelmente convidado a falar sobre o 25 de Abril de 1974, dado que por circunstâncias naturais acabei por intervir nessa fase posterior ao 25 de Abril, designadamente integrando a 1.ª Comissão Administrativa para a Câmara Municipal de Guimarães, que foi presidida por um advogado de referência, Homem Bom e de Carácter, mas infelizmente já falecido: José Augusto da Silva. Integraram essa equipa os Drs. António Emílio, o António Ribeiro, o José Faria Martins Basto, o Carlos Nave, o Professor Aristóteles Nascimento, e eu próprio, que era o mais novo, e seria mesmo o mais novo membro das Comissões Administrativas nomeadas na altura para as Câmaras Municipais pela Junta de Salvação Nacional, presidida pelo General Spínola.

Guimarães foi das primeiras a ser nomeada, logo no dia 15 de maio, e tomou posse no Governo Civil de Braga, repetindo-se de seguida a cerimónia no Edifício da Câmara Municipal de Guimarães, pois o anterior Presidente, Dr. Bernardino Abreu, mostrou todo o interesse que assim fosse. Repetiu assim a sua presença no Governo Civil de Braga e na própria Câmara Municipal, fazendo questão de entregar pessoalmente as chaves do Município ao novo Poder Instituído.

Mas ao recordar os primeiros momentos do 25 de Abril de 1974, estando todos nós em regime de confinamento há larguíssimos meses, eu não pude resistir a imaginar o que seria uma grave situação como esta se ainda vivêssemos no regime anterior.

É verdade que Portugal tinha uma das maiores reservas de ouro de toda a Europa guardadas no cofre do Ministério das Finanças, mas a realidade de um País onde se vivia numa miséria absoluta, com as pessoas a viverem em grande carência, e milhares delas a terem de enfrentar o desconhecido e irem a pé, ou de qualquer modo, atravessando os Pireneus para poderem chegar a França para trabalhar.

E ao nível das infraestruturas? Lembram-se como eram as nossas estradas? De Guimarães para Braga ou para a Póvoa de Varzim. E para o Porto? E para ir a Lisboa? 8

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Provedor do Idoso de Guimarães.

Como era na área da saúde? Uma verdadeira miséria, que todos naturalmente recordarão. Os hospitais que existiam, numa boa parte pertencendo a Instituições de Solidariedade, como as Misericórdias, instalavam os doentes como podiam, normalmente em grandes enfermarias de 20/30 camas e com todas as limitações possíveis, designadamente em termos de equipamentos médicos, que eram os mais básicos.

Sinceramente até me recuso a pensar o que seria se nessa altura ocorresse uma Pandemia como a presente, que está a afetar quase todo o mundo.

Pois bem, mas o tema principal era o 25 de Abril, e por isso volto a ele, para lembrar que as pessoas que em Guimarães assumiram a Liderança do Município, por nomeação da Junta de Salvação Nacional, fixaram logo como meta que só se manteriam no Poder até à existência de Eleições Livres e Democráticas.

As Eleições para as Autarquias estavam ligeiramente atrasadas, pois só aconteceram em 1976. Mas em 1975 já existiu um ato eleitoral, para eleição dos Deputados que iriam criar a nova Constituição da República. O Povo votou livremente, e assim já começaram a ser definidos os principais Grupos ou Partidos com maior representação.

Em consequência, os membros da Comissão Administrativa da Camara Municipal de Guimarães decidiram apresentar a sua demissão para que pudesse existir outra já constituída de acordo com os grandes princípios eleitorais das primeiras eleições realizadas. E, ao mesmo tempo, apresentaram um Relatório de toda a atividade realizada, que foi publicado nos jornais da terra, prestando-se assim contas públicas aos Vimaranenses, como era justo e devido.

Só para lembrança, deixo dito que todos os membros da Comissão Administrativa exerceram as suas funções, com presença e trabalho diário na Camara, como era exigido e de sua obrigação, mas fizeram-no sempre de forma voluntária, recusando sempre receber qualquer remuneração, que foi, no final, entregue à Comissão de Trabalhadores para apoio à sua atividade.

Gostosas, mas simples recordações…

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Que viva Abril, sempre!

À pergunta (hipotética) do Batista Bastos “Onde é que estavas no 25 de Abril?”, respondo que nesse dia estava numa aula no laboratório de Física e Química na Escola Industrial e Comercial de Guimarães, da parte da manhã, quando pela primeira vez ouvi falar em algo de anormal que estava a acontecer em Portugal. Num determinado momento ouvimos correrias e gritos nos corredores, mas só depois de a aula acabar, a professora apavorada não nos deixou sair, é que soubemos que os estudantes do Liceu de Guimarães estiveram no exterior da escola a mobilizar alunos para integrarem a manifestação de apoio ao golpe militar. Naquela sala de aulas, o medo, pilar e imagem de marca do regime fascista, agonizava, mas ainda bulia.

Confirmado o êxito da operação militar no derrube do regime, começou o processo de adaptação a uma nova realidade onde foram sendo eliminadas as muitas barreiras que nos tolheram o comportamento durante a ditadura. Nesta escola, como em muitas outras espalhadas pelo país, havia espaços de circulação separados para os rapazes e para as raparigas não sendo permitido no seu interior qualquer convívio entre os diferentes sexos. Ultrapassar esta linha proibida ficou-me gravado na memória como o primeiro passo simbólico da mudança de regime, na escola e no país.

Inicialmente foi um golpe militar, para acabar com a guerra, mas o povo, até aqui adormecido, despertou, perdeu o medo, libertou-se das amarras e invadiu as ruas, e era tanto, tanto, que facilmente o golpe adquiriu outra dimensão, transbordou das mãos dos seus criadores e transformou-se em revolução! E que revolução!

Em contraste com o país anterior, remediado e a preto e branco, as pessoas, individual ou colectivamente, participaram na construção dum país diferente e novo com tal convicção que parecia quererem recuperar o tempo perdido, vivendo-o intensamente, mas agora em modo colorido. Os que o viveram tiveram a felicidade de participar na história enquanto verdadeiros protagonistas das transformações ocorridas na vida política e social portuguesa.

A festa, propriamente dita, durou pouco, mas pela primeira vez após quarenta e oito anos de ditadura, respirou-se liberdade plena e praticou-se, sem conta nem medida, solidariedade, fraternidade e igualdade no seu mais puro e genuíno significado. Os portugueses passaram a poder pertencer a um partido político,

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um sindicato ou associação cultural em pleno, sem censura nem constrangimentos. A guerra colonial, que ceifou mais de oito mil vidas da nossa juventude, e provocou milhares de feridos e estropiados, acabou. A polícia política, PIDE/DGS, instrumento de terror ao serviço do regime deposto, foi extinta. Foram libertados todos os presos políticos e os portugueses exilados no estrangeiro, para fugirem à guerra e à perseguição, puderam finalmente regressar ao país. Com a extinção da Comissão de Censura, passamos a ter liberdade de expressão e de manifestação, bem como o direito à greve. Todos participaram com entusiasmo na construção dum país novo e a jornada de trabalho voluntário num Domingo, a pedido do Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves, é prova desse entusiasmo e determinação.

Os trabalhadores e as classes mais desfavorecidas passaram a ter o direito à habitação, à saúde e à educação. Passaram igualmente a ter direito às férias e ao subsídio de férias, ao décimo terceiro mês e a um salário mínimo cujo valor, hoje, seria o equivalente a cerca de mil euros, que trouxe maior rendimento para quem trabalha garantindo melhores condições e oportunidades para uma vida mais digna para a esmagadora maioria da população.

A Constituição da República Portuguesa, aprovada em 2 de Abril de 1976, consagrou os direitos e conquistas emanados da Revolução dos Cravos e, mesmo após as sete revisões que a alteraram significativamente, continua a ser o garante de importantes direitos políticos, económicos, sociais e culturais dos trabalhadores e do povo.

Estamos em Abril de 2021 e já passou mais de um ano desde que pela primeira vez tomamos conhecimento de uma realidade que nenhum de nós imaginara vir a acontecer: a pandemia da COVID-19. Tempo em que fomos obrigados a mudar pequenos gestos do dia-a-dia, hábitos, e a redobrar precauções para evitar a propagação do vírus e salvaguardar a nossa vida e a dos outros. Um ano em que se aprofundou o isolamento e a solidão de muitos de nós, com maior incidência nas camadas mais idosas da população.

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Imagem 15 - 25 de Abril de 1974 em Guimarães – Foto Simão

A palavra confinamento passou a regrar o nosso quotidiano, adiando encontros, afectos, e condicionando diversas actividades profissionais, com consequências que, não estando ainda devidamente quantificadas, sabemos que serão negativas num futuro próximo.

A vacinação, sendo a fórmula descoberta em tempo record, decorre muito mais lenta que o desejado, exigindo de todos muita paciência e resignação até atingirmos a imunidade de grupo.

O confinamento prolongado, com todas as limitações impostas, inunda-nos de saudades da liberdade a que estávamos habituados. Da liberdade que conquistamos há 47 anos, na madrugada do dia 25 de Abril de 1974.

As gerações após Abril encontraram um país livre e com uma boa parte das necessidades básicas resolvidas. Não estão todas, infelizmente, mas muito foi feito para melhorar as condições de vida dos mais desfavorecidos de acordo com as exigências do tempo em que vivemos. No entanto, fruto de sucessivas políticas, tem aumentado o fosso entre ricos e pobres pondo em causa o princípio da igualdade de oportunidades e da justiça social.

O que está por cumprir tem sido habilmente aproveitado por aqueles que sempre estiveram contra os direitos e a liberdade conquistados. O populismo cavalga a onda de insatisfação de muitos portugueses e o seu discurso demagógico, xenófobo e racista, não augura um futuro promissor para os mais desprotegidos. Sopram ventos adversos que nos enchem de inquietação e nos obrigam a uma vigilância permanente em defesa dos valores democráticos e de políticas que promovam a distribuição da riqueza reduzindo as actuais desigualdades sociais.

Esta é apenas uma parte do tempo em que a vontade de muitos permitiu os avanços civilizacionais que as gerações que nos precederam encontraram. A geração de Abril deixou um mundo melhor do que o que lhe calhou em destino, porque teve a oportunidade de recusar a realidade que lhe impuseram e lutar

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Imagem 16 - Alteração da Toponímia em Guimarães

para a transformar. Saiba a geração herdeira destas vontades, alcançadas com muito sacrifício, lutar para honrar e manter os valores conquistados em Abril. Um Abril completo e sem interrupções que o desviem do caminho na busca de uma sociedade verdadeiramente livre, justa e democrática.

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O meu 25 de Abril – o antes, o durante e o depois

No dia 25 de Abril era militar à espera de mobilização, em rendição individual, para Moçambique. Vivi os tempos do início da revolução com um sentimento de descrédito: militares e democracia são como a água e o azeite. Ouvir alguns militares falar de democracia era penoso por saber que as palavras soavam a falso, tal o trato que eles próprios davam aos soldados com a aplicação rigorosa do RDM (Regulamento de Disciplina Militar) segundo o badalado princípio de “manda quem pode, obedece quem deve” e que ninguém dá o que não tem. Eram muito poucos os militares que tinham uma cultura democrática e de tratamento humano dos seus subalternos. Alguns “apanharam” o comboio da revolução já com ele em andamento, num golpe oportunista.

O 25 de Abril foi campo fértil para o aparecimento de tantos “democratas” que despertaram para a política como os cogumelos de geração espontânea, o mesmo aconteceu na sociedade civil, daí o nome de vira-casacas.

Atribuir todo o mérito aos militares é um exagero pois os movimentos civis, como o do MDP-CDE, até do MRPP que viu um seu dirigente, Ribeiro da Silva, ser morto pela PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) que na época de Marcelo Caetano passou a chamar-se DGS (Direção-Geral de Segurança) tiveram um papel muito ativo, assim como inúmeros grupos, como os chamados “católicos progressistas”, militantes comunistas, e de esquerda, que foram presos, torturados, desterrados e alguns assassinados. Na população estava enraizado um sentimento de revolta silenciosa, era os “do contra”. Foram estes que muito contribuíram para o derrube da ditadura com a guerra do Ultramar a precipitar os acontecimentos.

Às promessas de uma vida melhor, como Sérgio Godinho cantava: “a paz, o pão, habitação, saúde, educação, só há liberdade a sério … …” correspondeu em massa o povo que transbordava de alegria cujo exponente máximo foram as Comemorações do 1º de Maio de 1974. Momento único de união popular e, infelizmente, irrepetível.

Passados quinze dias sou chamado ao Aeroporto de Figo Maduro para embarcar e, mais uma vez, éme comunicado que não vou embarcar.

Dia 25 de maio de 1974, terceira chamada ao Aeroporto; desta vez, o chefe de operações, reconheceu-me e lá me encaminhou para o avião - um Boeing 707 da FAP - rumo à cidade da Beira com a guia de

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marcha para Lourenço Marques (atual Maputo) em rendição individual. No assento, junto à janela, um furriel com 22 meses de mato, ao meu lado direito um militar moçambicano, recém-regressado da Alemanha, onde fez tratamentos numa clínica especializada em recuperação de soldados vítimas de minas.

O militar fez algumas perguntas da praxe ao novato “checa” (noutras colónias maçarico e periquito) e depois de algumas provocações, encostou-se e adormeceu. O meu “parceiro” da direita já ressonava sonoramente e, aí, numa observação atenta descobri que tinha o olho esquerdo sempre aberto. Era um olho de vidro como prótese a substituir o que tinha perdido com a explosão da mina. Um cenário perfeito. Fiz, mesmo cansado, um esforço para dormir e, depois de treze horas de voo com passagem por Luanda, lá cheguei à cidade da Beira. À minha espera um sol radioso, uma temperatura agradável e uma humidade do ar, muito alta, pele pegajosa, um clima inóspito. Não é destino de férias.

Afinal não há “férias” em Loureço Marques, mas uma guia de marcha para Nampula. Onde fica? Perguntei a um militar “velhinho”. É perto, fica a 800 km e, pela picada, até nem é ruim. Há calor, frio, chuva. É o clima.

Passados 5 dias lá vai o furriel Ribeiro para Nampula, não de coluna pela picada, mas num moderno Boeing 737 das LAM (Linhas Aéreas de Moçambique). Ao chegar ao aeroporto fica a agradável sensação de ver uma cidade moderna, de longas avenidas, traçada a régua e esquadro, mas, para minha tristeza, não seria por muito tempo pois a um militar de armas pesadas o destino mais certo seria o “mato”, em pleno teatro de guerra onde o foguetório do IN (sigla militar para definir inimigo) seria uma constante.

Os militares das Colónias a quem lhes foi dito que a Guerra Colonial tinha acabado, queriam o rápido regresso à Pátria, os que cá estavam, para embarcar, diziam: “nem mais um soldado para o ultramar” e, nestes entretantos, a desorganização militar, saber recuar em segurança para soldados e pessoas (mais tarde apelidados de retornados) acautelando interesses de Portugal e dos portugueses, resultou em muitas mortes desnecessárias e perdas de bens.

Fui colocado no 2º Pelotão de Recompletamento da Companhia de Comando e Serviços do Quartel General. Chamava-se pelotão e como indica o próprio nome, destinava-se a substituir quem tinha terminado a comissão, tinha adoecido ou morrido. Mas, ao todo, tinha mais de 2.200 militares, sargentos, cabos e praças distribuídos por todo o Moçambique.

Todos os dias tinha que me apresentar ao Comandante, 2º Tenente José Jerónimo Velez, um excelente militar e homem, que me dizia: Ribeiro, ainda não tenho colocação para si, passeie, divirta-se, vá conhecer a cidade. Mas como a “guerra” só fechava às cinco da tarde, não tinha companhia para deambular pela cidade ao ponto de me oferecer para fazer qualquer coisa na secretaria para “matar o tempo”. Os movi-

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mentos de libertação aproveitaram a euforia e a desorganização para com palavras de: “a nossa luta é contra o fascismo e o colonialismo” continuaram a atacar como aconteceu com a Frelimo, que no dia 1 de agosto de 1974, cercou a companhia que estava em Omar, tornou-a refém e levou-a para a Tanzânia. Foram retirados todos e pertences, despojados das fardas, substituídas pelas do movimento guerrilheiro, tornados prisioneiros. Só no dia 19 de setembro é que regressaram a Moçambique. Momento embaraçoso e humilhante. Mesmo com o aviso: “Ribeiro divirta-se” lá me arranjou um serviço: organizar o arquivo.

Nesse entretanto, encontrei um rapaz do meu tempo de escola, em Tabuadelo, donde sou natural, que me pergunta: Ó Ribeiro o que é que fazes aqui? - Estou no Pel/Rec a aguardar colocação. Olha lá: tu sabes tocar órgão? Resposta: sim, toco alguma coisa, desde que haja pauta. É que o organista da Capela Militar acabou a comissão e estamos – (o Faria era 2º Cabo dos Serviços Religiosos) - sem organista. Vou falar com o Capelão Capitão Bártolo, que chegou a estar na Colegiada da Oliveira. Está bem. Não me importo de ir a um ensaio.

Dois ensaios, que correram muito bem e, no domingo seguinte, duas missas. Na homilia da missa da manhã, celebrada pelo capelão da marinha, o Padre Bártolo pergunta-me: onde vais almoçar? - À messe de Sargentos. Não vás, vais almoçar connosco.

Lá fomos todos para um bom restaurante, com música ao vivo, boa comida, vinho Casal Garcia, com o carimbo “para uso exclusivo das forças armadas” – isto a 100 metros do Quartel General, (negócios paralelos à luz do dia) em que a conversa era sobre a nova fase do Grupo Coral e novos projetos. Ouvi com agrado, mas esclareci que estava em Nampula de passagem, em rendição individual e que, a todo o momento, poderia ser colocado no mato. Aí o Capelão só me disse: Ribeiro, dá-me o teu nome completo e o número mecanográfico que eu vou tratar do assunto.

No dia seguinte foi ter comigo ao meu serviço e disse-me: “Fui falar com o General expliquei a situação, disse que tinha apreciado o que cantamos e pediu, de imediato, ao ordenança para lhe trazer o teu processo da 1ª Repartição onde colocou numa folha agrafada. Não colocar sem minha autorização, é organista da Capela Militar”. Diz-me o Capelão: “eu vou estar qui até setembro, vou recomendar-te ao novo capelão, mas, até essa data, “eles” vão vender esta trampa, numa palavra mais popular.

Tinha que tocar as duas missas e o trabalho na secretaria, já com funções autorizadas (delegadas) de assinar ofícios numa empatia e amizade que resultou nesta pergunta do Comandante: “Ribeiro, você não quer ir passar o Natal com a sua família. Oh! Meu Tenente, quem me dera, mas isso não é possível”. Eu trato disso. E assim foi, tratou das autorizações e dos bilhetes e eu para que o Grupo Coro continuasse com o mesmo desempenho dei umas dicas e fiz umas anotações para que um elemento, Cabo da Polícia Militar,

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tocasse as músicas que eram do agrado da assembleia que as cantava em uníssono, digno de se ver.

Estive aqui mais de três semanas até que, por telegrama, fui convidado a regressar à terra dos Macuas. Já ao serviço, sou surpreendido, mais uma vez, pelo Tenente Velez: Ribeiro, você tem direito a ir para Portugal em maio, quer ir em março. Resposta pronta: Meu Tenente, o que é que tenho que dar em troca?

Que assuma a Comissão Liquidatária no Batalhão de Caçadores 5 em Lisboa. – Meu Tenente, estou na disposição de trocar estes dois meses por seis na Metrópole. Foi uma vida regalada, com vencimento de mais de treze contos (o salário mínimo era de 3,3 contos).

Era para embarcar em Nacala no dia 12 de março, por causa da intentona de 11 de março, só embarquei a 13 e, à chegada a Figo Maduro dois grandes cartazes sobre as eleições a 25 de abril. De um lado o do MFA: “o voto é arma do povo”, do outro lado o do MRPP: “não votes senão ficas desarmado”.

Passei o designado “verão quente” em Lisboa onde fiquei ciente da imaturidade política existente, sem tolerância, num extremar de posições impróprias de quem se diz democrata.

Desse “verão”, da “revolução anárquica na rua” recordo que poucos dias depois antes de passar à disponibilidade, o meu ex-colega seminarista Alexandrino de Sousa, natural de São Pedro de Arcos, Ponte de Lima foi assassinado. Integrado num pequeno grupo do MRPP que, junto ao Tejo, colava cartazes é cercado por um grupo de cerca de 60 militantes da UDP que os agride e os deita ao Tejo. O Alexandrino bem gritava que não sabia nadar, nem assim, ficou preso no lodo e morreu afogado. Recordo-me dele como alguém que era aluno brilhante, idealista e lírico, mas íntegro. Foi preso pela PIDE, sujeito a várias sevícias e à tortura do sono, mas, nem assim o vergaram, não denunciou os seus camaradas.

Do 25 de Abril há a amarga sensação de não se ter feito mais e continuamos com muitas injustiças sociais, económicas e políticas que dão razão aos romanos: “não se governam, nem se deixam governar”. Este meu depoimento é um pouco ao arrepio da “versão oficial”, dos cravos bem cheirosos, podíamos ter feito mais e melhor se o esforço de guerra do Ultramar fosse devidamente canalizado para o desenvolvimento do país e do último dos três “D” - Democratizar, Descolonizar e Desenvolver”. Ao fim de 47 anos ainda falta muito desenvolvimento, tolerância e democracia.

O 25 de Abril valeu? Foi útil? Sem dúvida e continua a valer pelo que trouxe: Liberdade, Democracia, mais justiça social, reconhecimento dos direitos fundamentais das crianças, das mulheres, no trabalho.

Contudo ainda há muito a fazer pela liberdade, justiça e fraternidade. Há direitos que ainda estão esquecidos, como os dos idosos. Estamos a caminhar para o adormecimento da reivindicação dos direitos de cidadania em que os jovens, o futuro de Portugal, se distinguem pela ausência neste combate.

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25 de Abril Sempre9

Comemorar Abril é, antes do mais, manter Abril vivo aqui e agora. E manter Abril vivo, aqui e agora, é continuar a manter presente o espírito e continuar a cumprir os desígnios de um Povo, fielmente interpretados no gesto de um grupo de capitães que, numa certa madrugada, devolveu à Pátria o seu sentido mais profundo e fraterno. Mais que a força das armas, é a singular eloquência dos cravos que traz para a Revolução de Abril o registo que poderia ser traduzido com Daniel Filipe: “E, no entanto, é doce dizer Pátria sonhar a terra livre e insubmissa inteiramente nossa

Sonhá-la como se pedra a pedra a construíssemos”

Anos e anos de escuridão haviam transformado a Pátria numa outra coisa. Numa coisa a que alguém chamou “Pátria, lugar de exílio”. Numa outra coisa a que foi associado um grupo de valores que foi sempre o contrário do que fomos nós. E que, em sendo o contrário do que somos nós, nos traiu, nos negou, nos amputou de muito do melhor que somos.

Abril torna presente o reencontro com a Pátria, agora sim, na sua essencial autenticidade. Na sua raiz mais profunda, da terra, do povo e do destino a redescobrir e a reconstruir.

Não é demais, nunca, invocar e homenagear os que lutaram por um país livre, de homens livres, aberto ao mundo do seu tempo.

Esses foram os que combateram o combate justo, os que lutaram pela Pátria, no que ela tem de melhor tradição da Pátria Portuguesa. Que foi grande quando saiu do cais e se abriu ao mar, ao mundo e ao futuro. E não quando andou para trás e oprimiu. Que se realizou quando uniu e abraçou. E não quando viveu amarrada a valores do passado. Que foi grande quando se libertou, e não quando nos cercou o céu com arame farpado, como referiu Baptista Bastos.

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9 Texto lido pelo autor nas comemorações Oficiais do 25 de Abril realizadas pela Assembleia Municipal de Guimarães.

Entre as mais ignóbeis injustiças feitas à Revolução de Abril, a tentativa de uns tantos, que constantemente olham o momento libertador aliado a processos de descaracterização ou negação dos valores Pátrios. Alguns persistem nesta infâmia.

É nossa obrigação desmontá-la!

É nossa superior obrigação desmontar este ultraje. Por respeito a Abril, por respeito aos que lutaram por Abril antes de Abril (tantos morreram sem saber qual a cor da liberdade) e pelo respeito que devemos a nós mesmos.

DESCOBRIR O MAR DE VOLTA

Eis o sonho que Abril trouxe. Eis o sonho que Abril nos deu. Descobrir o mar de volta. Teremos nós realizado o nosso sonho?

Perguntaram um dia a Manuel de Fonseca se havia realizado os seus sonhos. Respondeu o Poeta: “Os meus sonhos, realizo-os sonhando-os”.

Inseparável da matriz libertadora de Abril, a sua dimensão poética transportou a nossa Revolução para um território de sonho coletivo que haveria de ficar na memória de todos na tela de Vieira da Silva que atestava:

“A POESIA ESTÁ NA RUA”.

Por muito que se tenha passado, entretanto, isso ninguém mais nos tira. Do nosso património, do património de todos nós, consta essa viagem, aquele haver viagem, o desenho inacabado que a todos incumbe continuar. Não estaremos sempre todos no mesmo rumo. Mas agora estamos todos no mesmo barco. E agora somos nós que escolhemos a direção a tomar. E se grande é a viagem e enorme o desafio, é de nós que dependemos no caminho. A nós incumbe descobrir o mar de volta. Mar Feliz a que regressamos.

Não está livre de perigos a nossa viagem. A viagem que quisemos fazer. Que vimos fazendo. A viagem para a qual todos somos necessários. São tais perigos que tornam mais necessário o empenhamento de todos nós.

Deram-nos o mar de volta para navegar. Deram-nos o mar como destino. Mas não nos deram o mar. Tal é a nossa tarefa: navegá-lo. Tal é a nossa aventura.

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Ora, disse O’Neil“É no mar que a aventura tem as margens que merece” Assim também na nossa viagem. Assim também nesta aventura que continuamos a querer correr. Sabemos que com a latitude destas margens o erro, a falha, são hipóteses nunca previamente afastadas. Não tenhamos medo. Não recusemos participar nesta viagem por receio de errar. Abracemos esta aventura! Que é o desenho do nosso futuro, a concretização da nossa esperança. Ninguém o fará por nós. Mesmo porque não queremos, nem permitiremos, que alguém o faça por nós.

Estejamos dispostos a lutar sempre para que ninguém o faça em vez de nós! Tenhamos presente Abril aqui e agora e sempre. E a construir e renovar Abril, esse dia inicial inteiro e limpo, mantenhamos limpa a sua senha, a sua marca:

TERRA DA FRATERNIDADE GRÂNDOLA VILA MORENA

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Mudanças

Os períodos temporais de meio século, cinquenta anos, foram sempre em todas as sociedades tempos de grandes mudanças demográficas, económicas, sociais, artísticas, tecnológicas, políticas.

Pede-me a revista editada pelos “Osmusiké” que perore sobre as mudanças em Guimarães no período (1974 – 2021).

É um intervalo de quarenta e sete anos, quase meio século, que vivi intensamente como protagonista. Falta-me isenção. Seria muito mais interessante, para além da transmissão das perceções que todos nós temos, que inventariasse dados sobre a demografia, a economia, a educação, para ir mais além na análise comparada.

Com muita pena minha tive de transmitir aos convidantes que não teria disponibilidade, de momento, para essa recolha e leitura.

Insistiram que ficasse pelas perceções.

Cinquenta anos é tempo de transferência de gerações, de avós para netos. Os protagonistas vimaranenses que, em 1974, tinham 50 anos e filhos de 20, têm em 2021 netos na casa dos 30 – 40 anos. Esta geração olha para 1974 como o tempo dos seus avós.

Sucede ainda que em 1974 ocorreu uma revolução política em Portugal. Que logo foi sucedida com uma perda do poder económico, embora dez anos depois este o tenha recuperado.

Por outro lado, o século XXI viu a consolidação acentuada de uma União de Estados Europeus com crescentes transferências de soberania. A acrescentar o acelerar da revolução tecnológica na vida quotidiana, desde os computadores, os telemóveis, as videoconferências, que não eram sequer sonhadas.

Depois a igualdade de género. Talvez aqui mais lenta que todas as outras transformações. Dado que há 50 anos já tínhamos a feminização do trabalho fabril, embora ausente nas funções de gestão ou de direção intermédia, o que não mudou assim tanto, mas não da classe média.

Mudou nas relações familiares. Se a mulher doméstica, mãe de filhos, já era a “dona de casa” na verdadeira aceção do poder, ela não dispunha da opção de terminar a sua relação conjugal, quando essa era a sua vontade.

Direi assim que quase tudo mudou na sociedade portuguesa, mais que em outros países europeus que

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antes de 1974, viviam em democracia, sentiram o abalo do “Maio de 68” ou conheceram o turismo das costas espanholas que só chegou ao Algarve vinte anos depois.

E em Guimarães?

AS famílias viviam no centro. A classe média no Toural, S. António. Paio Galvão, Gil Vicente. As classes operárias na Rua D. João, Couros, Caldeiroa, Camões, Oliveira, Santiago, Rua Nova. Dez anos antes tinham começado a ser habitadas as vivendas junto ao Liceu e na avenida que ia dar ao Hospital velho. Enquanto em Braga, logo nos anos 1960 nasceu a habitação coletiva da Avenida, hoje, da Liberdade, por cá só uma década depois e muito resultante da urbanização dos terrenos da Casa do Proposto, vendidos para ser construído o Estádio Municipal. O suburbano começou, porém, a ser a residência da população empregada a partir dos meados da década 1960 com a criação dos transportes urbanos. Covas, Cruz da Argola, S. Roque, Madre Deus via Cano, Madre Deus via S. Pedro, Pisca, Caneiros eram os fins das linhas, os novos limites.

Igualdade de género em Guimarães há 50 anos?

As meninas tinham nas escolas entradas e corredores separados e só começava a haver conhecimentos e namoros no fim do secundário e todos organizavam em conjunto as festas dos finalistas. Nos cafés, os homens mais adultos e os rapazes jovens eram os únicos frequentadores.

O Liceu tinha 1000 alunos, a Escola Técnica 2500, incluindo os cursos noturnos frequentados por quem tinha começado a trabalhar em criança. Nas escolas rurais só alguns concluíam a 4ª classe, a maioria ficava pela 3ª.

Nesse mundo rural não havia caminhos pavimentados, água canalizada, saneamento e em algumas aldeias nem sequer iluminação pública ou doméstica.

Era um mundo diferente, mas o emprego industrial já era maioritário como hoje. O agrícola perdeu toda a sua força de trabalho, os serviços cresceram exponencialmente.

O centro histórico, hoje orgulho dos vimaranenses, a nossa sala de visitas, era há 60 anos a zona pobre, onde era difícil passear e atravessar sem ser incomodado pela “gandolagem” que o ocupava.

O Futebol mudou completamente, mas não a paixão vitoriana. Parece que o tempo não passou. Ao domingo, na Amorosa até 1965 e depois no Estádio só relva sem balneários, já 6000/7000 vitorianos vibravam nas bancadas…

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Conquistas de Abril

Sempre gostei do mês de abril. Foi quando cheguei, em 1979. E, quando cheguei, já abril era… abril! Com a comemoração do 47º aniversário, a Democracia ultrapassará em longevidade a ditadura – vergada ao peso do Cravo de 74. Os (novos) tempos da pandemia trouxeram medidas novas e restrições que muitos não conheceram, até então. Sabemos que a Liberdade não está de boa saúde e, só assim, percebemos o quão livres nós éramos.

Todos os anos têm um mês de abril e todos os meses de abril têm o dia 25. Um dia e um mês extremamente simbólicos para os portugueses, que voltaram a viver em Liberdade, depois de quase 50 anos de um Estado repressivo, de sujeição, de silêncio, e que há 47 anos celebra, agora, a conquista histórica, fruto da luta e do trabalho de muitos, militares e civis.

Uma das mais valiosas heranças do 25 de abril de 1974 é o Poder Autárquico Democrático. É o estabelecimento de uma relação de proximidade que, hoje, se cultiva diariamente entre eleitos e eleitores. É a valorização do trabalho em cooperação de quem, abnegadamente, serve os seus cidadãos e as suas comunidades, quer ao serviço de uma Câmara, Assembleia Municipal, Junta ou Assembleia de Freguesia.

Nesta data, rendem-se homenagens aos Homens e Mulheres que, em períodos de aprendizagem da vivência democrática, deram cabais provas de maturidade política e de visão estratégica determinantes para o desenvolvimento de um Concelho.

É nas freguesias, pois, que reside o primeiro nível da Democracia. Servir uma população enquanto Presidente de Junta constitui uma oportunidade única de beneficiar uma Comunidade com espírito de missão, sentido de responsabilidade, em prol do bem comum, sempre em estreita colaboração com o Presidente do Município na criação e desenvolvimento de novas ideias e obras estruturantes para as suas pessoas.

Guimarães orgulha-se de ter Presidentes de Junta e líderes de instituições que se dedicam de corpo e alma aos seus projetos. Que estão com as suas populações e têm um olhar cirúrgico sobre a realidade. Que conhecem os seus problemas e que tudo fazem para os solucionar, intervindo com acuidade e desvelo no progresso dos seus territórios e, por inerência, de Guimarães.

A qualidade de vida de um concelho constrói-se com um bom ambiente urbano, educação inclusiva e exigente, uma agenda cultural contemporânea e participada própria de uma cidade europeia de cultura,

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Vítor Oliveira, Chefe de Gabinete do Presidente da Câmara Municipal Vitor.Oliveira@cm-guimaraes.pt

hábitos saudáveis e atividade desportiva regular, preservação e valorização do património material e imaterial, solidariedade social e intergeracional e uma atividade económica geradora de riqueza e de empregos qualificados.

Afinal, a ação política visa as pessoas e o seu bem-estar, mas nenhuma terá sucesso se prescindir das instituições que formam a comunidade e se admitir que cidadãos permaneçam excluídos e à margem do desenvolvimento.

OSMusiké têm o condão de agregar várias componentes, privilegiando sempre a comunidade onde estão inseridos, sem nunca esquecer a solidariedade e a inclusão, condições estruturais para o sucesso coletivo, onde prevaleçam cidadãos com uma forte consciência cívica. Ou não fossem o envolvimento e a participação de todos indispensáveis forças catalisadoras da ação política. A pensar nas pessoas. Sempre. Como sempre deve ser comemorado… Abril!

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25 de abril em Guimarães

” As Forças Armadas desencadearam, na madrugada de hoje, uma série de ações com vista à libertação do País do regime que há longo tempo o domina.”

(Comunicado do MFA, lido aos microfones por Luís Filipe Rocha, às 7,30 h do dia 25 de Abril).

De facto, faltavam cinco minutos para as vinte e três horas quando os Emissores Associados emitiram a canção “E depois do Adeus” de Paulo de Carvalho, o primeiro sinal para o início dos preparativos. Depois, cerca de vinte minutos antes da meia-noite, surge a segunda senha, quando Leite de Vasconcelos transmite, através da Rádio Renascença, “Grândola Viva Morena” de José Afonso, que marca o início das operações militares.

Decididamente, a poesia estava na rua …

A MANIFESTAÇÃO ESTUDANTIL

Ora, a cidade berço acompanhou como as demais o desenrolar dos acontecimentos pela rádio e pela televisão. No entanto, a primeira manifestação de apoio ao 25 de Abril, em Guimarães, teve lugar logo na manhã do dia 26 de Abril de 1974, por iniciativa dos estudantes do Liceu Nacional de Guimarães, que nessa manhã decidiram “gazetar” e boicotar as aulas, contra a vontade do vice-reitor em exercício.

Uma manifestação espontânea que, saída do Liceu, desceria à Alameda, após percorrer várias ruas citadinas e dirigir-se à Escola Secundária Francisco de Holanda, engrossando as suas fileiras ao longo do percurso com estudantes de outras escolas.

Sob o título “Manifestações de regozijo pela vitória das Forças Armadas”, o Notícias de Guimarães de 4 de maio de 1974, descreve a ocorrência:

“Na sexta-feira passada, dia 26, nesta cidade, realizaram-se várias manifestações de regozijo pelo êxito do movimento militar.

Numa das manifestações da parte da manhã milhares de estudantes dos estabelecimentos de ensino aclamaram as Forças Armadas, dando vivas a Portugal e à liberdade, entoando em coro o hino nacional.”

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De facto, não era de todo estranha esta manifestação de regozijo dos estudantes liceais. Com efeito, nos anos precedentes, a juventude local havia dado passos significativos na organização juvenil de que são exemplos concretos os jovens da Assembleia de Guimarães que abanaram culturalmente a cidade com colóquios diversos, como o de José Carlos Vasconcelos, várias sessões musicais de intervenção com Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Manuel Freire, entre outros, bem como algumas sessões de poesia nas quais marcou presença Mário Viegas. Organizações a que se ajuntam os jovens do Centro Juvenil de Vila Pouca e as suas Manhãs Juvenis e algumas organizações católicas, juventudes partidárias clandestinas e sindicalistas.

Não se pode também deixar de aludir algumas peripécias irreverentes dessa época, em especial no decurso das Nicolinas.

Por exemplo, lembro-me do cartaz do Pinheiro “O outro foi à urna e votou”, que na inocuidade do seu teor passaria incólume na censura prévia. Porém, pouco antes do desfile do Pinheiro e visionamento policial, que conferia tudo o que fora visado pelo censor, o cartaz alteraria o verbo, por obra e graça de uma ocasional pincelada (um “l” intercalado), que mudaria todo o sentido: “O outro foi à urna e voltou!”. Obviamente, o outro era Salazar, que após a queda da cadeira escaparia à urna mortuária em 1968, resistindo ainda mais dois anos.

Outro episódio contestatário teve lugar na récita dos Finalistas 71 do Liceu de Guimarães. Recordo-me da participação no número satírico “Contra Barrigas não há suspensórios ou a história de um povo que anima El-Rei Gemebundo”, uma crítica social à manifestação de apoio promovida pela Unidade Vimaranense ao Presidente da Câmara Bernardino Abreu. Porém, uma récita que começaria desde logo pela apreensão da capa do programa, pela sua similitude com o símbolo do MDP/CDE, e culminaria com a suspensão de uma dança dita “subversiva” por parte do professor Marques Mendes, vice-reitor em exercício. Uma atitude que valeria um longo sapateado de contestação na plateia do Teatro Jordão, complementado com o protesto da balada de despedida, de autoria de A. Rocha e Costa e Carlos Falcão, cantada em pose de luto:

“A cantar vamos deixando Nossa mensagem gravada Quem canta vai espalhando Sua dor amargurada” (…)

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Com efeito, nos anos antecedentes ao 25 de Abri, muitos eram os jovens amargurados que ansiavam por mudanças na educação e política juvenil, certamente influenciados pelos movimentos de Maio 68 em França e a Crise Académica de 1969, em Coimbra, a cujo leme esteve o vimaranense Alberto Martins, nascido a 25 de Abril.

Lutas que a nível político contariam também com a ação relevante de Santos Simões, quer na ação cultural vimaranense quer na reforma e democratização do ensino, que a obra “Engrenagens do Ensino” testemunha “na defesa da educação geral humanista e de uma educação para a cidadania democrática. Luta que obviamente passava pela “igualdade de oportunidades (…), aliando a formação intelectual e formação profissional, instrução e educação cívica”.

A MANIFESTAÇÃO DO MOVIMENTO DEMOCRÁTICO

No entanto, na tarde deste mesmo dia, pelas 19 horas, uma outra manifestação ocorreria, organizada pela Comissão Concelhia de Guimarães do Movimento Democrático do Distrito de Braga, que reuniria milhares de pessoas.

O mesmo jornal, acima citado, narra o evento:

“Ao fim da tarde e promovida pela Comissão Concelhia do Movimento Democrático do distrito, efetuou-se, no Largo do Toural, uma manifestação, na qual tomaram parte milhares de titulares.

Da varanda do café Oriental discursaram o Dr. José Augusto da Silva e o Dr. Santos Simões; e ainda o Sr. Eduardo Ribeiro, encontrando-se presente o capitão Machado Ferreira de Infantaria 8, que agradeceu as manifestações dirigidas às Forças Armadas”.

A multidão aplaudiu os oradores e soltou novamente vivas a Portugal e à liberdade, entoando em coro o hino nacional”.

No texto “Quando a liberdade estava a passar por aqui”, em Memórias de Araduca, Amaro das Neves, que também estivera na manifestação estudantil, recorda indelevelmente esses tempos:

“Ao final da tarde daquele dia em que, de repente, aprendemos tudo o que nos quiseram esconder e que, afinal, já sabíamos (…)

Estamos a caminho do socialismo.

E eu que, na altura dos meus 15 anos acabados de fazer, não sabia o que era socialismo, achei bem.

Aquele foi o dia em que me tornei socialista. Devo-o a Santos Simões.”

De facto, o 25 de Abril deve-se a muitos resistentes que nas décadas anteriores lutaram contra a ditadura salazarista, entre os quais se destacam Emídio Guerreiro e Santos Simões, J. Casimiro Ribeiro, na altu-

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ra preso em Caxias, e muitos outros vimaranenses como Hélder Rocha, Lurdes Mesquita, bem como outros cujos depoimentos constam da obra “25 – Guimarães, daqui houve resistência”, obra singular de recolha e organização de textos de César Machado sobre essas vivências.

A MANIFESTAÇÃO DE APOIO AO MFA

Todavia, nova manifestação eufórica em prol da Revolução dos Cravos ocorreria ainda no dia 29 de abril, reportada pelo citado semanário:

“Na segunda-feira, ao fim da tarde a população vimaranense aglomerada nas ruas e praças da cidade vitoriou as Forças Armadas, durante a passagem de elementos do Regimento de Infantaria 8 que, vindos do Porto, se dirigiam à sede do distrito.

Das varandas que se viam repletas de pessoas foram lançadas flores e nuvens de papelinhos com as cores nacionais. Na Praça do Toural saudou as Forças Armadas o Dr. António Mota Prego, agradecendo aquela calorosa manifestação o capitão Rui Guimarães de Infantaria 8”

Entre esses militares do RI 8, nas duas manifestações (26 e 29 de abril), esteve o (então) jovem Alferes Jorge do Nascimento, que assim recorda o momento, nas páginas da obra acima citada:

“Um momento único que se viveu no Toural. Uma coisa única (…) A adesão forte em Guimarães, mais ou menos consciente, muito natural, muito genuína. Num desses comícios falaram Eduardo Ribeiro, Santos Simões, José Augusto da Silva, o primeiro Presidente da Comissão Administrativa, que dirigiu a câmara Municipal e o capitão Machado Ferreira do Ri 8. No dia 29 de abril falou o capitão Rui Guimarães, em nome dos militares e julgo que também terá falado o Dr. Mota Prego”.

DE ABRIL A MAIO

No entanto, para além da manifestação do 1º. de Maio, que o Notícias de Guimarães de 4 de maio assinala como uma grande manifestação, que culminaria no Estádio Municipal com discursos de sindicalistas e do Movimento Democrático, surgem também, na imprensa local, a partir de Maio, vários textos opinativos, bem como as primeiras controvérsias, como é o caso da transferência de poder na Câmara Municipal de Guimarães, parcialmente despoletado pelo telegrama assinado pelo Presidente da Câmara da altura, Bernardino Abreu:

“A Câmara Municipal de Guimarães, na sua reunião após o vitorioso Movimento Militar do 25 de Abril, apresenta a V. Exª. e a todos os membros da Junta de Salvação Nacional, os seus respeitosos cumprimentos e oferece a sua colaboração, para tudo o que for feito a bem de Portugal”.

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Ora, entrementes, este telegrama teria resposta na edição de 11 de maio do Comércio de Guimarães, com um expressivo texto de primeira página, intitulado “Fora com eles”: “A Câmara Municipal de Guimarães em telegrama assinado pelo presidente Bernardino Abreu, ofereceram colaboração.

Pretendem “amarrar-se” como os náufragos ao rochedo …

Fora com eles! … Fora com eles! …

Exige-o a população vimaranense na sua maioria esmagadora.”

Nesta mesma edição são ainda publicados dois comunicados da Comissão Concelhia de Guimarães do Movimento Democrático: um que “deliberou substituir o nome de duas artérias centrais da cidade, como símbolos de bastiões fascistas”, como aconteceria ao Largo 28 de Maio e atual Largo 25 de Abril e à Alameda Salazar, que passaria a denominar-se Alameda da Resistência ao Fascismo; outro em que se dá conta da eleição de uma Comissão Administrativa Provisória para gerir a Câmara Municipal de Guimarães “em virtude da vereação municipal e do seu presidente não oferecerem confiança na prossecução da nova política determinada pelo programa do MFA”.

O mesmo comunicado adianta ainda que “do facto foi dado conhecimento ao atual Presidente da Câmara (…) pelo Dr. António Mota Prego, às 13 horas de hoje, dia 8 de Maio, que lhe propôs que tomasse a iniciativa de reunir toda a Câmara, a fim de se demitir (…)

A resposta do Presidente da Câmara foi que não se demitia.

Esta atitude, inexplicável, à luz da profunda renovação da vida nacional, só poderia ter uma resposta: diligenciar tenazmente pela demissão de toda a Câmara Municipal de Guimarães.”

Porém, de facto, a alteração do poder executivo camarário seria consumada, como expressa o Comércio de Guimarães na sua edição de 18 de maio de 1974 (sábado):

“Conforme se esperava a Câmara Municipal de Guimarães foi exonerada. Na quarta-feira tomou posse, no Governo Civil de Braga, uma Comissão Administrativa, que ficou constituída pelos senhores:

- Presidente, Dr. José Augusto da Silva, advogado;

- Emílio de Abreu Ribeiro, comerciante;

- António Ribeiro Martins, construtor civil:

- José Ferreira Lopes, empregado de escritório:

- Carlos Alberto Nave, bancário;

-Aristóteles do Nascimento, professor;

- José Faria Martins Bastos, comerciante.

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A transmissão de poderes efetuou-se no mesmo dia na Câmara Municipal, em ato que causou o maior regozijo na população vimaranense.”

Acrescente-se ainda, à laia de conclusão, que em Guimarães também não ocorreram grandes situações de violência nos tempos subsequentes e posteriores ao 25 de Abril. Com efeito, e contrariamente aos atentados bombistas e incêndios de sedes partidárias cometidos em várias localidades nortenhas, em especial centros de trabalho comunistas, na cidade berço aconteceriam apenas pequenas escaramuças partidárias, um tanto ou quanto próprias do radicalismo desses tempos.

No entanto, não se pode esquecer o crime de lesa pátria e roubo do Tesouro de Nossa Senhora da Oliveira, em 16 de novembro de 1975, cerca de uma semana antes do 25 de Novembro, que segundo as investigações ocorridas teria sido perpetrado por elementos de direita radical pertencentes ao Movimento Democrático de Libertação de Portugal e do Partido do Progresso/Movimento Federalista Português.

Entretanto, já lá vão 47 anos com muito já consumado e muito ainda por fazer …

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A Soma e a Combinação

António Jorge Extremina extremina@sapo.pt

Ao abordar Abril e a liberdade podia enveredar por descrever o raiar da aurora desse dia, era por esse horário que me deslocava para o trabalho; contar o acontecimento coincidente de haver greve de zelo na empresa, que passadas poucas horas as reivindicações foram aceites; dissecar sobre como foi o movimento popular nesse dia; o trabalho de militância no movimento JOC (Juventude Operária Católica) em que estava envolvido, que acabou com a expulsão por ser considerado "vermelho"; o envolvimento partidário em campo democrático já bem estabelecido (MDP-CDE); o intenso trabalho e dedicação quase obsessiva junto das populações no campo da dinamização social e cultural; os reveses, contradições do processo, assim como as ameaças, a vigília constante e as decepções; descrever as conquistas e o trabalho que ficou cimentado pela organização de movimentos populares; o virar da "agulha" a partir do contra processo com promessas de voltar à "normalidade"; o vivenciar do surgimento de políticas públicas ao contrário do espírito de Abril; o afastamento da vida activa partidária, partindo, como o normal do cidadão para outros voos (casamento), outras formas de agir e de estar (com coacção permanente); o estar sempre atento e com participação diminuta, mesmo assim sempre coagido e vigiado; todo este manancial de vivência durante todo o processo, daria com certeza lugar a contar muitas histórias, mas como escreveu José Régio no seu Cântico Negro (1926) «... ninguém me diga: " vem por aqui"! a minha vida é um vendaval que se soltou. É uma onda que se alevantou. É um átomo a mais que se animou ... Não sei por onde vou, não sei para onde vou. Sei que não vou por aí!», Pois é, dariam histórias de certo modo redutoras, pois foram vividas de forma empolgante, de sentido quase único, onde a preparação era escassa, a vontade muita, não havia um olhar para o todo, mas sim um olhar de orgulho em ser operário (qualificado, assim eram as regras do sistema para quem tinha curso da escola industrial).

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... decorridos cerca de 40 anos, ao virar para a categoria de Reformado, eis que o vendaval se soltou, a onda se alevantou e o átomo a mais se animou, daí partir para uma aventura em que um sonho se realizou, cursar a universidade e licenciar em Ciências Sociais (Ciência Política).

Então sim, agora vou dissecar sobre Liberdade, primeiro sobre conceitos que nos impingem a todo o momento, ora através da comunicação social, no digital, em tudo que seja oportuno.

Sendo a abertura de horizonte muito mais ampla, dá para abarcar com consciência estes novos conceitos, diria mesmo paradigmas de Liberdade, alicerçadas em teorias falaciosas como aquelas que nos são induzidas a todo o momento. Claro que me refiro ao fortalecimento da teoria do Neoliberalismo dando enfâse a esse conceito de Liberdade assente em pressupostos de individualidade, de livre-arbítrio, de meritocracia, como isso levasse a soluções em que a grande maioria das populações vivam com dignidade.

E se isto se torna difuso para a maioria, atentemos no evoluir do "Mercado", no aprofundamento da prática crescente do conceito da chamada liberdade individual, no pressuposto que são livres formando uma soma de indivíduos em vez de uma combinação de indivíduos, o que convém ao status quo vigente. A realidade nua e crua é esta, mas continuo a acreditar que é possível a Liberdade ser de outra índole e com outros valores, como bem canta Sérgio Godinho na cantiga "Liberdade" (1974).

“Viemos com o peso do passado e da semente Esperar tantos anos torna tudo mais urgente e a sede de uma espera só se estanca na torrente e a sede de uma espera só se estanca na torrente Vivemos tantos anos a falar pela calada Só se pode querer tudo quando não se teve nada Só quer a vida cheia quem teve a vida parada Só quer a vida cheia quem teve a vida parada Só há liberdade a sério quando houver A paz, o pão habitação Saúde, educação Só há liberdade a sério quando houver Liberdade de mudar e decidir quando pertencer ao povo o que o povo produzir quando pertencer ao povo o que o povo produzir.”

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Abril com primavera nos cravos liberdade

Nota de abertura

A antecipar o efeito que um momento comemorativo produz em cada um de nós, sobretudo se após um tempo que apropriamos e expectámos de genialidade, adivinho que só nos imaginamos inquietos a adivinhar tantas projeções do nosso agir como cidadãos do e pelo mundo.

Neste fio de caminho, uma breve nota de agradecimento e de reconhecimento público para todos aqueles que proporcionaram a grandeza que nos propõe OsmusikéCadernos 2, em particular, aqueles presentes ou ausentes, que em grande rigor, responsabilidade e qualidade cidadã nos recebem e reúnem em contexto confortável de acolhimento com vivência democrática. Propício ao envolvimento, à participação e colaboração, contribuindo para algo que interpreto de relevado valor na narrativa pessoal de cada um e na memória com história de Guimarães com vivência de democracia e de cada um de nós, um espaço afetivo de construção de identidades.

O tema abril, que agora cumpre ponto de memória que sonha democracia e canta liberdade, lançanos um apontamento crítico de continuidade da democracia, que não se deixa intimidar com impactos disruptivos da COVID-19, antes descobre FUSÃO na vontade para resolver novos problemas além soluções lugar-comum. Emerge para inventar e gerar valor genuíno distintivo que nos instiga a descobrir novas vontades e liberdades, cruzar e envolver. A pretender procurar destacar a participação e a colaboração como vetores geradores de novos conceitos, capazes de desenvolver outros e o valor de indagar como o passado, em fusão continuada com o presente, nos premeia com futuro através da cumplicidade e (re)invenção de descobrir Portugal e cantar abril. Para tudo isto contamos com todos vós que cantam a liberdade, muitos e inesquecíveis. De tudo que me proporcionam perspetivar, pressinto fusão nas forças Identidades, Investigação, Património, Cultura, Liberdade, Participação, Cidadania Inteligência Criativa, apta para projetar resiliência numa sociedade em transição continuada, gerenciada, muitas vezes, de forma intangível pelo “fenómeno da globalização” e manietada por medos, assumindo aquelas forças como heterónimos representativos de identidades próprias com interesses comuns, com marca de narrativa cultura cidadã, capaz de desenvolver a competência global. Entendida como a capacidade e disposição para compreender e agir

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sobre questões de importância global, com intenção de permitir, criativa e corresponsabilizadamente, fortalecer o conhecimento e a curiosidade para aprender, neste contexto particular, aprender a construir liberdade para investigar o mundo, reorganizar perspetivas, comunicar ideias, ter atitude e tomar decisão.

O que a seguir se conta é uma estância para contemplar abril e sentir liberdade em cenários de emergência COVID-19, onde é urgente agarrar a democracia com vivência de sermos Portugal e galgarmos mundo.

Com abril estamos Portugal

Abril, quantos dos teus cravos são vontade de cantar liberdade, viver Guimarães e sonhar Portugal!

As memórias de abril transportam-me para uma lembrança marcante na infância, a queda do muro da escola, aquele que separava os meninos das meninas e os faziam acreditar em sonhos de nada e a ter orgulho numa sacola cheia de coisa nenhuma e, ainda, a marcante ingenuidade de perguntar pelo motivo de não ser uma ideia de sempre, a de manter juntos meninos e meninas. Foi o fim do início traduzido em muitas línguas e lido por pessoas de todas as idades e condição social. Motivou muitas narrativas que voaram e se leram e releram em vários tempos e lugares. A estranheza que nos causa revela-nos segredos de cantar abril com Portugal. Conhecido como um sonhador de liberdade muito sábio, que nos agarra o coração e se eleva na visibilidade da invisibilidade do sentir com saber e oferece cravos vermelho vivo, um símbolo de paixão, que nos arrebata com amor e o ser liberdade.

É bom escalar abril para um espaço de liberdade sem fim, onde a imaginação nos presenteia com a escuta do silêncio e o impulso da vontade de abraçar Portugal e as suas gentes e gritar estamos liberdade, em múltiplas formas de habitar abril e com vontades que sonham. É necessário mapear abril sempre, sabemos que há coisas que ficam perdidas na ausência (Mia Couto, 2020), mas é necessário manter abril com liberdade, sem deixar de sonhar Portugal, cantar Guimarães e deixar pegada.

Abril guarda cravos vermelho vivo, um tipo de flor que precisamos de conhecer melhor, de descobrir o seu desabrochar à luz do sol e observar a forma como se põe bonita sempre que se canta a liberdade com sonhos de Portugal e hino à democracia. A querer dizer-nos que é coisa simples, algo invisível para os olhos, mas muito visível para o coração (Saint-Exupéry, 2001). Sonoridades de vida na urgência do aqui e agora, que nos elucidam de que estar vivo é sentirmo-nos vulneráveis, mas não fracos. A vulnerabilidade é o único caminho para a coragem de abril com vozes plurais que não se cansam de gritar liberdade com vontade de habitar e crescer em e por abril, com perceção de múltiplas imagens, aquelas que dizem respeito ao mundo em torno de nós, em variadas modalidades sensoriais, capazes de dominarem o nosso presente psicológico (Damásio, 2020).

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Não é possível ser-se liberdade sem falar de emoções. A liberdade não acontece porque somos destemidos, acontece porque, mesmo com medos, seguimos em frente. Fomos empurrados abruptamente para uma pandemia que nos engole, que nos carrega com medos. Contudo, dia após dia vivemos silêncios, vivemos longe de nós tempo de mais, vivemos na indiferença de tudo e até de nós próprios. Esta lucidez convida-nos a viver a urgência do aqui e agora com sensatez e vontade de esperança e confiança na liberdade, com vivência de elogio à democracia, a abrir-nos perspetivas de compreendermos a própria vida, sem inibirmos a imaginação. Confrontados com a imaginação, a necessidade de evidências esbate-se como que por magia e passamos a saboreá-las com sorrisos de espanto (Menéres, 2003). Com abril aprendemos tantas coisas, por um lado, aprendemos que sentimos o vazio da liberdade e, por outro, na liberdade sentimos a esperança da democracia.

Nota final

O que é que abril nos diz que devemos fazer!

O espaço que ocupa na liberdade é plural e afirma os direitos humanos, com vozes que preenchem a imaginação de todos e de cada um, com possibilidade de muitas histórias em autoria e coautoria, costuradas com vontades de democracia e utopia de paz trajada de arco-íris.

Abril, a liberdade, Portugal e a democracia são espaços multilingues que ligamos com sonhos de vida com alegria e teias de imaginação que caçam para libertar, sem possibilidade de matar ou aprisionar as vozes que habitam abril.

É o abril mais carregado de nostalgia de vida com alegria que experimentamos, que me faz desejar pedaços de vida para todos e com todos, que me faz desejar que criem memórias. Não deixem de abraçar os silêncios e as ausências com a felicidade de voltar com liberdade e imaginação que pinta a democracia da cor que ela quiser, sempre que afirma os direitos humanos com eco de mais pessoas, mais mundo. Viva abril com primavera nos cravos liberdade.

Referências Bibliográficas

Damásio, A. (2020). Sentir & Saber. A caminho da consciência. Lisboa: Círculo de Leitores. Menéres, M. A. (2003). Imaginação. Histórias de vida, vivências, afectos, poesia, uma pedagogia do encantamento. Porto: Editores Asa Mia Couto (2020). O mapeador de ausências. Porto: Editorial Caminho.

Saint-Exupéry, A. (2001). O Principezinho. Lisboa: Editorial Presença.

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Com perfume de cravo vermelho

Pairava sobre a pátria portuguesa uma aflição, que oprimia e que sufocava. A vontade de rir fora-se. Sob este céu clemente e azul só ficara a vontade das lágrimas ou a vontade da revolta “

(Raul Proença, 1884 – 1941)

O 25 de Abril faz 47 anos. E este dia de aniversário tem um etéreo perfume a cravos vermelhos. Mas enquanto nós, seres humanos, vamos somando as transladações da vida, o 25 de Abril, o nosso, tem obrigatoriamente de se ir renovando para que as novas gerações encontrem nos seus valores o futuro e lutem por eles.

Esta é uma data que não pode ser esquecida!

Ela fechou uma ditadura de 48 anos. Ditadura que vigiou, prendeu, torturou e matou homens e mulheres; que censurou livros, música, artigos de jornal, teatro, televisão, cinema… já que nada escapava aos abutres de Salazar e ao perverso lápis vermelho. Ditadura que obrigou ao exilio quem se levantava contra a repressão e a miséria de um Portugal cinzento e analfabeto sem perspectivas de futuro. Ditadura que também deu início a uma guerra colonial sangrenta que roubou a juventude e a vida a milhares de jovens e desmembrou famílias. A minha também. Levou-me dois irmãos muito jovens para o exilio por se recusarem a combater contra os povos irmãos. Essa coragem abriu um vazio de dor e ausência que só terminou quando Abril floriu.

Era meia noite do dia 24 de Abril e a voz de Zeca Afonso, finalmente livre da censura e da ditadura, pintou as ruas de vermelho ao som da “Grândola, Vila Morena”.

Passaram 47 anos! Muito se conquistou. Mas a cada dia que passa percebemos que as conquistas de Abril são frágeis como o cristal!

E essa fragilidade obriga-nos a estar vigilantes porque os vampiros, como diz Zeca Afonso10 , vêm em bandos com pés de veludo/chupar o sangue fresco da manada.

Hoje, mais do que nunca pululam por aí. Vivemos um tempo perigoso capaz de colocar a Liberdade e

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10 Os Vampiros (1963), letra e música de José Afonso.

a Democracia naquele estado de clandestinidade que vigorou até Abril de 1974. Sabemos que juntamente com esta crise sanitária e social, ou a coberto dela, renasceu outro vírus perigoso que, insidiosamente, se vai instalando em cima das democracias, das liberdades e dos nossos direitos. Dizem-nos que todas as regiões do mundo registaram um retrocesso democrático num ano marcado pela pandemia11 . Portugal também. Em 2020 perdeu a classificação de "democracia plena" e integra, agora, o grupo dos países considerados como "democracias imperfeitas."12

Vemos também, com tristeza e apreensão, voltarem atitudes antidemocráticas. Uma delas era prática típica da ditadura, a delação ou denuncia, hoje incentivada como sendo um dever cívico em tempo de pandemia. Não podemos deixar que discursos apaziguadores a bem da saúde pública nos tolha o direito de fazer perguntas incómodas, de criticar comportamentos e decisões políticas, de manifestar a nossa posição. O medo, o isolamento, a depressão e a tristeza instalam-se e levam as pessoas a obedecer, sem questionar, a medidas que limitam ou retiram liberdades e direitos, concentrando, perigosamente, poderes nos mordomos do universo todo/ Senhores à força mandadores sem lei13. E destas medidas nunca sabemos as que ficam, como força de lei, depois da pandemia.

Não podemos ficar indiferentes! A democracia e a liberdade precisam do nosso olhar vigilante e crítico para proteger os valores que conquistamos em Abril, porque do dia para noite… eles comem tudo/e não deixam nada14 .

Comemorar Abril é abrir os olhos para o que se passa à nossa volta! Na aldeia global em que vivemos não podemos fugir ao “efeito borboleta15”. Assim sendo, vigiar a nossa Democracia e Liberdade é um dever que nos une aos povos do mundo inteiro. É uma luta que não tem fronteiras!

É o segundo ano que comemoramos Abril com a sombra de um vírus, que cresce e decresce, ao sabor não sabemos muito bem de quê…

Este ano chegaram as tão desejadas vacinas contra o Covid 19. Respiramos de alívio! Havia a garantia, por parte dos decisores políticos, de que a sua distribuição global seria “democrática e igualitária”. Mas o que vemos, com revolta, é uma guerra de interesses entre governos, países ricos, multinacionais farmacêuticas e uma União Europeia ineficaz na gestão e aquisição de vacinas, com a agravante de os países mais

11 Pesquisa efectuada em: https://www.dw.com/pt-002/democracia-piorou-em-todos-os-paises.

12

Idem. O estudo feito pela Economist Intelligence Unit (EIU) que mede, anualmente, os níveis de democracia em 167 países, refere mais de 80 países que viram a sua Democracia afectada.

13

Os Vampiros (1963), letra e música de José Afonso.

14

Idem.

15

“O bater de asas de uma borboleta aqui pode provocar um tsunami do outro lado do mundo”.

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pobres não terem acesso a elas.16 O lucro conta mais do que o controlo da pandemia e a saúde pública. E assim, de dia para dia, se vão agigantando as desigualdades no acesso à educação, ao trabalho, à habitação e à saúde. São desigualdades que contam histórias dramáticas de vida, agravadas pela pandemia, onde não há pão, não há casa, não há trabalho e não há espaço para se ser criança ou jovem… ao mesmo tempo que crescem, perigosamente, os populismos, a xenofobia, o racismo, os movimentos de extrema direita… aqui e no resto do mundo!

Por Abril, e por um mundo mais digno e justo, não podemos fugir ao combate!

É em momentos de crise, como o que vivemos, que mais precisamos de afectos e de cultura. Eu sinto essa falta! Abril também foi sonhado à volta do dedilhar das violas, do desfolhar de livros, da pintura de murais e da poesia que levavam ao debate de ideias, à consciência política e à resistência. A Cultura abre janelas de esperança! Não é ingénuo que continue a ser vigiada, censurada e, muitas vezes, rotulada de “bem não essencial”. Mas uma população culta “bem informada e motivada é geralmente mais poderosa e eficaz do que um povo ignorante guardado pela polícia17".

ABRIL continua a convocar-nos para que se cumpra o Sonho!

Um sonho que não tem idade nem teme fronteiras porque nos une na luta global pelos mesmos valores: Liberdade, Democracia, Justiça!

Viva o 25 de Abril!

Viva Portugal!

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https://expresso.pt/coronavirus/2021-02-28-Covid-19.-Paises-mais-pobres-comecam-a-receber-vacina-e-tambem-queremproduzi-la

17 https://www.infobae.com/america/cultura-america/2020/03/28/como-estan-pensando-los-filosofos-la-crisis-global-queprovoco-el-coronavirus

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Meias tintas e uma aguarela

Os quatro nomes, que assinam o Texto/ Convite para este OsmusikéCadernos 2, são do meu conhecimento e trato, desde 1982. Permanecem. São eles, essencialmente, em nome de uma Cidade, que muito aprecio, que muito vivi e vivo, cada um como cada um, ainda que as idades, cronologicamente, vão avançando, parecendo os Jovens, que não abundam nestas coisas, mas que devem ser incentivados a tal, não como meros assessores, mas como arietes, como partícipes destas atitudes Culturais, para que na mistura dos corações se chegue à conclusão que aquele órgão está sempre do mesmo lado e tem sempre a mesma cor…

Optei pelo primeiro Tema indicado – “ Abril e liberdade” –sobre o qual me vou debruçar, menos de meio corpo, não vá, com a impulsividade, derrubar-me, cair e lesar-me. Já possuo menos de 2000 palavras… Há que, como, habitualmente, acontece nos Trabalhos Universitários, procurar a síntese, ser comedido no espaço, que não no tempo sem tempo, para se conseguir atingir a meta a que nos propomos… em liberdade condicionada….

“Abril e liberdade”. À minha maneira, prefiro Abril e Liberdade, que não existe. Mesmo neste Texto, um por ano (!), estou submisso e acorrentado às 2000 palavras, como no campo Terciário (leia-se Universitário), por via dos motivos que conheço há cinquenta anos… e me serão expostos, se alguém for complexado, que não amputado. Mas não sou dos que aceitam os hábitos sem dizer o que penso. Sem reagir, sem polémica se necessário for. Ainda existem velhos do restelo que, como há cinquenta anos, querendo ser simpáticos, repudiam a polémica, a discussão, a perversão e preferem o mediatismo ovil de sermos uma família, passivos, coagidos para levar a água ao nosso cantinho…. “Há tanta maneira de matar pulgas”… Só conheço uma : esmagando o toutiço. Fazendo-as desaparecer de raiz e não paulatinamente. Como o enfiar do fio no buraco da agulha… Lembram-se?

Conjugar Abril com Liberdade é excelente. Indubitavelmente. Irrecusavelmente e, por isso, após muitos minutos de hesitação, estar, aqui, numa opinião textual, mais uma vez. Mas também é necessário repensar essa Unidade, que, no próximo mês, ABRIL, perfará apenas 47 anos! Sendo salutar e generoso e atrativo RELEMBRAR ABRIL, quase sempre apenas pelo 25 de ABRIL de 1974, é quase como apenas falar no

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NATAL melancólico uma vez por ano. Próximo do mês de dezembro. Reduzi-lo à fórmula única e exclusiva, esquecendo a inclusiva.

“Construir o castelo pelo telhado” … A eterna necessidade de reestruturar o interior, as emoções, as sensibilidades à deriva, o desarmar das dualidades, o in e o ex, o mundo interior e o chamado “real word”: desejos, deveres, medos, condicionantes. Há necessidade de estudar e conseguir o equilíbrio. Se quisermos ser mais concludentes e acintosos, lembremo-nos da teoria do copo meio cheio ou meio vazio… Nada que o mundo intelectual não saiba! Às vezes, apenas há esquecimentos, que são letais.

Recordar ABRIL, porque é ABRIL, receando, quiçá, falar em 25 de ABRIL de 1974, ou seja, retirar a máscara, se quiserem a capa, porque de máscaras, se calhar, a maioria está farta, é uma falha leviana e inquinada, como se ABRIL seja apenas um chip. Vamos chamar às coisas pelos seus nomes. Fernando Tordo, na década de 70, no Festival da Canção, não falando em milhentos outros, chamava a atenção do POVO PORTUGUÊS para esse fator imprescindível. Isto é mesmo uma chama que arde e se vê. E faz ver, se o bom senso se fizer imperar. Por isso, só um cego não vê, por impossibilidade física.

Falar em ABRIL é meditar cinquenta anos, é não esquecer o que, de todo em todo, quiseram, mandaram, coagiram, ostracizando, à média luz do regime fascista, as farpas, os atropelos, as balas, as perseguições, as detenções ilegais, as cargas policiais, as invasões dos lares a qualquer hora, a censura à cultura, transversal e longitudinal, a montante e a jusante, os estertores fedorentos banhados (também) num burguesia esfarrapada, rota, desequilibrada, que atirava as pedras e escondia as mãos peçonhentas, mantida pelo pé descalço, pela plebe , pelo HOMEM escravizado.

Há necessidade de repensar ABRIL.

De ameaças a ele, das acusações atordoadas, apregoadas aos quatro ventos, com o ónus de culpa por tudo o que está mal, constatou-se que a intenção é, há muito, reconvertê-lo em nada. Fazê-lo esquecer e, com ele, a DEMOCRACIA. Sim, porque falar em ABRIL é, automaticamente, falar em DEMOCRACIA. Mas, se toda a gente é democrata, porque falar dele e dela? Há quem defenda uma não necessidade, mas, sim, acautelarmo-nos com o cêntimo! Ah! O cêntimo é que está na berra. A banca assanhada como porca espinho, investe, ao momento, nas comissões desenfreadas e dá-lhes nomes estapafúrdios: manutenção conta pacote, comissão disponibilização cartão crédito, comissão de tramitação manual und so weiter. A banca mal parada, mal urdida, mal parida, está em meio bicos de pé, intermitente, parecendo que oferece tanto aos incautos clientes, quando, na realidade, o que pretende é retirar, subtrair para somar, dividir para voltar a reinar mais e mais.

ABRIL, LIBERDADE e DEMOCRACIA. Uma tríada una, indivisível. Sem ABRIL, nunca haveria

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DEMOCRACIA e, sem as duas, não haveria LIBERDADE. A Revolução dos Cravos de 25 de ABRIL de 1974, desfez o fascismo e instaurou a DEMOCRACIA. Mas aquele vírus, como todos, deixou sequelas, que se refugiaram nos boeiros como ratazanas, à espera de melhores dias… tal como os ensinaram. E, às escondidas, foram votando ou não foram. Ano após ano, as vozes sonolentas foram-se alterando, alteando, quase roncando, misturando-se com outras de bom senso, aproveitando as manif’s para destilar a vil bílis e azia acumuladas, ao longo de décadas. A tecnologia ajudou-os. Tomando como empa a LIBERDADE, faz jeito, às vezes, aproveitam os facebook, as célebres redes sociais, para purgar o ódio e a ferocidade, para “desabafar” os maus fígados e as bonomias desaparecidas, enegrecendo e aproveitando a oportunidade para se fazerem notar e “notabilizar”, tendo como objetivo a vingança e o ajuste de contas. Ainda por cima e ainda por baixo.

Há necessidade de repensar ABRIL.

Estas oportunidades de Cultura, como esta, em que dos quatro nomes responsáveis, a idade mais nova são os quase sessenta anos, indiciam a necessidade de reforçar, remoçar este QUERIDO ABRIL, esta AMADA DEMOCRACIA. Urge a injeção de sangue novo! Na data e, em que escrevo este Texto por convite, 16 de Março, estaria o início da Revolução se o golpe das Caldas da Rainha não tivesse fracassado. E se os mentores tivessem parado? Se encolhessem os ombros à tortura constante, sanguínea, injusta, ingrata que a pide e seus testas de ferro, o ditador salazar e seu seguidor marcelo, impunham ao segundo e ao minuto? ABRIL e a LIBERDADE dele emanada terão de ser cultivadas, sequencialmente e consecutivamente, ativa e dinamicamente no sentido de estancar tantos ataques energúmenos, vindos de todas as direções. Relembrar já não basta! É muito pouco, porque dá a impressão (má e maquiavélica) que já não existe. Os erros do Homem, nestes quase 47 anos, não devem cimentar o denegrir e o acusar, mas, pelo contrário, fazer acelerar o processo democrático para que os Direitos e valores conseguidos por ele, 25 de ABRIL de 1974, não esmoreçam ou sejam escamoteados, mas continuem de pé, prenhes de Igualdade, Justiça e Fraternidade. Aproveitando a oportunidade e porque se trata de uma cidade, onde muito me movimentei, durante anos e ainda círculo até não ser proibido, para abraçar nomes de ABRIL, que muito prezo, tais como, entre muitos, Santos Simões, Alberto Martins, Casimiro Ribeiro, Eduardo Ribeiro

“Guimarães, Daqui Houve Resistência”. Acrescentaria: HAVERÁ!

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Guimarães: Tesouros Clandestinos

Preâmbulo

Leitores há que me perguntam se eu invento estas narrativas ou se parte da minha vida se espelha nelas: digo que não, mas sei que nos meus livros e neste, em particular, as personagens ficcionais entrelaçam-se com as reais num convívio que só o narrador é capaz de discernir. Porém, deixo o exercício de descoberta dos modelos que povoam os meus livros para o leitor, que encaixa as personalidades nos factos que a História e as estórias guardam nas páginas ou nas memórias, abrindo as portas a certas viagens que a mim pertencem como cidadã do mundo. Através de alguns excertos deste livro, cujo enredo se inicia em Guimarães no dia 26 de abril de 1974, na teia de uma cidade que se movimenta, questiona, intimida ou se arroja na compulsão de uma sociedade a acordar para uma era política balizada por sentimentos antagónicos e impulsivos, assiste-se ao desaparecimento do tesouro do Museu da Colegiada de Guimarães, segue-se o trilho dos assaltantes, enquanto nas aldeias da periferia as populações entram em confrontos ideológicos, esforçando-se alguns por derrubar comportamentos de desigualdade e abuso de poder muito cristalizados nos modos de viver o quotidiano.

Como refere o autor do prefácio que abre esta narrativa historiográfica, há uma “Conversa Secreta de Armando Bastos que criou uma pergunta emblemática: - “Onde é que estava no 25 de abril (de 1974)?

Imagem 17 - Capa do livro publicado pela Editora Labirinto (2019)

O narrador de “Guimarães, Tesouros Clandestinos”, tentando um natural realismo, diria que, no dia seguinte, porque as notícias nesse tempo tinham passo lento, estava na Cidade-Berço, entre uma agitação

18 Teresa Macedo é natural de Gominhães, Guimarães, onde nasceu em maio de 1962. Iniciou-se no ensino em 1985, tendo, desde aí, exercido o seu labor entre as práticas pedagógicas, como professora, e as teorias literárias, como aluna e investigadora, na Universidade do Minho. Mestre em Estudos da Criança, Especialidade de Análise Textual e Literatura Infantil; Doutorada em Ciências da Educação, dedica parte do seu tempo à escrita, preferencialmente ao desenvolvimento de artigos científicos, à Poesia, aos Contos e às narrativas Bio historiográficas.

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inusitada, repetindo slogans como “Chegou a Liberdade” ou “Somos Livres”, enquanto os sentidos dessas expressões se agitavam no sangue como a flor vermelha da “Revolução dos Cravos”, que se erguia nas mãos de todos.

A Cidade de Chula

A sirene da fábrica do Cavalinho chamava à mudança de turno. Era um ronco que saía das alturas e cobria toda a cidade como um manto de névoa que se rasgava e acelerava os passos por todas as artérias da urbe.

Chula arregalou os olhos estremunhados e, percebendo o despertar da manhã, bocejou e, vagarosamente, começou a mover o corpo, sentindo-o pesado e saibroso, a língua a saber a fel, um hálito alcoólico a evaporar-se, clandestino e opaco. Fitou as chapas de zinco que cobriam a barraca onde dormia nos tanques de curtir peles na Rua de Couros e viu-lhes espelhada a humidade das madrugadas primaveris, ainda com um subtil visco de gordura e cristais de sal nas paredes, um ranho persistente como a sua miserável vida. Tinha de ir! Ao lado, a Mila resmungava algo com o seu companheiro, o engraxador Milhão.

(…) Era preciso apanhar o cartão abandonado pelas esquinas, atá-lo para fazer dele uns escudos.

Nunca se olhara ao espelho, nem era preciso pois a imagem que de si tinha vinha dos que o espiavam e fixavam no seu andar desordenado. O nariz reto pousado numa cara defensiva, nervos saltitantes sob a mácula crescente daquela bola de matéria que o deformava, o corpo meão, engelhado e esquelético dizia-lhe que tinha uma figura de espantalho capaz de assustar os pardais nas hortas semeadas de fresco.

Saiu da barraca sem se despedir da irmã, nem era preciso porque cedo se cruzariam pelas ruas, ela com molhos de papel à cabeça, outro que pudesse preso debaixo dos braços e haviam de se deitar um ao outro um olhar indiferente, carregado daquela partilha constante dos mesmos espaços e da mesma pobreza. Ao chegar perto da Caldeiroa já via o arvoredo da Alameda. Tinha de arranjar dinheiro para uma postinha de bacalhau para por a demolhar na Fonte da Ninfa, da qual se aproximava, contemplando-a numa familiaridade íntima. Dos seus braços escorriam gotas de água vagarosas. Passou as mãos por elas e espalmou-as no rosto sulcado de sujidade, sentindo a frescura da manhã a despertá-lo após aquele gesto. Hoje não pararia ali. Seguiu em frente e dirigia-se à

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Imagem 18 - FONTE DA NINFA (Imagem de Pedra Formosa. Blogue Informativo)

Praça da Oliveira quando, subitamente, olhou umas escadinhas duma casa mesmo ao lado e decidiu parar um pouco, dormitar, que os berros do engraxador com a irmã na noite passada tiraram-lhe umas horas ao sono e o corpo estava ressentido daquela míngua de descanso.

(…) Oh, Chula, estás a guardar o teu bacalhau?

Ruas Agitadas

A Praça da Oliveira começava a receber os primeiros raios de sol daquele dia, luz que se espalhava sublime ainda em forma de estrela. O chão empedrado deixava-se notar numa respiração ofegante, ainda húmida. Mas nessa manhã do mês de abril, a cidade tinha um burburinho diferente. Era ainda cedo, mas a rua estava com mais gente do que era habitual. Por isso, ao sentar-se na sua espécie de trono, rodou o olhar e deixou o rosto levantado para observar melhor o grupo que ia engrossando junto ao Padrão do Salado, gente que falava alto e trazia panos com umas coisas escritas que não sabia decifrar de entender.

(…) - Que foi que aconteceu? – atreveu-se Chula a perguntar…

(…) - Oh, homem, não sabes? Hoje é um dia muito feliz. Houve uma revolução! Somos livres!

O Toural, de repente, parecia rebentar com tanta gente que aparecia de todas as ruas que nele desembocavam. O burburinho era inquietante, mas tinha uma sonoridade alegre, organizada, embora não se visse nenhum regente a dar-lhe o molde que se estendia e contagiava. Junto ao cerieiro da Porta da Vila encostou-se à esquina da rua, aproveitando a inclinação que lhe permitia ter uma visão panorâmica mais geral da praça. Milhares de pessoas de todas as idades começavam a cantar o Hino Nacional e Claudina começou a acompanhá-las, sentindo que a sua vozita ainda jovial poderia destoar um pouco naquele coro de emaranhados sons e timbres. Mas o importante era juntar a sua à voz de todos:

Imagem 19 - Toural em 1974 (Créditos: Memórias de Araduca)

- É o Dr. Santos Simões, aquele… - dizia um homem, apontando para o meio da multidão onde o outro

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discursava, sempre interrompido por grandes aplausos de vivas à liberdade e ao general António de Spínola.

A rapariga não conseguiu perceber o resto. Os seus olhos iam-se colando nas sacadas dos edifícios que contornam a praça e aferiu que raramente as tinha visto com as portas abertas ou com alguém às varandas. Acontecia no dia das Maçãzinhas em que os estudantes do Liceu de Guimarães entregavam às jovens escolhidas as maçãs vermelhas e pequeninas enquanto as colegas, aos risinhos, atavam na cana que erguera o tão esperado fruto, o presente com que gratificavam os companheiros por tão galante oferta. Só no lado do Café Milenário se estendiam as capas negras sobre os varandins de ferro, ficando o lado oposto entregue à mesma nostalgia, à escorrência da chuva ou à secura nos azulejos das fachadas, consoante o tempo que fizesse em dezembro, e o povo ali especado, de braços cruzados e os olhos distantes, medindo a alegria do grupo estudantil com um enlevo morno e contraído.

A Rebelião

Ao terceiro toque do sino, recolheram-se no interior da capela, mas todos dispersos entre as mulheres, que mal respiravam. O padre subiu ao altar todo paramentado e verificou pelos espaços abertos que havia demasiados lugares vazios à sua frente. Os homens não tinham vindo à missa? Estendeu o olhar para o fundo da capela e viu os guedelhudos de rostos altivos e desafiadores. Percorreu-o um calafrio pela espinha fora, sentindo de antemão a chegada de problemas:

- Antes de começar a missa, queiram os senhores que estão entre as mulheres, sair da igreja ou vir ocupar os lugares no espaço dos homens.

Ninguém falou. As pessoas começaram a ficar nervosas. Olhavam umas para as outras. Os anciãos, sentados à frente, moveram o corpo para verem o que estava a suceder.

- Repito. Devem os senhores que estão abusivamente nos lugares entre as mulheres, sair da igreja. Enquanto isso não acontecer não se inicia a missa.

- Eu não saio daqui! – ouviu-se uma voz colocada ao centro, impregnada de um tom inequivocamente

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Imagem 20 - Capela do Bom Despacho (Gominhães)

determinado.

- Daqui eu também não saio…

- Nem eu!… Nem que me matem…

- Vivemos com as mulheres em casa e não podemos assistir à missa junto delas? Que mal lhes fazemos?

Um rumor espontâneo encheu a capela. Um calor como febre começou a largar suor nas faces dos presentes:

- Meus amigos, – ergueu-se uma voz, vindo da parte de cima, uma fala destemida – aqui fazeis o que vos estão a mandar fazer! Caso contrário tendes de sair a mal…

- Fora, seus comunistas! Fora! Até vos mato!...

(…) Em Gominhães, as portas do povoado fecharam-se tarde. Os mais velhos suplicavam a ação de Deus para o mafarrico que se meteu nas cabeças dos moços, tão bons foram sempre, e os que presenciaram a cena da igreja relatavam o sucedido, simulavam os gestos, os passos da ofensiva, acrescentando-lhe mais uns pormenores, o que captava a atenção plena dos que ouviam, reluzindo nos rostos as feições de espanto, consternação e surpresa.

Rodolfo Taveira não permaneceu na aldeia. Apressou-se a chegar com a notícia à sede do partido, dizendo que a política se faz fora das paredes, no contacto com os cidadãos, vivendo os seus problemas e alterando as suas velhas rotinas por ideias e comportamentos mais progressistas, ajustados às necessidades dos tempos que se vivem.

Jesualdo Antunes sentia que esse pragmatismo era um ponto incontornável que pesava a favor de Rodolfo. Mas não dava impulsos àquela energia peculiar que se gerava no companheiro com receio das consequências. Achava-se covarde no temor que o invadia. Não era homem de lutas desenfreadas, daquelas que incitam à violência e podem gerar confrontos físicos. Vivia o cargo que ocupava no partido como um bom cidadão que é firme dentro das paredes que resguardam a sua voz dos ouvidos populares, mas não gostava demasiado de se expor, de gerar conflitos e de criar opositores severos ao seu modo de ser. Contudo, reparava que, em Guimarães, desde o 25 de abril pouco tinha acontecido. O resto do país sofria com assaltos às sedes dos partidos de esquerda, mas naquela sede do MRPP as aranhas tinham tempo de fazer as suas teias de forma tranquila, estas engrossavam com o peso da poeira, porque nem o chão se limpava há imenso tempo. A cidade não tinha o rumor nem a agitação do resto do país. Grupos de homens liam o Jornal de Notícias em frente ao Quiosque Marinho em pé, alinhados e, de vez enquanto, aproximavam os braços sem nunca largarem as páginas abertas e mostravam uns aos outros as notícias mais escal-

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dantes, de títulos densos, impressos a tinta preta ou vermelha, sobre desacatos e ataques bombistas que começavam a grassar por todo o país, mesmo a norte, no Minho.

(…)

– Agora – pensava - tinha de se deparar com aquele grupo de agitadores, que pretendiam fazer numa tarde aquilo que ele, padre Justino, não conseguiu mudar em anos! Nem pensar!…

Mas observava que nada mais poderia fazer. A sua igreja estava transformada num adro onde a pancadaria eclodira, havia desordem, pessoas agarradas aos colarinhos umas das outras em discussões particulares:

- Vai ajudar os teus pais, seu bandido! – gritava Amândio para o sobrinho, um dos revolucionários.

- Você é um fascista! O povo é quem manda aqui! E não tem nada a ver com a minha vida. – Gaguejava, nervoso, Toneco, o sobrinho, defendendo-se com as mãos dos murros que sobre si iam caindo.

- Já te disse: fora da igreja. Aqui não entram homens de cabelos grandes, nem mulheres de calças!...

- Não saio! Só se me matarem!...

Os pés de Amândio começaram a pontapear o rapaz que protegia o rosto entre as pernas dobradas, ali no centro da igreja como um lixo largado após uma grande feira. As malditas das lágrimas atraiçoavamno e já escorriam pelo rosto abaixo. Sentia-se furioso com a sua fragilidade desnudada em lugar público e pensava que isso o poderia diminuir perante todos, desqualificar a sua determinação política.

Rodolfo Taveira, depois de se desenvencilhar da luta corpo a corpo que o empurrou para fora do edifício, foi ao encontro do amigo:

- Anda, pá. Isto é apenas o começo da nossa luta contra estes canalhas fascistas.

Ao dizer que os haviam de vencer, notou que o padre já tinha largado as roupas de cerimónia e vociferava, na sacristia, contra aquele incidente, não um ato revolucionário, expressão que só de a pensar lhe causava secura na pele, uma dor na garganta e uma arritmia que o fazia percorrer com a mão todos os bolsos à procura de um calmante.

Quando se meteu dentro do seu carro VW de cor cinzenta, sentia pressa em ir embora e daria tudo para não ver as pessoas reunidas aos grupinhos pelos caminhos. Nunca lhe tinha sucedido não conseguir dizer missa, estando já pronto para iniciá-la. Sentia que exagerar na sua autoridade perante o povo era perigoso, pois com o 25 de abril a palavra liberdade entrou nas pessoas, deu-lhes força que seria capaz de embater com a prepotência, podia trazer-lhe outros dissabores.” in Macedo, Teresa (2019). Guimarães: Tesouros Clandestinos. Fafe. Editora Labirinto.

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Crónica da democracia. Era uma vez um país…

Agostinho

“Somos também um povo cheio de fé.

Temos fé na guerra, na justiça, na crueldade, no amor, na eternidade.

Somos todos loucos.”

Herberto Hélder - Os Passos em volta, p. 119

“Vivemos numa cultura da imagem. O «ópio do povo», hoje, é a propaganda política, cultural, económica, cuja arma mais eficaz e ilusão mais insidiosa estão no persuadir-nos de que os signos são as coisas.

Os reis eram até ainda há pouco os filhos dos deuses, que os enviam à terra com a vinha e com o milho; hoje, os presidentes são as criaturas da televisão desembarcadas no ecrã mítico entre a margarina e os enzimas glutões. Mas começamos, pelo menos, a saber que vivemos entre os signos – e a apercebermo-nos da sua natureza e do seu poder. Esta consciência semiológica poderá tornar-se, amanhã, a principal garantia da nossa liberdade.”

Pierre Guirraud – A semiologia, p 95

Era uma vez um país que, como qualquer país, tinha pessoas, famílias, crenças, e muito futebol.

As pessoas eram muito crentes. Acreditavam em tudo: nos deuses, nos políticos, na economia, no sucesso, na felicidade, no ensino, nos horóscopos, nas desgraças, nas mentiras televisivas, nas estatísticas manipuladoras e, sobretudo, no futebol. E orientavam a sua existência pelo que viam na televisão e nos muitos sítios da internet. As novelas e as redes sociais passaram a fazer parte dos rituais indispensáveis do quotidiano. Os jornalistas verificaram o sucesso das novelas e começaram a dar notícias como as novelas: por episódios e insistentemente repetitivas e escandalosas. E, depois, as pessoas discutiam essas notícias como se fossem verdades absolutas e eternas. E começaram a não saber distinguir as notícias das novelas, até porque começaram a surgir novelas ao vivo. Uma confusão.

Nesse país, quem definia o que estava bem e o que estava mal, o que era certo e o que era errado eram as televisões e as redes sociais. De modo que as pessoas deixaram de ter a capacidade de pensar por conta própria. Pensavam pela televisão e pelas ditas redes sociais. E aqueles factos que eram escandalosos deixavam de o ser, quando as televisões diziam que não eram escandalosos. E os factos mais banais passavam a ser escandalosos se as televisões assim os apresentassem.

Nesse país, não havia governo, porque quem, de facto, mandava eram as televisões e as redes sociais.

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Eram elas que moldavam as mentes e as vontades dos cidadãos. Era uma democracia feita pela televisão e pela internet. Mas as pessoas acreditavam nos políticos e escolhiam-nos para governar, porque eles prometiam a felicidade. E depois cansavam-se de esperar, porque a felicidade não aparecia. E, quando achavam que já lá estavam há demasiado tempo, escolhiam os que estavam na oposição, porque prometiam ser mais rápidos a trazer a felicidade ao povo. E depois voltavam a cansar-se de esperar e voltavam a escolher os anteriores, etc. Mas a sua fé nos políticos nunca vacilava e, por isso, periodicamente lá voltavam à mesa de voto.

Era um país de humores muito variáveis. Como as pessoas acreditavam em tudo e generalizavam tudo e, como quem mandava eram a televisões e as redes sociais, o estado de espírito das pessoas alternava com períodos de alegria e períodos de desfalecimento e depressão. Quando acontecia um caso isolado de sucesso, o povo achava que o país era todo um sucesso. Um dia, o país ganhou um campeonato de futebol europeu. Também teve uma canção de sucesso num certame de canções. E durante muitos anos as pessoas ficaram felizes, porque um dia ganharam esse campeonato e tiveram uma canção. Mas quando algo corria mal, tudo corria mal, porque as televisões, de tanto insistir, faziam acreditar que o mal era geral. E todo o país entrava em depressão. E os governantes, que conheciam o povo, pintavam o sistema económico com as desgraças que os outros tinham inventado. E, então, eram aumentados os impostos, perante o silêncio deprimido das pessoas. Os governantes tinham sempre desculpas para os seus desgovernos ou para as situações que não corriam como o prometido. Normalmente, as culpas eram de um ditador que já tinha morrido há mais de cinquenta anos.

Nesse país, as pessoas acreditavam na felicidade. Mas a felicidade não era um estado de espírito, nem correspondia ao bem-estar pessoal ou coletivo. Não. Nesse país, a felicidade era quantificada. Media-se pela riqueza, pelo estatuto social, pelo aparato que as pessoas conseguiam transmitir. Até a felicidade se regia pelas leis da livre concorrência. De modo que toda a gente queria ter uma felicidade melhor um bocadinho que a dos outros. Todos queriam enriquecer mais que os outros, para serem mais felizes. Mas nunca reparavam que a única felicidade estava exatamente nessa procura, nessa incessante busca, nessa permanente conquista.

Nesse país, até a dieta diária das pessoas era feita pelas televisões e pelas redes sociais. Um dia as televisões noticiaram que havia doenças que podiam ser transmitidas pelos animais. Logo surgiam listas de animais proibidos para a alimentação, ao mesmo tempo que se davam abates gerais. Em tempos longínquos, as televisões falaram de vacas que eram loucas e passavam loucura para as pessoas. Depois falaram de doenças numas galinhas, depois nuns porcos, depois em morcegos, depois em animais da China. E havia

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ainda o problema da radiação no mar, e de produtos químicos que havia nas plantas. E, de tanto noticiarem, as pessoas acreditavam sabiamente que poucos eram os produtos que podiam ingerir. Iam controlando a sua dieta pela televisão e pelas redes sociais, porque acreditavam que tudo era verdade. Não comiam o que gostavam. Comiam aquilo que as televisões e as redes sociais não proibiam.

Nesse país, os cidadãos também acreditavam na igualdade, na fraternidade, na justiça e no futuro. E nem reparavam que todos eram diferentes, que cada um fazia a sua conquista diária, que cada um lutava à sua maneira. Mas, como acreditavam em tudo, havia muitas coisas que não compreendiam. Não compreendiam como era possível haver cidadãos mais empreendedores do que os outros. Tinham dificuldade em compreender as pessoas que pensavam de modo diferente. Não entendiam como era possível alguns cidadãos, sentados no conforto da lareira sem nada fazer, recebiam exorbitâncias, enquanto a maioria, que trabalhava arduamente, recebia um escasso ordenado a que chamavam de mínimo. Tudo isto chocava com a fé que tinham na igualdade. E até houve, em tempos remotos, um governo que, para que o povo acreditasse ainda mais na igualdade, criou o ministério da igualdade, porque era mais popular gerir a igualdade do que gerir as diferenças. Também acreditavam na fraternidade. Mas a fraternidade deveria ser sempre um atributo dos outros porque cada um, individualmente, não tinha tempo para essas coisas.

E acreditavam na justiça, nos juízes, nas leis. E eram tantas as leis que nenhum cidadão sabia se estava a agir corretamente ou se estava a transgredir. E as pessoas viviam com medo porque não podiam invocar desconhecimento das leis. Os valores que, durante séculos, orientaram a sociedade desapareceram. E as pessoas deixaram de entender-se porque havia alguns mais espertos que utilizavam as leis a seu favor. E as leis eram feitas partindo sempre do princípio de que os cidadãos não eram pessoas decentes. As leis não ditavam normas de conduta. Apenas definiam os limites até onde os indivíduos podiam transgredir sem serem castigadas. Depois os tribunais não funcionavam. Viviam entupidos em processos de muitas páginas e em códigos legais que estavam sempre a mudar. De modo que a justiça passou a ser feita pelas televisões e pelas redes sociais. Quando acontecia algum crime ou alguma injustiça social, chamavam-se as televisões e logo se faziam os julgamentos públicos. E os governos viam-se obrigados a ceder aos juízos sumários da opinião pública. Os juízes passaram a ser os jornalistas e os políticos. Eram aqueles que utilizavam uma linguagem fina capaz de manipular as opiniões. Depois, as redes sociais encarregavam-se de adulterar a verdade, de caricaturar as situações. E os cidadãos absorviam tudo. Não tinham sequer a capacidade de duvidar.

Os cidadãos também acreditavam no futuro porque as redes sociais e as televisões apresentavam grandes projeções, que não se confirmavam, e grandes projetos, que não se concretizavam. Houve, até, um

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aeroporto que andou de projeto em projeto durante mais de cinquenta anos e, no fim, nem se construiu. Mas era nesse futuro que projetavam os sonhos, as alegrias, as vitórias inalcançáveis.

Os políticos, para acentuar a sua preocupação com a felicidade do povo, começaram a contratar psicólogos. Mas nesse país, a psicologia não era a ciência que estudava a verdade da pessoa humana. Nem se preocupava com os problemas do espírito. Era uma espécie de arte de enganar. A psicologia que se aplicava não era mais do que um conjunto de mentiras bondosas que faziam com que as pessoas ficassem felizes enquanto dormiam. Era uma espécie de droga moral de curta duração. Quando as pessoas acordavam, verificavam que estavam enganadas e as teorias psicológicas deixavam de funcionar. Contudo, era uma arte que tinha bastante aceitação, porque havia muitas pessoas que passavam uma grande parte da vida a dormir ou raramente abriam os olhos.

Nesse país de liberdade, ninguém era controlado, porque havia liberdade. Mas havia localizadores nos telemóveis, havia um sistema de finanças que sabia todas as compras que os cidadãos efetuavam, havia a possibilidade de o estado saber os saldos bancários dos cidadãos. E as pessoas eram castigadas se se esquecessem de pagar alguns cêntimos ao sistema dos impostos. Só não eram castigados os habilidosos que desviavam milhões. Era uma questão técnica e informática.

Era um país em que os políticos e os ídolos do povo sabiam utilizar conceitos generalistas como liberdade, igualdade, fraternidade, justiça social, progresso e até bazucas metafóricas. Mas estes conceitos, com fortes cargas míticas, não correspondiam a realidades concretas. Eram apenas signos que contribuíam para a manipulação das mentes e para a manutenção do poder.

Os cidadãos acreditavam em tudo: no país, nos outros, no progresso, nas televisões, nas redes sociais. Só não acreditavam neles próprios. E por isso, o país, porque a sua construção estava sempre a cargo dos outros, não progredia.

Era uma vez um país…

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Liberdade no feminino

Naquela manhã, há tanto tempo e por tantos desejada, encontrava-me no Magistério Primário de Guimarães, para mais um normal dia de aulas, quando, inesperadamente se ouviram vozes envergonhadas a falar de uma revolução a acontecer em Lisboa. Entre admiração, desconfiança e excitação, lá regressamos todos a casa imbuídos de um sentimento nunca antes experimentado, entre surpresa e curiosidade, dada a falta de esclarecimento. As aulas tinham sido suspensas, acontecimento único em toda a minha vida de estudante, o que nos transmitia ainda mais admiração e sensação de estarmos a fazer parte de algo importante. E assim foi de facto.

Quando entrei em casa e ia anunciar aos meus pais a razão de estar ali, reparo que o meu pai se encontrava em frente à televisão a tentar entender o que se estava a passar, mas qual não foi o meu espanto quando me apercebi de que ele, sem tirar os olhos do ecrã, chorava emocionado, o que de imediato respeitei não interrompendo esse momento tão marcante, que ainda hoje recordo como uma memória vívida e importante na minha vida. Só passados alguns anos, consegui compreender e alcançar o turbilhão de sentimentos que se tinha apoderado do meu pai. Pelo facto do meu pai ter nascido em Arraiolos, no seio de uma família pobre e numerosa, experienciado a realidade alentejana, levando-o a fugir da miséria para o Norte, esse momento tinha um significado mais profundo para ele. Penso que, em mim, também houve influências das férias passadas no Alentejo. Vejo-me muitas vezes a correr nas searas sem fim e com a sensação de liberdade que sentia. O Alentejo sempre me tocou a alma. Para mim, na altura com apenas dezanove anos, acabados de fazer, e toda a ingenuidade da minha pequena existência quis acompanhar os movimentos, os acontecimentos, as pessoas, os soldados, enfim, tudo o que ia aparecendo e era dito na televisão. Jamais esquecerei esses dias cheios de espectativas no futuro, vividos intensamente, assim como as inevitáveis transformações que surgiriam para todos os portugueses.

Na manhã seguinte, ficamos todos a saber que tinha acontecido uma revolução, sem mortes registadas a que se chamaria a “Revolução dos cravos “que, finalmente, tínhamos conseguido acabar com a ditadura. Para os mais esclarecidos chegara o momento há tanto tempo esperado. Não faltaram manifestações de alegria em todo o País, e pela primeira vez, estávamos todos e cada um à sua maneira, a sentir e a respirar liberdade. Os presos políticos foram libertados, os exilados regressaram à sua pátria, a censura terminou e os portugueses, aos poucos, foram-se habituando a falar de tudo sem medo. Os diversos partidos

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foram aparecendo e passamos a poder votar em eleições livres, escolhendo o que entendíamos ser melhor para o País. O mais importante de tudo era a liberdade de expressão que surgia em cada café, em cada festa, em cada encontro. Acabou o medo da Pide e da censura. Os artistas portugueses puderam, finalmente, dar largas à sua capacidade criativa. Surgiram, finalmente, muitas canções, algumas desconhecidas, outras ouvidas à socapa, para todos que as quisessem ouvir e não só para os mais esclarecidos.

No ano seguinte, abracei a minha profissão em pleno, sempre transmitindo aos meus alunos a noção de liberdade consciente e responsável, incutindo-lhes valores como de saber dizer não, de questionar, de procura da verdade, de reflexão, de argumentar com sentido. Os festejos do 25 de Abril eram sempre uma grande festa esclarecedora. Tive sempre como objetivo fundamental do meu trabalho a construção de cidadãos dignos, felizes, interventivos e livres. Toda a minha vida passou a ser feita de pequenas conquistas, avanços e recuos almejando sempre a libertação das mulheres. Foram lutas internas e externas, nos diversos contextos: familiar, profissional, social, no meu ciclo de amigos, em todo o lado. Tudo era pretexto para contestar ideias agarradas ao passado recente que insistiam e insistem em prevalecer. Fui aprendendo o quão difícil é romper preconceitos e mudar mentalidades, mas nunca desistirei de o tentar. Lentamente chegaremos lá.

Hoje, fruto das minhas experiências e passados quarenta e sete anos de vida em liberdade, considero que agarrei as oportunidades que me foram surgindo, orgulhando-me das tomadas de decisões e resoluções que abracei em relação a cada etapa da minha vida. Gosto do ser humano em que a vida e a Revolução dos cravos me transformaram. Orgulho-me do que consegui transmitir aos meus filhos, alunos, familiares e amigos. Nas encruzilhadas da vida, nas interações, nas partilhas, no viver para e com os outros sentime sempre um ser humano inteiro e livre. Tenho presente, no entanto, que tudo isso só foi possível graças a todos os homens e mulheres que com altruísmo e grande coragem, combateram o fascismo e proporcionaram que a república e a democracia vigorassem em Portugal. Só neste regime é possível nascermos e crescermos com oportunidades idênticas, respeitarmo-nos nas diferenças, assumirmos os nossos sonhos, vivermos de acordo com o que idealizamos para cada um de nós, abraçarmos projetos em que nos damos aos outros, sentindo a felicidade da partilha e da interação com quem comunga os nossos ideais. Assim acontece comigo e com quase uma centena de amigos que fazem parte de OSMUSIKÉ. Sei que devemos ser eternamente gratas àquelas que lutaram pelos direitos das mulheres, pagando preços demasiado altos, por vezes com a própria vida. As mulheres não desistem de lutar pela igualdade de género, contra a violência doméstica, contra a discriminação, em tantas outras situações que não nos dignificam, acreditando que é possível um mundo melhor para todos. Apesar das deceções com atitudes de alguns políticos e de alguns

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homens, seguiremos em frente com o propósito de deixarmos um legado digno às mulheres que nos irão suceder.

VIVA A MULHER!!! VIVA A VIDA!!! VIVA A LIBERDADE, SEMPRE!!!

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Liberdade religiosa

Armindo Cachada (Ex-jornalista JN) cachada.armindo@gmail.com

O 25 de Abril é uma data essencialmente associada à liberdade.

Liberdade é autonomia, independência, direito a professar e a exprimir opiniões políticas, religiosas ou outras, sem se ser inquietado por causa das suas opiniões. Tais liberdades, aliás, estão consignadas e protegidas na Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de dezembro de 1948.

No que concerne à Liberdade Religiosa, ela incide particularmente no direito à liberdade de consciência, religião e culto. Segundo a constituição portuguesa, reformulada após a revolução de Abril, ela é inviolável.

Nem sempre foi assim ao longo da história dos povos e continua a não ser, atualmente, em muitas partes do globo. Ainda hoje a religião continua no cerne de muitos conflitos e confrontos bélicos causados por diferenças étnicas, culturais, sociais e políticas, mas também e muito particularmente, por diferenças económicas que geram situações de pobreza extrema, de marginalidade, de exploração e mesmo de escravatura.

Poderíamos fazer aqui uma leitura alargada sobre os conflitos religiosos no mundo de hoje e sobre as causas que os originam, começando pelo palco de guerra que é o Médio Oriente, onde nasceram e sempre se digladiaram as religiões monoteístas de ascendência abraâmica: judaísmo, cristianismo e islamismo. Mas essa leitura levar-nos-ia demasiado longe.

Vamos, antes, debruçar-nos sobre a liberdade religiosa, historiando por alto as suas origens, no mundo ocidental.

O Direito à Liberdade Religiosa proclamado pelo Édito de Milão no ano 313

No mês de Junho deste ano de 2021, comemoram-se os 1.708 anos sobre uma das maiores conquistas da humanidade: o direito à liberdade religiosa. Foi em Junho do ano 313 que os imperadores romanos do Ocidente e do Oriente, Constantino e Licínio, concederam por decreto aos cristãos e a outros crentes "o direito de observar livre e abertamente sua fé”. Estava-se então, no início do século IV, na velha Roma, num dos períodos de maior perseguição religiosa aos cristãos, ditada sob o império de Diocleciano. Este

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publicara, em 303, um conjunto de éditos contra os cristãos, que mandavam demolir as igrejas, queimar as cópias da Bíblia, executar as autoridades eclesiásticas, privar os cristãos dos seus cargos públicos e direitos civis, obrigá-los a sacrificar aos deuses sob pena de morte, e outras medidas coercivas, no que ficou conhecido como a "grande perseguição". Pensava o imperador, com estas medidas, instigadas por Galério, reforçar a unidade do Estado, cheio de problemas e retalhado administrativamente sob várias tutelas, mas supostamente ameaçada pelo cristianismo crescente, que não prestava veneração à suposta divindade do imperador.

Mas estas medidas não conseguiram exterminar o cristianismo que continuava a crescer, e Galério, um dos tetrarcas nomeado “César” por Diocleciano para administrar as províncias balcânicas e apaziguar a situação, publicou em 311 o chamado “Decreto da Indulgência”, pelo qual terminavam as perseguições aos cristãos. Estes passaram, então, a ter reconhecimento legal com direito a poderem celebrar o seu culto e construir templos.

Entretanto, Constantino, que ficou conhecido para a história como Constantino Magno, fora aclamado pelas suas tropas como “Augusto” e, na sequência de guerras e manobras políticas, declarado imperador do Ocidente, dominando a Gália, a Germânia e a Hispânia, com capital em “Tréveros” (atual cidade de Tréveris, na Renânia-Palatinado - Alemanha). Na altura, o império romano encontrava-se mergulhado em guerra civil entre os diferentes imperadores.

Após ter vencido o imperador Magêncio, em Outubro de 312, na Batalha de Ponte Sílvia (sobre o rio Tibre, em Roma), vitória que atribuiu a desígnio divino, Constantino reuniu-se em Milão com o imperador Licínio, que dominava a parte oriental do império romano. Nesse encontro, realizado em fevereiro de 313, os dois imperadores redigiram os termos de uma "Paz Universal". Daí resultou, igualmente, o chamado "Édito de Milão", na versão de uma carta dirigida ao Governador da Bitínia que, entre outras mensagens, dizia o seguinte: "Pensamos que é adequado entregar essas coisas inteiramente aos vossos cuidados, para que saibais que temos dado aos cristãos a livre e irrestrita oportunidade de culto religioso. Quando virem que esta lhes foi concedida por nós, o seu culto vai saber que nós também concedemos a outras religiões o direito de seguir aberta e livremente a sua adoração pela paz dos nossos tempos, que cada um possa ter a oportunidade de liberdade de culto que lhe agrade; este

Imagem 21 - Porta Nigra (séc. III) - Portal de entrada na Cidade Augusta de Treveros (atual Tréveris - Alemanha), outrora capital da porção do império romano governado pelo imperador Constantino, no século IV.

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regulamento é feito para que não possa parecer depreciar qualquer dignidade ou religião". (Lactâncio, De Mortibus Persecutorum 45.1, 48.2, cit. e tr. Clarke, 662–63).

Neste documento, que terá sido promulgado a 13 de Junho de 313, estabeleceram-se os princípios da liberdade de religião e de culto para todos os cidadãos e, consequentemente, também para os cristãos. Numa segunda parte do documento, ficou estabelecido que fossem devolvidos aos cristãos os seus antigos locais de religião e de culto, bem como as propriedades confiscadas pelo Estado.

Constantino ficou na História como o primeiro imperador romano a professar o cristianismo, devendose a sua conversão ao facto de ter atribuído a vitória contra Magêncio a uma visão da Cruz, símbolo do cristianismo. Na Cruz ter-lhe-ão aparecido os seguintes dizeres: “In hoc signo vinces”. Por este sinal vencerás!

O cristianismo veio a tornar-se, mais tarde, ao tempo do imperador Teodósio I, pelo “Édito de Tessalónica” (380),19 a única religião autorizada em todo o império romano. Após 67 anos de liberdade religiosa, o império romano voltava a ter imposta uma nova religião oficial, o cristianismo. O tradicional culto aos deuses foi definitivamente abandonado em favor de uma religião monoteísta com as normas morais que a acompanhavam.

A história do Ocidente é a história do cristianismo. O Direito à liberdade religiosa e a outros aspetos fundamentais da vida humana estão hoje consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela ONU a 10 de Dezembro de 1948. Esta Declaração é o culminar de muitas outras declarações que, ao longo da história, foram sendo proclamadas, embora de forma parcelar, por diversas civilizações, antigas e modernas. De certo modo, são-lhe precursoras.

Mas, ao olharmos para o atual panorama mundial, verificamos que tais direitos continuam a ser, em muitas culturas e civilizações, letra morta. E o mundo, hoje, não é muito mais pacífico do que o de então, há 1708 anos.

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Édito dos imperadores Graciano, Valentiniano (II) e Teodósio Augusto, ao povo da cidade de Constantinopla. Queremos que todos os povos governados pela administração da nossa clemência professem a religião que o divino apóstolo Pedro deu aos romanos, que até hoje foi pregada como a pregou ele próprio, e que é evidente que professam o Pontífice Dâmaso e o bispo de Alexandria, Pedro, homem de santidade apostólica. Isto é, segundo a doutrina apostólica e a doutrina evangélica cremos na divindade única do Pai, do Filho e do Espírito Santo sob o conceito de igual majestade e da piedosa Trindade. Ordenamos que tenham o nome de cristãos católicos quem sigam esta norma, enquanto os demais os julgamos dementes e loucos sobre os quais pesará a infâmia da heresia. Os seus locais de reunião não receberão o nome de igrejas e serão objeto, primeiro da vingança divina, e depois serão castigados pela nossa própria iniciativa que adotaremos seguindo a vontade celestial. Dado o terceiro dia das Kalendas de março em Tessalônica, no quinto consulado de Graciano Augusto e primeiro de Teodósio Augusto.

Dat. III Kal. Mar. Tessal(onicae) Gr(ati)ano A. V et Theod(osio) A. I Conss. (Código Teodosiano, 16.1.2).

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A minha visão do 25 de Abril

Com o 25 de Abril, teve-se a oportunidade única de se mudar de regime político em Portugal. O Estado Novo oficializado em 1933 estava desgastado e depois de uma extensa ação governativa salazarista, sabia-se que o sucessor de Salazar seria um alvo a abater. O autoritarismo, o nacionalismo tradicionalista, a antidemocracia e o anticomunismo, o colonialismo, o corporativismo e o dirigismo económico começaram a ser postos em causa, sobretudo, a partir do fim da Segunda Grande Guerra. Em 1958, o regime foi severamente posto em causa com as eleições presidenciais às quais o General Humberto Delgado concorreu. A credibilidade do Estado Novo foi abalada. Em 1961, inicia-se o acontecimento que seria o definitivo culminar da ditadura portuguesa. Refiro-me à Guerra Colonial Portuguesa em que as colónias ultramarinas num contexto internacional de Guerra Fria decidem proclamar a sua independência face à metrópole.

Com o facto de a Guerra do Ultramar estar a correr mal e na ânsia da tão esperada democracia, desde as 22 horas do dia 24 de abril, desenrolando-se pela madrugada do dia 25 de abril até à tarde, o Movimento das Forças Armadas derrubou o Estado Novo Português. Marcelo Caetano abandona o seu cargo de Presidente do Conselho de Ministros de Portugal. É totalmente errático e, na minha opinião, desrespeitoso enaltecer o 25 de abril como uma revolução sem sangue. É mentira. Morreram 5 pessoas durante a Revolução. Quatro civis foram mortos pela PIDE e um elemento da DGS também foi morto.

O principal estratega da Revolução foi Otelo Saraiva de Carvalho, porém, Marcelo Caetano só entregou o poder ao General António de Spínola. A partir daqui, desenrolaram-se um conjunto rápido e brutal de acontecimentos que quase que transformaram Portugal numa província da URSS. Com o II Governo Provisório liderado pelo extremista de esquerda Vasco Gonçalves ocorreram ocupações de fábricas, campos agrícolas e residências devolutas. Substituiu-se uma ditadura de extrema-direita por uma ditadura de extrema-esquerda. Existem processos sumários de saneamento (professores, empresários e proprietários).

20 Aluno do 1.º ano da Licenciatura em Economia na Universidade do Minho; frequentou a Escola secundária Martins Sarmento e fez parte da Associação de Estudantes e representante dos alunos dos cursos científico-humanísticos no Conselho Geral da Escola. Atualmente integra a direção da JSD Guimarães.

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Ocorrem conflitos entre o Presidente da República, o moderado General Spínola, e o MFA. Em 28 de setembro de 1974, o MFA, usando métodos típicos dos tempos salazaristas, impede uma manifestação livre de apoio ao General Spínola, a “Maioria Silenciosa”. Depois de eleições, o PS forma governo com o PCP, mas os verdadeiros detentores do poder são o MFA e o Conselho da Revolução. Mais tarde, surge o Verão Quente de 1975 com o Processo Revolucionário em Curso, PREC, em que a esquerda radical tentou definitivamente transformar o país numa República Socialista-Soviética. Nacionalizou-se setores-chave da economia, reprimindo-se a sua liberdade ao máximo. Gerou-se uma grande convulsão social. Depois, nove oficiais moderados liderados por Melo Antunes, denunciam o PREC e o mesmo acaba. O moderado Pinheiro de Azevedo assume a liderança do Governo Provisório.

Em 25 de novembro de 1975, antecipando-se a um possível golpe do MFA para recuperar o poder, o General Ramalho Eanes lança um contragolpe e conduz os moderados ao poder. Acaba-se a fase radical do pós-revolução. A democracia é finalmente instaurada. O 25 de abril trouxe a liberdade, mas não a democracia. Quem trouxe a democracia foi o 25 de novembro. Destarte, é sempre curioso e interessante o motivo de muita gente, especialmente de esquerda, não celebrar o 25 de novembro com o mesmo fervor que celebra o 25 de abril. Um acabou com uma ditadura de extrema-direita. Outro acabou com uma ditadura de extrema-esquerda. Ambos foram importantíssimos. O 25 de abril não foi um mar de rosas e só se concluiu com o 25 de novembro.

Em democracia, conquistaram-se inúmeras vitórias positivas para o país. Edificou-se um Estado Social assente na maior proteção e dignidade do indivíduo. Abriu-se o país à Europa e ao Resto do Mundo. Zelou-se pela liberdade do cidadão e da imprensa. Os portugueses passaram a eleger sem receio e medo os seus representantes. Todo o país sentiu-se honrado pelo exercício atrativo e justo do jogo democrático. Deu-se a oportunidade a todos os jovens de estudarem gratuitamente. A cultura tornou-se acessível a todos. O país modernizou-se e desenvolveu-se.

Hodiernamente, é triste e lamentável vermos que praticamente metade da população eleitora portuguesa não vai votar nem pratica a democracia. Ou seja, não honram e dignificam aqueles que se sacrificaram na madrugada do 25 de abril de 1974 e no dia 25 de novembro de 1975. Esperemos que se volte a acreditar na democracia portuguesa.

Existem muitas razões potenciais explicadoras do afastamento progressivo dos portugueses face ao sistema político português. A mensagem de muitos políticos pode estar desgastada e não aspiracional ou pode não estar a ser transmitida de uma maneira correta. Os sucessivos défices orçamentais, aumentos da dívida e situações de precariedade nacional descredibilizam uma parte significativa dos nossos represen-

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tantes. A falta do assumir de culpas e erros dentro de alguns setores da política nacional e as promessas eleitorais não cumpridas ou esquecidas. E, por fim, os sucessivos escândalos de corrupção em altos cargos estatais. Todos estes aspetos estão a comprometer a democracia e a suscitar a progressão de movimentos extremistas e ultrarradicais.

Torna-se necessário mudar-se a estratégia, os métodos, o comportamento e as atitudes com vista a reerguer plenamente a democracia e o desenvolvimento nacional.

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Liberdade

“Liberdade, Liberdade

Quem a tem chama-lhe sua Já não tenho liberdade Nem de pôr o pé na rua...” Liberdade … (Vitorino, carbonárias)

Liberdade! Liberdade! É o grito de guerra mais vulgarmente ouvido, hoje em dia. Vulgarmente, digo eu, porque, infelizmente, se banalizou a palavra no seu sentido mais nobre.

A desculpa para todas as ações que praticamos, principalmente as más, é a de que somos livres: livres para ser mal-educados, livres para dizer palavrões, livres para deitar de dia e andar na noite, livres para usar o álcool, livres para usar as drogas, livres para assaltar, livres para violar, livres para matar, livres…livres…livres…

Mas que liberdade é esta? Será que só não somos livres para saber escolher e optar entre o que é bom e o que é mau?

Segundo Fernando Savater, no seu livro Ética para um Jovem, “Há coisas que dependem da minha vontade (e isso é ser livre), mas nem tudo depende da minha vontade. Não somos livres de escolher o que nos acontece, mas somos livres de responder desta ou daquela maneira ao que nos acontece.”

Então, enquanto homens, e só completamente, na medida em que dependermos e aceitarmos a ajuda de outros homens, do seu exemplo, da aprendizagem cultural que fizermos gradualmente, ao longo da vida, poderemos dar voz à razão que nos impele a realizar isto e não aquilo, poderemos encontrar o motivo que nos leve à explicação mais plausível e aceitável do comportamento que tivemos perante este ou aquele facto.

E os motivos são vários: umas vezes são a resposta a uma ordem, outras vezes, mera rotina quotidiana, por capricho ou impulso momentâneos e ainda os funcionais, aqueles que faço, por ser a melhor maneira de conseguir o que quero…

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Cada um destes motivos levar-nos-á a determinado comportamento e explicará a razão da nossa preferência.

Enquanto as ordens e os costumes são extrínsecos à nossa pessoa, os caprichos só dependem de nós e de mais ninguém, embora muitas vezes sejam por simples contraindicação, isto é, para contrariar a vontade ou a ordem de alguém.

A maior parte das coisas que fazemos, fazemo-lo obedecendo a essas ordens ou, como já dissemos, porque não vivemos sozinhos, mas em sociedade e existe o preconceito, o medo do ridículo e da censura que nos impõem e nos pressionam a seguir os costumes e o exemplo dos demais.

Ocasiões há, porém, que seguir estas motivações nos deixam insatisfeitos e então interrogamo-nos: será que não temos uma cabeça para pensar; seremos meros carneiros seguindo o mesmo rebanho; não teremos ideias próprias; seremos imbecis ao ponto de não pararmos para refletir e ponderar de que lado está a razão e qual o melhor motivo para a nossa escolha?

Liberdade não é libertinagem e eu só sou livre justamente até onde começa a liberdade do outro.

Ser livre é poder dizer sim ou não, faço isto e não faço aquilo, digam os outros o que disserem, é isto o que me convém e o que eu quero e não aquilo. Liberdade é decidir, mas assumindo essa decisão com responsabilidade. Não ir na onda porque é moda, porque os meus pares é assim que fazem.

Então se numa primeira resposta ao motivo do nosso agir nos sai um “porque nos mandam fazer, porque é costume, ou porque nos apetece, numa segunda abordagem, as coisas já mudam de figura, porque somos livres, mas liberdade implica essa tal responsabilidade.

E se, até agora, divagamos um pouco sobre aquilo que pensamos ser liberdade, vamos juntar outras palavras: pandemia, confinamento, emergência, cerca sanitária, isolamento profilático, ficar em casa, usar máscara, distanciamento social, lavar as mãos, desinfetar com soluções alcoólicas… Tudo isto nos transporta para a tal liberdade. Qual? A liberdade boa ou a liberdade má? A liberdade/libertinagem ou a liberdade responsável, da decisão ponderada, do respeito por nós e pelos outros.

Sim, porque a situação que vivemos atualmente não é fácil: divergência constante de opiniões; necessidade de trabalho e não poder trabalhar; ter de ficar em casa e querer muito sair, ir até à praia; abrir o comércio, ter as lojas fechadas; usar a máscara, não pôr máscara; distanciamento social, andar em magotes; não poder juntar a família, fazer festas às escondidas, etc., etc.

Se para ser feliz, viver alegre e ter uma vida boa, preciso sentir-me bem comigo mesmo, preciso espalhar essa alegria e essa felicidade à minha volta.

Há uma máxima que muitos de nós conhecem: “Ama e faz o que quiseres!”

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Mas a vida boa nunca nos é oferecida. Temos de conquistá-la com esforço e muita coragem. Quem é responsável é consciente do real da sua liberdade e sabe que é cada um dos seus atos que o vai construindo, que o vai definindo, que o vai inventando. Não precisamos de melhor princípio do que aquele de que nos fala Erich Fromm: “Não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem a ti.”

As pessoas não são coisas e, por isso, não devem viver de qualquer maneira. Ninguém pode ser livre pelo outro, daí que a coragem e o esforço para decidir seja um trabalho solitário, sabendo que cada ato livre limita as possibilidades da minha escolha. Tenho o direito de… tenho o dever de…

Ao ter consciência da nossa humanidade, fragilidades e diferenças, ponho-me , no lugar do outro, torno-me, verdadeiramente, seu semelhante e levo- o a sério na sua dignidade, justamente, porque me certifico que cada um de nós é único e não moeda de troca, pois é detentor dos mesmos direitos e deveres e tão socialmente reconhecido como qualquer outro.

A Liberdade é um direito! A Liberdade é um dever!

A Liberdade é política, mas disso, eu não sei falar. Deixo para quem sabe, embora, muito intrinsecamente, sinta que estão inexpugnavelmente ligados. Por isso, comecei este trabalho com um extrato da letra da canção do Vitorino…

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Velhos e novos de Abril

O 25 de abril de 1974 foi uma coisa estranha. Num dia tínhamos pesados 48 anos de ditadura, no outro tínhamos o povo na rua! Bem entendido, os 48 anos foram mais turbulentos do que muitos imaginam e o “silêncio” de uma parte significativa dos portugueses deveu-se diretamente à repressão salazarista. Mas a repressão foi tão intensa que, de algum modo, para muitos, se naturalizou. Aconteceu que, porém, ainda no dia 25 o povo saiu à rua como se uma torrente se tivesse soltado, sem peias. Em certo sentido, com o 25 de abril quase se pode falar de uma transubstanciação pelo povo, de um movimento religioso e misterioso que fez emergir uma manhã como se nunca vira, uma esperança como muitos já não imaginavam possível.

Outra das estranhezas de Abril foi a idade dos militares golpistas. Os mais velhos estavam na casa dos trinta e poucos. A maioria estava na casa dos vinte. Pouco mais que adolescentes. Apesar disso, a sua coragem imensa e desmesurada transmutou o país. Terá sido a guerra a endurecê-los e fazê-los assim libertadores, tão cedo, instilando-lhes coragem? Ou terá sido, pelo contrário, a desesperança que os moveu, movendo um país com eles, mostrando como quer um, quer outra podem produzir frutos insuspeitos? Olhar para as fotografias dos rostos dos jovens soldados e capitães do dia 25 é uma experiência curiosa. Pelo menos para mim. Tudo é demasiado alvo, claro e limpo, como um primeiro dia de espanto (glosando pobremente Sofia). Bem entendido, nos dias seguintes ao 25 os jovens envelheceram depressa e depressa foi preciso envelhecer, passar pela espessura dos nevoeiros e atirar-se às ondas de todas as marés. Mas a coisa lá foi. Até aqui.

A minha grande pergunta, hoje, é se ainda são possíveis olhos daquelas primaveras e daquelas brancuras, ou se o eterno retorno não nos espera, na esquina, com mais anos e anos de escuridão. A grande questão é a de saber se é possível mostrar a emoção de ser livre, a sério, à José Mário, sem a água benta e a beatice da responsabilidadezinha logo à ilharga, ou a espreitar por cima do ombro, como um bufo.

Ora, se há peso para os velhos de abril é, hoje, a de ensinarem para a irresponsabilidade do futuro, para o desrespeito do sucesso e para o amor do pensar como se cada dia fosse o último e cada pensamento uma ou um amante proibido, mas de que se não abdica, com escândalo que seja, assim, à Natália Correia, à Sofia, à Teresa Horta…

Há pois, hoje, que deseducar as criancinhas, mostrar-lhes como quem não sabe desobedecer nunca verá um dia claro.

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O 25 de Abril e a oportunidade perdida

Estamos a comemorar meio século da revolução dos cravos. Por todo o lado se comemora esta data e se recorda o fim dos momentos de “escuridão” e de “aperto” da ditadura.

Frequentava o antigo quinto ano liceal e tenho bem presente o desabafo enfurecido e sentido do meu professor de Matemática. – “O tempo das cunhas e dos calaceiros já acabou. Hoje não há aulas. Podem sair.”

Muitos de nós ficámos sem perceber nada. Nem tínhamos dado conta que houvesse acontecimentos justificativos de interrupção das aulas, mesmo que por um dia. Nos dias subsequentes, os órgãos de informação encarregaram-se de relatar os acontecimentos e o seu enquadramento no tempo.

Apesar da minha juventude, da minha irreverência e de ser, como hoje, um não-alinhado, nunca presenciei atrocidades, “apertos” ou ausência de liberdade. Pobreza, humildade e modéstia…SIM!!! Repressão…NÃO!!!

Antes de 74 criámos um grupo de jovens - “Grupo Coral, Recreativo e Cultural” - com idades compreendidas entre os 15 e 22 anos. Tinha no seu repertório musical e de representação músicas de intervenção, sátiras políticas e sociais. Nunca ninguém foi incomodado por fazermos ou dizermos o que quer que fosse. Nos primeiros tempos, abrilhantar algumas celebrações religiosas foram as únicas dificuldades sentidas por sermos um grupo demasiado ousado e atrevido para a época. “- Parem lá com essas latas (violas) que aqui não é nenhum arraial.” – dizia o celebrante.

A novidade, a rebeldia e a inveja deste grupo constituíram motivo para que não se realizassem algumas celebrações, nomeadamente a “Missa do Galo”, sem que houvesse qualquer tipo de represálias no momento e posteriormente.

As informações e as histórias de repressão eram difundidas via oral - quem conta um conto acrescenta um ponto - e responsáveis pela criação de um clima e ambiente de medo na população.

Abril transformou, por completo, a sociedade portuguesa e a revolução dos cravos estabeleceu liberdades democráticas e transformações sociais no país. Falta saber a que preço.

O sistema político implementado, por uma pequena elite corporativa e descontente, não foi capaz de dotar o país das reformas necessárias, permanentemente adiadas, onde os partidos apregoam e propagandeiam o interesse do Povo e do País mas mais não fazem que servir-se e servir os seus.

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Hoje vivemos em liberdade e democracia. Escolhemos alegremente os nossos representantes para os governos da nação, em função das promessas de proporcionar ao Povo uma vida melhor.

Acontece, porém, que, depois de eleitos, as promessas e o Povo são esquecidos e, conforme amplamente noticiado sobressaem os interesses, o tráfego de influências, os favores, as cunhas e a corrupção. Afinal…o meu professor de Matemática que sentiu na pele os horrores da ditadura não tinha razão quando afirmava… “O tempo das cunhas e dos calaceiros já acabou.” Afinal…não acabou!!!

A democracia trouxe, também, o pior deste sistema político: conflito de interesses, a falta de transparência, casos de corrupção e comportamentos associados.

Esta convicção e este desabafo, em voz alta, não será exagerado se nos recordarmos dos casos mais badalados pela comunicação social resolvidos, não resolvidos, ou mal resolvidos: fax de Macau, Paquetes da Expo, Tecnoforma, Bragaparques, Freeport, BPN, BCP, Monte Branco, privatização da água e Saneamento, BPP, Santander/Totta, Face Oculta, Operação Furacão, Caso Portucal, Venda do prédio dos CTT em Coimbra, TDT, PPP, “Vistos Gold”, Manuel Pinho, GES/BES, EDP, TAP e Novo Banco.

Parece-nos que quando o Povo manifesta indiferença e se abstém de votar dá um sinal claro de discordância das regras deste sistema democrático que olha sobretudo para os eleitos, seus familiares e amigos permitindo uma promiscuidade excecional de sorvedouro dos dinheiros públicos e de surgimento de casos como os enumerados nesta narrativa.

A democracia está doente e a massa crítica escasseia. O crescente aumento de descontentamento, de populismos e intolerância revela um sistema democrático doente com elevado grau de individualismos, mediocridade, extremismos, subsídio-dependentes, pobreza e miséria.

Antes… o pobre mais pobrezinho sempre matava o seu porquinho. Agora… será que o pobre mais pobrezinho consegue uma parte de um porquinho?

O feito e o esforço daqueles que nos trouxeram a liberdade, dos que contribuíram para a implementação de uma democracia pluralista, para a defesa da igualdade de oportunidades e para a interiorização de sentimentos de pertença à União Europeia pode tornar-se inglório e uma oportunidade perdida para o povo português.

Parafraseando Martin Luther King “o que mais me preocupa não é o grito dos violentos, nem dos corruptos, nem dos desonestos, nem dos sem caráter, nem dos sem ética. O que mais me preocupa é o silêncio dos bons! O POVO!”

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A Educação Sexual na Escola e o 25 de Abril

Com a escola da pós-modernidade, surgida entre nós após o 25 de abril, a educação sexual começou a ser enquadrada como uma das dimensões de uma educação socio emocional, de uma educação para a cidadania. A lei de Bases do Sistema Educativo, parametrizadora das vertentes educacionais do país é perentória ao chamar a atenção para a necessidade da escola assumir como função prioritária a formação de cidadãos responsáveis, respeitadores de si mesmos e dos outros, conhecedores dos fatores de desenvolvimento socio emocional enquanto suportes de um saber viver, de um saber ser. Nesta perspetiva, a educação sexual apresenta-se como uma dimensão de tal educação (art.º 47, § 3), como uma das vertentes do respeito por si e pelos outros, como fator crucial da relação consigo próprio e com os outros.

Apesar de tal importância e de a Lei de Bases do Sistema Educativo contar já com trinta e cinco anos de existência, a Educação Sexual, em Portugal, apresenta ainda uma história bem recente. Com efeito, se só após o 25 de abril se começou a falar de sexualidade como algo educável, como uma vertente da vivência da cidadania, o certo é que os tabus inerentes a uma mentalidade judaico-cristã continuam a fazer dela efetivo tabu, reflexo de um modo de pensar que durante milhares de anos alienou as potencialidades das emoções, remetendo-as para o limbo da negatividade, para uma educação onde a separação dos sexos era uma das caraterísticas evidentes, a perpetuar um maniqueísmo educacional que a vida nega por natureza e à partida.

As gerações mais velhas recordam-se dos manuais e mapas em que o esquema do corpo continha lacunas, ou melhor, cortes ou falha de imagens, mais parecendo que se tratava de corpos mutilados. Recordam-se também as escolas só para raparigas e só para rapazes bem como o modo como a relação entre uns e outros era alvo de vigilância cerrada e severa. Neste contexto, falar de Educação Sexual, mais que pretensa aleivosia, era tabu socio educacional, expressão inequívoca de uma axiologia ancilosada, ensimesmada em valores retrógrados, incompreensíveis numa ‘sociedade do conhecimento’.

Embora muitas destas pessoas possam porventura ter recordações positivas da sua passagem pela escola, o panorama que existia naquela época quanto à educação sexual era o do consciente afastamento e proibição, remetendo para o domínio da sanção social e moral qualquer tentativa contrária. Falar sobre sexo era social e moralmente tabu, fazendo com que os poucos conhecimentos sobre o tema se adquiris-

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sem nas penumbras das relações da turma, nos bastidores ocultos das relações de grupos privados ou de relações escondidas.

Na verdade, sendo a escola parte integrante da sociedade e reflexo dos fundamentos sociológicos e axiológicos da mesma, o que faz com que jamais se apresente como entidade axiologicamente neutra, natural se torna que estando a sociedade portuguesa da época inserida num sistema político e num ambiente moral fortemente autoritários, fechados e conservadores, a sexualidade se visse liminarmente arredada dos domínios educativos, remetida para a abominável dimensão do pecado.

Não espanta, por isso, que o paradigma da convivência dos diferentes géneros fosse enquadrado em modelos educativos distintos, com as raparigas educadas para papéis passivos, subservientes, em torno do lar e dos filhos e da satisfação sexual dos maridos, enquanto a educação masculina assentava num estatuto de liderança, de inquestionável autoridade na família e na sociedade.

E se é certo que, progressivamente, após o 25 de abril, tal situação se veio alterando, não será provavelmente menos certo que, ainda hoje, docentes e pais se não sentem à vontade para abordar abertamente o problema da sexualidade junto dos alunos e filhos, preferindo remeter-se a uma comprometedora atitude de alheamento e silêncio sobre o tema.

Apesar disso, e pese embora tal comprometedora atitude, difícil se torna, nos nossos dias, não ouvir falar de sexualidade, quer na televisão, jornais, quer na rua, ou mesmo entre os próprios jovens não podendo, por isso, a escola alhear-se deste tema, sob o risco de estar a negar uma das suas funções primordiais, que é preparar os jovens para uma vivência de plena cidadania, desenvolvendo, para tal, as competências fundamentadoras do saber ser em cada aqui e agora.

Tal pressuposto encontra ainda fundamentos científicos e sociológicos no movimento nascido na primeira metade do século XX, e onde a educação sexual é encarada como uma necessidade, de um movimento científico, cívico e intelectual, protagonizado por diversos movimentos e atores, e que vai ganhar um crescente reconhecimento na segunda metade do referido século e que as neurociências vêm a cada momento confirmando.

O desenvolvimento das ciências humanas - nomeadamente a Psicanálise e a Psicologia e mais recentemente as Neurociências – têm gradualmente a evidenciar a importância da educação sexual como vertente sustentadora de uma homeostasia de, como diria Damásio, de uma tendência para a sobrevida. A educação sexual não pode de modo algum confinar-se à redutora dimensão da reprodução – única vertente aceite por diversas religiões e fontes de pensamento- antes tem de enquadrar-se numa perspetiva de ‘drives motivacionais’ conducentes ao equilíbrio da genética com o meio, ao desenvolvimento equilibrado de cada um.

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Psiquiatras, psicólogos, pediatras, sociólogos insistem na necessidade de não deixar as crianças crescer na ignorância, de responder às suas perguntas sempre com a verdade, de modo a que elas possam crescer de uma forma saudável, encarando a sexualidade como uma das vertentes saudáveis da sua existência, da sua relação com o meio, enquanto indivíduos e espécie, e não como uma realidade que tem de ser vivida na obscuridade das alcovas, no silêncio e penumbra da existência.

Contrapõe-se, assim, nesta libertadora perspetiva de Abril o esclarecimento franco e aberto, a educação para uma vida equilibrada e sustentada em valores de um equilíbrio positivo e emocionalmente sustentável, à ótica obscurantista do pecado, do ‘escondido´, do proibido, do meramente reprodutivo, como defende o modelo educativo assente na perspetiva biológico-reprodutiva.

A escola de Abril tem necessariamente de assumir com plena consciência e responsabilidade que a educação sexual é, antes e acima de tudo, uma dimensão crucial da vivência de cidadania; uma condição ‘sine qua non’ pode haver respeito por si e pelos outros; uma condição de um saber ser enquanto indivíduo eminentemente social, interativo, emocionalmente equilibrado. Mais do que técnicas ou princípios biológicos, a educação sexual de uma escola de Abril deve encarará cada aluno como um ser emocionalmente em desenvolvimento, onde as competências emocionais se aprendem e desenvolvem ao longo de toda a vida. Nessa ótica, conhecer as próprias emoções e as dos que o rodeiam, ser capaz de as regular e, sobretudo, partilhar num ambiente de efetiva empatia, são os parâmetros que devem sustentar uma educação para a sexualidade, para um equilíbrio emocional.

Tais objetivos devem, em meu entender, presidir a um real programa de educação sexual, não se restringindo, por isso, aos redutores princípios propostos pelo Ministério da Educação que, neste domínio, se quedam pela educação para evitar comportamentos de risco, promover atitudes de aceitação e fomentar autonomia e liberdade de escolha de uma forma responsável. A educação da sexualidade proposta por uma escola do pós 25 de Abril, de uma escola da ‘sociedade do conhecimento’ tem de ir bem mais além. Tem, acima de tudo, de olhar para o aluno como um todo, como um projeto de cidadania, com o consequente desenvolvimento de competências que lhe permitam responder homeostática e evolutivamente aos desafios de cada momento existencial, numa dimensão interativa consigo próprio e com os que o rodeiam.

Por tudo isso a educação sexual da escola do pós 25 de Abril deve assentar numa estruturante atitude de compreensão para a mentalidade vigente na nossa sociedade e para as estratégias conducentes à respetiva e progressiva mudança, na certeza de que, como dizia Ortega y Gasset de que o que somos tem sempre de ser equacionado nas nossas concretas e reais circunstâncias.

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Serviço Nacional de Saúde - Uma conquista do 25 de

Abril

Até ao 25 de Abril, mais concretamente até à publicação da Lei de Bases do Serviço Nacional de Saúde, a assistência pública em Portugal não tinha uma grande expressão, tendo o Estado um papel supletivo na prestação dos cuidados de saúde. Estes constituíam uma responsabilidade do indivíduo e da família e estavam entregues a entidades particulares, com destaque para as Misericórdias.

“Com excepção dos Serviços de Sanidade geral, dos Hospitais civis de Lisboa, do Hospital Joaquim Urbano, no Porto, e dos Hospitais Escolares de Lisboa e Coimbra, os serviços de saúde eram da responsabilidade da iniciativa privada”, refere Arnaldo Sampaio.

O nascimento dos Serviços Médico-Sociais em 1946, no seguimento da constituição da Federação das Caixas de Previdência, permitiu a expansão da oferta de cuidados, sob a forma de seguro social, não garantindo um direito universal e geral à população, mas apenas aos seus beneficiários. O número de beneficiários cresceu com grande rapidez, passando de uma cobertura de 10% da população residente em 1951, para 78% em 1975.

Em 1971, Gonçalves Ferreira e Baltazar Rebelo de Sousa lançaram as bases de uma reforma da saúde para um horizonte temporal de 15 anos. O plano, ambicioso para a época, contemplava a criação de uma rede nacional de 300 centros de saúde, em articulação com os hospitais distritais e centrais e os laboratórios de saúde pública, uma campanha de informação e formação comunitária e reorganização e reestruturação da rede hospitalar. Foi também por essa altura que Arnaldo Sampaio, distinto médico nascido em Guimarães, foi nomeado responsável pelo Plano Nacional de Vacinação.

O 25 de Abril não interrompeu esta dinâmica reformista. Veio antes reforçá-la e dar-lhe uma nova configuração e orientação, preconizando metas mais ambiciosas.

A Constituição da República Portuguesa de 1976 consagra um SNS geral, universal e gratuito e em 1979 é publicada a Lei de Bases do SNS, graças ao empenho e clarividência de António Arnaut. De então para cá, temos assistido a uma série de projetos e reestruturações, com o objetivo de adaptar o SNS aos tempos modernos e torna-lo sustentável.

Fazendo uma avaliação retrospetiva, podemos afirmar que ao longo de mais de 40 anos muita coisa mudou, essencialmente para melhor. Entre os avanços alcançados estão a redução drástica da mortalidade

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infantil e o aumento extraordinário de esperança média de vida à nascença.

Tudo isto foi possível, graças à conjugação de três fatores essenciais:

- Implementação de uma rede de hospitais, centros de saúde e USF e de cuidados continuados e integrados;

- aumento e valorização de recursos humanos;

- Financiamento adequado, tanto quanto possível, sem perder de vista a sustentabilidade do sistema.

Quanto à rede hospitalar, foi objeto de uma reorganização progressiva, embora ainda estejamos longe de alcançar os resultados desejáveis, como se pode comprovar pelas listas de espera cada vez maiores e pela incapacidade de pôr a funcionar devidamente os serviços de urgência hospitalares.

Os Centros de Saúde foram dando lugar às Unidades de Saúde Familiar (USF) aumentando a cobertura de cuidados de saúde à população. A rede de cuidados continuados e integrados veio suprir um conjunto de necessidades criadas pelo envelhecimento da população e a necessidade dos familiares para resolver esta situação.

Quanto aos recursos humanos, assistimos à criação e ao preenchimento de vagas em alguns sectores, visando um rácio equilibrado de profissionais de saúde/doentes.

Mesmo assim, vai-se sentindo cada vez maior dificuldade no preenchimento de vagas em alguns sectores, problema que tem origem, entre outros fatores, na fuga de profissionais para o sector privado, sobretudo médicos.

O financiamento tem sido o calcanhar de Aquiles do SNS. Os custos com a saúde têm aumentado exponencialmente ao longo das últimas décadas, temendo-se cada vez mais a falta de sustentabilidade, que pode conduzir ao colapso do sistema, tal como o conhecemos.

Portugal atingiu indicadores de saúde comparáveis aos dos países mais desenvolvidos. Manter essa situação implica não só um reforço orçamental, mas sobretudo um conjunto de reformas estruturais no sentido de diminuir drasticamente os custos, sem pôr em causa a qualidade o que, a ser realizável, representará a “quadratura do círculo”.

O aumento da esperança média de vida, a inovação tecnológica no que diz respeito, sobretudo a medicamentos inovadores e meios de diagnóstico cada vez mais sofisticados, vieram introduzir uma pressão acrescida no sistema de custos, já que os cidadãos reclamam o direito a serem tratados com os melhores meios disponíveis. Até que ponto será possível manter um SNS tendencialmente gratuito, sem distinguir ricos e pobres, só o futuro o dirá e esse futuro é já amanhã.

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A prestação de cuidados de saúde à população portuguesa é atualmente assegurada por três sectores que se relacionam entre si num regime de complementaridade. São eles os sectores público, social e privado, sendo que os prestadores privados já detêm uma fatia significativa do chamado “mercado da saúde”.

A questão ideológica veio contaminar a discussão sobre o modelo ideal de serviço de saúde para o nosso país e tem contribuído decisivamente para a falta de consenso entre os partidos políticos, inviabilizando uma reforma legislativa que seja, no essencial, do agrado de todos. Porém, dado o grau de envolvimento de cada um dos sectores, será desejável uma articulação entre eles, que seja equilibrada e transparente, com regras bem definidas pela Administração Pública, que tem obrigação de regular e fiscalizar regras comuns a todos eles.

Entretanto, o que já se vinha notando há muito tempo, tornou-se muto mais evidente com o surgimento da pandemia causada pelo Covid-19, cujos efeitos se farão sentir certamente por muito tempo: as bases do SNS começam, em parte, fruto do desinvestimento operado nos últimos anos, a dar sinais preocupantes de fadiga e esgotamento, sendo da máxima urgência insuflar-lhe uma “nova alma” e dotá-lo de instrumentos que evitem o seu desmoronamento.

Em Guimarães, cidade onde temos o prazer de viver, as coisas não se passaram de forma muito diferente do resto do país, já que a gestão do sistema nacional de saúde é centralizada, cabendo às autarquias um papel residual. As pessoas da minha geração ainda se lembrarão certamente dos tempos em que os doentes se referiam aos clínicos, designando-os por “médicos da caixa” e “médicos de paga”. Desde esse tempo muita coisa mudou: Guimarães passou a ter um hospital público moderno de nível 2, dotado de valências essenciais, que serve uma população numerosa e passou a contar também com centros de saúde e respetivas extensões, instalados em edifícios modernos e funcionais. No sector privado ´, a capacidade instalada também aumentou de forma considerável, contando o concelho, neste momento, com um hospital privado e numerosas clínicas de grande e pequena dimensão, que prestam uma grande variedade de serviços no âmbito das diferentes especialidades médicas.

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Liberdade… ou… a falta dela…

A muitos de nós, a Covid-19 não nos entrou no corpo, felizmente! Mas quotidianamente destrói-nos o coração e corrói-nos de saudades… Na nossa família temos uma tia viúva, sem filhos, com mais de noventa anos, que sofreu um acidente vascular cerebral e teve de deixar a sua casa, onde vivia sozinha, e passar a viver numa unidade de cuidados continuados, onde não a conseguimos visitar. É tão difícil tentar explicar a uma pessoa de 93 anos que não a podemos visitar porque a maldita pandemia nos tolhe os passos…. Há momentos em que a lucidez a abandona, em que tem dificuldade em lembrar-se do que sucedeu, e pergunta, e volta a perguntar, porque a abandonámos…. É terrível a sua impotência e a nossa impotência face à vontade que ela tem, e nós temos, de nos podermos abraçar…

O confinamento não é a nós que afeta, – apesar de também não podermos abraçar os filhos e netos tanto como desejamos –, o confinamento está a matar devagarinho os mais idosos com as saudades e a ausência de afetos… Maldita pandemia!

Pediram-me um texto sobre a Liberdade e eu fiz um… sobre a falta dela… Nestes dois últimos anos temos estado tão privados de liberdade!

Privados de liberdade estão todos aqueles que, por motivos de saúde, deram entrada nos hospitais e lá permanecem sem poder receber visitas.

Privados de liberdade estão todos aqueles que, residindo em lares, estão há largos meses sem poder receber a seu gosto a visita de familiares e sem possibilidade de saírem da sua residência sénior para um passeio, para umas compras ou para almoçar fora.

Privados de liberdade estão os comerciantes, isolados em casa, sem poderem abrir as suas lojas e exercer a sua vida profissional. 21 foto de Margarida Araújo, 2018.09.29.

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Privados de liberdade estão os estudantes sem aulas e sem o convívio, tão necessário, com os professores e os colegas; privadas de liberdade estão as famílias afastadas dos seus entes queridos que trabalham no estrangeiro, proibidos que estamos de sair ou proibidos que eles estão de entrar…

Não temos sequer a liberdade de beijar quem queremos, de abraçar muito, de sorrir a nosso contento (tapado que temos o rosto com a máscara).

Mas uma certeza temos: esta falta de liberdade não durará para sempre. Esta privação de liberdade irá sendo gradualmente conquistada, na medida em que formos vencendo a Pandemia.

Que chegue rápido a liberdade que nos retiraram. Que chegue muito rápido!

Acho que este meu desejo é o desejo de todos vós.

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Análise sumária sobre 25 de Abril

Estamos à distância de 47 anos desde que se deu o 25 de Abril de 1974, que pôs fim a uma ditadura de 48 anos. Teve lugar um golpe de estado que rapidamente passou a Revolução“A Revolução dos Cravos” - como ficou conhecida. O Prof. Borges Coelho aponta como “consequências as muitas reivindicações que ocorreram nas transformações sociais que se seguiram. A Liberdade de Expressão e a Liberdade Política marcaram igualmente as principais consequências do 25 de Abril de 1974”. Mas, a Guerra Colonial terá sido uma grande responsável por este grande acontecimento. Este processo revolucionário foi planeado pelos militares, pois o desgaste da guerra colonial era enorme não só para os militares, mas para todos os portugueses, daí a grande adesão popular. O historiador Fernando Rosas diznos que “A Sociedade Portuguesa vivia sobre grande tensão assim como existia uma grande repressão, e ainda pelo desejo que a guerra colonial terminasse”.

O Movimento das Forças Armadas (MFA), após a vitória do Golpe de Estado, põe em marcha o seu programa, cujo mentor era “Melo Antunes” que defende como um dos seus grandes objetivos:

A Liberdade e a realização de Eleições livres para a Assembleia Constituinte permitiram elaborar uma nova Constituição, em 1976.

A Censura deixa de existir; agora, é possível escrever livremente para gáudio de jornalistas e escritores, pois a Liberdade foi uma grande conquista para todo o povo português. Mas, de um modo geral, acredito que quem escreve tem a consciência de que Liberdade não é Libertinagem, mas sim Liberdade com responsabilidade.

Acredito que a Revolução de Abril teve inúmeras e inquestionáveis vantagens, como foram o fim da Guerra do Ultramar, o fim da ditadura de partido único, da repressão das consciências e da libertação dos presos políticos.

Mas, ao longo destes 47 anos, muitas são as desvantagens que se têm visto de suposta “liberdade” que só o foi na sua acepção político-partidária. As Leis não são aplicadas e a justiça não é cumprida, nem os grandes infractores são punidos.

E outra grande desvantagem prende-se com a perda do sentido de Nação e de Pátria, a indiferença face à nossa História e desígnio Nacional (sim, eu acredito que há um desígnio nacional para que “se cum-

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pra Portugal”), a apatia que foi crescendo face à nossa cultura nas suas várias vertentes, subjugando-nos ao que vem do estrangeiro como sendo melhor, a perda de valores fundamentais que estão na matriz cristã que esteve na base da formação da nossa nacionalidade, matriz essa que permeou toda a nossa história da qual muito nos podemos orgulhar bem como da identidade deste povo que é PORTUGAL.

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Liberdade

Liberdade é lembrar a história dos acontecimentos daquela madrugada de Abril de 1974 e homenagear todos os que, dos pequenos passos a actos heroicos, lutaram pela queda da ditadura logo a favor da liberdade e da democracia.

Liberdade é lembrar as canções portuguesas (“E Depois do Adeus” de Tozé Brito e “Grândola Vila Morena” de Zeca Afonso) que serviram de senhas como sinal de partida do esquadrão de cavalaria que agregava instruendos do curso de sargentos e oficiais milicianos da Escola Prática de Cavalaria, de Santarém, comandados pelo saudoso Capitão Salgueiro Maia, com quem convivi e todos juntos, seguidos de grande apoio popular, ultrapassamos as incertezas do evoluir dos acontecimentos que vieram a determinar o fim da guerra colonial que o País enfrentava desde 1961 que provocou imensas vítimas mortais e deficiências físicas e psicológicas nos jovens combatentes que carregaram para a vida.

Liberdade e Abril caminham desde então, lado a lado, como um tempo novo, com mais preocupações de progresso, de mais e melhor qualidade de vida para as sucessivas, novas e futuras gerações. Foi um Abril primaveril determinante.

Liberdade e Abril afirmam novos tempos, novas causas, novos ciclos. A vontade do povo passou a ser soberana para eliminar as injustiças sociais, fazer imperar a igualdade da justiça, do acesso à saúde e ao ensino onde se afirmam as liberdades individuais. Nasceu a democracia que concilia a liberdade e a ordem,

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Imagem 22 - O pôr do sol no Oceano Atlântico, visto da montanha da Penha

o progresso e a segurança, o desenvolvimento e a justiça social.

Liberdade, Abril e Democracia geraram sentimento pelos direitos humanos, preservação e conservação da natureza e de todos os seres vivos, tudo em defesa do planeta e da mãe Natureza.

Liberdade e Abril formaram melhores cidadãos que no exercício da cidadania militante se empenham na construção de um futuro melhor que só se alcança melhorando os ecossistemas e fomentando um sentimento colectivo de cuidar da nossa Casa Comum, a mãe Natureza.

Liberdade e Abril passaram a exigir o fim da poluição, das agressões à natureza, das alterações climáticas que estão na origem de tempestades e tragédias que provocam pandemias que dizimam populações, limitam a sua renovação e privam da liberdade tão essencial à vida.

Liberdade e Abril não são confinamentos e desconfinamentos. Temos de ser livres mesmo em pandemia, sempre com regras, mas nunca, nunca como um jogo entre o Governo e os Portugueses que fogem à polícia como disse o Primeiro Ministro recentemente.

Liberdade, liberdade que termina quando colide com a liberdade dos outros.

Imagem 23 - Primavera 2021

Viva a liberdade, viva Abril, viva a Democracia, Viva a Natureza em defesa de todos os seres vivos. É para isso que os governos devem governar.

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Aprender o valor da Liberdade: o papel das aulas de história

Ao responder ao desafio deste Osmusiké Cadernos 2, não poderia, uma vez mais, deixar de relacionar o(s) tema(s) deste segundo número – "Abril e a liberdade" / "Guimarães -Vivências da democracia"– com a minha atividade profissional predominante, a docência de História.

Esta atividade está, também, relacionada com uma abordagem educativa caracterizada pela investigação-ação que, desde há mais de duas décadas, tem guiado as minhas práticas e se fundamenta em duas linhas de pesquisa que se complementam – a Educação Histórica e a Educação Patrimonial – sendo que ambas colocam o enfoque na problematização constante e na criação de possibilidades de interpretação de fontes de tipologias diversas e com diferentes perspetivas, pelos alunos de diferentes turmas e anos de escolaridade. Neste contexto, é fundamental que se proporcionem aos alunos experiências educativas desafiantes que os levem a implicar-se no processo de aprendizagem e a desenvolver a sua capacidade de reflexão crítica.

Recentemente, a publicação, pelo Ministério da Educação, do Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (Direção-Geral da Educação, 2017), veio completar um processo que se vinha desenhando, com avanços e recuos, desde finais do século passado, de forma a “criar condições de equilíbrio entre o conhecimento, a compreensão, a criatividade e o sentido crítico. Trata-se de formar pessoas autónomas e responsáveis e cidadãos ativos” (Direção-Geral da Educação, 2017: 2). Neste documento, destacamos desde já, pela relação com o tema deste Osmusiké Cadernos 2, a liberdade, entre os valores que crianças e jovens devem ser encorajados, nas atividades escolares, a desenvolver e a pôr em prática, e pelos quais se deve pautar a cultura de escola. A liberdade caracteriza-se, segundo o documento, pela manifestação de “autonomia pessoal centrada nos direitos humanos, na democracia, na cidadania, na equidade, no respeito mútuo, na livre escolha e no bem comum” (Direção-Geral da Educação, 2017: 17). Em articulação com este documento, o Ministério da Educação aprovou e publicou as Aprendizagens Essenciais para os alunos dos diferentes anos de escolaridade.

Apresenta-se, de seguida, uma seleção de aprendizagens essenciais relacionadas com o tópico em análise neste texto e com o tema deste Osmusiké Cadernos 2.

No 1.º ciclo, é, em Estudo do Meio, no 4.º ano de escolaridade, que podemos encontrar de forma explicita, no documento relativo às Aprendizagens Essenciais, uma primeira referência à recuperação de liberdades e direitos após o processo de democratização de 1974: “Relacionar a Revolução do 25 de Abril de

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1974 com a obtenção de liberdades e direitos.” (Direção-Geral da Educação, 2018a: 6). Já em relação ao 6.º ano, o documento das Aprendizagens Essenciais (2018b) apresenta uma clara distinção entre o período do Estado Novo e a fase democrática que se seguiu à revolução de 25 de Abril de 1974: “sintetizar as principais características do Estado Novo, nomeadamente a ausência de liberdade individual, a existência da censura e de polícia política, a repressão do movimento sindical e a existência de um partido único; relacionar a guerra colonial com a noção de império no contexto do Estado Novo; identificar/aplicar os conceitos: ditadura, censura, guerra colonial, oposição, liberdade de expressão (Direção-Geral da Educação, 2018b: 8) e “reconhecer os motivos que conduziram a revolução do 25 de abril, bem como algumas das mudanças operadas; caracterizar o essencial do processo de democratização entre 1975 e 1982; identificar/aplicar os conceitos: democracia, descolonização, direito de voto, câmara municipal, junta de freguesia, UE, ONU, PALOP, sociedade multicultural” (Direção-Geral da Educação, 2018b: 8).

Por sua vez, no 9.º ano de escolaridade, o último ano do currículo português em que todos os alunos frequentam História como disciplina obrigatória – o que se revelará manifestamente insuficiente e uma lacuna na formação de muitos cidadãos portugueses, agravada pela diminuição, nos últimos anos, da carga letiva semanal da disciplina no 3.º ciclo – mantem-se esta distinção entre o Estado Novo e a fase democrática posterior, agora contextualizada, em termos internacionais, na conjuntura europeia e mundial da Guerra Fria. Além disso, é atribuído destaque ao impacto da Guerra Colonial no processo de desagregação do Estado Novo: “analisar a guerra colonial do ponto de vista dos custos humanos e económicos, quer para Portugal quer para os territórios coloniais, relacionando-a com a recusa em descolonizar; contextualizar a mudança de regime que ocorreu em 25 Abril de 1974 com a crescente oposição popular à guerra colonial e à falta de liberdade individual e coletiva” (Direção-Geral da Educação, 2018c: 9); assim como ao período imediatamente após a revolução de abril de 1974: “Realçar a importância do 25 de Novembro para a estabilização do processo democrático” (Direção-Geral da Educação, 2018c: 9).

Relativamente ao Ensino Secundário, a disciplina de História surge na área de Formação Específica dos currículos dos Cursos Científico-Humanísticos de Línguas e Humanidades (História A) e de Ciências Socioeconómicas (História B). O currículo de História assume uma vez mais, em ambos os casos, uma organização cronológica ao longo dos três e dois anos do ciclo de estudos, respetivamente. Apresentando uma maior profundidade quer na abordagem dos conteúdos quer na complexidade da análise de fontes diversas, em História A, podemos salientar as seguintes aprendizagens essenciais: Compreender que a realidade portuguesa do após guerra a 1974 foi marcada pelo imobilismo político e pelo crescimento económico; Interpretar o surto industrial e urbano, a estagnação do mundo rural e os consequentes movimentos migratórios; Descrever as diversas correntes oposicionistas ao

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Estado Novo, destacando os acontecimentos de 1958; Interpretar o fomento económico das colónias à luz da retórica imperial e do progressivo isolamento internacional; Analisar as fragilidades do marcelismo, nomeadamente o inconsequente reformismo político e o desgaste que a Guerra Colonial provocou no regime, interna e externamente; Compreender que a modernização da sociedade portuguesa nas décadas de 60 e 70, na demografia e nos comportamentos, constituiu-se como fator fundamental para a desagregação do regime; Descrever a eclosão da revolução de 25 de abril de 1974, o papel exercido pelo MFA e o processo de desmantelamento das estruturas de suporte do Estado Novo; Problematizar o processo de democratização, do PREC à progressiva instalação e consolidação das estruturas democráticas, o processo de descolonização, a política económica antimonopolista e a intervenção do Estado nos domínios económico e financeiro; Avaliar o sucesso da Revolução de 74 e do consequente processo de democratização do país ” (Direção-Geral da Educação, 2018d: 11-12).

De forma similar, em História B, além das aprendizagens referidas acima, podemos destacar a importância atribuída à análise das “transformações culturais e de mentalidade ocorridas após a Revolução de 1974” (Direção-Geral da Educação, 2018e: 12).

Em setembro de 2019, o Ministério da Educação, através da Direção-Geral de Educação, publicou as Aprendizagens Essenciais de História, Culturas e Democracia (Direção-Geral da Educação, 2019), uma nova disciplina de opção para os alunos do 12.º ano de escolaridade que não frequentem a disciplina de História A. Um dos objetivos principais, desde logo tidos em consideração pela equipa que elaborou a proposta do documento – constituída por membros da direção da Associação de Professores de História e investigadores do CITCEM, e que integrei22 – foi o de possibilitar a alunos que deixaram de frequentar História a partir do 9.º ano de escolaridade ou que frequentaram História B, ou mesmo História da Cultura e das Artes, até ao 11.º ano, possam continuar/aprofundar o desenvolvimento do seu conhecimento histórico e a problematizar situações históricas de um passado recente, “recorrendo à multiperspetiva e a comparações entre realidades espácio-temporais distintas, possibilitando que o aluno desenvolva a compreensão do mundo em que vive e uma consciência histórica que lhe permite assumir uma posição informada, crítica e participativa na construção da sua identidade individual e coletiva, num quadro de referência humanista e democrático” (Direção-Geral da Educação, 2019: 2). Os quatro temas propostos – A História faz-se com critério; “Glocal” e consciência patrimonial; Passados dolorosos na História; História e tempo presente – surgem “estruturados em torno de três eixos organizadores: construção do conhecimento histórico com base em metodologias específicas; compreensão do mundo atual a partir da exploração do local, do regional e do global; problematização de temas da História recente, integrando as relações passado-presente, pensados

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Informação disponível em: https://aph.pt/nova-disciplina-anual-historia-culturas-e-democracia-hcd/

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em articulação com princípios, visão e valores identificados no Perfil dos Alunos À Saída da Escolaridade Obrigatória” (Direção-Geral da Educação, 2019: 2). Considera-se, por isso, que o contributo da História é fundamental para o desenvolvimento de “competências de análise e críticas de caráter transversal, essenciais para os desafios profissionais e para o exercício de uma cultura democrática interventiva em sociedades em mudança acelerada” (Direção-Geral da Educação, 2019: 4). O que até aqui foi exposto encontra eco na declaração de Guilherme d’Oliveira Martins, no prefácio ao Perfil dos Alunos À Saída da Escolaridade Obrigatória:

As humanidades hoje têm de ligar educação, cultura e ciência, saber e saber fazer. O processo da criação e da inovação tem de ser visto relativamente ao poeta, ao artista, ao artesão, ao cientista, ao desportista, ao técnico – em suma à pessoa concreta que todos somos. Um perfil de base humanista significa a consideração de uma sociedade centrada na pessoa e na dignidade humana como valores fundamentais. (Direção-Geral da Educação, 2017: 6).

Em síntese, dadas as características da organização curricular e do lugar atribuído à disciplina de História, se é fundamental a realização de atividades educativas que permitam o desenvolvimento, pelos alunos de todos os níveis de escolaridade, de competências de pensamento crítico – observar, identificar, analisar e dar sentido à informação, argumentar a partir de diferentes premissas, tirar conclusões fundamentadas –e de pensamento criativo, aplicando ideias em contextos específicos ou abordando as situações a partir de diferentes perspetivas (Direção-Geral da Educação, 2017), essa necessidade é ainda mais premente no que respeita à abordagem de temas relacionados com o passado recente, nas aulas de História com alunos do 9.º ano, no final do Ensino Básico. Tal pode fazer-se, por exemplo, através da realização, pelos alunos (individualmente ou em grupo) e com orientação do professor, de trabalhos de pesquisa sobre aspetos da vida social, económica, política e cultural, antes, durante e após a revolução de 25 de Abril de 1974, recorrendo a fontes diversas (e não limitadas ao manual escolar), nomeadamente a objetos e fotografias de arquivo familiar, e ao testemunho de pessoas que experienciaram essas situações históricas – avós entrevistados pelos netos em conversas áudio/vídeo gravadas, por exemplo – seguindo-se a comparação de perspetivas e a discussão em grupo-turma. Desta forma, a aprendizagem torna-se mais significativa, porque mais próxima e situada, não de “matéria de História a memorizar”, mas como um processo em que os alunos mobilizam conceitos históricos e constroem conhecimento. Desta forma, compreendem que o passado não pode ser vivido novamente, mas podem inferir sobre ele usando evidências, entendendo também as razões das ações e escolhas feitas noutros contextos, ou seja, mostrando empatia histórica. A compreensão das questões socialmente relevantes do passado, que em alguns casos continuam vivas no presente, permitirá a estes jovens a aprendizagem de valores, como o da liberdade, e a tomar decisões fundamentadas, base

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para uma participação cívica ativa, consciente e responsável nas comunidades em que se inserem.

REFERÊNCIAS:

DIREÇÃO-GERAL DA EDUCAÇÃO (2017). Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória. http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Projeto_Autonomia_e_Flexibilidade/perfil_dos_alunos.pdf

______ (2018a). Aprendizagens Essenciais - Ensino Básico. 4.º ano. Estudo do Meio. http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/1_ciclo/4_estudo_do_meio.pdf

______ (2018b). Aprendizagens Essenciais - Ensino Básico. 6.º ano. História e Geografia de Portugal http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/2_ciclo/6_historia_e_geografia_de_p ortugal.pdf

______ (2018c). Aprendizagens Essenciais - Ensino Básico. 9.º ano. História. http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/3_ciclo/historia_3c_9a_ff.pdf

______ (2018d). Aprendizagens Essenciais - Ensino Secundário. 12.º ano. História A http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/12_historia_a.pdf

______ (2018e). Aprendizagens Essenciais - Ensino Secundário. 11.º ano. História B http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/11_historia_b.pdf

______ (2019). Aprendizagens Essenciais - Ensino Secundário. 12.º ano. História, Culturas e Democracia. http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/ae_hcd_12.o.pdf

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Canções de Abril

Júlio Dias, compositor e Maestro juliofilosofo@gmail.com

A música é capaz de produzir sensações e despertar sentimentos e, entre as suas várias possibilidades, é capaz de mobilizar indivíduos e grupos sociais. Por isso, a importância da música nos períodos de repressão de direitos humanos.

Os regimes ditatoriais sempre se notabilizaram pelo uso da força e pelo cerceamento das liberdades, dentre elas a liberdade de expressão. Controlavam todas as formas de expressão, o que abarcou também as artes e, em especial, a música.

Em Portugal, no contexto da ditadura, com a censura a limitar a liberdade de expressão, a música foi uma das formas mais exploradas pelos artistas para exporem os seus sentimentos, ideias e críticas ao sistema político vigente, ainda que muitas vezes feitas de forma extremamente subtil, com o constante uso de metáforas e trocadilhos. A música tornou-se numa forte arma de protesto, contando com a participação de diversos poetas, compositores e intérpretes de que resultaram

as canções de resistência

.

As canções de resistência ou canções de protesto, consideradas após a Revolução de Abril de 1974 como música de intervenção, são constituídas por poemas e músicas de denúncia de um presente de repressão e surgem como luta por um mundo melhor. Sem finalidade comercial, recorrendo, com frequência, à balada e com acompanhamento à viola ou à guitarra, possuem uma mensagem universalista, em poemas que exprimiam o sentimento do povo oprimido, com a esperança da liberdade. Estas canções da resistência assumem, assim, uma função social e política importante desde os anos 40, mas, especialmente desde o princípio dos anos 60, nomeadamente com a eclosão da Guerra Colonial em Angola, Moçambique e GuinéBissau.

O período revolucionário e pós-revolucionário que se seguiu ao 25 de Abril foi muito rico ao nível da expressão musical. A “música de intervenção” deixou-nos centenas de cantigas de qualidade muito desigual, mas que tinham quase sempre em comum o empenhamento militante dos seus autores e cantores nas transformações económicas, sociais e políticas que o país atravessava.

Pela consciência social que estas canções podiam formar, muitos poetas, compositores e cantores viram os seus discos censurados pelo Estado Novo: Adriano Correia de Oliveira, José Afonso, Luís Cília, Manuel Freire, José Mário Branco, José Barata Moura, Sérgio Godinho, Carlos Alberto Moniz, Maria do Ampa-

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ro, Teresa Paula Brito, Fausto, Carlos Paredes e muitos outros.

Eis algumas das canções que ficaram indelevelmente associadas a esta mudança política, social e cultural em Portugal:

+ E Depois do Adeus / Paulo de Carvalho (José Niza e José Calvário)

+ Grândola Vila Morena / José Afonso (José Afonso)

+ Liberdade / Sérgio Godinho (Sérgio Godinho)

+ Trova do Vento Que Passa / Adriano Correia de Oliveira (Manuel Alegre)

+ Pedra Filosofal / Manuel Freire (Rómulo de Carvalho)

+ Somos Livres / Ermelinda Duarte (Ermelinda Duarte)

E DEPOIS DO ADEUS

Por volta das 22.55 horas do dia 24, João Paulo Dinis, na antena dos Emissores Associados de Lisboa, pôs no ar “E depois do Adeus”, canção vencedora do Festival da Canção de 1974, com letra de José Niza e música de José Calvário, interpretada por Paulo de Carvalho, que serviu de senha para as tropas saberem que se deviam preparar e estarem a postos.

Não tendo um conteúdo político explícito e sendo uma música que estava em voga nessa altura, não levantaria suspeitas e a revolução poderia ser cancelada sem que os ouvintes desconfiassem de alguma coisa de anormal. E Depois do Adeus é uma canção de amor dos anos 70 em forma de balada.

O povo, na sua generalidade, não sabia o que estava prestes a acontecer. Mas os militares e outras partes preparavam uma revolução para instituir a democracia e pôr fim à ditadura e opressão em que vivia Portugal. Aguardavam o sinal para saber que era a hora de se prepararem para iniciar o golpe militar tão esperado. E ele chegou através da rádio. “E depois do adeus” foi o primeiro sinal tão esperado que soou.

GRÂNDOLA

A Grândola Vila Morena “nasceu” uma década antes de um poema de três quadras enviado por José Afonso à Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, dias depois de lá ter atuado na celebração do 52.º aniversário da coletividade (primeira parte de Carlos Paredes; segunda “Dr. Zeca Afonso”). Foi inspirado, diria mais tarde Zeca Afonso, pelo clima solidário e fraterno vivido na SMFOG - espaço com uma biblioteca “de evidentes objetivos revolucionários”. O poema viajaria até França, onde “caiu” nas mãos de José Mário Branco, o produtor do álbum Cantigas do Maio, que lhe daria forma de cante alentejano: Grândola, Vila Morena, o poema de José Afonso, trocou a última quadra da primeira versão

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“Capital da cortesia Não se teme de oferecer Quem for a Grândola um dia Muita coisa há de trazer”

por:

“À sombra de uma azinheira Que já não sabia a idade Jurei ter por companheira Grândola, a tua vontade”, e acrescentou-lhe a inversão das quadras e o arrastar de passos que seriam os dos camponeses a regressar da monda.

A 29 de março de 1974, Zeca Afonso cantou o tema num concerto no Coliseu dos Recreios - menos de um mês depois, os passos dos camponeses viraram marcha militar: às 00h20 de 25 de abril, soava na Rádio Renascença a senha final. A revolução começava.

LIBERDADE

Sérgio Godinho, cantor de intervenção, em maio de 1968 estava em Paris, perto de Zeca Afonso, de Luís Cília e de José Mário Branco que, para além de terem em comum a escolha da capital francesa como refúgio, acabaram por influenciar, de alguma forma, as suas composições.

No 25 de Abril estava no Canadá, mas logo regressou a Portugal onde se vivia o novo espírito da revolução. Entre muitas canções, em que o poeta e compositor encontra na música uma forma de intervir na luta pelos ideais de Abril, podemos destacar a canção Liberdade.

Esta canção de Sérgio Godinho, ao propor explicitamente uma série de objetivos sobre condições básicas da existência humana, transformou-se num hino às reivindicações do povo português para uma vida melhor. A paz, o pão, a habitação, a saúde e a educação são cinco conceitos onde se materializaria a verdadeira liberdade.

“Só há liberdade a sério Quando houver

A paz, o pão, habitação

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Saúde, educação”

TROVA DO VENTO QUE PASSA

Porventura uma das primeiras canções de clara contestação ao regime ditatorial, e que ainda hoje ressoa na nossa memória coletiva, Trova do vento que passa inaugura e propõe, nas suas próprias palavras, a missão interventora que não mais largará os cantores da resistência ao fascismo:

“Mas há sempre uma candeia Dentro da própria desgraça Há sempre alguém que semeia Canções no vento que passa”.

O poema, diz Manuel Alegre, “nasce” em Coimbra, com a participação do amigo Adriano Correia de Oliveira, sendo musicado por António Portugal. Manuel Alegre perseguido pela PIDE exprime, aqui, a sua revolta:

“Mesmo na noite mais triste

Em tempos de servidão Há sempre alguém que resiste Há sempre alguém que diz não”.

Trova do vento que passa foi cantada pela primeira vez numa festa de receção aos caloiros na Faculdade de Medicina sem pedir a respetiva autorização à PIDE. Manuel Alegre foi apresentado por Silva Graça, fez um discurso emocionado, depois o Adriano cantou e quando acabou de cantar “foi um delírio, teve que repetir três ou quatro vezes, depois cantou o Zeca, depois cantaram os dois. Saímos todos para a rua a cantar. A Trova do vento que passa passou a ser um hino para aquela gente” (Manuel Alegre, in Raposo, Eduardo M., Cantores de Abril, Lisboa, Ed. Colibri, 2000, p 172).

PEDRA FILOSOFAL

É, talvez, o poema mais “representativo” do Químico - Rómulo Vasco da Gama de Carvalho (professor de físico-química do ensino secundário no Liceu Pedro Nunes e Liceu Camões, pedagogo, investigador de História da Ciência) e Escritor/Poeta - António Gedeão (Pseudónimo), que foi publicado no seu livro Movimento Perpétuo, em 1956.

O título do poema – Pedra Filosofal – remete para a Alquimia, isto é, para a substância que se adicio-

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nava aos metais pobres para serem transformados em ouro. Assim, com este título, António Gedeão associa o sonho humano à magia dos alquimistas, sugerindo que aquele, qual pedra filosofal, transforma em ouro as fraquezas e as pequenas ambições humanas. O sonho é tão frequente, concreto e definido na vida como diversas outras coisas: uma pedra, um ribeiro, os pinheiros, as aves, etc. Estas diversas comparações que surgem no início do texto sugerem que o sonho é uma coisa simples e, ao mesmo tempo, complexa, porque é muito difícil de definir; sugerem ainda que algo abstrato e subjetivo pode ser transformado em algo “tão concreto e definido como outra coisa qualquer”.

Os sonhos podem ser “mansos” ou “sobressaltados”; estão relacionados com algo grandioso e envolvidos pela ideia da esperança constante. Os sonhos são também o “bichinho (…) sedento” cujo focinho pontiagudo que “fossa através de tudo”, ou seja, consegue penetrar nos lugares mais recônditos.

É o sonho que dinamiza a vida e impele o progresso humano nas áreas da arte (“tela…sinfonia.”); da ciência e da tecnologia (“átomo, radar…televisão”), da história e da geografia (“caravela quinhentista… Cabo da Boa esperança”).

O Homem sonhou que existiam outros mundos além dos conhecidos e sonhou que os poderia descobrir e, através da força imparável do sonho, esses universos foram sendo desvendados!

Termina com uma espécie de crítica aos que não sonham, porque “o sonho comanda a vida” e é o sonho que faz avançar a humanidade.

Manuel Freire, aproveitando a musicalidade do poema, apresenta em 1970 o poema musicado, que se transformou rapidamente num hino e numa bandeira da resistência contra a ditadura.

SOMOS LIVRES

Também conhecida como “A Gaivota Voava, Voava” foi escrita e cantada pela atriz Ermelinda Duarte, com arranjos de José Cid, e pertencia à peça de teatro Lisboa 72/74, da autora teatral e encenadora Luzia Maria Martins então levada à cena no Teatro Estúdio de Lisboa, na Feira Popular em Lisboa. Ficou imortalizada como uma das canções da Revolução.

A canção celebra a liberdade conquistada, tendo sido, pelo seu simbolismo, um dos temas mais populares a seguir ao derrube da ditadura do Estado Novo e fim da censura pela Revolução de 25 de Abril.

Uma canção simples e despretensiosa que sintetiza de uma forma feliz o que nos ficou da Revolução e que não foram nem a reforma agrária ou as nacionalizações, o poder popular ou até a independência nacional, mas sim a liberdade e a instauração da democracia, a mais duradoura herança do 25 de abril de 1974.

Por muitos anos, “Somos Livres” continuou a ser cantada nas ruas, nas festas populares e nas escolas,

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assumindo-se como uma das canções mais populares a seguir ao derrube da ditadura do Estado Novo e acompanhou a infância de muitos portugueses e portuguesas.

“Uma criança dizia, dizia quando for grande não vou combater.

Como ela, somos livres, somos livres de dizer”.

CONCLUSÃO

A música pode ser considerada umas das formas mais eficientes e contagiantes de comunicação. Ela faz com que possamos trazer ao de cima um meio de expressão que não depende somente das palavras, mas também da melodia. Esta característica faz com que atinja, potencialmente, um maior número de pessoas, por se tratar de algo com o qual se pode ter um contacto mais rápido ou de mais fácil acesso do que a um texto, por exemplo. Além disso, a música agrada e contagia de uma forma singular e quando tem não somente uma melodia e ritmos agradáveis, mas também uma letra, com um conteúdo consistente, ela torna-se algo ainda mais procurado e precioso. O grande alcance da música faz com que ela possa estar em vários lugares ao mesmo tempo.

A música e a cultura tiveram parte crucial na revolução que mudou o país e Abril foi possível com a “participação” da música que, informando poemas que denunciam atropelos aos princípios básicos dos direitos humanos e revindicam a sua aplicação nas políticas de governação, acaba por ser um veículo importantíssimo de pregão de valores fundamentais como a liberdade, a igualdade, a fraternidade, a justiça e, tomo-o como tal, o sonho que comanda a vida. Valores e ideais que nos deveriam comprometer a todos ainda hoje, porque ainda não totalmente concretizados.

Em tempos de pandemia, valerá a pena refletir se estes ideais estão a ser cumpridos “despidos” de carga ideológica e “vestidos” de respeito por todos os seres humanos. A liberdade não pode ser vista só como liberdade de cada um, mas, como diz a canção, deverá ser partilhada com “fraternidade” e “igualdade”. Ao vermos as desigualdades que emergem desta crise pandémica, será preciso continuar a afirmar que “só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, habitação, saúde e educação” para todos.

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24 - Ilustração de
Memórias do 25 de Abril ... Miguel do Sul fercamiguel@gmail.com
Salgado Almeida

O SAL é um autor de evidências, um artista de impressões. Será, pois, natural que, quem quer ler os seus trabalhos deve fazê-lo com sentimento e emoções que são despertadas com as composições que produz em evidências de riscos e traços que nos levam à descoberta de momentos bem guardados nas nossas memórias.

Claro que eu cá prefiro muito mais o SAL ilustrador, do que o SAL mero artista plástico que o é também, ou o SAL escultor único, pouco divulgado injustamente…. Mas essa será uma futura e desejável conversa adiada e justa ….

Vamos às Memórias que ainda nos restam do 25 de Abril….

Olho o desenho e logo vislumbro um jovem alegre, que canta:

Grândola Vila Morena

Terra da Fraternidade, O Povo é quem mais ordena, Dentro de ti ó Cidade!!!

…Como ele, centenas de jovens, milhares de Homens e Mulheres entoam o mesmo cântico dias e noites a fio, e muitos deles, sobretudo os mais velhos, vi bem visto, com estes olhos que os bichos da terra hão de comer… as lágrimas caírem em catadupa, dando um significado único e bem especial à alegria coletiva e ao acontecimento daquela madrugada Abrilina!!!....

O jovem que revejo era um jovem soldado preparado para partir para uma tal guerra que existia lá longe num tal ultramar !!!.... Este jovem tinha tirado o capacete e dele surgia agora uma flor vermelha. Um cravo rubro que era gesticulado com frenesim guardado na mão de um braço estendido...afinal muitos braços estendidos de cidadãos anónimos a que chamamos Povo…

… O POVO É QUEM MAIS ORDENA!!!...

…ouvi tantas vezes, naqueles dias, gritados por vozes anónimas nos escaninhos dos caminhos, nas ruas, nas vielas e avenidas de uma LI – BER – DA – DE que todos nós tentávamos compreender, descobrir e conquistar !!!....

O Cravo vermelho era, agora, o símbolo da LIBERDADE!!!....

O capacete, agora, é a nau, nos novos descobrimentos, a que com abril se poderiam aventurar, num Mar desconhecido da chamada Democracia que ora se iniciava, como se ouvia dizer!!!...

Esta Nau traz com ela um pássaro que voa na mesma direção do autor. Olham os dois para o Horizonte longínquo onde ainda nada se vislumbra a não ser as nuvens, que são o sonho e a Utopia dos cidadãos deste país Portugal…e ouvem-se cânticos…

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Uma gaivota voava, voava

Asas de vento, coração de mar….

Como ela hoje somos livres, Somos livres de voar !!!...

…A gaivota voava ao sabor dos ventos da liberdade e o jovem feliz cantava a pensar nos seus filhos…

Uma criança dizia, dizia…

Sou criança quero crescer

E quando for grande…

Não vou combater

…no cais das colunas, junto ao Tejo, centenas de jovens gritavam a sua vontade a plenos pulmões. Ao mesmo tempo centenas de outros transeuntes assistiam à manifestação e iam concordando silenciosamente com gestos da cabeça…

…NEM MAIS UM SOLDADO PARA AS COLÓNIAS !!!!...

…No fundo de uma vontade que tivera dificuldades em despertar de uma sociedade injusta, perseguidos que eram os gentios, torturadas as consciências, castigados e deportados os atrevimentos e agressões ao regime, libertava-se, agora, quantas vezes com exageros cantando com os corações carregados de Esperança e crença….

Somos um Povo que serra fileiras Parte à conquista do pão e da Paz …e o pássaro será, agora, a pomba da Paz desejada!!!

Passaram-se 47 anos desta inebriante aventura dos capitães. Muitos foram esquecidos outros injustiçados…

Mas a fome já não tem a mesma cor de antigamente e as injustiças passaram a ser mais profundas à Nação e a perseguir menos os cidadãos….

A Justiça deixou de ser do regime e persecutória e passou a ser conveniente e dos poderosos. Há duas (in)justiças: a dos ricos e as pobres…

A Educação e a Saúde são as verdadeiras e maiores conquistas de Abril mas permanentemente agredidas e, ainda, com muitas carências e necessidades…

Hoje já se confunde Liberdade com Libertinagem e os atos eleitorais têm falta de credibilidade representativa pois a abstenção corresponde a metade da Nação!!!...

A verdadeira conquista política de Abril que foi o aparecimento dos Partidos e a legitimidade do Poder

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autárquico começa a ser posta em causa pelos próprios partidos que, na sua ânsia de poder, degradaram o quotidiano da prática política com a semente assassina da corrupção!!!...

Fez-se um novo regime denominado democrático que é bem diferente do anterior, mas, também ele peca por excesso de defeitos a que, antes, nunca se tinham assistido !!!....

Mataram a Esperança… e agora??!!!...

Olho novamente o desenho do SAL. Salgado Almeida, amigo e cúmplice de muitas aventuras da Democracia e descubro a sua inteligência e subtileza!!!....

Afinal o desenho já dá a resposta que nos ajuda a compreender o desencanto que sentimos: Então não veem que a Palavra, os seres vivos estão voltados para a esquerda e a Nau que é o capacete da guerra está voltada para a direita??!!!...

Se olharem bem com olhos pragmáticos e com distanciamento, facilmente percebem que a imagem é o reflexo num dos vidros de óculos de sol de um personagem observador e distante, senhor de um poder incomensurável e que nós, os simples mortais, jamais seremos capazes de destronar e muito menos destruir !!!... O resto são implicações fantasiosas de seres que vivem e sonham com Mundos Melhores onde a Igualdade seja uma realidade partilhada, onde se pratica uma Solidariedade plena e verdadeira e a maior riqueza serão as vivências em Liberdade!!!!...

Tudo Sonhos…afinal onde é que isso pode existir ???!!!...

A todos OSMUSIKÉ porque a Pátria é nossa. Somos nós que a Cantamos... VIVA a LIBERDADE!!!!...VIVA o 25 de Abril!!!

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25 de Abril sempre!

“Esta é a madrugada que eu esperava O dia inicial inteiro e limpo Onde emergimos da noite e do silêncio E livres habitamos a substância do tempo” (Sophia de Mello Breyner Andresen)

“há muitos anos, no tempo em que o teu pai andava na escola, num país muito distante vivia um povo infeliz e solitário, vergado sob o peso de uma misteriosa tristeza. (…) Esse país agora já não se chama País das Pessoas Tristes, chama-se Portugal e é o teu país. E o tesouro pertence a ti, és tu que agora tens que cuidar dele. (…) Porque esta história não é uma história inventada. É uma história verdadeira, aconteceu mesmo. Pergunta os teus pais ou aos teus professores e eles contar-te-ão mais coisas sobre o País das Pessoas Tristes e sobre o Dia da Liberdade.”

Este curto excerto, destinado aos mais novos, extraído do livro de Manuel António Pina, intitulado “O Tesouro”, recomendado pelo Plano Nacional de Leitura (PNL), conta um pouco dessa história do 25 de Abril de 1974, ocorrida há 46 anos, que merece ser lida, ou recontada por aqueles que a (não) vivenciaram.

De facto, este e muitos outros textos literários permitem compreender que o 25 de Abril abriu muitas portas do país que estavam fechadas, como a da Descolonização, a da Democracia e a do Desenvolvimento, que eram os três “D” e objetivos da Revolução de Abril.

Porém, “As portas que Abril abriu”, que o poeta Ary dos Santos tão bem canta no seu poema homónimo, entreabririam apenas alguns limiares e nem todas as portas da liberdade foram abertas. Realmente, há ainda muitas portas semicerradas e outros “D”, por cumprir: o da Desigualdade, o do Desemprego, o da Descentralização, o da “Descorrupção”, e demais coisas e loisas como a Doença Covid-19, entre vários 2D” dos dias decorrentes ...

De facto, “Nesta Hora”, assim se intitula um outro poema de Sophia, (como aliás em todas as horas) “é preciso dizer a verdade toda/Mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invoca o povo/Pois é preciso ´que o povo regresse do seu longo exílio” (…), pois, como acrescenta “Meia verdade é como habitar

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meio quarto/Ganhar meio salário/Como só ter direito/A metade da vida”

Porque, realmente, a vida é para viver por inteiro, sem restrições: “de nenhum fruto queiras só metade”, disse Torga no seu poema “Sísifo”, é quiçá preciso recomeçar sem desistências e pugnar até ao fim contra as prepotências, desmandos e ataques insidiosos como os vírus reais e outras viroses políticas latentes, que como bichos da fruta mordem por dentro.

Neste 25 de Abril de 2021 o tempo é pois de resiliência e responsabilidade pessoal e coletiva, para recuperarmos a liberdade agora mitigada, que nos obriga a ficar em casa.

Com efeito, só assim o sonho e a utopia de um mundo melhor (e agora adiado), terá pernas para andar em direção a um “Abril de Sim Abril de Não”, como o canta Manuel Alegre:

“Eu vi Abril por fora e Abril por dentro vi o Abril que foi e Abril de agora eu vi o Abril em festa e o Abril lamento Abril como quem ri como quem chora.

Eu vi chorar Abril e Abril partir vi o Abril de sim e Abril de não Abril que já não é Abril por vir e como tudo o mais contradição

Vi o Abril que ganha e Abril que perde Abril que foi Abril e o que não foi eu vi Abril de ser e de não ser.

Abril de Abril vestido (Abril tão verde) Abril de Abril despido (Abril que dói) Abril já feito. E ainda por fazer.”.

Portanto, passados estes 47 anos de Abril, (idade da maturidade), importa voltar ao “chão puro: algarves de ternura”-, como Alegre canta; e seguir o exemplo daquele “que na hora da vitória/respeitou o vencido/Aquele que deu tudo e não pediu a paga/Aquele que na hora da ganância/Perdeu o apetite/Aquele que amou os outros e por isso/Não colaborou com a sua ignorância ou vício/Aquele que foi fiel à palavra dada à ideia tida” (…), isto é, seguir aquela coluna de chaimites que Salgueiro Maia comandou, e de novo enfrentar novos desafios, sem oportunismos carreiristas.

Só assim teremos o “25 de Abril Sempre”, a várias vozes plurais.

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De facto, tal como “Era uma vez o 25 de Abril” de José Fanha, a história tem de continuar a ser uma narrativa aberta e um tempo de magia, intemporal e atemporal, na qual todos devemos assumirmo-nos como personagens participantes, civicamente ativas. Com efeito, é um imperativo de cidadania reviver este “Romance do 25 de Abril”, que João Pedro Messeder tão bem conta e recontá-lo, na esteira de J. Jorge

Letria no seu “25 de Abril contado às crianças … e outros” …

Obviamente, também, multiplicar estas manifestações verbais em atos e ações, sejam elas “Vinte e Cinco a Sete Vozes”, ou muitas mais …Efetivamente, “Vinte e Cinco a Sete Vozes”, é um livro divertido de Alice Vieira centrado no relato de 7 pessoas (ou vozes) de três gerações diferentes, que contam as suas memórias sobre o 25 de Abril, que o Plano Nacional de Leitura recomenda para o grupo etário infantojuvenil.

Tudo começa quando uma investigadora chegou à escola de gravador na mão e começou por falar com o “baldas” Paulo Jorge, do 7º. J:

“Mas se queres um conselho, quem te dava um depoimento bué de fixe era a Madalena, assim com muita gramática e os verbos todos certos, tás a ver? Não sabes quem é a Madalena? É só perguntares. Anda no 7º. B, toda a gente a conhece. Cinco a tudo, estás a topar? Escreve artigos para o jornal da escola, nunca se balda. Há quem lhe chame a betinha da Quinta da Marinha (…) Para ser franco, minha, eu também não sei grande coisa. Para mim, 25 de Abril, 5 de outubro, 1º- de novembro, 1 de Dezembro e o 1º. de Maio é tudo a mesma coisa, ou seja, é feriado e isso é que interessa”.

Por isso, a conversa passaria depois para a Madalena e o jornal escolar “Topas”, orientado pela professora de inglês, pelos pais e avô de Madalena, o pai de Paulo Jorge, e ainda por uma professora aposentada do 1º. ciclo, que em vozes diferentes historiariam os seus 25 de Abril.

E você, o que pensa sobre o (feriado do) 25 de Abril, em especial quanto à sua abordagem nas escolas e na família?

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A poesia está na rua Álvaro Nunes

“Não hei de morrer sem saber qual a cor da liberdade”

Ora, de facto, Jorge de Sena (1919-1978) não morreria sem conhecer a cor da liberdade. E chegaria mesmo a responder:

“Qual a cor da liberdade? Verde, verde e vermelha!”

Verde e vermelha como a cor da nossa bandeira

Realmente, nesse dia de 25 de Abril de 1974, dar-se-ia início da caminhada rumo à liberdade e ao processo democrático, na diversidade das suas cores, rasgando-se os longos anos de “Exílio”, que Sophia evoca abjetamente:

“Quando a pátria que temos não a temos Perdida por silêncio e por renúncia

Até a voz do mar se torna exílio

E a luz que nos rodeia é como grades”.

Porém e felizmente, esse “tempo da selva mais obscura”, em que “até o mar azul se tornou grades/ e a luz do sol se tornou impura”, como Sophia caracterizaria a ditadura salazarista, findaria em 25 de Abril de 1974. Com efeito, como canta o poeta Ary dos Santos no poema “As Portas que Abril abriu”, “foi esta força viril/que antes quebrar que torcer/que em vinte e cinco de Abril/fez Portugal renascer”.

Efetivamente, o 25 de Abril trouxe o entusiasmo do renascimento do velho Portugal glorioso dos tempos de outrora, contra aquela “a apagada e vil tristeza” e institui no país as causas da democracia e da liberdade, a par com o desenvolvimento e a descolonização como bandeiras de vanguarda da Revolução de Abril.

Liberdade, e democracia que, contudo, urge fortificar quotidianamente, pois como canta Sérgio Godinho, “só há liberdade a sério quando houver/a paz o pão/habitação/saúde educação”.

Ora, realmente, a poesia tem sido ao longo dos últimos tempos uma arma da democracia. Usá-la-ia a Sophia de Mello Breyner Andresen, Manuel Alegre, Jorge de Sena, entre muitos outros poetas. Arma de arremesso que ainda hoje se mantém acutilante, como Sophia já previa em 1977 perante o populismo e a

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demagogia, que tem grassado um pouco, ao longo destas décadas:

“Com fúria e raiva acuso o demagogo E o seu capitalismo de palavras (…)

Que se promove à sombra da palavra E da palavra faz poder e jogo E transforma as palavras em moeda Como se faz com o trigo e com a terra” .

É por isso, preciso separar o trigo do joio e recomeçar a lutar sem desistências contra as prepotências, os interesses instalados e os desmandos abusivos; e por vezes e se necessário, sair de novo à rua, a cantar: “Grândola, Vila Morena Terra da fraternidade

O povo é quem mais ordena Dentro de ti, ó cidade”

Realmente, como escreve o poeta vimaranense Carlos Poças Falcão, na sua obra “Sombra Silêncio” recentemente premiada pela Sociedade Portuguesa de Autores como o “Melhor Livro de Poesia”, não basta atermo-nos ao silêncio ou ao “Manifesto Mínimo”:

“Neste humanismo abafa-se – e não sem um tremor armamo-nos dos verbos de um programa insubmisso: calar e apagar, desconectar, desaparecer. Manda a democracia que falemos? Nós calamos. Exige o espetáculo mais brilho? Apagamo-nos. Devemos estar em rede e ao serviço? Desligamo-nos. A Coisa Absurda chama-nos? Ah, não comparecemos!”

Cantar de novo Abril, de Zeca Afonso a José Mário Branco e recordar Adriano Correia de Oliveira de “O Canto e as Armas”, ou trautear Fausto e Vitorino, entre outros, é uma salutar vivência de Abril, para a qual “Traz outro amigo também” … Mas, caso “Venham mais cinco” ou mais, todos não seremos de mais para vencer os novos desafios do presente e futuro.

Claro, “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, mas “Eu vim de Longe”. E por cá estou de momento, como canta Fausto “Pro que der e vier” …

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Por isso, caro democrata, neste 25 de Abril atenta que a democracia exige (cada vez mais) a participação crítica e cívica, mesmo que os tecnocratas e burocratas nos queiram impor a verdade única e mastigada, ou os demagogos populistas nos queiram impingir em fake-news de encomenda!

Não vás em cantigas, mas se for preciso cantar, canta, como José Mário Branco canta. Canta de galo, canta a bom cantar:

“Qual é a tua, ó Meu?” …

Andares a dizer” quem manda aqui sou eu?

Qual é a tua, ó meu?

Nesse peditório o pessoal já deu …

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E abril se fez Abril

Joaquim António Salgado de Almeida jasalgadalmeida@gmail.com

Abril era das mentiras Logo no dia um E depois continuava Já que dia da verdade Não existia nenhum.

Abril era das mentiras Taciturno, incolor Era tempo em que o pão Se rilhava com bolor.

Era abril confinado Com o povo no redil Era um tempo desgraçado Era abril de águas mil.

Abril era bafiento De sufoco e opressão.

Abril era desalento.

Era abril do senhor Mais do chefe e do patrão Do abade e regedor.

Era do sim, do amém

Era abril resignação Do nós por cá todos bem.

Era abril do assim seja À moda do Salazar Era abril do soldadinho Do outro lado do mar.

Era abril duma pátria Ingrata e malfazeja De um regime ditador Com a bênção da igreja.

Mas um dia aconteceu Que abril de Abril se fez E a liberdade ficou Com o nome deste mês.

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Abril

Abril, madrugada que se fez tarde. Alvorada das armas em flor. No peito da gente o fogo arde. Abril. Abril sempre, meu amor.

Abril. Uma Pátria. Uma cidade. Cada rua. Abril. Uma canção que voa. Um grito. Uma estrada rasgada, minha e tua. Paz e liberdade. Sonho infinito.

Abril. Abril no meu país. O povo desceu às praças e fez a festa. Abril é uma semente. É raiz. Abril é jardim. É floresta.

Abril é sonho, aventura, é ousadia. É a voz do povo que se faz voz. Cada hora, cada manhã, cada dia. Abril. Abril sempre somos nós.

Abril não foi. Abril é e será. Aqui e agora e mais além. Abril. Abril é sempre um amanhã. Abril é meu e teu também. Abril é uma palavra. Vivida. Escrita. Dita. Lida. Discursada. Abril é um programa de vida. Liberdade conquistada.

Quisera sempre dizer-te, meu amor, que as armas florescem novamente que cada pessoa tem valor. Abril és tu e eu e toda a gente.

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Armando Joel Barbosa Maciel ajmaciel@sapo.pt

Asas da Liberdade

POEMA I - Asas da Liberdade

As asas do petiz Voaram de madrugada Cruzaram-se com a perdiz Seguiram com a passarada Céu de negrume pintado Transformado em tela garrida De vermelho colorido Asas de morcego abertas Lua cheia libertada Da igualdade alada Asas de papel e penas Asas de fadas bordadas Voam e dobram esquinas Das portuguesas quinas Asas da liberdade conquistada Em abril com flores perfumadas O cravo vermelho Asa da liberdade da igualdade Sem tiros conquistada

POEMA II - Poesia Libertada

Os versos enlouqueceram As palavras soltaram-se Pelas linhas ensarilharam-se Em um contexto sem nexo Abraçavam-se e riam Como se divertiam Perante a sua aflição Riam com a sua atrapalhação O texto não tinha sentido Era o abril vivido Ainda jovem, apenas sentido E livre não contido

As palavras … essas malandras… mudavam de linha E novamente partiam Para nova embrulhada Rumo a uma livre encruzilhada E a rima indisciplinada Tanto aparecia como fugia

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Ninguém a retinha Não era truncada E a brincadeira durou Toda a noite até de madrugada E a poetisa não sabe se poetou Mas algo escrevinhou Até que todos se cansaram E ao sono se entregaram Abril e a liberdade venceram Todos livremente adormeceram E ela olhou a folha rasurada E na POESIA LIBERTADA sossegou.

POEMA III - Portugalidade

Teresa Portal

Fazer poesia a metro Não pode ser… Mas na realidade até é Medida pela métrica Que se impõe nos sonetos Abba, abba, cdc, dcd… Nas redondilhas Nos poemas épicos…

Esta poetisa não queria espartilhos nem esquemas rimáticos preferia o verso solto ou branco frequentemente rimado sem ser forçado para dar uma toada à melodia conforme o dia Corria a pena pelo papel Dos seus dedos o corcel

Gostava de ser Camões para o amor cantar e facilmente poemar para a pátria elogiar e seus feitos divinizar O povo estava a precisar De um banho de nacionalidade De um sopro de portugalidade De novo abril de liberdade para ter orgulho em ser Português

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Poemas de Abril

POEMA I – Poema de Abril

Como um rio que busca voraz a foz O povo apedrejou nas ruas o feroz algoz, Dedos de vitória, punhos cerrados, Em rostos de sonho e braços dados.

Então, nas praças cresceram rubros cravos, Bandeiras de sangue, lágrimas d’euforia. Palavras interditas cantaram sons escravos Abrindo algemas e cartas d’alforria …

E um mar de vontades inundou a cidade Num abril florido, maio em erupção! E uma lava de fraternidade e liberdade, Correu desenfreada, solidificando a nação …

Era o mestre de Avis, Salgueiro Maia, Otelo, manifestações, reivindicações; Era a voz rouca das gentes d’arraia Em gritos de ordem e aclamações.

POEMA II - 25 DE ABRIL SEMPRE!

Como o sal do pão, a água da fonte, Esta é a alvorada da criação dos dias, A maçã original, a ponte no horizonte, A terra prometida, o filho que pedias …

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Em busca da Liberdade

Miguel do Sul fercamiguel@gmail.com

POEMA I - Em busca da Liberdade

Ontem eu não sabia o que era A liberdade

Ontem ainda vi a passar algumas vezes A liberdade Depois o tempo se esgotou e perdi o rasto À liberdade…

Consta-se que não tem sido respeitada!!! Onde anda a liberdade??!!!

Demandei deveras preocupado…

Hoje a liberdade anda perdida Ninguém lhe dá guarida!!! – afirmaram uns Hoje a liberdade anda esquecida Não precisam dela para a vida!!! – disseram outros

Hoje a liberdade está cansada Já não serve para nada – declaram alguns

Hoje a liberdade está proibida Hoje a liberdade já não é apregoada Deixou de ser cantada… Hoje a liberdade já não é A vera li-ber-da-de Alguém sabe onde anda a Liberdade??!!

POEMA II - Peregrinando

Perguntei ao Mar por onde anda A Liberdade

O Mar respondeu: - Não sei!!! Perguntei ao Ar se viu passar A Liberdade

O ar me respondeu: O vento a levou!!! Indaguei junto do Fogo Se conhecia a Liberdade Este Riu-se e gargalhou Não sei se a atrevida se queimou!!! Procurei por toda a TERRA em busca Da Liberdade Ela nunca me apareceu!!! Silenciosamente inspirei e, De repente gritei: VIVA a LIBERDADE Olhei à minha volta e... Ninguém me respondeu!!!

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Liberdade!

Liberdade, liberdade! Acolhes quimeras mil, Brindas à fraternidade Na primavera de abril.

Liberdade, liberdade! Soltas a democracia, Pintas a realidade De abraços e alegria.

Liberdade, liberdade! Não fujas do meu país. Sê cravo da igualdade. Sonha, vive e sê feliz!

Liberdade, liberdade! P’ra sempre quero amar-te. Não quero ser a saudade. P’ra sempre quero cantar-te.

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Manuela Ribeiro manela1962@gmail.com

A madrugada dos sonhos23

“De mãos dadas vamos para o sono comum.” (DANIE FILIPE)

POEMA I - A madrugada dos sonhos Na madrugada clara a rua enche-se de luz. Nas suas entranhas uma felicidade irresistível, um fogo envolvendo a terra.

Olho-te nos olhos, saboreio a ternura do teu corpo, o calor dos passos

23 Do livro “A MADRUGADA DOS SONHOS, vencedor da 11ª edição do Prémio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres, edição Junta de freguesia de Fânzeres, dezembro de 2000, (esgotado). Recentemente incluído no livro “30 ANOS DE POESIA”, Antologia do Prémio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres / 1990 - 2020, edição da Elefante Editores.

transfigurados no silêncio, a incisão da luz desvendando o sonho.

Relembro a felicidade soletrada em tua boca, amada até ao limite da ternura. Terra – mãe, esperança que se inventa em nossas mãos, alegria que floresce num olhar. Na madrugada clara, um rio desliza sobre a rua, um sonho paira em nossos ombros. (Qual raio de azul incidindo contra a muralha de silêncio, uma explosão de cor e som na magia das palavras, na quietude dos sentidos.)

Um sopro de ave rasgou a claridade do teu corpo felino, a terra transformou-se num simples gesto. A rua envolveu-se num orvalho fresco e livre, assim permaneceu na lassidão dos sonhos, como uma pomba

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sobre os ombros de uma criança.

De repente, sentiu-se a leveza irresistível da ternura. Num instante moveram-se nuvens sobre os olhos e o azul da esperança tomou o brilho inconfundível da alegria.

Sobre a noite pairava ainda o teu sorriso, o calor das tuas mãos o semblante doce do teu rosto. (Na rua um menino descobre uma flor, sente-lhe o aroma, apercebe-se que finalmente a primavera vai nascer livre em suas mãos.)

O teu corpo ávido de ternura preenche a rua de um fogo invisível e descobre entre as mãos a noite, a alegria, o sonho.

POEMA II - Abril de sonho e de esperança Abril deu-me tudo o que sonhei:

liberdade, paz, alegria, serenidade. Devolveu-me o direito de pensar e agir, de expressar sentimentos e dúvidas. Também me deu asas para voar sobre os umbrais das casas em busca de desejos e emoções. Deu-me coragem para interagir como cidadão de corpo inteiro, subir as montanhas da aventura para descobrir quão diferente é o homem que se fez livre. Abril ensinou-me a dignidade, uma norma inteligente e cívica para interagir na sociedade. Ensinou-me a pensar e a agir com a minha própria cabeça, a tomar as minhas decisões. Ensinou-me a viver, amar e sonhar, a ver os outros de modo diferente, a ter projetos, ideias, convicções, a poder sorrir, cantar, amar, expressar toda a euforia que a liberdade comporta. Abril deu-me razões para sentir a emoção e a alegria que o vento transportara naquela manhã inesquecível de sonho e fantasia. Abril de esperança focado na alegria e na emoção, na participação desta aventura por espaços desconhecidos onde o céu se pinta com todas as cores do arco-íris, prenunciando o advir de um tempo novo. Abril que abriu as portas do pensamento e da razão da harmonia e da fraternidade,

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tornando os homens mais irmãos, mais compreensivos e solidários. Devolveu-nos a esperança e a confiança que estavam subornadas e esquecidas e povoou as praças com risos de crianças, janelas escancaradas, varandas coloridas com arranjos florais de todo o ano.

Ó meu país livre de esperança e de saudade, de sol e desejo misturado, de emoções e fantasias, fervor puro e inesperado nas margens da poesia. Ó meu canteiro de esperança, janela aberta à ternura, peladinha desta eufórica aventura pela liberdade sem caução. Ó país de abril que a brisa tece, Suave, perene, sublime, fruto da felicidade que enaltece.

POEMA III - vem, liberdade!

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Em vão procurei-te nos escombros da memória, nas vielas clandestinas do medo, nas noites chuvosas e frias, na rigidez dos passos, nos esconderijos mais recônditos onde os sonhos não foram proibidos.

Foste durante anos a fio a musa promotora desta luta, a deusa silenciosa da minha inspiração.

24 Do livro “O DESPERTAR DA ALEGRIA”, prémio nacional de poesia Natércia Freire, 2018, edição da Câmara Municipal de Benavente, 2019, 250 exemplares.

Com a tua intransigência expulsavas os fantasmas da memória, tocavas os corações para que sem medo adormecessem.

Ensinavas-me a combater a solidão e a angústia com determinação e audácia, com ironia e presunção. Caminhavas a nosso lado para onde quer que fôssemos como amiga, companheira, mentora da felicidade que ambicionamos alcançar.

Quantas vezes vieste até nós oculta numa obscura névoa, envolta em mistérios e fantasias, para que os tiranos não te reconhecessem e te apertassem a vigilância?

Quantas vezes povoaste os nossos segredos de solidários anseios, de inquestionáveis certezas e sorrateiramente partias para que a tua presença não nos denunciasse?

Sempre que te queríamos tocar, tornavas-te ar, fumo, sombra, nuvem ou fluido invisível. Esfriavas o combate quando a vitória parecia possível, quando o infinito parecia ao alcance das mãos.

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Quantas vezes sofreste a prisão, os maus tratos, escondeste-te atrás de um disfarce para não seres reconhecida ou sentiste-te ameaçada sem poderes pedir ajuda, entregue ao teu próprio destino, sem que ninguém te pudesse socorrer?

Sofrias, sempre que um pedreiro livre era amordaçado, um operário perseguido, um grevista espancado ou um poeta assassinado. Viveste clandestina nas palavras, escondida nas metáforas, disfarçada nas alegorias.

A tua imagem estava presente em toda a parte, dando-nos força na hora do desânimo. Sei como era incómodo sentir-te sem te poder abraçar, falar-te, sem te poder ouvir, tocar-te, sabendo que eras feita de sonhos, ar, sombras e mistérios.

Um dia, porém, tomaste forma humana, abandonaste o teu esconderijo, vieste para a rua, com o teu invulgar espírito de mudança. Entraste nas casas, nas ruas, nas praças e nas instâncias do poder. Subiste muralhas,

agitaste bandeiras, converteste gestos e palavras em ações de luta. Acordaste consciências que estavam adormecidas ou talvez entorpecidas pelo medo e pelo desânimo.

Estavas tão feliz, como se tivesses despertado de um sonho e por um golpe de magia caído ali no meio da praça, onde a esperança sem receio renascia. A multidão avançava ao teu encontro. Os olhares fixavam-te com ansiedade, tentando assimilar-te na tua plenitude, proteger-te para que ninguém mais se aproprie de ti. Eras a rainha desta vontade coletiva. Tomavas nas tuas mãos os destinos de um povo quando ias para a frente da luta formar grupos de opinião, invadir os jornais, as rádios, os meios de comunicação, as instâncias do poder e colocá-los ao serviço de todos.

Trouxeste o poder para a rua, depositaste-o nas nossas mãos aboliste a censura, abriste as prisões, declaraste livre o pensamento e todo o ato criativo. Agora respiramos um ar de festa e alegria. Um sonho de ternura dominava todos os nossos gestos, uma paz invisível circulava pelo nosso corpo.

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Coronam virumque cano

Branco

POEMA I

CORONAM VIRUMQUE CANO CANCIONEIRO PANDÉMICO

Não sei se o vírus sabe que eu existo e se ele me chamar não lhe respondo; por isso é que eu me calo e mais me escondo debaixo até da cama - e não desisto. E penso até que nem o próprio Cristo que nunca odiou ninguém, salvo o cretino escroque fariseu que eu abomino, nos pode por milagre livrar disto. Mas pior do que este vírus, que me assusta mas cumpre as leis fatais da Natureza, são esses corifeus da estupidez que brilham na ribalta só à custa de fakes news e desta vil tristeza de os não podermos vacinar de vez.

MM - 4. Fev. 2021

POEMA II

Idos de março? - Cautela! Não encurtemos caminhos:

Se não andarmos sozinhos Teremos só a janela Para ouvir os passarinhos. Zaragatoas há menos Zaragatas mais que dantes Porque há sempre alguns pedantes Que sendo até bem pequenos Ao espelho são gigantes. Aí de nós! Porque isto é assim: Safa-se um, um outro a pega E uma coisa ninguém nega: Inda não chegou ao fim O jogo da cabra cega. MM - IDOS DE MARÇO DE 2021

POEMA III

Pássaro preso não canta Que o cantar quer liberdade: O próprio grito que há de Sair limpo da garganta Quer do espaço a imensidade. Até o galo lampeiro Fazendo peito emplumado Erguendo o bico aprumado Melhor canta no terreiro Que em poleiro confinado. Recolhido em meu recanto Haja sol ou faça frio Cantar não canto - assobio: Deste mundo que é um espanto Já nem falo - só me rio. MM - 17.fev.2021

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A Cidade

Subi à montanha para ver a cidade: - ei-la, agora, tecida no vale, adormecida num berço verde que já foi lago, lagoa, golfo, baía, vulcão, cratera e fundo dos oceanos ferventes quando os peixes se transformavam em répteis e em aves e chegou a glória das primeiras flores, estas que nos aquecem os olhos nesta primavera de emergência e desassossego.

25 - Subi à montanha para ver a cidade - Foto de João Mendes

Olhando o vale, avisto o mar. Para lá da névoa adormecida e das colinas transparentes, sinto a ressonância do mundo. Sempre a cidade me levou ao mar, por um caminho só, o do longo vale que, por entre fábricas e tecidos, me levou às ondulações das póvoas marítimas, com um verso de Baudelaire no sangue: “Homem livre, sempre amarás o mar.”

E chegamos ao último milésimo de segundo do universo: algumas guerras, sem sentido, por território e poder, com deuses que morrem e outros deuses que nascem. E permanece a glória das flores que atravessaram a sombra: primaveras recentes, com o mês de abril vigilante na cidade para que os energúmenos não derrubem as sete portas da cidade aberta por onde caminhará o homem livre.

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Firmino Mendes, 21-23 de março de 2021 firminomendes@gmail.com
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DESENHO I - Quebrar as amarras

Linhas de Liberdade

SAL (comentadas)

do

Joaquim António Salgado Almeida jasalgadalmeida@gmail.com

A Mulher a preto e branco transformase em cor, em abril... (Laura Pontes)

As mãos que aprisionam são também as mãos que libertam... Agarremos o cravo, a força, a audácia e o respeito pelos valores da Liberdade... (Dulce Silva)

Do vermelho dos cravos fez-se abril. Comemoramos a liberdade a preto e branco. (Paula Rios)

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DESENHO II - É tão boa a Liberdade

Memórias que ainda nos restam do 25 de Abril….

Olho o desenho e logo vislumbro um jovem alegre, que canta: Grândola Vila Morena Terra da Fraternidade, O Povo é quem mais ordena, Dentro de ti ó Cidade!!! (Miguel do Sul)

As várias “formas visuais” de representar a Liberdade. (Filipe Guimarães)

Um Mundo perfeito a transbordar de Alegria, Amor, Paz, Esperança, Liberdade ... como num sonho profundo em que há medo de acordar!! (Marta Mota)

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DESENHO III - Despertar do pesadelo

Liberdade é poder amar, Poder sorrir, poder gritar, Poder sonhar, poder voar... Liberdade é poder abraçar! (Ofélia Ribeiro)

Do 25 de abril emergiu uma nova dignidade para a mulher portuguesa:

1º Igualdade perante a lei e no trabalho, direitos na família, garantia na assistência, regalias na maternidade e na educação dos filhos.

2º Possibilidade de poder afirmar a própria dignidade de mulher e de fazer valer os seus direitos e conquistas. (Mário Macieira)

Lealdade, humildade, fraternidade. É indispensável o respeito absoluto das liberdades públicas e dos direitos civis. O segredo da felicidade é a liberdade e o segredo da liberdade é a coragem. (Bernardino Freitas)

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DESENHO IV - Voa Liberdade

A noite acordou ... A manhã despontou! As aves anunciaram que a Liberdade chegou! (Lucinda Namora)

A amizade é como a lua, tem fases. E da plena obscuridade, com luta, renasce a Liberdade… (Vicente Machado)

Aproveita a vida para sorrir, abraçar, sonhar ... e acredita que a Liberdade nos permite voar… (José Pedro Namora)

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Somos um povo com consciência de liberdade congénita. Lutamos pela independência como nação, cruzamos mares e oceanos, descobrimos novos mundos, reafirmamo-nos na restauração e, em abril, vencemos a tirania dos opressores e reconquistamos a LIBERDADE. (Olívia Freitas)

O rosto da mulher que ama a liberdade e encara vida de frente, de cabeça erguida. Liberdade de pensamento e de atitude. Pensamento livre de preconceitos e “recusa” de viver a vida sob influência da sociedade. (Paula Marques)

Cabeça super ocupada da mulher, desde afazeres domésticos, sonhos, estabelecimento de relações, amor sem preconceitos, laser. Sempre com uma palavra amorosa. (Clarisse Nunes)

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DESENHO V - Era noite agora é dia

VI - Avante Camaradas!

Um povo que baixa a cabeça perante a tirania dos seus opressores, traz à memória os fantasmas do passado, a humilhação e prepotência do homem pelo seu semelhante, em contraste com a ânsia de Liberdade. (Joaquim Machado)

Festa da Liberdade com paz e alegria no coração! O povo saiu à rua para comemorar a Liberdade em paz. Mensageiros da paz em Liberdade. (José Maria Gomes)

Faz-me ter saudades do tempo em que podia falar e cantar, em liberdade, sem máscaras … os açaimes do século 21. (Paula Machado)

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DESENHO

DESENHO VII - Abraço da Liberdade

Dois momentos importantes e opostos da nossa história; o fundo negro que recorda o estado novo, a opressão, a guerra colonial, a ditadura e, outro, de luz que retrata a revolução dos cravos, a paz, a democracia, a liberdade.

(Maria da Luz)

Ser livre é sentir a paz e a harmonia! É olhar o outro nos olhos e poder tocar-lhe! É amar a vida! (Amélia Ribeiro Faria)

A revolução dos cravos trouxe-nos a liberdade e a conquista da democracia.

(Ana Maria Bastos)

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Torres de Babel

Ilustração 1: Não uma, mas muitas as torres buscando o almejado. Se na torre babilónica foi a confusão aqui, no plural, a identidade e abrangência. Liberdade que é de todos. SAL

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Desenho metade toque. A imagem é (aqui) outra coisa

Marques25 Andre.marques.artist@gmail.com 25 Aluno do curso de Artes Plásticas - ramo de pintura. Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.

Ilustração 2 - Sobre desenho e sobre fazer - o fenómeno

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André

Para onde vai toda esta gente? / Talvez morrer no mar...

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Ilustração 3 - Tinta da China, aguarela e guache sobre papel, 59,7 x 40 cm; agosto de 2019

Ilustração 4 - Acrílico sobre papel, 38 X 72 cm; abril /maio de 2016

Agarra-te à luz

Filomena Bento filenabsbento@gmail.com

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Ícaro

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Filomena Bento filenabsbento@gmail.com Ilustração 5 - Guache sobre cartolina preta, 50 X 32 cm; outubro de 2019

A Liberdade

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Mário Rebelo de Sousa mariopato@sapo.pt Ilustração 6 - Tinta da china e pastel sobre papel A2

Desprender amarras

Ilustração 7 – Desprender amarras

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Cartoons de Abril - SAL do Povo

Abril fez-se ABRIL, abriram-se as portas da Liberdade e livre ficou o dizer. Nas suas múltiplas formas, logo começamos a dizer o que nos ia na alma. Foi uma catarse, uma orgia de criatividade, nas palavras, na música, em imagens…

No início de 1978, nasce em Guimarães uma Editorial de que o jornal “O Povo de Guimarães” faz parte.

O Salgado é cooperador e passa a colaborar no jornal com alguns cartoons, coisa inexistente na imprensa local.

Inicialmente alguns trabalhos dispersos, depois, assiduamente. Cria personagens. Primeiro chama o nosso Afonso, depois junta-lhe o Colosso de Pedralva. Começa o Afonso por ser uma versão da estátua de Soares dos Reis, para depois dar lugar a uma imagem em conformidade com a nossa época, o Afonso do Cutileiro.

Todos os cartoons são portadores do espírito da liberdade. São Imagens localizadas em Guimarães, mas, falando de nós, são do país e do mundo.

Dos muitos cartoons, fomos buscar apenas aqueles que, na década de dois mil, diretamente celebram Abril na nossa cidade.

Liberdade e registos, numa crítica sintética condimentada de SAL que agora relembramos.

Seguem as 5 pranchas selecionadas:

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Joaquim António Salgado Almeida jasalgadalmeida@gmail.com
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Imagem 26 – Capa do livro de Vergílio Alberto Vieira

A terra onde nascemos

Fotografia | Rui Sousa D. Afonso Henriques | João Cutileiro

Edição | Crescente Branco 2017 Técnico Gráfico | César Antunes Execução Gráfica | Graficamares Lda. Depósito Legal | 426470/17

A terra onde nascemos

Vergílio Vieira26 vergilioalbertovieira@sapo.pt

Com todas, e nenhuma, se parecem as cidades a que chegámos, pela primeira vez, levados pela emoção, que o fio de ouro da memória trocou pelo enlevo que as contempla.

O homem ignora que todas as cidades são a cidade, e passa adiante, depreciando a luz que as encanta.

Acaso, não são as cidades o que existe em nós de cada uma? Guimarães, por exemplo.

Sem qualquer razão, ninguém seria capaz de se apaixonar pela terra onde, há séculos, nascemos.

Seja qual for o itinerário, que até ela leva o visitante, não há orago que a não proteja de invasor furtivo, que lhe saqueie o nome, ou lhe apoquente a alma.

Por isso, forasteiro, que a visite, jamais levará da cidade o que não é dele, nem disporá de quanto lá ficou: se tanto foi, o muito que não teve; pouco, o tanto que perdeu.

Para quem, vindo de longe, escolheu com tempo o plano da jornada, o castelo, qual sentinela, de atalaia sobre a mais alta colina da cidade, não teme que o conquistem.

Mas o que reza a história desde o tempo em que Hermenegil-

26 Vergílio Alberto Vieira (1950, Amares, Braga) licenciou-se na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, tendo lecionado até 2009. Poeta, ficcionista e autor de livros para a infância, publicou pela primeira vez em 1971, com o título na margem do silêncio. Entre 1975 e 2000, foi crítico literário na revista África, no Jornal de Notícias, no Faro de Vigo e no semanário Expresso. Foi jurado em diversos prémios literários da APE, Pen Clube Português, Correntes d'Escritas, entre outros. Colaborou em inúmeras publicações e é cofundador da revista Delphica - Letras & Artes.

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do e Mumadona mandaram levantar, pelo ano mil, torre e muralha, é o juramento que Vimaranes, segundo seus costumes e primores, nunca quebrou, sempre que o reboto, pelas armas, impunha a lei; e São Redanhas, pela fé, a salvação.

Com o furor guerreiro da Reconquista cresceu o condado; com o condado, o jovem príncipe que D. Henrique e D. Tareja de Portugal, pelo baptismo, haviam confiado a São Miguel, na ermida que se tornou berço do reino, apesar de León desejar que não nascesse.

Eis, pois, porque não se furtou, Camões, quatro séculos mais tarde, à louvação do que incitou Afonso, primeiro Rei de Portugal, a libertar o condado, e a torná-lo reino, contra vontade dos que queriam impedir que, respeitando a memória de seu pai, o conde D. Henrique, ousasse correr risco de em suas terras não ter parte.

Herói por conta própria, não deixou, o bravo rei Conquistador, de sair vitorioso da contenda, assegurando o trono a 24 de Junho de 1128.

Porque assim foi, cumpriu-se a história: de um reino cristão, outro se ergueu, segundo as chronicas – ad gloriam dei, e conforme o oráculo do bispo São Torcato.

Do burgo, a que o signo não retirou o que a consequência do lugar agendaria como herança: primeiro, enquanto reino; depois, como império, e por fim nação, ainda as pedras falam; que, dos celtiberos aos vindouros – os que, de idade a idade, foram notícia da numerosa gente que aqui ficou – com a história se fez história; e, com o povo, lustrosa e honrada companhia.

Lavradas páginas onde, em sonho, ficou o que Portugal na alma tinha escrito.

Pela protecção da estrela que, justamente, inspirou batalhas, e cavalos, seguiu Vimaranes o seu caminho, deixando atrás de si a poalha de oiro que, da colonização romana aos legados suevo, visigótico e arábico; da afirmação dinástica ante Castela; da aventura marítima e das migrações para o Brasil; da resistência às invasões francesas e às lutas liberais, convirá reconhecer que aos ancestrais pertence o que lhes é devido pelos domínios alcançados: próspera vila; meritosa cidade, em 1853, através da carta régia de D. Maria II – pela sua dedicação à cultura das artes e dos trabalhos úteis

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Entre o amanho dos campos e a primeira industrialização, não parou, Guimarães, de a si chamar o interesse da Coroa, e governos, que a foram agraciando, do séc. XVIII à implantação da República, umas vezes por lhe reconhecerem merecimento, outras proveito, com o que o progresso ia exigindo: a rede viária, o caminho-de-ferro (1884), o embelezamento urbano e a iluminação, bem ainda a aquisição de equipamento industrial, nas áreas dos têxteis, curtumes, cutelaria, ourivesaria, entre outras mais.

Inicie-se, o leitor, em O Livro de Cesário Verde, o poeta que, por tão jovem ter partido, morreu sem ver a luz onde o primeiro rei abriu os olhos para o mundo, e lá estão dois versos que a posteridade há-de guardar, para memória futura, do burgo afonsino: de um lado, um retalhinho de horta aglomerada; do outro, a cidade fabril, industrial.

Se à história há que deixar o que é da história e, ao tempo, o que é do tempo, nada melhor que confiar a chave do Castelo a São Miguel, e descer a colina, depois de render preito a Camilo (18251890), e entabular dois dedos de conversa com a estátua do fundador – recomendada aos políticos locais nas Novelas do Minho, nem mais nem menos que no ano de 1870.

Não jurava, o romancista de Ceide, que Guimarães passara a ser opulenta cidade e com ouro em barda?

O certo é que não tardou, a ser levada em conta, a sentida pretensão, quando a autarquia encomendou ao mestre Soares dos Reis (1847-1889) a entronização do monarca, primeiro rei de Portugal, corria o ano de 1887.

Como à época das guerras liberais, cujo invasor, em terras de Guimarães e Amarante, pagou com sangue a flagelação das nossas gentes, e com lágrimas, a devastação do património, pode à primeira vista parecer que o casario continua amotinado, recolhidos os sinos das igrejas, desertas as calçadas para que prevaleçam os sinais e a sentimentalidade de que, sendo outra a terra onde nascemos, nunca deixou de ser a que hoje se conhece. Anos andados, e porque tanto mudaram os tempos e as vontades, convirá pensar que esta terra foi a cidade predilecta de José de Sousa Bandeira (1789-1891), o jornalista, que, embora lisboeta, nela se radicou; e do arqueólogo Francisco Martins Morais Sarmento (1833-1899), que tanto saber legou à cultura do berço como à história do país.

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Bandeira ficará, pois, como o anti-miguelista confesso – redactor do Azemel Vimaranense, jornal fundado, em 1822, e ao qual os ideais da história e a defesa da Carta Constitucional (1822) valeram a prisão, em São Julião da Barra; Martins Sarmento, poeta, e patrono da Sociedade e Museu a que deu nome –exemplo de cidadania, além de eminente homem público.

Ditosos sejam dia e hora em que tão notáveis homens de cultura teriam sido orgulho dos Navarro de Andrade, dos Sampaio e dos Mota Prego de outras eras.

Diferente caso, o de Raul Brandão (1868-1930) que, tendo feito carreira militar, se apaixonou por Guimarães, para da sua gente se tornar amado filho, ao fixar-se em Nespereira para escreviver o que de melhor pode ser lido, ainda, e sempre, na literatura portuguesa.

Com Maria Angelina, na Casa do Alto cumpriu sua jura de amor: esplêndida vida, confessou nos livros de Memórias, passada entre artesãos e camponeses.

Retomando o ensejo de vaguear, com tempo, pelas ruas da cidade antiga, suspenda, o passeante, a regra, e ceda à excepção, dirigindo se ao porto de abrigo, que o Jardim do Toural sempre representou para os de fora, e a partir dali para a exploração da malha urbana, que a memória colectiva elegeu a favor de quem gosta de descobrir o que lhe deu memória.

Com os autos e comédias do lavrante da célebre Custódia de Belém, voltemos a Camilo cuja predilecção por Gil Vicente (1460?1536?) havia de o levar a pedir meças a William Shakespeare, o melhor é o visitante, que se proponha fazer parar o dia por umas horas, seguir a recomendação camiliana, e ir então, da Caldeiroa à Cruz da Pedra, no vale de Creixomil, tirando a limpo, porta a porta, se o burgo de que fala o Homem de Letras, em A Viúva do Enforcado, já gozava foro de cidade.

Seguidamente, e de preferência, embrenhar se no emaranhado de ruelas e jornadear, do Largo do Trovador até ao centro do primeiro parque industrial, pela rua de Couros, ao fundo da qual o rio que lá corre, há muito, cedeu fama à desmemória.

Ao que, por algum momento, achar que se perdeu nada mais recomendável que voltar atrás para ver

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quanto por ver ficou.

Já de regresso ao Toural, onde a luminosidade branca será sempre a que na fotografia de 1905 se propaga, e eterniza, coberta de neve aos olhos de quem vê, saiba, o perguntador, o que quer ouvir, dos taxistas, prontos a comentar, o que se dizia então pelas mesas do Nicolino, antes da Alameda se tornar Da Resistência ao Fascismo, ou no Milenário, onde já não aparece o Moranguinho, entregando em mão, com um sorriso, seu dobrado cartãozinho de visita.

Folheando a história, por lá hão-de andar os esbirros do regime, a espiar os comentários à intenção de Salazar fazer seguir, em força, para as colónias os filhos da nação; porque, com Marcelo Caetano no Governo, a ordem era conspirar, na terra onde, as eleições de 1969 trouxeram a terreiro o grito de revolta, que viria a ser voz da Oposição.

À Arochela, é então hora de almoço; entra-se pelo Largo João Franco – o controverso estadista de finais da Monarquia, a quem o primeiro rei, que nas mãos de Cutileiro se fez estátua, decidiu, como protesto, virar costas – e lá se fica, à mesa ou ao balcão; é que, na adega dos Caquinhos, palavra-vem-palavra-vai, depois de soar a trombeta – ninguém escapa! – mas há quem diga que ali se curte o mais genuíno manjar, cozinhado à minhota em casa de pasto ou taberna antiga.

Vindo da Rua de Santo António ou da D. João I, é melhor não estugar passo, ainda que o afã de outras épocas não embarace o andarim, deixando-o sem saber para onde tomar rumo: se pelo Largo do Pão ou do Leite, hoje da Condessa do Juncal, com passagem pela rua Egas Moniz, dobrando à direita até ao Campo da Feira; se pela rua da Rainha, como quem não quer a coisa, pois, para o Terreiro do Carmo, só se engana quem quer.

É que, à maneira do que acontece em toda a parte, o mercantilismo matou a tradição, encerrando lojas e balcões, deitando taipais nas livrarias, desfigurando fachadas e varandas, que o mesmo é dizer: calar cafés, tabacarias e bazares, e consumir ruas com vida nas praças das cidades.

Quando se pergunta aonde fica a Travessa do Anjo, ninguém responde; do Milionário, segundo o veredicto dos mais velhos, que Milenário não era para gente de poucas letras.

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É hora de tomar café, no abrasivo botequim, por cujas mesas ainda cheira a café de saco, e ali segura a Torre onde se lê que Portugal ali nasceu. E a rua da Tulha – onde é, onde é? – perguntará quem chega. E só o morador poderá então lembrar como sumiram as placas: o mais prático é indagar, lá para a rua Gil Vicente, que foi onde Brandão, ao tempo oficial do quadro dos velhos quartéis de Guimarães, deteve o preso que se escapara da Cadeia Velha, à época instalada no largo a que a vereação, por indulgência camarária, rebaptizou já com o nome de terreiro – da Misericórdia, desta vez.

Não sei porquê, ninguém duvida que, anos depois, o jovem alferes teria feito vista grossa, e o condenado, fugido às algemas.

À Senhora da Oliveira, histórica praça em que se ergue o monumento à Batalha do Salado (que Afonso IV, sétimo rei de Portugal, ajudou a vencer contra a mourama no sul da Península), não ficará indiferente, o visitante, podendo ser altura para entrar n’A Medieval e tomar um chá de tília, um bem tirado café, ou sumo de laranja, servidos à maneira com uma clarinha, ou uma cestinha de doce regional, que a afamada torta e o toucinho-do-céu, de morrer e chorar por mais, só merecem honras de almoço.

Olhando à volta, não faltaria espaço para erguer não, pois, um mausoléu que isso pouco agradaria ao condoído autor de O Pobre de Pedir – trasladado, em tempos, de Lisboa para o cemitério da Atouguia – mas uma simples estela funerária, como seria vontade de Maria Angelina, a amada companheira de uma vida, aquela a quem, um dia, como disse: se uniu pelo silêncio.

Sem ser preciso procurar o que, da praça, vale a pena descobrir, eis franqueado o pórtico por onde logo a vista alcança o claustro do Museu que, de Alberto Sampaio (1841-1908), o douto historiador, de resto guarda o nome, e de Guimarães, os valiosos tesouros, doados à Senhora da Oliveira, por reis e romeiros de outras terras.

Ao lado, suportando os arcos baixos da veneranda Domus Municipalis, abre-se a céu aberto um dos mais procurados recantos da cidade, a Praça de São Tiago, fechada a poente, pelas ruas Escura, dos Fornos e Lamelas; e, a nascente, pela rua de que se fica enamorado à primeira vista, a rua de Santa Maria, onde

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veio a perder-se o eco dos últimos pregões, com que a vendeira espantava de alegria, ruela e calçadas a caminho do Convento de Santa Clara, sede do município.

Fora de mão, contudo, hão-de ficar os lugares que no coração de Guimarães, como a Molarinho, o gravador, calaram fundo nas veias dos artesãos.

Sem pressa nem destino, meta, o andante pela Trav. do Picoto que, para quem desce da pequenina capela da Senhora dos Aflitos, logo desembocará na rua de Francisco Agra, junto à Sociedade de Cultura e Recreio em cuja casa viveu, enquanto vimaranense ilustre; a Casa das Rótulas, à rua Val das Donas, emudecida como sentenciado ouvido em confissão; e, atravessando a Alameda em direcção a São Gualter, a Ilha do Sabão, sumido terreirinho de vetustas casas de varandins floridos, e donde, a certa hora da noite, se escuta perto o gorgolejar do rio; a rua de Camões, atribulada como a vida do poeta, com entrada pela travessa que, atrás da estátua de Abel Salazar (1889-1946), se escusa, então, a ser visitada, mas ainda assim pronta a levar o intrometido até meio da rua, onde foi edificada a bela ermidinha de São Sebastião, padroeiro da freguesia, onde nasceu o padre António José Ferreira Caldas (1843-1884), insígne orador que, em 1872, fundou, da Senhora da Penha, a venerável irmandade.

Guimarães é a cidade.

Guarda, entre muros, aquela ilusão que só a história tributa a cada nobre cidade: tornada sonho na luz do pintor Auguste Roquemont (1804-1849), que de amorosas cores, a encenou, trocando-a pela sua Genebra natal; dotada de alma por Silva Cardoso (1831-1893), que a retratou; popularizada por mestre Caçoila que, em primeiras de mão, assinou telas em que tantos rostos por outros se trocaram.

Pudesse voltar atrás o tempo, não faltaria ensejo para reconhecer quão compensado foi o sonho do eng. Manuel d’Almeida Ribeiro, quando se propôs dar vida à planta urbana que, um dia, elaborou do centro histórico da antiga urbe onde tantas cousas juntas se acharam raramente.

Apesar de extintos, os conventos e casas religiosas, que a Fazenda Nacional passou a incorporar, por ordem da Coroa, reinava então D. Maria II, de longe continuará a ouvir-se a secular toada de sinos dos con-

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ventos do Carmo e dos Capuchos sobreposta ao estrondo das demolições, levadas a cabo pelos construtores do alargamento que, a partir do início do séc. XIX, um pouco por toda a Vila, de Guimarães termo e comarca, conforme decisão da Junta do Comércio.

E já ninguém se recorda dos que viram alçar os pavilhões das fábricas de curtumes, cutelarias e moagens, chapéus e atoalhados, dos algodões e sedas, do papel – fontes de desenvolvimento que fariam do concelho um dos mais populosos do país e, das suas gentes, operários marcados pela morte de tantas vidas severinas, que a força do trabalho, lhes foi gravando no sangue até à morte.

Hoje, porém, ao fim da tarde, é dia de Liga Europa, todas as ruas da cidade irão ter ao estádio do Primeiro Rei, erguido, há um bom par de anos, bem perto do pelado da Amorosa.

Sagrado solo para o que der, porque até vale perder, se o Vitória cair de pé, onde um golo pode levar às lágrimas, e decidir finais, assim o queira São Jorge, como juram por estes dois os que, desde criança, vão à bola.

Fechado o livro de honra, aproveite o amável flâneur para subir à Penha, no último teleférico; do Mosteiro de Santa Marinha da Costa aos pináculos do Paço Ducal, já o pôr-do-sol faz lembrar a talha de altar.

Hoje, porém, é quinta-feira; há jogo da Liga no Estádio do Rei.

Vista do céu, e enquanto se esquece a altura sobre vasto casario da cidade, estar em Guimarães é ser filho da terra, é escutar a voz de pedra que nos faz sentir que lá nascemos, e daqui somos, pois só nesta terra parece que não se é de parte alguma.

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A Política e a Democracia Cultural

A partir dos anos 90 a cultura, no sentido de prática cultural no campo das artes performativas, assumiu em Guimarães um papel com crescente relevância.

Paulatinamente foram acontecendo atividades diversas, promovidas pela Câmara Municipal de Guimarães e por diversas associações do concelho. É no final da década de 80, princípio da década de 90 que têm início, de forma sustentada, atividades que perduram até hoje (Festivais Gil Vicente – com reinício em 1987 -; Guimarães Jazz-1992) ou que tiveram grande importância no contexto cultural e associativo (Encontros da Primavera - 1990). Estas iniciativas permitiram o desenvolvimento de um conjunto de atividades de natureza artística, funcionando como suporte de credibilidade para uma programação tão regular e diversificada quanto possível.

Os constrangimentos a esta atividade eram enormes, mas a dificuldade transformou-se em oportunidade. A inexistência de um espaço de programação, com as condições técnicas mínimas, fez com que a cidade se transformasse no espaço de programação (O Paço dos Duques de Bragança, o Castelo de Guimarães, as praças do Centro Histórico, as inúmeras e belíssimas igrejas, os cantos de cada recanto, tornaramse espaços cénicos).

Com a recuperação do Centro Histórico, que levou a UNESCO (em 2001) a inscrevê-lo na lista do Património Cultural da Humanidade, tornou-se necessário e premente potenciar a sua vivência. Assim nasceu o Verão Vale a Pena em Guimarães que consistia num ritmo frenético de programação e que rapidamente conquistou e alargou públicos. Conquistou desde logo o público residente que assistia “de camarote” aos espetáculos (em determinada altura do ano eram diários), conquistou o público que passou a frequentar o espaço e conquistou o público que estava ansioso por fruir música, teatro e dança.

Como tudo na vida, este ciclo de frenesim teve que inverter tendências, o espaço estava definitivamente conquistado na fruição cívica e sem riscos de retorno e os “donos dos camarotes” começavam a acusar cansaço.

Fruto de uma parceria da Câmara Municipal de Guimarães com a Universidade do Minho passou a existir, desde 1994, um espaço com condições razoáveis para a realização de programação artística. Finalmente existia em Guimarães um espaço para que permitia regularidade e coerência sem condicionalismos

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meteorológicos. Assim nasceu o Festival de Inverno (janeiro a março), primeira prática programática consistente e regular que permitiu iniciar hábitos de frequência sem interrupções temporais e saindo da trilogia Maio (Encontros da Primavera), junho (Festivais Gil Vicente) e novembro (Guimarães Jazz), isto para além da continuidade da programação em espaços não convencionais.

Passou a existir uma prática miscelânica na programação. Passou a ser possível acolher projetos que até então não passavam de utopia. Passou a ser possível fidelizar públicos que passaram a deslocar-se aos espaços de apresentação, passou a ser possível cobrar entradas nos espetáculos. Tudo isto poderia ter acontecido de outra forma, poderiam ter sido feitas outras opções, mas a opção política foi a de definir a cultura como vector estratégico de desenvolvimento, crucial para o tão importante reforço da postura qualitativa e competitiva dos cidadãos e da cidade.

A política cultural foi estruturalmente concebida de forma a reforçar e manter uma oferta qualificada e que ao mesmo tempo fosse capaz de atrair, formar e satisfazer diferentes segmentos da procura.

A autarquia teve como objetivo assegurar a preservação do património arquitectónico, cultural e histórico, infraestruturas e equipamentos, assim como apoiar e incentivar as instituições e coletividades produtoras e promotoras de atividades na área da cultura. Desta forma pretendeu não só salvaguardar e divulgar as diferentes práticas culturais tradicionais, mas também dinamizar e potenciar o aparecimento de atividades e eventos com caráter inovador.

No que concerne às práticas culturais da população o grande objetivo foi a formação e a atracão de diferentes segmentos de público, onde se incluía, por um lado, a população residente, destacando-se destes os mais jovens e, por outro, os turistas e visitantes.

Atendendo à política traçada, os principais eixos estratégicos de intervenção tiveram por finalidade dar respostas aos desafios contemporâneos e às aspirações dos cidadãos, contribuindo para o desenvolvimento, valorização, afirmação e promoção da cidade.

Diversificar a oferta cultural de acordo com as exigências de um público com novos padrões de consumo cultural, de forma a qualificar Guimarães como espaço de cultura e lazer de qualidade foi um objetivo claro da política cultural da cidade. A promoção da imagem do concelho passou, por isso, pela aposta forte em eventos culturais de vanguarda e de qualidade, de que o Guimarães Jazz é o exemplo mais consolidado no calendário cultural de Guimarães.

A formação foi, desde muito cedo, uma presença assídua no panorama da programação cultural. Os Cursos Internacionais de Música, as Oficinas de Jazz, a Semana da Dança, a ODIT – Oficina Dramatúrgica de Interpretação Teatral (que mais tarde deu origem ao Teatro Oficina), os ateliers, os colóquios, os debates,

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foram instituindo uma forma diferente de participar, foram fazendo com que o conceito de posse, de apropriação, estivesse cada vez mais presente.

O projeto cultural de Guimarães não era de ninguém, era de muitos.

O projeto ODIT teve uma aceitação que ultrapassou em muito qualquer expectativa otimista (foram mais de 600 inscrições).

Esta enorme procura de formação descomprometida, de formação pelo prazer de experimentar, pelo prazer de conhecer, teve a resposta mais difícil - aceitar todas as inscrições, promover a experiência e ganhar tempo para repensar o projeto.

Aquilo que seria um projeto de teatro transformou-se num projeto que respondia aos desafios propostos. Fez-se de tudo: teatro, dança, movimento, fotografia, vídeo, cenografia, figurinos, desenho de som, desenho de luz, etc., etc., etc.

Todas estas dinâmicas levavam, de forma crescente, à constatação clara da inexistência de espaços para resposta às necessidades. A Oficina (cooperativa cultural) foi crescendo, foi conquistando espaços no Palácio Vila Flor. De sala em sala ficou com praticamente todo o espaço, foi adaptando, inventando, recriando, dando novas funcionalidades, novas utilizações.

Mas a dinâmica continuava sem ser correspondida com condições físicas. A Oficina adquiriu um armazém com cerca de 700m2 e, sem capacidade para realizar de imediato as obras de beneficiação, utilizou-o assim mesmo, inventando soluções. Só em 2004 as obras ficaram concluídas e o espaço passou a funcionar como local de residência do Teatro Oficina e como mais um local de apresentação de espetáculos.

Nessa altura já se vislumbrava no horizonte o sonho de muitos anos – a construção do Centro Cultural Vila Flor – após arrojada decisão do então Presidente da Câmara (António Magalhães) que reagiu ao rasgar de contrato de financiamento, por parte do estado, com a decisão de avançar sozinho para um projeto de grande dimensão que 18 meses e cerca de 15 milhões de euros depois foi inaugurado (a 17 de setembro de 2005).

Entretanto, em finais de 2003, a Câmara Municipal de Guimarães assina um protocolo de colaboração com a Oficina transferindo para esta a responsabilidade de programar os principais eventos culturais, que até então assumia por si própria e em parceria com diversas associações mantendo, no entanto, os parceiros originais de cada projeto.

Durante quase dois anos, a Oficina assumiu responsabilidades de programação artística em Guimarães, seguindo a estratégia delineada e com o objetivo claro de iniciar um trabalho que pudesse ser capitalizado por quem viesse a gerir o Centro Cultural Vila Flor.

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Estes dois anos foram determinantes para que a Câmara Municipal de Guimarães decidisse que seria a própria Oficina a capitalizar o trabalho desenvolvido e entregou-lhe o desafio de gerir o CCVF.

O capital adquirido foi determinante para a Oficina ter a capacidade de aceitar o desafio, reestruturando-se e assumindo a abertura e funcionamento do espaço sem constrangimentos de maior e numa lógica de continuidade e crescimento.

O Centro Cultural Vila Flor passa a ser uma realidade pela força de um trabalho de muitos durante muitos anos, resulta de uma inevitabilidade latente, de uma asfixia existente e de uma falta de soluções para que o projeto cultural de Guimarães pudesse crescer. A vontade, a exigência, a necessidade de crescer pressionavam demasiado a camisa de forças que aprisionava o projeto.

O Ministério da Cultura apoiava financeiramente o primeiro ano de funcionamento dos espaços que tivessem sido comparticipados pelo estado para a construção.

Como a construção do CCVF não teve qualquer financiamento do estado também não foi possível aceder ao financiamento para o arranque do seu funcionamento.

No entanto, a visão de quem decidiu construir o espaço foi suficientemente ampla para perceber que um espaço com as características do CCVF e com a missão que lhe foi atribuída apenas poderia funcionar com um investimento claro e significativo. Foi assim que aconteceu e acontece.

Mais de 15 anos depois da abertura do Centro Cultural Vila Flor, e extravasando o estafado esgrimir de números que, sendo importantes, não podem qualificar ou desqualificar só por si o alcance do trabalho desenvolvido, parece-me consensual que a abertura do CCVF foi um ponto de viragem fundamental para Guimarães na sua dimensão cultural.

Outro ponto de viragem fundamental foi, naturalmente, a Capital Europeia da Cultura em 2012. Como quase nada acontece por acaso, sem a existência do Centro Cultural Vila Flor e do trabalho por si e à sua volta desenvolvidos, dificilmente Guimarães teria tido a possibilidade de ambicionar ser Capital Europeia da Cultura.

Tenho dado particular ênfase à programação cultural, às artes performativas, pela proximidade que tive e tenho neste âmbito, mas não é possível deixar de referir outras iniciativas de grande importância para a consolidação do projeto cultural de Guimarães. A Biblioteca Municipal Raúl Brandão, o Arquivo Alfredo Pimenta, o Museu de Alberto Sampaio, a Sociedade Martins Sarmento, as diversas Associações Culturais, todos tiveram e têm um importante papel na construção daquilo que é hoje um projeto cultural abrangente e assumido por muitos como crucial para o desenvolvimento próximo e longínquo.

Deixando a história de lado, passaria a uma reflexão sobre a necessária sustentação de um projeto

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cultural.

Falar sobre sustentação cultural abre um conjunto de caminhos imensamente sinuosos e plenos de encruzilhadas.

Divagar sobre a cultura é um exercício que procurarei fazer, sem pretensiosismo nem certezas inabaláveis, mas com convicções que a realidade quotidiana se encarrega de questionar repetidamente.

Desde logo, surge o questionamento basilar acerca do que é a cultura; acerca do que se fala quando se fala de cultura; acerca da comunicação que se estabelece entre emissor e receptor quando a palavra soa. Cultura significa exatamente o quê? Aquilo que está imanente nos conceitos de quem diz? Ou aquilo que significa em função dos códigos de quem ouve?

No meio da encruzilhada avanço em várias direções e volto sempre atrás em busca do caminho inexistente da totalidade.

Na perspetiva humanística da definição de cultura, e na utopia da universalidade da erudição globalizada, a cultura aparece como uma característica inerente a cada indivíduo e perfeitamente diferenciada de outro. Isto porque a cultura, neste sentido, resulta de um vasto conjunto de conhecimentos assimilados, independentemente da sua natureza temática, permitindo afirmar que dois indivíduos de elevada erudição pouco têm em comum no que concerne à sua cultura.

Nesta medida, apesar de reducionista, a cultura não poderá nunca ser uma característica intrínseca de um povo, de uma região ou de uma vivência. No limite haveria tantas culturas como indivíduos e a palavra cultura, enquanto elemento de significação objetiva deixaria de ter sentido.

Cada vez mais, aquilo que diferencia e que assume um registo de marca indelével de uma cultura terá tendência para se esbater em consequência da normalização a que todos são conduzidos na busca de uma aceitação individual e coletiva; na busca dos modelos que as culturas mais fortes impõem como referenciais e indiscutíveis e funcionando como castradores da manutenção das culturas e castradores do aparecimento de novas culturas. Em suma, poderá correr-se o risco da existência globalizada de uma aculturação, imposta pelas culturas dominantes que apagam as características intrínsecas doutras culturas que consideram fora dos cânones que estabeleceram para si próprios.

Posto isto, questiono-me acerca do que será feito da cultura como conjunto de características que permitam agrupar um conjunto alargado de indivíduos em função do que de comum possuem como prática vivencial em resultado dos hábitos e práticas adquiridas ao longo dos tempos.

Porventura passaremos a ter uma cultura universalista e sem características suficientemente fortes e marcantes para que se possam diferenciar.

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Ultrapassado este exercício especulativo, e considerando que a sustentação cultural de um projeto cultural se mede pela sua capacidade em contribuir para o crescimento do indivíduo nas várias dimensões da sua vivência, urge falar dos princípios que darão sustentabilidade a um qualquer projeto cultural.

No âmbito da programação artística e na sua relação com os públicos, é comum a utilização de frases feitas e a atribuição de epítetos donde se destaca o “elitismo”.

Importa referir que um espaço de programação artística, quando utiliza dinheiro público, tem responsabilidades acrescidas no papel que desempenha e deve resistir à tentação fácil da programação populista orientada para números, para estatísticas e sem nenhuma preocupação com o objetivo primeiro de qualquer programação – ser mediador entre a arte e os públicos.

Esta abordagem programática será facilmente acusada de elitista, elitismo que não rejeito e que pelo contrário desejo, apropriando-me do sentido das palavras de George Steiner:

“É essencial ser elitista – mas no sentido original da palavra: assumir responsabilidade pelo «melhor» do espírito humano. Uma elite cultural deve ter responsabilidade pelo conhecimento e preservação das ideias e dos valores mais importantes, pelos clássicos, pelo significado das palavras, pela nobreza do nosso espírito. Ser elitista, como explicou Goethe, significa ser respeitador: respeitador do divino, da natureza, dos nossos congéneres seres humanos, e, assim, da nossa própria dignidade humana.”27

A sustentação do projeto cultural persegue-se através do objetivo traçado para a prossecução de uma missão, procura-se a sustentação cultural pela presença da convicção do trabalho desenvolvido no campo da programação e da criação artística.

Procurar sustentabilidade significa disponibilizar propostas artísticas de forma regular e com abrangência de área e género. Sustentabilidade significa que o programador está munido de convicções e de conhecimentos para executar a tarefa em apreço, significa que o programador é um mediador entre o objeto artístico e os públicos, significa que o programador está ao serviço da mediação e não se serve dela para outros fins que não o de tentar utilizar os recursos disponíveis para aproximar e colocar em diálogo o sujeito (públicos) e o objeto. A adequação da programação, em função do conhecimento e interpretação do território, potencia a sustentação do projeto, consolidando relações e favorecendo a apropriação. Sustentação programática é dar primazia ao objeto artístico, em detrimento de lógicas meramente economicistas ou numéricas. Sustentação é propiciar uma proximidade relacional entre o público e a arte. Sustentação é formação; é criação, é diálogo, é divergência; é convergência; é ter opinião; é fazer opinião; é ouvir; é não hesitar; é avançar humildemente; é recuar orgulhosamente; é gerir tensões; é ousar.

27 Steiner, G. (2006). A Ideia da Europa. Lisboa: Gradiva.

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Sustentação é elevação.

Sustentação é tudo isto e muito mais, desde que utilizado como veículo e como forma de veicular a aproximação do público às artes e à cultura no seu conceito mais humanista – ao serviço do homem.

Sustentação é, ainda, dar condições para que todos possam ter acesso a um exercício de cidadania pleno e é neste pressuposto de exercício de cidadania que o projeto cultural se deve apoiar.

“A cidadania que não cria, que não se expressa em produtos e serviços culturais de qualidade tem uma alma cidadã anémica. É uma cidade colonizada, sem diálogo relacional com outras cidades.”(Puig, 2004)

Para que se possa falar em projeto cultural é necessário assumir que o mais importante, no processo de gestão cultural, são os cidadãos. É fundamental assumir que uma cidadania coesa e plena só é possível se sustentada na cultura.

A cultura é o resultado da resolução dos problemas do homem ao longo da história. Cultura é criação; cultura é inovação; cultura é a busca incessante de novos paradigmas. O homem não só recebe a cultura dos seus antepassados como também cria elementos que a renovam. Cultura é um fator de humanização. Cultura é fusão de horizontes.

Na linha de pensamento de Toni Puig28, é fundamental que haja a consciencialização de que a cultura não é espetáculo, a cultura não é diversão tonta, não é homogeneizada, insípida e vazia.

É necessário, por isso, distinguir cultura de diversão e cultura de qualidade de vida; é necessário distinguir cultura de sentido e espetáculo de diversão.

Coloca-se aqui em prática o princípio da democracia cultural, o princípio de uma cidade com uma gestão cultural relacional que recusa a visão redutora da atividade cultural enquanto dicotomia artista/consumidor, assumindo, pelo contrário, o princípio de que todo o indivíduo pode ser também agente ativo no processo de criação artística. Nesta conceção, a atividade cultural não é entendida como atribuição das instituições públicas, mas sim como espaço de liberdade, de participação democrática e de imaginação dos indivíduos.

É nesta perspetiva que se geram novas possibilidades de encontro e interação entre os diferentes agentes privados e associativos do tecido cultural da cidade, ao serviço do reforço da capacidade criativa local, do crescimento da participação cívica e da formação de um público envolvido e conhecedor.

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Puig, T. (2004). Vamos Gerir a Cultura da Cidade com os Cidadãos. In J. Trilla, Animação Sócio Cultural.Teorias Programas e âmbitos (pp. 301-316). Lisboa: Instituto Piaget.

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A cidadania cultural assume-se, por isso, como parte de toda a ação cultural de cidade numa dupla perspetiva: por um lado, porque os agentes culturais da cidade são, e devem ser, os parceiros prioritários das organizações; por outro, pela integração no projeto cultural de cidade do trabalho desenvolvido e implementado pelas organizações da cidade, garantindo a efetiva participação no projeto daqueles que diariamente vivem e trabalham a cultura local.

A cidade, no seu conceito mais amplo, não pode ser apenas consumidora de cultura importada, deve ser uma cidade criadora de cultura, criadora de sentido. Criadora e exportadora.

Mas como ter uma cidadania criadora se a formatação do ensino nas escolas coarta a notável capacidade criativa das crianças?

Os serviços educativos devem perseguir o objetivo de potenciar o espaço para a criatividade, o espaço para o crescimento diferenciado e as artes são um contributo fundamental para tal.

As crianças conseguem, simultaneamente, viver num mundo real sem deixarem de ter a sua existência vivencial num mundo imaginário, sem formatações prévias e com uma enorme liberdade de pensamento criativo, porque não sujeito às normalizações que os adultos ainda não conseguiram, vitoriosamente, introduzir.

A necessidade da comparação com os outros, a necessidade da perfeição, a definição de um padrão apresentado como normal, leva aquilo que a sociologia define como institucionalização resultante da habituação, resultante da socialização primária.

Assim, desde muito cedo, a escola e as famílias procuram formatar as crianças, retirando-lhes espaço para a criatividade, certos que essa é a melhor forma de garantir o seu desenvolvimento mais adequado e esquecendo-se que, dessa forma, estão a restringir o crescimento de cada um ao seu ritmo e de acordo com liberdade criativa que existe, em potência, nas crianças.

Piaget dizia:

“O essencial é que, para que uma criança entenda, deve construir ela mesma, deve reinventar. Cada vez que ensinamos algo a uma criança estamos a impedir que ela descubra por si mesma. Por outro lado, aquilo que permitimos que descubra por si mesma, permanecerá com ela”29 .

Carlos Drummond de Andrade, num artigo publicado no Jornal do Brasil em 1974, já abordava a questão da criatividade como elemento essencial para o desenvolvimento equilibrado:

“Por que motivo as crianças, de modo geral, são poetas e, com o tempo, deixam de sê-lo? Será a poesia um estado de infância relacionada com a necessidade de jogo, a ausência de conhecimento livresco, a

29 Piaget, J. (1998). A Psicologia da Criança. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

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despreocupação com os mandamentos práticos de viver – estado de pureza da mente, em suma?

Acho que é um pouco de tudo isso, se ela encontra expressão cândida na meninice, pode expandir-se pelo tempo afora, conciliada com a experiência, o senso crítico, a consciência estética dos que compõem ou absorvem poesia.

Mas, se o adulto, na maioria dos casos, perde essa comunhão com a poesia, não estará na escola, mais do que em qualquer outra instituição social, o elemento corrosivo do instinto poético da infância, que vai fenecendo, à proporção que o estudo sistemático se desenvolve, até desaparecer no homem feito e preparado supostamente para a vida?

...

Se há inflação de poetas significantes, faltam amadores de poesia – e amar a poesia é forma de praticá-la, recriando-a. O que eu pediria à escola, se não me faltassem luzes pedagógicas, era considerar a poesia como primeira visão directa das coisas e, depois, como veículo de informação prática e teórica, preservando em cada aluno o fundo mágico, lúdico, intuitivo e criativo, que se identifica basicamente com a sensibilidade poética.

...

E a arte, como a educação e tudo o mais, que fim mais alto pode ter em mira senão este, de contribuir para a educação do ser humano à vida, o que, numa palavra, se chama felicidade?”30

Esta questão mantém hoje uma grande atualidade, atendendo ao facto de a escola continuar a não responder a uma necessidade primordial das crianças e que os Teatros, Centros Culturais, Fundações e outras estruturas ligadas às artes estão, felizmente, cada vez mais a assegurar.

Importa referir que toda a sustentação, de qualquer projeto cultural, apenas pode acontecer se cimentada numa visão política e estratégica de quem tem o poder decisório. Só um poder sustentadamente estratégico e convictamente esclarecido consegue dar condições para que se cumpra o serviço público, sem interferências casuísticas a propósito deste ou daquele interesse, com uma cumplicidade partilhada no que concerne a duas questões essenciais: o conhecimento do ponto de partida e a partilha do objetivo de chegada.

Nota: Este artigo é uma versão revista do originalmente publicado em novembro de 2010 no livro “O Estado do Teatro em Portugal” dos autores José Dantas Lima, Marcelino de Sousa Lopes e Roberto Pascual Rodriguez.

30 Andrade, C. D. (1974). A educação do ser poético. Jornal do Brasil.

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Com este artigo presto ainda uma singela homenagem a Francisca Abreu que teve um papel primordial na sustentação do projeto cultural de Guimarães.

Bibliografia:

Andrade, C. D. (1974). A educação do ser poético. Jornal do Brasil.

Piaget, J. (1998). A Psicologia da Criança. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

Puig, T. (2004). Vamos Gerir a Cultura da Cidade com os Cidadãos. In J. Trilla, Animação Sócio Cultural. Teorias Programas e âmbitos (pp. 301-316). Lisboa: Instituto Piaget.

Steiner, G. (2006). A Ideia da Europa. Lisboa: Gradiva.

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Canto de Mulheres

- Vozes dos campos vão ser património da humanidade

Armindo R. da Costa Ferreira ribeirodacosta1953@gmail.com

Conhecido, país abaixo, sob designações diversas (cantedos, cantadas, cantigas, cantarolas, ternos, modas, cramois…), o “canto a vozes”, ou “canto de mulheres” é um património musical polifónico com origem na sociedade agrária tradicional, interpretado “a capela” a duas, três ou mais vozes, predominantemente modais, em terceiras, quintas e, por vezes, em oitavas paralelas. Cultura musical da antiga ruralidade, correu o risco (muito sério) de se perder – e nem toda constava dos registos etnomusicais que, nos anos 1960, Michel Giacometti e Lopes-Graça nos deixaram, visualizados pela lente de Alfredo Tropa; salvou-se (fora dos campos, onde progressivamente deixou de se ouvir) porque pequenos grupos (a partir de Manhouce e do trabalho notável da Isabel Silvestre) , um pouco por todo o país (mormente no norte e no centro), se empenharam na salvaguarda desses cantares e, entretanto, na sua promoção e divulgação – a ponto de serem, hoje (números de há um ano), 56 os grupos que integram a “Associação de Canto a Vozes – Fala de Mulheres”, que em 1 de março de 2020, em Viana do Castelo, elegeu órgãos sociais, que, em coordenação com o Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro, se propõem inscrever esta singular expressão musical no Inventário Nacional (à guarda da Direção-Geral do Património Cultural) em ordem à apresentação da candidatura para reconhecimento como Património (Cultural Imaterial) da Humanidade. Antevendo-se que a caminhada seja longa (desde logo, cá entre nós, - imagine-se… - por falta de recursos humanos: há uma só pessoa a tratar das candidaturas nacionais – e são mais de 30 as que aguardam inscrição), ainda assim vale bem a pena aguardar, antevendo o retorno que, em termos promocionais, a classificação destes cantares trará às comunidades de origem. (Veja-se o efeito que teve, designadamente na procura turística, o reconhecimento pela UNESCO de expressões patrimoniais tão singulares como o Cante Alentejano ou os Caretos de Podence…)

A NORTE, PARTICULARMENTE NO MINHO…

Tempos houve em que era frequente (e terras há, particularmente no Minho, onde ainda acontece) ver-se grupos de mulheres, à noite, ao longo de toda a Quaresma, cantarem às almas do Purgatório: eram as “encomendações” ou “amentações” das almas, ou “botar às almas”, entoadas junto dos nichos das “Al-

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minhas” que povoam os nossos territórios, sobretudo em meio rural.

Mas, como disse, era sobretudo nos campos (nas sachas, nas mondas, nas ceifas, nas arrancadas do linho…) que, quando uma voz se soltava em uníssono, ou a solo, outras vozes, com entradas sucessivas, iam formando patamares, aos quais se juntavam outras vozes, mais agudas ou mais graves, que se prolongavam em suspensão até ao final…

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Imagem 28 - Cantares de Rates Imagem 28 - Canto das Mulheres de Rates
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Imagem 29 - Cancioneiro Tradicional de Rates

Alguns dos grupos que, hoje, preservam e promovem essas memórias são, como é natural, nortenhos e, particularmente, minhotos: as Cantadeiras do Rancho Folclórico de Vilarinho das Quartas (do Soajo, Arcos de Valdevez), as Cantadeiras de S. Martinho de Crasto (Ponte da Barca), o Grupo de Cantares de Mulheres do Minho (Braga), as Cantadeiras do Vale do Neiva (Viana do Castelo), as Cantadeiras do Rancho Os Ceifeiros de Cantelães (Vieira do Minho), o Grupo Etnográfico Rusga de Joane (Famalicão), o Grupo Associativo de Divulgação Tradicional de Forjães (Esposende), o Grupo das Cantadeiras do Linho (de Rates, Póvoa de Varzim) – e vários outros, com natural realce para os sediados em meio universitário: as Cantadeiras do Núcleo de Etnografia e Folclore da Universidade do Porto, os Cantares de Maçadeiras do Orfeão da Universidade do Porto, o Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra… E o Grupo Folclórico da Universidade do Minho (que também integra este movimento de estudo, salvaguarda, promoção e divulgação do canto de matriz rural) tem realizado, em Braga, concertos com as polifonias femininas da região. Aliás, o etnógrafo Gonçalo Sampaio, a quem devemos preciosa recolha do cancioneiro minhoto, já em 1931 chamava a atenção para a existência, na região, de cantos que “pertencem exclusivamente às mulheres” – era o caso do Coro das Maçadeiras (do linho) que, segundo Sampaio, era “um canto próprio, um coro de trabalho, naturalmente para regular a cadência do seu esforço”.

Pioneiro neste movimento reabilitador foi o grupo “Vozes de Manhouce”, criado por Isabel Silvestre –e razão maior por que foi o município de S. Pedro do Sul quem tomou a iniciativa de propor à Universidade de Aveiro a direção científica do processo que há-de levar ao reconhecimento das “Vozes de Mulher” como Património da Humanidade.

… E EM GUIMARÃES?

E Guimarães (tenho bem presente que estou a escrever para uma revista de melómanos desta cidade…) não fez recolha destes cantares, ou não tem quem os promova e divulgue? Estranhei, de facto, não encontrar, entre os 56 grupos associados neste projeto, nenhum deste concelho tão rico de tradições de génese popular. Foi-me dito que em Tabuadelo há um pequeno grupo, que costuma apresentar-se integrado ou no Grupo Folclórico da Universidade do Minho ou na Rusga de Joane, não se apresentando, portanto, autonomamente. Que tal apoiar este grupo, ou constituir outro, para um trabalho mais vasto e profundo de investigação e recolha? Pelo que se vê, conhecimento e gosto (as queirosianas “basezinhas” destes projetos) abundam por estas bandas – andarão, porventura, ocupados com projetos musicais (só aparentemente) mais interessantes e motivadores.

Muitos dos nossos bens culturais imateriais são interpretados como símbolos ou resquícios de um passado (de matriz rural) que, em nome do “progresso”, urge esquecer. Nada de mais errado! Esse patri-

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mónio, muito frágil, tem um valor simbólico e identitário que, devidamente potenciado, pode “inscrever” a localidade ou região na rota do (crescentemente importante) turismo cultural. E Portugal, que a Guimarães deve a circunstância de ser o mais antigo estado-nação da Europa, tem (ou pode, e deve, ter) nestes domínios um filão turístico-cultural singular. Talvez nenhum outro povo, nesta velha Europa, tenha, a este nível, mais património do que nós. É também por isso (porque os estrangeiros nos vão descobrindo estas singularidades) que o nosso turismo tem crescido mais que qualquer outro setor económico. E a margem de crescimento é ainda muito grande! Temos é de a valorizar – e não estragar!

O signatário, que há anos escreveu para a RTP o guião de um documentário (“O Artesanato do Linho”) com que a estação pública de televisão venceu um prémio internacional, e que antes construíra (para as secretarias de Estado da Cultura e da Juventude) uma exposição sobre o mesmo tema – que durante anos itinerou por museus e escolas de todo o país -, foi contactado, em 1988, pelo etnomusicólogo Michel Giacometti, a quem proporcionou a audição, ao vivo, dos velhos cantares polifónicos femininos com quem as mulheres de S. Pedro de Rates (a minha terra natal) espantavam a dureza dos trabalhos do campo e de algumas lides caseiras complementares. Giacometti ouviu e gravou, entusiasmado. E, dias depois (em 24 de Setembro de 1988), enviou, manuscrita, uma carta em que afirma ter encontrado em Rates “um autêntico tesouro”, que “representa de longe o que de melhor consegui recolher nas três semanas de investigação no Entre Douro e Minho”, pelo que – diz, a finalizar – “seria importante que pudesse voltar com mais tempo para aprofundar o trabalho”. Infelizmente, como é sabido, não voltou, porque, pouco depois, desapareceu do nosso convívio. Mas ficou este testemunho, cientificamente seguro, a comprovar o interesse cultural daqueles cantares, que os nossos dias registam como “do linho” (alguns eram, de facto), mas que eram entoados também noutras lides campesinas.

Em 2001, esses cantares foram editados (com a chancela “Sons da Terra- Centro de Música Tradicional”), com uma introdução de contextualização socio-cultural por mim assinada. Em 2003, a RTP voltou a Rates, onde gravou (sob a direção de Manuel Rocha, do Conservatório de Música de Coimbra e conhecido membro da Brigada Victor Jara) um dos 13 episódios da série “Povo que canta” (na esteira do que fizeram, 40 anos antes, Giacometti e Lopes-Graça). E em 2018, o município da Póvoa de Varzim editou o “Cancioneiro Tradicional de Rates”, que faz a “transcrição musical, fiel e cuidada”, em pauta, dos cantares de que, até então, tínhamos apenas registo sonoro. Com este estudo, do Prof. José Alberto Carriço, ficou concluído o trabalho de salvaguarda daqueles cantares, que assim viram garantida a sua continuidade como património identitário da comunidade.

Que tal, algo de semelhante no vasto território de Guimarães, senhoras e senhores de Osmusiké?

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Santa Rosa de Lima em Guimarães

A devoção a Santa Rosa de Lima em Guimarães está presente desde 1680, aquando da fundação do Convento de Santa Rosa de Religiosas Dominicanas. Esta instituição conventual feminina é fundada nas casas do hospital ou albergaria de S. Roque, com sua capela e hortas, administradas pela Confraria da Senhora da Graça. Dado que o anterior templo pertencente à confraria, ocupado pelo convento era demasiado pequeno para o crescente número de religiosas e pouco relevante para a importância da instituição, tornou-se necessário ampliá-lo. Com esse objetivo, as religiosas adquiriram as casas conjuntas à capela, a par de terem tomado posse como administradoras de tudo o que pertencia ao hospital de S. Roque e à Confraria da Senhora da Graça. Neste contrato datado de 1735, celebrado com os confrades da Confraria da Senhora da Graça, as freiras comprometem-se a aceitar todos os encargos e legados a que a confraria estava obrigada. No decorrer dos tempos, as religiosas foram adquirindo novas casas com o intuito de alargarem o seu espaço conventual.

No segundo quartel do século XVIII, esta instituição monástica feminina passava por um amplo processo de ampliação que abrangia as principais dependências conventuais. Ao longo dessa fase construtiva podemos encontrar disseminados pelas obras de pedraria, carpintaria e talha, um numeroso número de mestres que aí trabalharam oriundos dos atuais concelhos de Braga, da Maia, do Porto, Vila de Conde e de Vila Nova de Famalicão. Segundo as fontes arquivísticas por nós compulsadas, podemos afirmar que este convento se destaca como o imóvel vimaranense em que deparamos com o maior número de artistas provenientes de locais de fora da vila e seu termo.

O convento foi extinto a 9 de março de 1888 com o falecimento da última religiosa. Devido à demolição da igreja de São Sebastião, em 1892, o templo do Convento de Santa Rosa de Lima passou a assumir funções de igreja paroquial da freguesia de São Sebastião. Nesse mesmo ano, o governo cedeu à Câmara Municipal as restantes dependências conventuais e a sua cerca para que aí fossem instaladas repartições camarárias.

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31 Doutorado em História de Arte Portuguesa (FLUP); Investigador do CITCEM.

Na atual igreja do extinto convento de Santa Rosa de Lima, ainda hoje, observamos duas imagens de Santa Rosa de Lima. Uma delas encontramos num nicho, a encimar o portal lateral de acesso à Igreja. Trata-se de uma imagem em pedra possivelmente datada de 1734 e executada aquando da construção da atual igreja pelos seguintes mestres pedreiros: João Moreira Bouça, morador na freguesia de S. Salvador de Moreira (concelho da Maia); António Pereira, da freguesia de Santo Ildefonso (Porto); Domingos da Costa, da freguesia de Santa Marinha de Vilar de Pinheiro (concelho de Vila do Conde); e

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Imagem 32 - Convento de Santa Rosa de Lima - 1ª metade séc. XX (Coleção MuralhaAssociação de Guimarães para Defesa Património) Imagem 30 - Entrada lateral da igreja do Convento de Santa Rosa de Lima Imagem 31 - Pormenor do portal da igreja do Convento de Santa Rosa de Lima (imagem de Santa Rosa de Lima)

A outra imagem encontra-se no retábulo-mor da igreja. Esta imagem em talha dourada, foi executada em 1741-1742 pelo mestre entalhador António Fernandes Palmeira, morador na freguesia de Palmeira, concelho de Braga, que arrematou a obra do retábulo e tribuna da capela-mor. Nestas duas imagens, Santa Rosa de Lima é iconograficamente representada com o hábito de dominicana e tendo nos braços o Menino Jesus.

Originalmente, estas duas imagens seriam também representadas com um ramo de rosas, que se terá perdido no decurso do tempo.

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José Moreira da Cruz morador na rua de São Dâmaso (Guimarães). Imagem 34 - Retábulo-mor da Igreja de Santa Rosa de Lima Imagem 33 - Pormenor do retábulo-mor da igreja do Convento de Santa Rosa de Lima (imagem de Santa Rosa de Lima)

Esta Santa, a primeira da América Latina, nasceu em 1586, em Lima (Peru), tendo falecido em 1617. Foi pretendida pelos jovens mais ricos e distintos de Lima, mas a todos rejeitou por amar a Cristo como esposo. Em idade de casar, fez o voto de castidade e tomou o hábito da Ordem Terceira Dominicana, após lutar contra o desejo contrário dos pais. Foi canonizada em 1671, pelo Papa Clemente X e declarada Padroeira da América. Foi a primeira “serva de Deus”, natural do Novo Mundo a ser colocada em altares.

Bibliografia:

BRANDÃO, D. Domingos de Pinho - Obra de talha dourada, ensamblagem e pintura na cidade do Porto e na diocese do Porto, vol.3, Porto, 1986, pp.401-406.

GONÇALVES, Flávio – “A talha na arte religiosa de Guimarães” in Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada, Atas, vol. 4, Guimarães, 1981, p. 337-366.

OLIVEIRA, António José de – “A actividade de artistas portuenses em Guimarães (1685-1768)”, sep. Museu, nº 11, 4ª série, Porto, Círculo Dr. José Figueiredo, 2002.

OLIVEIRA, António José de – Clientelas e artistas em Guimarães nos séculos XVII e XVIII, dissertação de doutoramento em História de Arte Portuguesa apresentada na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 2011, 3 vols. (texto policopiado).

OLIVEIRA, António José de; OLIVEIRA, Lígia Márcia Cardoso Correia de Sousa – “Mestres pedreiros portuenses em Guimarães (1734-35): sua actividade no convento de Santa Rosa de Lima”, in I Congresso sobre a Diocese do Porto – Tempos e Lugares de Memória, Homenagem a D. Domingos de Pinho Brandão, Atas, Porto/Arouca, Centro de Estudos D. Domingos de Pinho Brandão; Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Departamento de Ciências e Técnicas do Património; Universidade Católica Portuguesa, Centro Regional do Porto, 2002, vol. 1, pp. 297-328.

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O monte de Santo Antonino

Há alguns dias, aproveitando um fim de semana solarengo, embora um pouco nebuloso, escolhi, como local de passeio, o Monte de Santo Antonino, na freguesia de Mesão FrioGuimarães. No alto do monte, que faz fronteira com a freguesia de Arões, no concelho de Fafe, há um pequeno planalto com uma capelinha dedicada a Santo Antonino, de paredes ameadas e com torre sineira quadrangular, mas sem sinos.

Dizem-me que, pelo mapa, o cruzeiro que se ergue a poente no planalto pertence a Guimarães e a Capela de Santo Antonino, a nascente, está situada já em terrenos da freguesia de Arões - Fafe. As medições, no entanto, podem não corresponder à descrição. De qualquer modo, do topo do monte, tem-se ampla visibilidade circular (360 graus), em todas as direções, designadamente sobre as cidades de Guimarães e Fafe.

A Capela. a Pedra do Santinho e o Milagre da Cura da Asma Nesta capela, cuja construção primitiva é atribuída ao século XVI, há romaria e festa, todo os anos, no início de Setembro. Os romeiros e devotos acorrem ali para que Santo Antonino os cure dos seus problemas respiratórios, provocados pela asma e bronquite, além de fazer desaparecer também, como o São Bento das Peras (de Vizela), os «cravos» das mãos. Junto à capela há um pequeno rochedo, conhecido como a “Pedra do Santinho”, pedra essa que o sábio arqueólogo vimaranense Francisco Martins Sarmento, depois de ter visitado o local, descreve como “calhau informe” (1) , furado obliquamente, com um dos orifícios virado para terra e outro para ar. Lendariamente, a pedra é considerada milagrosa contra o “cansamento do peito” (2) .

Martins Sarmento recolheu, junto da população local, a forma de operar para obter o milagre solicitado pelo romeiro: tapa-se o orifício que volta para chão e, depois que o doente bafejou nele, tapa-se também o que volta para o céu. Parece que, com o hálito do doente assim encarcerado, ele fica despenado do seu mal”. Mas há que ter sorte, pois, adianta o arqueólogo, “a pedra só faz um milagre por ano e precisa-

Ex-jornalista do JN.

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mente quando começa o dia da festa do santo, portanto ao bater da meia noite do primeiro de Setembro”.

A Ciência e a Crença

A propósito desta curiosa limitação da ocorrência milagreira, Martins Sarmento comenta: “É de crer que em antigos tempos a concorrência dos devotos originasse alguns conflitos”. Estamos a falar do ano de 1888, altura da publicação destas observações de Sarmento na “Revista de Guimarães”, ainda hoje uma das publicações mais conceituadas nacional e internacionalmente, tendo em conta as largas dezenas de permutas que tem com revistas científicas similares, nacionais e internacionais. Como cientista, Martins Sarmento atém-se, nos seus registos, aos factos observáveis, mas não deixa de fazer também uma interessante recolha de lendas, crenças e tradições ligadas aos materiais arqueológicos que investiga, pois neles recolhe também muita informação de caráter etnológico e antropológico. (3)

Imagem 35 - Capela de Santo Antonino com torre sineira quadrangular acastelada, mas sem sino. O “Penedo do Santinho” está ao lado esquerdo.

Mas, neste caso, não resiste a tecer o seu comentário humorístico à limitação da ocorrência milagreira, comentando: “hoje, esse perigo (de conflitos de concorrência) desapareceu. Quem quer bafejar no milagroso buraco mete-se com o tesoureiro da festa e uma bandeira, içada de véspera, na cruz da capela, anuncia que está tomada a vez para o afilhado daquele magnate”.

Um sítio a visitar

No dia da minha subida ao Monte de Santo Antonino, que não era de festa, (4) não tive a oportunidade de confirmar, junto da Comissão Organizadora da Romaria, se tais costumes ainda se mantêm. Provavelmente, não. Mas que o “Penedo do Santinho” ainda lá está intacto, como o descreve Martins Sarmento, está. Quem quiser confirmar, é só subir ao Monte, pois tem bons acessos de estrada, uma vista magnífica sobre toda a região envolvente e mesas para merendeiros. É um dos miradouros naturais de Guimarães que recomendo.

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(1) SARMENTO, F. M. Materiais para a Arqueologia do Concelho de Guimarães, Revista de Guimarães, ano de 1888, vol. V, pp 114115.

(2) Entenda-se “asma”.

(3) Apesar da situação privilegiada do local, com fácil defesa perante eventuais assaltos nos tempos pré-históricos, Francisco Martins Sarmento não encontrou no local vestígios de qualquer fortificação, apenas fragmentos de louça antiga e restos de uma possível mamoa, que não confirmou, por estar muito destruída.

(4) Há vários santos com o nome “Antonino”, mas o que é venerado no Monte com este nome é um mártir, sobrinho de Teodorico, Rei de Aragão, com festa a 2 de Setembro.

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Novo livro de Lino Moreira da Silva

“As Imagens da Nossa Senhora da Penha (Guimarães). /Dicionário da Penha” é o mais recente livro do autor vimaranense e professor aposentado da Universidade do Minho, Lino Moreira da Silva, que já saiu do prelo e, brevemente, será lançado publicamente, assim a pandemia o permita.

Com efeito, na continuidade dos seus trabalhos no âmbito da área etno-histórica e da História Local vimaranense, nomeadamente sobre as Festas Nicolinas e acerca de espaços emblemáticos e instituições vimaranenses, Lino Moreira da Silva empreende, agora, nova caminhada na íngreme tarefa de publicar em Guimarães e sobe esforçadamente até à Penha, sem o apoio do teleférico, mostrando com o rigor de um binóculo os seus deslumbrantes horizontes.

Efetivamente, “As Imagens da Nossa Senhora da Penha/Dicionário da Penha”, eleva-se altaneiramente como uma visão arejada e de belas extensões verdejantes sobre esta maravilhosa estância turística, religiosa, recreativa e cultural, que se chama Penha e incentiva-nos a (re)descobri-la na sua natureza intrínseca, ao longo das suas cerca de 700 páginas (e muitos hectares), paulatinamente criados nas suas três fases de crescimento : a infância e a criação inicial, depois de 1702; o período de passagem de pinto para galo, com a entrada em funções da Primeira Comissão de Melhoramentos, em 1869; e a época adulta, após a inauguração do Santuário Mariano da Penha, em 1947, de autoria do famoso arquiteto portuense José Marques da Silva (1869-1947), que, em Guimarães, assinou também obras como o edifício da Sociedade Martins Sarmento e a basílica de S. Torcato.

Todavia, no caso concreto deste livro, abordam-se fundamentalmente diversificados olhares sobre a Penha, não só da sua arqueologia e história, mas também das suas águas e milagres, bem como nas vertentes da devoção e religiosidade e das romarias e peregrinações; ou ainda, em situações da sua natureza e funções lúdico-turísticas e lendas e mitos. São exemplo, as lendas encantadas e mouriscas ou dos seus penedos e águas, assim como as lendas da pastora Catarina ou de Santo Elias, que é venerado na Penha como o padroeiro do sono.

Concomitantemente, a obra oferta-nos ainda relevantes informações alusivas às imagens de Nossa Senhora do Carmo da Penha, reportadas às invocações marianas, às romarias informais e à Romaria Anual, bem como às peregrinações à Penha desde 8 de setembro de 1893, levada a cabo pela “divertida estúrdia dos artistas de couros de Guimarães”.

Ademais, como cereja em cima de um bolo de um saboroso piquenique, lá bem no alto da montanha, a obra coloca ainda em cima da mesa granítica, em toalhas de papel, um oportuno e útil “Dicionário da

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Penha”, cujas entradas, “prontas a servir”, apresentam tópicos correspondentes às realidades mais relevantes da estância turística e religiosa vimaranense.

E para sobremesa, para que não falte nada, um anexo acompanha e remata a obra, contendo citações sobre a Penha, extraídas de vários Pregões Nicolinos.

O Pregão de 1936, de Delfim Guimarães, recitado por Hélder Rocha, é um exemplo bem elucidativo:

“Quisera erguer-te um hino, ó Penha majestosa, De joelhos em terra e mãos postas em cruz, Como aquela Oração fremente, harmoniosa, Que à alma nos cantou a boca de Jesus!

Um hino que ecoasse em tuas vastas fraldas, Teus picos de granito, em tua imensidade, O monte da paixão do grande Bráulio Caldas, O monte onde murmura a Fonte da Saudade!

Quisera eu erguer-te um livro, ó Penha amiga, Penha farta de cor, de sol e de arvoredos. Mas que pode dizer-te um verme, uma formiga, Que rasteja em teu dorso ereto de penedos!

Ó Penha encantada, as tuas vistas são Quanto o céu é azul e nada tem de opaco: - ó suprema beleza e eterna perfeição! –Mais belas que as de Sintra, irmãs das do Buçaco!”.

Em súmula, uma obra que é um documento precioso sobre a “montanha santa” e “altar de Guimarães”, a que alguns chamam um “cantinho do céu” e outros denominam de “Sintra vimaranense” e que é o nosso orgulho! E acima de tudo, uma obra acerca deste “lugar encantador” e “monte adorado”, que é também a “varanda de Guimarães” e “catedral da natureza”, erguendo-se altivamente e sensualmente como o “farol de Guimarães” ou a “menina dos olhos dos Vimaranenses”.

Um livro para ler e guardar nas estantes para os nossos vindouros

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Ferreira de Castro e(m) Guimarães

Na esteira do livro “Raul Brandão e(m) Guimarães” publicado em março de 2018, o trio Álvaro Nunes, Fernando Capela Miguel e J. Salgado Almeida (ilustrações) voltam ao prelo para lançar um outro volume da saga dos escritores consagrados por terras do concelho vimaranense e que por cá romperam solas.

Deste modo, será lançado em abril o título “Ferreira de Castro e(m) Guimarães”, a propósito da passagem dos 50 anos da homenagem do escritor nas Caldas das Taipas, ocorrida em 17 de abril de 1971, que na altura culminaria com a inauguração de um busto do autor, numa iniciativa promovida pelo Círculo de Arte e Recreio (CAR), presidido, ao tempo, por J. Santos Simões. Quanto ao livro, promete abordar a vida e obra de Ferreira de Castro desde a infância em Ossela até ao inferno verde amazónico, para onde emigrara ainda adolescente com a simples instrução primária na algibeira; e, passo a passo, acompanhar as suas atribulações no Brasil até à sua iniciação romanesca. Paralelamente, reportar o seu ganha-pão no jornalismo, até à sua consagração como romancista nacional e universalista, bem como dar conta do homem para além da escrita e da sua memória, entre os que o evocam e admiram, designadamente através das vozes críticas e testemunhos dos sobreviventes do seu tempo.

Depois, e acima de tudo, dar conta das três homenagens de que foi alvo nas Caldas das Taipas, uma delas ainda em vida, bem como das suas tertúlias em Guimarães, entre amigos e correligionários dos valores democráticos e do humanismo social que foi seu timbre.

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Álvaro Nunes

A Aldeia de Santa Teresa

O cenário em que se desenvolve o conto é o de uma aldeia afetada social e economicamente por uma pandemia. Como personagem, temos uma família jovem, que se instala na aldeia com os seus dois filhos, que consegue singrar na vida até que a pandemia destrói tudo quanto tinham granjeado com o seu trabalho. Atirados para a miséria, são salvos pela herança choruda de um pobre que vagueou pela aldeia durante uns tempos e a quem os filhos do casal, diariamente, ao longo de anos, doaram a sua atenção e uma moedita.

“O conto «A Aldeia de Santa Teresa» surgiu como resposta a uma provocação oportuna que me foi dirigida pela minha neta Mariana. Foi escrito e lançado num curto espaço de tempo. Podia ter esperado. Teria sido melhor? Talvez. Mas a oportunidade, por vezes, não é compatível com o momento mais desejado. Acabei por ceder à oportunidade. Afinal, saiu quando saiu.

Agora, foi a vez da minha neta Ana Margarida após uma leitura do conto, me ter interpelado que, afinal a história ficara a meio. Escreveu-me: «Queremos parte dois». Questionei-me: será que algum pormenor ficou por escrever?

Claro que há sempre uma «parte 2» e uma «parte 3», e por aí adiante, desde que reflitamos: «e depois?», «como é que…?», «seria que?…».

Para um escritor a história termina quando a narrativa chega ao termo. Para o leitor sobra quase sempre a sensação de que ficou algo por contar… Esse é um grande contraste!... Na verdade, nenhuma história tem fim, ou seja, a mãe criatividade pode sempre dar asas a novas e consequentes peripécias.

Pelo que fica dito, vou tentar esboçar uma «parte dois» de «A Aldeia de Santa Teresa». A minha neta Ana Margarida merece o esforço, merece tudo. Obrigado, menina, pelo teu incentivo. Felicidades.”

Sinopse

A Joana e o André Antunes aprofundaram a sua relação de colegas de escola, terminaram o 12º ano e abalaram da Cidade Grande, onde não tinham perspetivas de futuro, para a Aldeia de Santa Teresa. Lá, fundaram o Café Central, tiveram dois filhos gémeos, a Francisca e o Tiago, e consolidaram uma vida e uma família tranquila e o caminho da felicidade. Até que, uma pandemia

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pôs a comunidade em alvoroço, obrigando a encerrar negócios, a afugentar as pessoas e a retê-las em casa para minorar os efeitos da propagação do vírus, extremamente violento e mortífero. Consequência: o Café Central fechou e a família Antunes ficou na desgraça. No entretanto, o Lamechas, um pedinte que todos os dias recebia a esmola de um euro da Francisca e do Tiago, ausente da aldeia nos últimos tempos, morreu em Lisboa, vítima da pandemia e, para salvação da família, deixou aos miúdos uma fortuna colossal. Assim se salvou o Café Central e a família Antunes pôde recuperar a tranquilidade.

Do miolo da vida

Livro de contos de autoria de Alves Pinto ilustrações de Salgado de Almeida

Do miolo da vida é um livro de contos, publicado em 2019, que conduz o leitor por caminhos que apelam aos valores da solidariedade, da humildade, da família, do respeito pelos mais deserdados da nossa sociedade.

Trata-se de uma obra simples, de leitura fácil e agradável, que nos toca na profundidade do nosso ser. Leva-nos às cadeias, às escolas, ao encontro de irmãos que não se conheciam, ao miolo mais profundo da nossa vida comunitária.

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Bem prega Frei Tomás

Fazei o que ele diz, não façais o que ele faz” é rifão antigo, mas de uma gritante atualidade na panorâmica social em que vivemos, tão frequentes são as situações de incoerência entre o discurso e a prática com que diariamente nos confrontamos, entre o que se proclama para fora e a realidade de uma vivência antagónica. A sociedade está repleta de exemplos em que a letra não bate com a careta nem a bota com a perdigota. Apesar disso, vamos vivendo alegremente o nosso egoísmo sem que estas distorções de caráter melindrem ou inquietem a nossa consciência convivendo com um doentio narcisismo que merece o vómito de quem nos rodeia.

Dizer e não fazer é a absoluta negação da personalidade e uma manifestação de falsa superioridade moral que pretende impor aos outros o que não serve para si próprio, desobrigando-se de regras cujo cumprimento lhes exige com toda a veemência. Veio-me à memória uma história de um padre do século passado que, tendo-se esquecido da determinação do quarto mandamento da Santa Madre Igreja, mandou preparar um nutrido leitão para devorar no almoço da confessada do segundo mandamento, em Sexta-feira Santa. Antes de começar o lauto repasto, um dos abades comensais, algo escrupuloso e de consciência mais sensível, chamou a atenção para o ilícito que todos iriam cometer. Respondeu o prior anfitrião:

- “Maior pecado seria lançar aos porcos tão saboroso e delicado manjar. Por isso os meus reverendos colegas não tenham escrúpulos e deixem para mim o ónus moral deste pecadilho do qual me penitenciarei no final perante um de vós, com profunda dor de coração e propósito firme de emenda. E, afinal, este desvio é como a minha burra: anda de ano e no resto do tempo vazia e leve. Comei e que vos faça bom proveito, que bem o mereceis depois de terdes testemunhado uma manhã inteira os desvios deste povo que vive em permanente violação dos deveres do sétimo sacramento”.

E assim definitivamente serenada a voz interior que, embora timidamente, apontava a dupla e mortal contravenção à lei do jejum e da abstinência, os comensais serviram-se como abades após o que, tresandando a bagaço, arrotando e bocejando, afogueados e de batina aberta, todos foram digerir o banquete em pachorrenta cavaqueira pelas alamedas do passal.

Outro exemplo da falta de rigor entre a palavra e a ação é plasmado nesta outra parábola que refere

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que um padre, invetivando desde o púlpito os fiéis que, em contravenção ao primeiro mandamento da Igreja, teimavam em colher ao domingo a azeitona, ameaçava com as labaredas do inferno aqueles que não de abstinham de trabalhos servis nos dias santificados. “Tomai nota - pregava o distinto orador sagrado –que Deus deu ao homem seis dias para trabalhar guardando para Si apenas um que o homem deve respeitar para Sua glória. Guardai-o como sagrado, que os caldeirões do inferno são alimentados com o azeite das ripadas do domingo”. Ora, aconteceu que o padre herdou de um parente um lagar de azeite. Do ambão passou a admoestar os que, por manifesta falta de tempo, deixavam apodrecer a azeitona: -“Deus criou o homem e dispôs para o seu serviço todas as coisas boas da Natureza. É grande pecado, apenas expiado eternamente nas profundas do inferno, em caldeirões de azeite a ferver, esbanjar os frutos que Deus lhe deu. Tendes vós de colher a azeitona da qual deriva a luz que arde perenemente na lamparina do Sacrário. E se achais que seis dias não são suficientes, aproveitai o domingo para ripar o fruto da árvore da paz que não pode ser desperdiçado. Se doze horas do dia não chegam, de noite também é dia, e assim vos mantereis afastados das tentações de outras “ripadas” que deixarão marcas na harmonia familiar e na saúde do corpo e da alma”.

Destes exemplos de contradição proveio o rifão de que fizemos título.

E quem terá sido este frei Tomás, celebrizado pela incoerência entre o mandar e o fazer que deambulou, peregrino, neste vale de lágrimas?

Por intermédio do meu amigo Óscar Barros, chegou-me à mão um exemplar do ALMANAQUE DE SANTO ANTÓNIO, no seu vigésimo sexto ano de publicação, de 1924, edição da empresa do “Boletim Mensal”, de Braga. Passo a transcrever, na íntegra, as suas páginas 255 e 256, quedando-me por aqui no texto de autor. O resto é do Almanaque.

FREI TOMÁS – Fazei o que êle diz, e não façais o que êle faz.

“Mal sabem os leitores que o rifão tão sabido tem por autor, em parte, um autêntico frei Tomás, por sinal eminente pregador português, e em parte um fidalgo, provavelmente abespinhado com os seus sermões.

Nasceu em Ponte de Lima aí pelo ano de 1530, filho natural de Manuel de Magalhães, morgado da Fonte Arcada. Entrou para a Ordem Dominicana, vestindo o hábito no convento de S. Domingos, em Lisboa, para onde foi ainda muito novo

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Frei Tomás de Sousa, pois assim se chamava, mal ordenado consagrou-se ao púlpito, revelando-se desde logo insigne orador. Alcançou tal fama o seu talento que El-Rei D- Sebastião nomeou-o pregador régio, e a rainha D. Catarina escolheu-o para seu confessor.

Quis o bom frade aproveitar a sua influência na Côrte para corrigir com liberdade apostólica os vícios tão asados aos paços reais.

Um fidalgo, cujo nome a história não regista, mas provavelmente ferido nalguma mazela pelo pregador do Rei, prega-lhe à porta um papel com este lembrete:

“Aqui mora frei Tomás, que bem o diz e mal o faz”.

O padre viu, leu e não se incomodou. Apenas lhe escreveu o seguinte:

“Fazei vós o que êle diz, e não façais o que êle faz”.

E foi-se embora. A corte aplaudiu a boa saída do frade.

O cardial D. Henrique é que não gostava dele. Anulou a eleição que o elegera para Provincial, em 1578.

O seu patrício Diogo Bernardes no seu Lima fala dele:

Divino preceptor da lei divina Tomás, que ao grão Tomás vai imitando, Na vida, na lição e na doutrina.

Que duro coração, que ânimo fero Te poderá ouvir que não se abrande! Eu já desde que te ouvi, só isso quero.

O soberbo em seus mandos se desmande; Descubra o cobiçoso novas minas. Cada um a seu gosto viva e ande.

É esta porventura a lei que ensinas? Não mostrar tu ser tudo só vaidade Fora do amor do céu, em que te afinas?

Bem pregas a verdade da Verdade, Bem verdades guardam quanto pregas Se olhas sempre em Deus, sempre à vontade.

Frei Tomás não deixou de si maior fama. Morreu ignorado na sua ignorada cela. Mas anda em provérbio. Ficou mortal”.

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Melro de bico amarelo

Decorria o ano de 2011, reinava então José Sócrates naquele que foi o seu segundo e último governo. Dessa governação, pela pena do zeloso Secretário de Estado que tutelava a passarada, certamente com as orelhas a assobiar de insinuações de amigos e camaradas de lazer e de borga, saiu um hilariante despacho a incluir os melros nas espécies cinegéticas da próxima temporada de caça. Determinava a penada que cada caçador poderia matar até 40 melros por dia. Terá ele idealizado a esperança de recolher as primícias da caça deste canoro pássaro de jardim, bem na mira de qualquer espoleta de carregar pela boca ou da espingarda de pressão do meu sobrinho Diogo que, pesadote para grandes caminhadas de nariz levantado a farejar pelos ermos dos montes e silvados, poderia vazá-lo de chumbo a partir da janela do quarto. Mudado o governo e apeado o governante mata-melros, o Secretário de Estado do governo de Passos Coelho que sucedeu ao do socrático filósofo, o limiano engenheiro Daniel Campelo, alcandorado aos píncaros da fama por ter protagonizado, enquanto deputado, uma “traição” ao seu CDS votando ao lado do PS de forma a viabilizar um Orçamento de Estado de António Guterres naquele que ficou para a posteridade como o “Orçamento do Queijo Limiano”, reverteu a medida. Com um só tiro certeiro, o famoso limiano, conhecedor profundo do meio rural, enlevado pelo mavioso canto daquele melodioso “turdus merula” vestido de preto, e liberto da gula ou da ingenuidade que atacou o seu antecessor, despachou, com um só tiro certeiro, a revogação daquela estapafúrdia decisão e a retirada da iguaria dos cadernos de receitas e dos cardápios das petisqueiras deste país.

Numa arrumação de confinamento desta pandemia incómoda e possessiva, encontrei um jornal velho com uma crónica do saudoso Manuel António Pina cujos textos semanais publicados no JN eu devorava com prazer, escrevendo sobre uma ninhada de melros acabados de nascer numa trepadeira do seu jardim, feito que o levou a esquecer, por um momento, essa coisa de política que é um animal com mais tetas que a porca de Murça à volta de quem os profissionais da política se atrapalham e atropelam na azáfama de chegar à mais gostosa e apetecível mamadura.

Encorajado com este exemplo, também eu dei em meditar sobre a existência dos melros e, na tentativa de afastar a lembrança dos políticos e dos malefícios dessa classe cujos reiterados exemplos de desviante comportamento ajavardaram a nobre arte do serviço público, tentei, num exercício mental, encontrar afinidades entre as duas espécies, os melros e os profissionais da res pública.

Percorri um vasto caminho retroativo de memória e, afinal, consegui descobrir esse parentesco, bem

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mais próximo que o que seria suposto admitir.

Num jantar de aniversário natalício do meu amigo Zé Freitas, ocorrido antes desta prisão domiciliária, já não sei a que propósito, os melros vieram à mesa, não numa bandeja ou travessa mas no decurso da conversa da treta, e logo se instalou uma acentuada divergência de opiniões e simpatias. Enquanto eu defendia esse simpático pássaro que me acorda às cinco da matina com enternecedores trinados, que canta e encanta desde o raiar da aurora, o meu vizinho da esquerda e o da frente clamaram contra essa maldita raça vestida de luto carregado que lhes atormenta o descanso e devasta a fruta.

Dizia o Anselmo que nem os frutos ainda verdes e duros de mais de uma centena de pereiras e os pêssegos de várias árvores da sua quinta escapam à voracidade dessa ave insaciável. Deus, que a revestiu de negro, certamente bem sabia a espécie de bicho que ali estava. Eu contrapus que comigo isso não acontece, e tanto os pericos como os pêssegos do meu quintal se mantêm inviolados, descontando a bicharada que carregam no ventre. Ripostando, o meu soberbo opositor exclamou, vitorioso: - E tu queres comparar o teu mísero quintal de para aí cem metros quadrados com a minha quinta de mais de dois hectares, com muitas dezenas de árvores de fruto?

Aí tive de me calar, se bem que o meu quintal tenha cinco vezes mais do que a área desdenhosamente referida pelo meu vizinho de jantarada. Mas imediatamente descobri a afinidade dos melros com os políticos. Também estes colhem onde não semeiam, e estragam muito mais que toda a passarada que se banqueteia com a fruta do Anselmo.

Afinal, os políticos não passam de refinados passarões, os políticos-melros. É que, enquanto os melros vão poupando os pericos dos pobres e dos pequenos da sociedade afinfando o bico amarelo nos tomates dos latifundiários, os políticos-melros divertem-se a exocrinar a paciência do pobre. Atacam em alcateia os quintalinhos da propriedade privada e fanam tudo ao pobre, mesmo a fruta mais escondida, preservando a abastança das grandes herdades, coutadas, domínios e interesses económicos que formam o círculo que almejam conquistar em aliança e cumplicidade.

Depois desta descoberta, cresceu a minha simpatia pelos melros, aqueles que voam, cantam e comem no meu terreiro, certamente de outra casta que não a que ataca as peras e as outras partes do Anselmo. E prometo que deixarei sempre qualquer melro petiscar a fruta da minha única pereira e os pêssegos carecos de três ou quatro pessegueiros bravios nascidos espontaneamente no meu quintal. Só para me vingar dos outros passarões que nos oprimem.

P.S. – Em boa verdade, a razão porque os melros desprezam as minhas peras é que elas são tão duras como paralelo de calçada, e intragáveis, São peras bravas. Mas isso eu não digo ao Anselmo. É fácil imagi-

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nar que nenhum bico melral entraria no seu ventre. Poderia acontecer o que aconteceu com os tomates (reais, vermelhos, vegetais, carnudos) de uma estória que por aí se conta e que, vindo a propósito, não deixo de reproduzir, que bem pode servir para solucionar o problema do Anselmo:

- Havia uma senhora que plantara no seu quintal tomateiros de boa qualidade. Produziram esplendorosos frutos, daqueles que se comem com a vista. Era um regalo admirar aquela qualidade e aspeto: que beleza! Que riqueza de frutos! Que esplendor de tomates!

Aconteceu, porém, que os melros, atraídos pela cor e aroma dos frutos, assentaram arraiais no tomatal e banquetearam-se com os carnudos leguminosos furando os tomates que eram o orgulho da Tia Miquelina. E assim foi apodrecendo a cultura, para grande desgosto da hortelã.

No quintal vizinho, um outro tomatal resplandecia de vitalidade e cor sem vestígios de ataque do enlutado passaredo, facto que intrigava a desditosa vizinha, atenta a proximidade das culturas.

Interrogada a sortuda dona dos tomates intactos, a senhora Maria informou que, no princípio, a sua plantação também fora atacada, mas, notando o facto, foi a uma loja de ferragens e comprou umas bolas de chumbo que pintou de encarnado e misturou com os frutos verdadeiros. Deste modo, debicando os tomates falsos, partiam o bico e, por isso, escarmentaram dali abandonando o quintal, e dedicaram toda a voracidade nos tomates da horta contígua. – Olhe, vizinha, foi remédio santo!

Assim aconselhada, a Tia Miquelina dirigiu-se também à loja do senhor Artur. Era este um idoso de mais de oitenta anos que caminhava com dificuldade, curvado ao peso e às enxaquecas da idade, apoiado numa bengala. Perguntou a senhora: - Ó senhor Artur, o senhor tem tomates de chumbo?

Respondeu-lhe o comerciante: - Não tenho, não, minha senhora. É este maldito reumatismo que me consome!

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O rapaz que tinha dois corações

rui galiano ruiviana@live.com

A Vida não tem certo dia… porque a vida é o tempo todo, mas os dias, esses, sim… têm história... têm Vida. E a história, por si, é um papel, tinta, letras e palavras. Já a Vida está sempre a acontecer…

Certo dia… uma menina disse ao pai que os olhos dele não tinham cor. Depois, para melhor se entender, continuou dizendo que não era uma cor porque umas entravam nas outras e são várias formas... Ontem à noite, junto da cama, a deitar o filho pequeno, este último, deu duas voltas à cabeça, dois esticões e preparava um sono de rocha, quando, ao pôr a mão por cima da cabeça do pai e ao fechar as pálpebras, olhou, vagamente, sobre o sorriso do pai. Voltou-se, repentinamente, voltou a abrir os olhos, fixando-os nos do pai para dizer: - Os teus olhos são engraçados, têm a ceninha preta, a seguir, um sol… a forma de um sol castanho claro e à volta redondos por fora verde tropa. E… adormeceu. De manhã, o pai parou a olhar para o espelho, claro que após lavar a cara e… lá estava… a seguir à ceninha preta tinha, realmente, um sol. Riu-se com gosto e viu que, de tanto ver o sol, os seus olhos eram o espelho dessa luz dada e, afinal, de tudo o que via. O rapaz foi para a escola, mas o pai aguarda-o para lhe dizer que, realmente, viu o sol que ele lhe dissera ontem à noite e que nunca tinha visto. Mas aquele sol que lhe estava nos olhos era dum sol reflectido das estrelas que via à sua frente. Esse indivíduo já sabe do sorriso abafado do filho, até o pode guardar numa caixa. E… à noite, já sabe a história que pode contar ao filho, para o adormecer, porque dentro de si… uma luz.

Era uma terra distante e isolada onde uma doença começou a impedir que as pessoas abrissem as pálpebras. Quando alguém se lembrou de recorrer ao médico, ver do que se tratava, já era tarde demais. A doença era muito rápida e fez com que as pessoas, todas as pessoas, perdessem a força para abrir as pálpebras e, estas, fecharam-se como persianas sem fita. O curioso, desta história, não foi a doença curiosa, mas que, ao terceiro dia das pessoas com os olhos fechados, o sol começou a ser menos sol, um sol a enfraquecer de dar boa luz. Só, ou apenas, ninguém notava porque estavam todos com os olhos fechados. O

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certo foi que o sol vendo que não era, ou melhor, julgando que não era desejado, nem necessário àquelas pessoas, encerrou a actividade e poupou a sua luz. Ficou, então, sempre noite. As pessoas logo souberam que não havia nenhum remédio para a sua doença e conformaram-se com a sua sorte, deixando de se importar com o azar. Dia a dia habituaram-se a viver e a fazer tudo como se fosse noite. Muitas vezes, recorriam à memória para saber onde estavam as coisas. Faziam tudo às apalpadelas com a memória e o coração. As pessoas ajudavam-se muito umas às outras. E a vida continuou por uns tempos. Mas quando já era tempo de vir a Primavera, ninguém sentia nada... os seus sinais. Deixaram passar mais dois meses e… nada! nem flores novas, nem perfumes, nem cores! Claro… Nem o calor do sol!

Claro… Alguém se lembrou, então, que só não podia haver Primavera se não houvesse sol. Nessa altura, todos desconfiaram de que pudesse não haver sol. Houve logo um que se lembrou de que a doença pudesse, mesmo, ter vindo de o sol estar doente. E estavam isolados, pois ninguém de fora daquela terra queria aproximar-se com o medo de ficar, também, sem ver. O problema veio para ficar e crescia. É claro que aquelas pessoas deixaram de brilhar… em primeiro por fora… Depois, uma grande tristeza começou a apoderar-se de cada um. As pessoas começaram a perder todo o ânimo, a deixarem de se ajudar e… numa que parecia ser a última noite… (é claro… a noite só era noite pelo cansaço das pessoas que tinham que dormir, até os galos deixaram o canto da aurora), um filho, já deitado, disse ao pai:

- Ó Pai, não sei, não me lembro, como eram os teus olhos?… E o pai, esquecendo-se de que não havia luz, nem havia ver, num gesto ensonado, sem pensar, foi com o dedo indicador à pálpebra levantou-a e disse: - Olha, vê!

Nessa altura, o miúdo pensou que o pai estava maluco, pondo, a si próprio, a pergunta: vê como? Acto contínuo, o miúdo lembrou-se de levantar a sua própria pálpebra, com o seu dedo. E nesse preciso momento… nasce um fogo por entre uma rocha: numa imensa escuridão, do tempo e do lugar, os dois olhos acenderam-se em cor, como se fossem iluminados por dentro. No ar, a lançar uma luz maravilhosa e linda fizeram explodir, dessa luz, também, os seus corações.

Dois tesouros… De tão bonito, abraçaram-se os dois a chorar, talvez de felicidade, e neles cresceu uma enorme força que não cabia ali, naquele só lugar. Dois, que pareciam loucos, a correr e a gritar… via-se que era de alegria. Correram para a Praça e gritavam sobre todos daquela terra. A noite que parecia ser a última, estava estranha. Pessoas de todos os lados começaram a caminhar para o local anunciado. Toda a agitação crescia e fazia as pessoas saltarem o seu passo e apressarem os familiares e amigos. Alguns até foram em cuecas, pois ninguém os via… Quando já se ouvia um grande frenesim em toda a Praça e tanta dúvida...

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o homem do coração a saltar, subiu o muro do chafariz e pediu a todos para dizer uma coisa, a coisa que não tem por onde prender.

E toda a Praça fez um silêncio igual ao tamanho da escuridão. Nessa altura, ele até podia falar baixinho, porque todas as orelhas pararam para o escutar.

Então, disse: - Com os vossos próprios dedos levantem as vossas pálpebras…

E… não disse, nem pôde dizer mais nada. Conforme o fizeram e viram… eram olhos de luz, muitos, um mar de olhos reluzentes e lindos, soltos à noite de breu e que deu, a todos, ao mesmo tempo, o que era de dar, uma enorme comoção no coração que fez explodir, de ponta a ponta, um grito tão alto e tão forte que acordou o sol. Este, intrigado com o som desconhecido, para ele, que vinha de um lugar esquecido, talvez até comido pela noite, pô-lo curioso e foi lá espreitar atrás das rochas da montanha. Tantos pontos de luz? O que é aquilo?! E, à medida da sua tentativa de aproximação, não se desfaziam. Espantado com tamanha beleza e luz própria, desceu até ao lugar onde julgava ser uma festa da alegria.

Afinal, não era uma festa, era a própria Vida. Ele viu a Vida e era própria e nunca tinha visto. É claro, em pouco tempo, o sol tomou o centro da festa.

Foi então que começaram a aparecer todas as coisas que existiam antes da doença: a Igreja, o Café, os Bombeiros, até o símbolo do boné do Polícia brilhava como dantes. Não há palavras para tanta vida. Era tudo a nascer…

Uma atrás de outra voltava cada coisa ao seu lugar. Mas o rapaz interrogou-se: - Não estamos em julho?

- Sim! Responderam todos. E o pequeno foi à grande pergunta: - E a Primavera?

Todos rodaram a cabeça sobre o jardim público e, este, estava lá, mas apenas em terra…. Houve por momentos uma certa tristeza. Certa… porque, logo a seguir, como que guiada pelas palavras, começaram a soltar-se da terra umas folhinhas, em princípio minúsculas, que cresciam cada vez mais verdes e como se estivessem a ser sopradas de dentro da terra. Era inacreditável. Quando as plantas já tinham uma altura que parecia de idade jovem, começaram a dar flores, mas depressa uma explosão de flores, em toda a volta… parecia um festival de fogo-de-artifício, mas com flores, foi o maior espectáculo do mundo, ouvia-se. As pessoas abraçavam-se e faziam promessas umas às outras de que nunca mais iam esquecer em como a Vida é a festa. Nunca mais iam ser más, que isso não valia a pena. Só pensavam em fazer ou realizar ideias de ajudar aqueles que mais careciam e que iam viver para os outros, para servir aos outros, sem pensar

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neles próprios, nem na beleza deles, nem em telenovelas, nem em grandes nem em pequenas mentiras. Iam gozar o bom da vida e não mais iam deixar de agradecer a sorte da Vida e a abundância ao Bom Deus que lhes havia dado uma grande lição.

Estiveram três dias em festa... Até à exaustão… E, já muito cansados, pai e filho, deitados na cama, para o que o pai julgava serem dois esticões, diz o pequeno:

-Ó Pai, acho que nunca vou esquecer a luz que estava dentro dos teus olhos… era fantástica…

Diz o pai:

- Talvez a íris, que é a cor dos olhos, tenha a capacidade de absorver a luz do dia e a deixe ficar ali por um tempo… E o sol viva dentro de nós... assim… Fixado no rosto do pai e no caminho dessa luz o miúdo diz:

- Ó Pai, os teus olhos são muito fixes, à volta da ceninha preta agora tens um sol dourado…

O pai sorriu. E olhando fixamente para a íris do filho viu o quê?

À volta da ceninha preta estava um coração rosa…

Afinal, aqueles olhos... eram de ver e serem vistos, enquanto espelhavam o que lhes ia na alma, depois de terem bebido a Vida. Tudo junto dava um coração.

O menino tinha dois corações, um para correr, outro para amar. E esta história só pôde acontecer porque no dia que era para todas as pessoas, daquela terra, entristecerem para sempre, um miúdo quis saber como eram os olhos do pai.

Conclusão:

O amor começa em coisas pequenas, está nos outros, em olharmos os outros, em olharmos de frente, nos olhos, como as crianças, mas isto só é possível se tivermos uma só cara.

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Eu sou alva matutina

Que fecha a porta das trevas e abre o salão de luz, Que corre o pano de cena p’rá sinfonia de cor E de sons da Natureza que num abraço de vida Anunciam a manhã.

Eu sou a fonte que jorra do penhasco da montanha E em rio convertida vai cantando até ao mar… Eu sou esse mar imenso que abriga sonhos e história, Terrores e fantasias de antigos descobridores, Denodados pioneiros que enfrentaram mil perigos P’ra desbravar novos mundos num mundo desconhecido…

Eu sou o canto do galo que estremece a madrugada Num estribilho constante de singular desgarrada… Sou brisa refrescativa que acalma o ardente calor, Sou vento forte que varre o pó do caminho agreste.

Sou sol que derrete a neve do meu insano egoísmo Que ignora a mão que se estende, faminta e necessitada…

Eu sou a esmola do pobre que lhe dá nova esperança Num futuro sempre igual que se renova em miséria E aumenta a solidão a cada dia que passa Mas lhe faz acreditar que o rico, seu semelhante, Repartirá o que sobra com o que nada recebe…

Sou a expressão do poder, sou único, omnipotente, Sou futuro no presente, passado que dominou.

Quem sou eu?

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Franklim Fernandes entrevistaseouvidos@gmail.com

Olhando, porém, o mundo, não passo dum indigente!

Caindo em mim, consciente, eu sinto que nada sou!

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Sonhos de Criança

Ai o mundo que eu pintei Nos meus sonhos de criança, As loucuras que imaginei Sempre cheio de esperança.

Os sorrisos de alegria A vontade de correr, O pulsar do dia-a-dia A coragem de viver. Mas fui crescendo e dei por mim No meio dessa multidão, Onde o barulho não deixa ouvir A voz do coração.

Somos nós que vamos criar Um mundo de esperança Com o amor e o pulsar Dos meus sonhos de criança.

Se todos temos esta ambição O mundo pode ser melhor Basta nós darmos a nossa mão Pela paz e pelo amor.

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Sonhos meus

Sinto a revolta nas veias Da criança que cresceu, Pressionada por ideias De um querer que não é o seu.

Moldada por outro gosto Por mim, por ti e por vós, Seja o que for será sempre Retrato de todos nós.

Se a TV e o jornal Dizem que o mundo vai mal, Cada um é pintor Desse quadro sem amor.

Vem, vem sentir a vida Vê com o teu olhar Este mundo desumano Que nada tem pra te dar.

Vem, tenta ser diferente Não vivas de ilusão Sente a vida do meu sonho E a força desta canção.

Vou deixar pra vocês Este sonho, esta canção. Pra viver pra cantar Com a voz do coração.

Vou deixar Vou deixar Vou deixar

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Ferreira de Castro – A propósito de Abril

“Tenho residido em vários povoados do Minho, sobretudo nas Caldas das Taipas, onde o Ave, de dia, e a Lua, de noite, falam muito comigo; e tenho convivido, Verão após Verão, com numerosos camponeses”.

De facto, ao longo da década de 60, era habitual ver o escritor José Maria Ferreira de Castro (1898-1974) a veranear nas termas das Caldas das Taipas (“a terra onde a lua fala”), ocupando um quarto das traseiras do Hotel das Termas, com vistas para o parque. Esta assiduidade e convivialidade entre os taipenses granjeou-lhe empatia, que, em paralelo com a admiração pela sua obra, culminaria com a sua homenagem pública em 17 de abril de 1971, já lá vão 50 anos.

Realmente, nessa data que agora evocamos, Ferreira de Castro, na companhia da sua (segunda) esposa Elena Muriel, seria homenageado nas Caldas das Taipas por iniciativa do Círculo de Arte e Recreio, presidido por J. Santos Simões, em cerimónia pública que contaria com a inauguração do seu busto na vila taipense; e, subsequentemente, intervenções diversas, entre as quais do crítico literário Arsénio Mota, do Presidente da Junta de Caldelas e admirador José Oliveira e J. Santos Simões que leria também uma saudação especial do amigo e escritor Jorge Amado.

Ora, é a propósito desta evocação que trazemos à colação este excelente escritor, cuja obra e vida se confundem numa intrínseca relação de coerência fidedigna. Com efeito, Ferreira de Castro lutou praticamente toda a sua vida e subiu-a a pulso para ser jornalista, escritor e homem, e combateu com a arma da pena, tal como Camões e muitos outros, com o objetivo de melhorar o mundo nos tempos de “apagada e vil tristeza”.

Urbi e orbi não só vivenciada entre a I e a II República portuguesa e a ditadura salazarista, mas também nos conflitos das grandes guerras mundiais, da guerra civil espanhola e da revolução russa que, na agitação política da sublevação, içaram novas bandeiras como o anarquismo, o socialismo e o comunismo.

Ferreira Castro teria, porém, como principal bandeira a luta pelas condições de vida do povo, ele que fora filho de camponeses pobres de Ossela (Oliveira de Azeméis), órfão de pai, durante a sua infância. Ele que teve de emigrar e de buscar o pão que o diabo amassou em terras brasileiras, ainda adolescente, partindo com a simples instrução primária na algibeira.

Com efeito, seria no seringal amazónico e na cidade de Belém do Pará que o jovem Zé Maria viveria

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entre 1911 e 1919, em trabalhos e biscates variados e se iniciaria nas letras, publicando os primeiros textos jornalísticos e a sua primeira obra, “Criminoso por Ambição” (1916), que distribui de porta em porta.

A sua escrita cresce paulatinamente num autodidatismo sem precedentes, que lhe está nas veias profundas desde a adolescência e sustentada nas vicissitudes da vida funcionaria como anelo apelativo desde a sua juventude e como instinto de sobrevivência: “Se me perguntassem nesse tempo o que eu desejava ser na vida, teria respondido sem hesitar: jornalista”

(…)

“O jornalismo representa para mim o forno de onde me vinha o pão e assim poder realizar os meus pobres livros à sua ilharga, nas horas destinadas ao repouso (…) Era ele que me punha a mesa sóbria, que substituía os fatos e os sapatos quando muito usados me pagava os cigarros e os cafés. Sem ele (…) eu não podia entregar-me, naqueles dias, ao meu teimoso sonho de romancista” (…)

O JORNALISTA

O busto de Ferreira de Castro nas Taipas “ - Uma pena, botaram-me a perder o veraneio. Todos os anos. no verão, vinha para aqui para uns dias de descanso. Antes do sol de pôr, à tarde, sentava-me naquele banco – aponta o banco junto ao busto, conversava sobre a chuva e o bom tempo, a vida e a morte com os patrícios, sabem coisas, contavam-me das pessoas e dos costumes, os detalhes com que se fazem os romances. Sabes como é.

O vento na praça, Ferreira de Castro ajeita o cachecol: - Conheciam-me como o homem do chapéu porque ando de cabeça coberta para não apanhar defluxo, não sabiam quem eu fosse, conversavam à tripa solta, eu era um deles. Agora, acabou-se, não serei eu quem irá sentar-se diante do busto, papel ridículo. Deixei de ir ao veraneio, a conversa se perdeu, já nada me contam, passei a ser Vossa Excelência, dão boa tarde e se despedem. Uma tristeza. Vamos embora antes que pensem que vim aqui para vos exibir o busto, pavonearme”

Jorge Amado, in "Navegações de Cabotagem (1999)

Efetivamente, quer no Brasil onde permaneceria até 1919, quer em Lisboa, nos primeiros anos após o seu regresso, a vida de Ferreira de Castro seria inicialmente difícil e penosa até se impor pela profundeza da sua escrita. Deste modo, em 1922, afirmar-se-ia veementemente na revista “A Hora” e mais tarde no jornal” O Século” (1927), a que se seguem as colaborações no suplemento literário do jornal operário “A Batalha”, semanário da Confederação Geral do Trabalho, bem como a assunção da direção do “Diabo”, hebdomadário de crítica literária e artística de oposição ao Estado Novo. Efetivamente, Ferreira de Castro sobressai jornalisticamente com excelentes trabalhos de humanismo social que suscitam a admiração e o guindariam à presidência do Sindicato dos Profissionais da Imprensa de Lisboa (1926). E, curiosamente, é também neste meio que conhece a primeira esposa, a jornalista e escritora Diana Lis, que precocemente faleceria em

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1930, ano da sua consagração como romancista.

Datam, assim, deste período excelentes crónicas e reportagens sobre as Constituintes da II República Espanhola, a Revolta da Andaluzia e o plebiscito sobre a autonomia da Catalunha, a entrevista ao líder republicano irlandês Eamon de Valere, bem como trabalhos sobre os albergues noturnos, ou o mutualismo, a que junta “perigosos” artigos sobre as condições de vida nas prisões portuguesas, como na prisão do Limoeiro e/ou nas Minas de S. Domingos, ambos proibidos pela censura.

Aliás, a censura iniciada em junho de 1926 e reorganizada em 1932, seria, ao longo da sua vida jornalística, um dos seus principais combates, que o levam a abandonar esse mister. No entanto, como disse, “a censura tem, porém, uma virtude: é demonstrar quanto vale ser homem livre, um povo livre”.

Ademais, o jornalismo seria também, em complemento da primeira homenagem taipense, a motivação para um novo preito nas Caldas das Taipas, levada a cabo pelo Gabinete de Imprensa de Guimarães, presidido pelo livreiro e jornalista Luís Caldas, no âmbito do XII Encontro Regional da Imprensa do Norte, em 28 de novembro de 1983.

Homenagens a que se acrescentaria uma outra, ocorrida em 6 de fevereiro de 1999, que congregaria instituições vimaranenses e taipenses e o Grupo Cultural e Recreativo de Ossela.

O ROMANCISTA CONSAGRADO

Realmente, ainda que várias obras tenham sido produzidas antes de 1928, este ano aziago da política portuguesa marca e lança Ferreira de Castro na literatura nacional e no mundo. De facto, após a publicação de “Emigrantes” e, dois anos depois, “A Selva”, o escritor projeta-se universalmente, com traduções em várias línguas, enveredando por uma prosa pejada de um forte humanismo social, adstrita ao povo deser-

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Imagem 36 - Ferreira de Castro e Jorge Amado

dado e oprimido:” nada me poderia interessar tão profundamente do que esta luminosa ideia de aliar o meu nome ao povo da nossa terra, ao povo de Portugal, talvez porque sou povo também”. “Emigrantes” é, assim, nas palavras do italiano A. R. Ferrarin, “o romance de todos os emigrantes”, enquanto drama da busca do pão quotidiano e melhoria das condições de vida, cujo protagonista Manuel da Bouça se configura como um arquétipo e alter-ego ficcional da própria experiência migratória do escritor: “sabeis, meus amigos, que o problema da emigração é dolorosamente familiar e que eu fui mesmo, porventura, o primeiro romancista português a tratá-lo com experiência própria”

“A Selva”, por sua vez, seria anunciada pela UNESCO, em 1973, como um dos dez romances mais lidos em todo o mundo, dando azo a uma adaptação cinematográfica e a série televisiva. Uma obra que transmite uma forte mensagem e justiça e fraternidade humana, que Jorge Amado considera ser” o bálsamo sobre a chaga aberta da violência mais ignóbil desabada sobre os índios iguais a crianças órfãs”.

Mas também um livro de duas pátrias (Portugal e Brasil), que revela “a selva amazónica, pelo muito que nela sofri durante os primeiros anos da minha adolescência e pela coragem que me deu para o resto da vida (…) que há de registar a tremenda caminhada dos deserdados através dos séculos em busca do pão e da justiça”.

Todavia, este ciclo de obras de forte humanismo social prossegue em 1933 com “Eternidade”, romance dedicado à falecida esposa Diana Lis, que transpõe catarticamente para a escrita o seu drama íntimo perante o absurdo da existência e fragilidade humana. Uma obra passada na Madeira na qual se a matriz castriana de cariz social se manifesta na personagem Juvenal, que consciencializando-se das discrepâncias sociais ente a burguesia funchalense e os camponeses, operários e bordadeiras da ilha trava uma luta de resistência que o levam à deportação para Cabo Verde. Porém, ficam as sementes do seu trabalho no ventre de sua companheira Elisabeth, cujo filho como esperança no futuro da humanidade e crença na capacidade de transmutação do homem continuará a luta:” a vida é mais forte e só ela

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Imagem 37 - Frases de Ferreira de Castro

existe! Quando eu já não puder lutar, lutará ele. E creio no seu futuro, no de todos os homens que hão de vir” …

Por sua vez, “Terra Fria” (1934), consagrada com o Prémio Ricardo Malheiros, cuja ação romanesca decorre em terras barrosãs, não só se constitui como obra de páginas vivas de singular antropologia, como também e fundamentalmente como testemunho de crítica feroz ao abuso de poder, sob princípios feudalistas dos poderosos da terra, cujo povo subjugado sob a canga da pobreza luta esforçadamente contra as condições de vida adversas.

Na mesma esteira, “A Lã e a Neve” (1947) assume-se também como uma epopeia do trabalho sob o paradigma social de transformação do mundo. De facto, quer o operário anarquista Marreta, quer o seu pupilo e pastor Horácio, assumem-se neste romance, passado entre o proletariado têxtil e o pastoreio da Serra da Estrela, como forças vivas de rutura do cerco da miséria, injustiça e opressão que abafa a iniciativas dos homens de boa vontade.

No fundo, uma obra concentrada no meio da tecelagem da serra, mas que, como cita Fidelino Figueiredo representa” em miniatura, toda a vida portuguesa, na sua imobilidade”

OUTRAS OBRAS E CONSAGRAÇÕES

Ferreira de Castro haveria ainda de escrever interessantes livros, como “Pequenos Mundos e Velhas Civilizações” (1937) e, após uma viagem planetária em 1939, livros de viagens como “A Volta ao Mundo” (1944) e “As Maravilhas Artísticas do Mundo (1959) que, em 1963, receberia o Prémio Catenacci da Academia de Belas Artes de Paris. Aliás este último seria até o tema da exposição ocorrida na Universidade do Minho, em Guimarães, em 2018, cidade que também evoca o autor na toponímia daa cidade, numa artéria nas Quintãs.

No entanto, uma obra completa que fecharia com uma terceira fase, que concilia os conflitos interio-

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Imagem 38 - Livros de Ferreira de Castro

res com as realidades sociais e históricas. Destacam-se deste período obras como “A Curva da Estrada” (1950), com ação no decurso da Segunda República espanhola ou “A Missão”. (1954) que reúne três novelas, uma das quais dá título ao livro e que se passa em França, durante a ocupação alemã.

“Instinto Supremo” (1968), que se crê parcialmente redigido nas Caldas das Taipas, seria a sua última obra que marca o seu regresso à selva amazónica. Uma obra centrada na figura do sertanejo Cândido Randon, republicano e abolicionista, e no processo de proteção e pacificação dos índios paratintins.

A título póstumo, seria ainda publicado em 1974” Os Fragmentos – Um Romance e Algumas Evocações” que edita alguns textos suprimidos pela censura.

E falta conhecer o conteúdo do misterioso embrulho de cartas femininas, à guarda do Museu Ferreira de Castro, em Sintra, que por vontade expressa do escritor, em março de 1974, só deverá ser aberto em 2050.

Em súmula, uma obra ímpar e exemplar que levou o romancista à presidência da Sociedade Portuguesa de Escritores em 1962 e a ser proposto para o Prémio Nobel em 1951 e em 1968, desta última vez em parceria com Jorge Amado, sob proposta da União Brasileira de Escritores.

Porém, o escritor receberia o Grande Prémio Águia de Oiro no Festival do Livro em Nice, em 1970, cujo valor monetário seria aplicado na construção da Biblioteca de Ossela, sua terra natal, e ainda o Prémio da Academia do Mundo Latino, atribuído também a Eugénio Montale e Jorge Amado.

Como cidadão empenhado, para além da luta contra a censura, é ainda relevante a sua ação política cívica na defesa dos valores democráticos, em especial no seio do Movimento de Unidade Democrático (MUD), que, em 1958, o sondaria para ser candidato da oposição à Presidência da República, convite que recusaria.

De facto, lutador até à morte, em 1974, logo após a Revolução do 25 de Abril, que ainda viveu com entusiasmo, Ferreira de Castro nunca virou a cara à luta, ciente que, como dizia, “em muitas coisas podeis aperfeiçoar o mundo e a vós próprios. Mas não é de joelhos que o fareis; é de pé e a lutar”.

Participaria ainda no desfile do primeiro 1º. de maio, em Lisboa, a gritar “Escrever é lutar! Escrever é lutar! …, sempre convicto que “transformaria a aldeia, transformaria o velho mundo num mundo novo com uma sociedade nova e um homem novo, transformaria em realidades as esperanças tanto tempo reprimidas”.

Re(ler) Ferreira de Castro e visitar seus espaços sagrados em Ossela (Oliveira de Azeméis) e Sintra é talvez um salutar exercício de boa leitura e de reflexão sobre o 25 de Abril que mais uma vez nos bate à porta.

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5 de maio - dia mundial da Língua Portuguesa

“A minha pátria é a língua portuguesa” (Bernardo Soares/ Fernando Pessoa)

O próximo dia 5 de maio é o Dia da Língua Portuguesa, criado pela Comunidade de Países de Língua Portuguesa a 20 de julho de 2009, em Cabo Verde, e comemorado anualmente entre os países de língua oficial portuguesa.

Esta efeméride seria posteriormente, em novembro de 2019, proclamada pela UNESCO como Dia Mundial da Língua Portuguesa.

Ora, neste ano de 2021, em que a Câmara Municipal de Guimarães e a Universidade do Minho vão realizar um seminário comemorativo, impõe-se memoriar a efeméride que, além da oficialização da criação da Associação Luso-Brasileira de Apoio à Arte, num protocolo de permuta entre Guimarães e S. Paulo passa também por sessões presenciais no Centro Cultural Vila Flor e apresentações do Museu de Língua de S. Paulo e do Museu Virtual da UM.

De facto, a língua portuguesa é uma das mais importantes do mundo, provavelmente a quinta ou sexta mais falada no planeta, cujos utilizadores se estimam em cerca de 244 milhões de falantes. Por isso, com tanta gente a dar à língua, é normal que ande nas línguas do mundo! Ainda por cima, dizem as más-línguas, porque tem fama de ser uma língua namoradeira, como nos conta o escritor angolano Eduardo Agualusa: “a minha língua é uma mulata feliz, fértil e generosa, que namorou o tupi e com o ioruba, e ainda hoje se entrega alegremente ao quimbundo, ao quicongo, ou ao ronga, se deixando engravidar por todos esses idiomas”.

Curiosamente, uma língua que “foi ao mesmo tempo, embora em espaços diferentes, língua de emigrantes e língua de colonizador”, ora acompanhando a diáspora, ora o colonialismo. Porém, como disse Amílcar Cabral, um dos obreiros da independência das ex-colónias portuguesas: “uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram”.

No entanto, não obstante namoros mais recentes, a língua portuguesa tem marcas de muitos outros lábios de encontros e desencontros proto-históricos e ancestrais. Memórias que remontam aos fenícios, gregos e hebreus e povos pré-latinos, como os celtas e iberos, ou ainda a reminiscências das línguas bárbaras dos suevos e visigodos, substratos importantes aos quais mais tarde, entre os séculos VIII e XII, se acrescentaria o árabe.

Todavia, sua marca indelével e matriz genética é o latim vulgar, trazido pelas invasões romanas e que

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constitui o seu adstrato essencial. Uma língua cuja ovogénese e berço mais remota recua ao chamado grupo linguístico indo-europeu, cuja ramificação teria dado 12 grupos de idiomas diferenciados, um dos quais o itálico, precursor do latim.

Todavia, o português terá pouco mais de 800 anos! Consta que a sua certidão de nascimento é o chamado “Testamento de D. Afonso II”, datado de 27 de junho de 1214, que terá sido o primeiro documento escrito na nossa língua. Obviamente, um português falado e escrito de maneira diferente, mas as línguas são assim mesmo, como as pessoas, têm a sua infância, (pré)adolescência e vida adulta. E se bem que não parem de se transformar sincronicamente e/ou diacronicamente, acompanham-nos no devir, sofrendo como as efémeras criaturas que nós somos, as angústias, pandemias e os constrangimentos dos tempos, que muitas vezes terminam na morte! Por isso, há línguas mortas ainda que imortalizadas, como o latim e outras quase completamente extintas como o comanche ou o aramaico, língua falada por Jesus Cristo; ou línguas completamente extintas, como são os casos do dácio, fenício, frígio, gaulês, gótico, hitita, o trácio, ou o vandálico (ainda que por vezes alguns vândalos atuais a ressuscitem vernaculamente!).

Porém, felizmente, a língua portuguesa continua bem viva e recomenda-se. Com efeito, graças à ação dos nossos antepassados, a língua portuguesa continua a ser “o lugar donde se vê o Mundo, em que se traçam os limites do nosso pensar e sentir” – como diz o escritor Vergílio Ferreira.

De facto, após a separação do galaico-português em duas línguas (o galego e o português) e em especial graças à ação do rei D. Dinis, que ordenou que todos os documentos oficiais fossem escritos em português, a nossa língua cresceu com os poetas, os cronistas e os dramaturgos, entre os quais Fernão Lopes e Gil Vicente, e solidificou-se com Camões, entre outros. Posteriormente, no século XVI mercê do Renascimento e da difusão do livro, devido à invenção da imprensa por Gutenberg, a língua estrutura-se e sistematiza-se, surgindo as primeiras gramáticas como a de Fernão Oliveira (1536) e de João de Barros (1539), bem como as cartilhas e os primeiros dicionários, pois como diria António José Barreiros, uma língua que é só falada anda à rédea solta!

Ademais, nesse século XVI e particularmente após os Descobrimentos, são importantes os cruzamentos com as línguas nativas, quer africanas e asiáticas quer americanas, em especial no âmbito do enriquecimento vocabular. Tal como, um pouco mais tarde, seriam relevantes algumas aportações estrangeiras, como os anglicanismos e galicismos, estrangeirismos por vezes decorrentes do surgimento de novas realidades tecnológicas, científicas e sociais, como gabardina (francês), piza (italiano), ou hambúrguer (inglês), palavras novas e neologismos que se integram na língua e que continuamente testemunham o dinamismo do idioma, cujos termos podem ser de ordem literária, remetendo para a expressividade e a criatividade

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linguística. São os casos de Eça de Queirós (lambisgonhice, pensabundo), Alexandre O’Neill (mosquitomania, olhos pestanítidos) ou Mia Couto (porradarias, arrumário), entre outros. Neologismos que podem também ter origem popular (pinoca, ramboia) e/ou que tendem, segundo Ernesto Guerra, “a suscitar o cómico ou o pitoresco expressivo, que servem de veículo a matizes de perceção difíceis de traduzir nos termos existentes”.

Com efeito, graças aos falantes e gente da pena, como jornalistas, poetas e escritores, que atualizam e reinventam a língua, a palavra tem acompanhado o homem na sua peregrinação através da vida, desde o soarismo ao cavaquismo, do PREC à geringonça, com ou sem drones, Brexit ou Coivid-19, enquanto que, em contrapartida, os arcaísmos caem asinha em desuso.

“Da minha língua vê-se o mar”, disse Vergílio Ferreira sobre o português, lavrador e marinheiro, cuja língua expressa sinestesicamente os aromas da canela e maresia, bem como os novos ritmos como o samba das ondas, ou os novos sabores agridoces de outros continentes.

No fundo, uma língua que apesar da sua unidade se abre à diversidade geográfica, sociocultural e modalidades expressivas, aspetos que inclusive passam o falar vimaranense.

Bem, esperamos não ter de dobrar a língua! Diremos apenas, sem papas na língua, que é preciso ter cuidado com ela e dar-lhe devido uso, pois é pela língua que o ser se conhece e por vezes tudo começa, pois ela é a morada do ser …

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Dia do Livro Português

No dia 26 de março celebrou-se o Dia do Livro Português, comemoração criada pela Sociedade Portuguesa de Autores com o intuito de destacar a importância do livro, do saber e da língua portuguesa em todo o mundo.

A efeméride tem como referência o 26 de março de 1487, data em que se imprimiu o primeiro livro em Portugal, intitulado “Pentateuco”, editado em hebraico pelo judeu Gracon, na Vila-a-Dentro, em Faro. Porém, um livro cujo único exemplar, infelizmente, se encontra na Inglaterra, depois de ter sido pirateado por Francis Drake, quando este atacou e saqueou a capital algarvia, em 1587, antecipando o turismo de massas dos séculos XX e XXI.

No entanto, dois anos mais tarde terá surgido “Confissom”, o primeiro livro cristão impresso, utilizando o sistema do alemão Johannes Gutenberg (1400-1468).

Data, porém, de 4 de janeiro de 1497 o primeiro livro escrito em português, produzido pelo impressor luso Rodrigo Álvares, intitulado “Constituições que fez o Senhor Dom Diogo de Sousa, bispo do Porto”

Assim, para evocar esta efeméride do Dia do Livro Português escolhemos a obra “Clepsidra” de Camilo Pessanha, por duas razões fundamentais: comemora-se o centenário da sua edição; e é um livro de poesia, o que permite também recordar o Dia Mundial da Poesia, memorado recentemente, em 21 de março, possibilitando matar dois coelhos de uma(só) cajadada!

Por outro lado, esta escolha é pertinente, porquanto esta obra encontra-se inserida na lista dos 27

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33 27 Grandes Livros Portugueses

- Os Lusíadas, Luís de Camões

- Os Maias, Eça de Queirós

- Amor de Perdição, Camilo Castelo Branco

- Mensagem, Fernando Pessoa

- Auto da Barca do Inferno, Gil Vicente

- Memorial do Convento, José Saramago

- Sermão de St. António aos Peixes, Padre António Vieira

- Peregrinação, Fernão Mendes Pinto

- As Pupilas do Senhor Reitor – Júlio Dinis

- Bichos – Miguel Torga

-Viagens na Minha Terra, Almeida Garrett

- Aparição, Vergílio Ferreira

- Rimas – Bocage

- O Livro de Cesário Verde

- Clepsidra, Camilo Pessanha

- Gaibéus, Alves Redol

- A Balada da Praia dos Cães, José Cardoso Pires

- Mau Tempo no Canal, Vitorino Nemésio

- AS Mãos e os Frutos, Eugénio de Andrade

-A Sibila, Augustina Bessa Luís

- Pena Capital, Mário Cesariny

- O Medo, Al Berto

. A Colher na Boca, Herberto Hélder

- Felizmente há luar! Luís de Sttau Monteiro

- Sinais de Fogo, Jorge de Sena

- Charneca em Flor, Florbela Espanca

- Poesia, Sophia de Mello Breyner Andresen

É só escolher …

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grandes livros portugueses33 .

De facto, Camilo Pessanha (1867-1926), poeta nascido em Coimbra, já lá vão mais de 150 anos, está atualmente na berlinda, mercê da comemoração do centenário da obra “Clepsidra” (1920). Deste modo e a propósito das efemérides aludidas, recordamos aqui e agora este vate finissecular, que terá sido o expoente máximo do simbolismo português.

Ora, Camilo Pessanha, formado em Direito, em 1891, viria a viver grande parte da sua vida em Macau, terra que geraria uma mudança radical da sua existência e onde acabaria por falecer. Com efeito, aí, no território macaense, exerceria funções no âmbito da justiça e ensino, bem como de conservador do registo predial, a que ajuntaria a profícua atividade como estudioso e tradutor da cultura chinesa que o deslumbra pela sua diversidade.

Quanto à sua obra, inicialmente e esparsamente divulgada em revistas e jornais e, mais tarde, coligida no volume Clepsidra (1920), reflete acima de tudo um tom de angústia, desencanto e inquietação perante a efemeridade da vida, bem como uma marcante apologia e mística da dor, tal como Raúl Brandão.

Uma poesia melancólica e pessimista de uma mundividência marcada pela ótica da dolorosa da existência, como é por exemplo evidente no poema “Castelo de Óbidos”:

“O meu coração desce, Um balão apagado… Melhor fora que ardesse,

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Nas Trevas, incendiado.”

Clepsidra, título da sua coletânea lírica que reúne a sua produção poética, aponta assim, enquanto instrumento de medição cronológico, através da água que mede o tempo, usado desde os ancestrais gregos, para esse fluir inexorável do tempo, impedindo que nada se fixe na retina e remetendo para a fragilidade da vida e da condição humana. Um negativismo e conflito existencial que o poema “Inscrição”, logo de início anuncia:

“Eu vi a luz em um país perdido.

A minha alma é lânguida e inerme.

Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído! No chão sumir-se, como faz um verme.”

Com efeito, considerado o mais importante representante do simbolismo português, Pessanha oferece-nos assim uma poesia em que a técnica impressionista é dominante, dotada de um cariz claramente cético e pessimista, embora não confessional, cuja temática mais relevante assenta na transitoriedade da vida, na mágoa e dor, no tédio e desilusão, no sono abúlico e mesmo na morte, patente no desejo de desaparecimento silencioso e infiltração no cosmos.

Perpassa assim na sua poesia, uma evidente perceção da fugacidade e caducidade da vida e a dolorosa consciência de que a realidade não passa de imagens rápidas e passageiras e/ou sonhos transitórios evanescentes ou mesmo dúbios:

“Imagens que passais pela retina

Dos meus olhos, porque não vos fixais?

Que passais como a água cristalina Por uma fonte pra nunca mais !…

Ou para o lago escuro onde termina

Vosso curso, silente de juncais, E o vago medo angustioso domina, - Porque ides sem mim, não me levais?

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Sem vós o que são os meus olhos abertos?

- O espelho inútil, meus olhos pagãos! Aridez de sucessivos desertos …

Fica sequer, sombra das minhas mãos, Flexão causal de meus dedos incertos, - Estranha sombra em movimentos vãos …

As imagens recorrentes do tempo, espelho e a água (como no soneto transcrito), o amor pelas paisagens outoniças e crepusculares, um certo distanciamento do real, assente na arte da sugestão e musicalidade, não só pela sonoridade dos versos como também pela sua ressonância interior, são com efeito algumas marcas simbolistas do poeta.

Música que se expressa através de 3 instrumentos musicais: a flauta enquanto temporalidade suspensa; a viola relacionando-se com a solidão, e o violoncelo ligando-se a sentimentos de destruição, ruína e fragmentação.

De facto, “a arte de Camilo Pessanha é uma das mais elaboradas de toda a poesia portuguesa” – afirma Jorge Vaz de Carvalho, na edição do “Público” de 19 de março, que acrescenta:

“Colhe de Verlaine a musicalidade e o poder evocativo no depurado requinte das palavras, dos ritmos, das sonoridades, das imagens, no rigor dos versos ordenados em estruturas fixas, estrofes simétricas de metrificação e rima regulares, como água que flui sobre a rocha firme e em recipientes sólidos.”

Relevante também a influência do simbolismo português, e de Pessanha em particular, na antecipação de alguns princípios das tendências modernistas, cujos principais representantes manifestariam alguma simpatia por esta nova corrente literária. Fernando Pessoa, por exemplo, endereçou-lhe uma carta elogiosa, com o seguinte teor: “(…) o meu pedido é que V. Exª. permitisse a inserção, em lugar de honra do terceiro número, de alguns dos seus admiráveis poemas (…) Nós não pedimos só por nós, mas por todos quantos amam a arte em Portugal”

Como é óbvio, Pessoa referia-se à publicação de poemas de Camilo Pessanha na revista “Orpheu” (1915), que nunca seria editada, acabando estes por serem publicados na revista “Centauro”, em 1916.

Interessantes serão também as leituras dos sonetos do tríptico “Caminho”, bem como do poema a seguir apresentado, redigido aquando da morte da mãe, que pela sua polissemia poderá facultar interpretações diversas:

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“Quem polui, quem rasgou os meus lençóis de linho.

Onde esperei morrer – meus tão cansados lençóis?

Do meu jardim exíguo os altos girassóis

Quem foi que os arrancou e lançou no caminho?

Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)

A mesa de eu cear –tábua tosca, de pinho?

E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?

- Da minha vinha o vinho acidulado e fresco …

Ó minha pobre mãe! … Não te ergas mais da cova

Olha a noite, olha o vento. Em ruínas a casa nova …

Dos meus ossos o lume a extinguir-se em breve.

Que dizer então das interrogações laceradas deste soneto?

Um poema sobre o processo violento da destruição a que nada há que se lhe possa opor? A temática da recusa do passado, que a mãe simboliza e que simultaneamente em absoluta negatividade, prepara a abertura para a morte?

Ou um poema de convocação da mãe e da dor sentida pela sua morte, que privou com o eu lírico da sua intimidade, presente nos símbolos de pureza que foram torpemente violados?

Não cabe aqui e agora alongar mais esta dissertação sobre o poeta e/ou transcrever outros seus poemas como “Floriram por engano as rosas bravas”, “Singra o navio. Sob a água escura” ou “passou o Outono já, já torna o frio”, entre outros, que se sugere a leitura

Efetivamente, importa sim (re)ler e recordar Camilo Pessanha, o mestre do simbolismo português, neste centenário de “Clepsidra”, no âmbito das concomitantes efemérides do Dia do Livro Português e Dia Mundial da Poesia.

Ademais porque, como diz José Fanha “a poesia é a língua materna da Humanidade” …

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A propósito do dia Mundial do Teatro

27 de março de 1961 marca a data de institucionalização do Dia Mundial do Teatro pelo Instituto Internacional de Teatro, no decurso do seu 9º. Congresso, em Viena.

De facto, coincidindo com o aniversário de Atenas, na pátria e berço do teatro ocidental, esta efeméride instituída aquando da inauguração do Teatro das Nações, em Paris, tem ao longo destas últimas décadas contribuído indelevelmente para recordar o papel importante desta arte milenar e forma de expressão como fonte de divertimento, informação, inspiração e educação humana.

Porém, como afirma Augusto Boal “o teatro não pode ser apenas evento – é forma de vida!”

Assim, da tragédia à tragicomédia, melodrama à revista, comédia ou drama, farsa ao teatro infantil, o teatro assume-se nos seus diversos (sub)géneros como o palco da vida, na qual atores somos todos nós, ainda que nem sempre usemos a máscara transformadora ou apenas a usemos em tempos de pandemia.

Efetivamente, remontando aos tempos primitivos, a representação (teatral) sempre participou da existência humana como necessidade de comunicação e/ou homenagem aos deuses, ora retratando o sofrimento humano, a luta contra a fatalidade e as causas nobres ora satirizando os excessos, a falsidade e a mesquinharia.

Com efeito, desde o ditirambo de homenagem ao deus Dionísio (deus do vinho) à catarse das tragédias dos gregos Sófocles, Ésquilo e Eurípedes e do romano Séneca, até às comédias do grego Aristófanes e dos romanos Plauto e Terêncio, que fazer rir e/ou chorar é uma das prerrogativas desta arte secular, que para além da máxima vicentina “ridendo castigat mores”, visa refletir e reagir sobre a vida e a sociedade.

Deste modo, desde os mestres mais antigos como Shakespeare ou Molière, até ao mais atuais como Pirandello, Sartre, Camus ou Arthur Miller e ainda autores como Ibsen, Strindberg, Pinter e Beckett, ou os russos Gorki e Tchekhóv, entre muitos outros, o teatro sempre tem feito jus à asserção de William Hazlitt de que “o homem é um animal que finge – e nunca é tão autêntico como quando interpreta um papel”.

Em Portugal, o nosso conterrâneo Gil Vicente, cuja peça teatral “O Auto da Visitação” ou “Monólogo do Vaqueiro” (1502) tem sido assumida como o primeiro texto dramático nacional, é considerado consensualmente o pai do teatro português.

Assim, além de berço da nação, Guimarães está intrinsecamente ligado ao teatro português, recordado no “Monumento aos 500 anos do Teatro Português e a Gil Vicente” , numa homenagem promovida pela

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Sociedade Martins Sarmento e Santos Simões, em 8 de Junho de 2003, aquando das comemorações do 5º. centenário da primeira peça vicentina.(Recorde-se que o dia 8 de Junho já foi feriado municipal de Guimarães até 1951, de acordo com a deliberação camarária de 15 de Janeiro de 1913).

Quanto ao monumento, trata-se de uma escultura da autoria de Irene Vilar, erigida no espaço ajardinado da Alameda de S. Dâmaso, em cujas prateleiras sete máscaras evocam a representação dramática e o seu primeiro dramaturgo. Mestre que curiosamente comemora também este ano o cinquentenário da sua peça “Auto da Barca do Inferno”. (1517) De facto, passaram mais de 500 anos de teatro português e obviamente muitas peças e autores: António Ferreira, Camões, Almeida Garrett, Bernardo Santareno, Luís de Sttau Monteiro, entre muitos. E, claro o nosso vimaranense adotado, Raul Brandão, ao qual se ajuntam outros autores como João Guimarães, o Conde de Arnoso o e o Padre Gaspar Roriz, entre outros Realmente, nesta história de séculos, Guimarães manteve-se (quase) sempre em palco ou nos bastidores, conservando viva a tradição teatral.

De facto, assim foi no decurso da Capital Europeia da Cultura (2012), tem sido nas sucessivas edições dos Festivais Gil Vicente e Mostra de Teatro de Amadores, bem como na programação do Centro Cultural Vila Flor, inaugurado em 2005. Mas acima de tudo na fundação do Teatro Oficina, que desde 1994 se tem afirmado como o centro de criação teatral contemporâneo, bem como por parte dos grupos de teatro amador concelhios em prol da arte de Talma.

Anualmente salientamos ainda o espetáculo revisteiro das Danças Nicolinas e esporadicamente iniciativas como o Teatro Bus, projeto de um palco ambulante sobre rodas que levou de autocarro a sensibilização ambiental às escolas concelhias, sob a coordenação teatral da Oficina. E obviamente, no ano de 2017, a organização do Festival Húmus, que a propósito dos 150 anos do nascimento de Raul Brandão levou a cena praticamente todas as peças deste escritor e dramaturgo.

Raul Brandão é também uma referência importante na criação do Teatro de Ensaio Raul Brandão (TERB), secção de teatro do Círculo de Arte e Recreio (CAR), que Santos Simões dirigiu entre a data da sua fundação em 1959 até 1995 e que posteriormente seria orientado por Fernando Capela Miguel até 2001, mantendo-se até hoje.

Por outro lado, a recente criação do curso de Licenciatura em Teatro na Universidade do Minho, no Campus de Azurém, constitui outra mais-valia para a afirmação cultural e teatral de Guimarães.

De facto, Guimarães nunca descurou o teatro. Com efeito, data do século XVII uma das suas primeiras salas de espetáculos, o Teatro dos Cómicos Ambulantes, a que se seguiram vários outros que não resistiram

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aos tempos: Vila Pouca (desaparecido em incêndio suspeito), S. Francisco, D. Afonso Henriques e o Gil Vicente, todos eles no século XIX, bem como o emblemático Teatro Jordão, inaugurado em 1938 com um “Serão Vicentino”.

Com efeito, inicialmente denominado Teatro Martins Sarmento por imposição da Inspeção de Espetáculos, sob o argumento que apenas aceitaria patronos de relevo nacional, o Teatro Jordão, encerrado em1993 e posteriormente adquirido pela Câmara Municipal em 2010, continua presente no imaginário vimaranense, a aguardar a ansiada recuperação e reabilitação.

Também em várias escolas/agrupamentos o teatro marca louvavelmente presença, fazendo jus à sua atualidade perene entre as novas gerações.

Porque, como diz Schopenhauer “não ir ao teatro é como fazer a toilette sem espelho”. Pois, como diria Boal, o teatro “é uma forma de vida” …

Por isso, VIVA O TEATRO, SEMPRE!

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Gil Vicente fez 556 anos

A crer como certo o ano de 1465 como a data de nascimento de Gil Vicente, patrono do agrupamento escolar Gil Vicente, perfazem 556 anos que o escritor e pai do teatro português viu a luz do mundo, em todos os seus vícios e (poucas) virtudes, como se depreende da leitura das suas peças.

Gil Vicente (1465-1536) que o genealogista D. António de Lima afirma ter nascido em Guimarães e que Camilo Castelo Branco defende na novela “A Viúva do Enforcado” – inserida na obra “Novelas do Minhoser natural da freguesia de Urgezes, viveu quase toda a sua vida na corte, em Lisboa, durante os reinados de D. Manuel I (1495-1521) e D. João III (1521-1557), sob a proteção real, em especial da rainha Dona Lianor, a quem dedica muitas das suas peças, por vezes encomendadas para celebrar festas religiosas ou acontecimentos marcantes. Aliás, a sua primeira peça, intitulada “O Monólogo do Vaqueiro” ou “Auto da Visitação” (1502), seria representada na câmara da rainha Dona Maria, no velho palácio de Alcáçova, no dia seguinte ao nascimento do príncipe João, futuro rei D. João III, numa saudação a esse mesmo acontecimento.

Ora, Gil Vicente escreveu mais de 40 peças de teatro, reunidas em 1562, após a sua morte, pelos seus filhos Paula e Luís Vicente, na obra “ Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente”. Uma vasta produção literária e bilingue, pois cerca de um terço da sua obra foi escrita em língua castelhana, cujas fontes brotam dos textos religiosos, da tradição popular portuguesa, em especial do folclore e da literatura oral, bem como da inspiração e leitura das éclogas espanhóis de Juan del Encina, do antigo teatro cómico francês e até dos romances de cavalaria. Obviamente e ainda que o teatro vicentino possa considerar-se uma criação original, uma vez que as manifestações teatrais pré-vicentinas se cingiam a representações elementares de carácter religioso, profano e satírico, às quais falta a aliança indissociável de um texto e da representação do ator, estas representações rudimentares não são contudo alheias a mestre Gil que as inova graças ao seu prodigioso poder de invenção. Criatividade que assume não só através da sua enorme galeria de personagens, em especial seus tipos-sociais (personagens que revelam a psicologia do seu grupo social de pertença), como também pela sábia utilização de vários processos de cómico (linguagem, situação e carácter). Deste modo, suas peças facultam-nos uma visão aproximada da sociedade portuguesa do seu tempo, em especial nos seus vícios, cujo alvo fundamental visava a crítica aos poderosos, aos materialistas e corruptos, à ambição sem escrúpulos e à imoralidade e ao luxo. Assim, na sua produção literária, conjuga-se uma atitude de denúncia moralizante e interventiva de cariz humanista com outras facetas caracteristicamente medievais, evidentes na estrutura alegórica de muitas das suas peças de inspiração religiosa, na linguagem

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arcaizante e no uso da redondilha maior (versos de sete sílabas), aspectos que o enquadram como um escritor de transição entre os tempos medievais e a mentalidade humanista renascentista. De facto, três períodos diferenciados se podem distinguir na obra vicentina: um primeiro período em que predominam os autos pastoris e as peças de devoção de cariz mais religiosa, com uma ação dramática rudimentar, em que impera a ordem e a harmonia e que culmina grosso modo entre 1502 e 1508; um segundo período, até cerca de 1520, no qual a corrente profana predomina e a inspiração religiosa se esbate, assumindo-se a ruptura da ordem e da harmonia estabelecidas perante o “desconcerto do mundo”, surgindo os temas de crítica social e patrióticos, construídos com maior dramatismo e diálogos mais vivos e naturais; e um terceiro período (1521-1536) em que o teatro vicentino se enriquece, introduzindo a mitologia, o enredo novelesco e a alegoria fantasista, recorrendo ao diálogo mais fluído e mordaz e à crítica mais atrevida. É com efeito a este desconcerto decorrente dos Descobrimentos, guerras europeias e crise da Igreja, ainda que numa época anterior à Inquisição (1536), que Gil Vicente dá resposta através da sátira, que funcionava como uma espécie de catarse e “medicina autorizada” pela monarquia e que não poupa (quase) nada nem ninguém: certas pessoas, defeitos humanos, vícios intemporais como a usura (Auto da Barca do Inferno) ou tipos humanos como o velho apaixonado (O Velho da Horta). Mas são sobretudo os tipos-sociais o objecto das atenções satíricas vicentinas, às quais (quase) ninguém escapa: os fidalgos e a nobreza (Auto da Barca do Inferno e Farsa dos Almocreves); o clero, não só na da hierarquia mais baixa (Auto da Barca do Inferno, Clérigo da Beira e Farsa de Inês Pereira) como também o alto clero (Barca da Glória e Auto da Feira); os homens da justiça, como o velho juiz da “Floresta de Enganos”, ou o procurador e o corregedor do “Auto da Barca do Inferno”; o próprio povo, como é evidente no Vilão e o Lavrador de “Romagem dos Agravados”, no sapateiro ladrão do “Auto da Barca do Inferno”.

Efetivamente entre as várias formas do teatro vicentino como os autos pastoris (Monólogo do Vaqueiro), moralidades religiosas (Autos das Barcas ou Auto da Alma), narrações bíblicas (Auto da Cananeia), fantasias alegóricas (Auto da Lusitânia), autos narrativos (O Velho da Horta ou D. Duardos), são as farsas que mais claramente nos fornecem um espelho satírico da sociedade e a intenção crítica do autor. Realmente, quer estas se apresentem como flagrantes da vida real (caso da Comédia de Rubena com a inesquecível cena do parto), quer tenham um propósito satírico (Quem Tem Farelos? ou Clérigo da Beira), ora sejam farsas independentes (Romagem dos Agravados), ora assumam um efeito cómico-satírico (Farsa de Inês Pereira ou Auto da Índia), de comum visam colocara ridículo os vícios ou defeitos da época. Abundam por isso nas peças vicentinas diversos tipos satíricos (clérigos, magistrados, usurários), tipos tradicionais (alcoviteira, judeu,) e com menor importância alguns tipos folclóricos, numa enorme galeria de tipos sociais ou

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personagens-tipo retratados, por vezes com traços de caricatura (a mulher libertina, o médico charlatão, a proxeneta, o homem enganado, etc.), que nos conferem um valoroso depoimento histórico da sua época.

A intervenção irónica da Moça, no Auto da Índia, quando esta se refere a sua patroa adúltera, é elucidativa: “Quantas artes, quantas manhas/Que sabe fazer minha ama! /Um na rua, outro na cama!”. Como também é esclarecedora a fala do marido regressado da Índia sobre os objetivos esconsos dos Descobrimentos: “Fomos ao rio de Meca/pelejámos e roubámos”.

Com efeito, é no confronto com a ordem e harmonia institucional e na (contra)cultura cómica popular que mestre Gil bebe a inspiração mais incisiva para muitos das suas peças, que levam o poeta da corte a embrenhar-se e evadir-se no burlesco, na paródia (das cerimónias e dos textos sagrados) e na farsa, sob a tolerância de um poder monárquico compreensivo perante o espírito da época e aqueles tempos de um certo “mundo às avessas”, que careciam de purificação catártica.

Porém, para além do seu pioneirismo teatral e arte literária, é acima de tudo o Gil Vicente crítico e denunciador que nos prende ainda nos nossos dias pela sua atualidade e argúcia. Com efeito, muitos dos seus tipos-sociais mantêm-se ainda hoje atuais. Curiosamente, há cinco séculos atrás, como agora, reina a usura e a especulação dos grandes grupos financeiros, que inclusive sugam estados, instala-se a corrupção desenfreada, grassa o poder sem escrúpulos e desregulado por parte dos poderosos, subsiste a desconfiança na justiça, continua o deboche do clero e até a guerra santa em nome das religiões.

Crê-se também, ainda que alguns biógrafos discordem, que Gil Vicente foi também mestre de ourivesaria, autor da célebre custódia de Belém, uma vez que o rei D. Manuel nomeou “Gil Vicente, ourives da rainha” e “mestre da balança da moeda da cidade de Lisboa”. Mestre ourives ou não, Gil Vicente é sem qualquer dúvida um escritor e dramaturgo que perdurará para além dos séculos.

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150 anos das Conferências do Casino

Em maio de 1871, já lá vão 150 anos, um grupo de jovens escritores e intelectuais portugueses passaram a reunir-se em Lisboa, após os estudos em Coimbra, constituindo o denominado grupo do Cenáculo, prolongando, na capital, as discussões intelectuais dos tempos académicos. Ora, é nesta esteira que a 18 de Maio de 1871 seria publicado no jornal Revolução de Setembro o manifesto-programa das chamadas Conferências Democráticas, que vão ter início a 22 de Maio numa sala alugada do Casino Lisbonense e como tal ficariam conhecidas por Conferências do Casino.

Cinco conferências cujo manifesto apontava, entre outros pontos, para as preocupações com as transformações social, moral e política dos povos, em especial em “ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade”.

Deste modo, como preconizava o programa-manifesto, visava-se “agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência Moderna e estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa”.

Com efeito, assinado por 12 intelectuais portugueses como Antero de Quental, Eça de Queirós, Jaime Batalha Reis, Oliveira Martins, Manuel de Arriaga e Teófilo Braga, entre outros, as Conferências do Casino lançariam um movimento de ideias novas e revolucionárias, tendo como base a leitura de Proudhon e tendo em vista a divulgação da crítica positivista à maneira de Taine, o evolucionismo de Darwin e as teorias de Marx e Engels. Como é óbvio, um movimento que, para além da expressão do realismo artístico como novo ideal de vida e a crença no progresso das sociedades, vislumbrava horizontes mais longínquos e vastos, como: “o estudo das ideias que devem presidir a uma revolução, de modo que para ela a consciência pública se prepare e ilumine (…)”

Entre as cinco conferências, as primeiras duas iniciais por Antero, e a quarta por Eça que abordou “A Literatura Nova – o realismo como nova expressão de Arte”, participaria ainda Augusto Soromenho que falaria sobre a “ Literatura Portuguesa” e Adolfo Coelho sobre “A Questão do Ensino”.

Porém, duas conferências sobressairiam. Eça, com um novo grito de revolta contra as tradições literárias vigentes, em especial ao romantismo, lançando um novo roteiro do pensamento humano, que o escritor defende como sendo “a anatomia do carácter, a crítica do homem.”. Ou, como adiante detalha, “é a arte que nos pinta a nossos próprios olhos – para nos conhecermos, para que saibamos se somos verdadeiros ou falsos, para condenar o que houver de mau na nossa sociedade (…)”

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No entanto, a segunda preleção de Antero, intitulada “Causa da Decadência dos Povos Peninsulares” seria porventura e globalmente a mais incisiva. De facto, apontando o dedo acusador ao catolicismo posterior ao Concílio de Trento - que desvirtuara a essência do cristianismo, bem como à monarquia absoluta, que coartava as liberdades; e ainda indigitando as conquistas ultramarinas como fatores de hábitos funestos de ociosidade e grandeza, Antero identificava os três males ibéricos e as causas da decadência, propondo alternativas: a consciência livre, a ciência, a filosofia e a crença na renovação da Humanidade; a federação republicana com larga democratização da vida municipal; a transição para o novo mundo industrial do socialismo, a que pertence o futuro.

Era o seu conceito de Revolução que, conforme expressaria em síntese na sua conferência, passava pelo cristianismo: “O Cristianismo foi a Revolução do mundo antigo: a Revolução não é mais do que o Cristianismo do mundo moderno”.

Como afirmaria Eça nas Farpas, “era a primeira vez que a Revolução sob a sua forma científica tinha em Portugal a sua tribuna”, sob os auspícios de Taine, Proudhon e os acontecimentos de Paris, nomeadamente a proclamação da Comuna em 18 de Março de 1871.

Efetivamente, cinco conferências que abalariam as instituições vigentes da época, mas que acabariam de ser encerradas por portaria de 26 de Junho de 1871, pois, como na altura se justificou, “procuram sustentar doutrinas e proposições que atacam a religião e as instituições políticas do Estado (…) e ofendem clara e diretamente as leis do reino e o código fundamental da monarquia”.

Como sempre, a lei da rolha, que Rafael Bordalo Pinheiro caricaturou como “Os Conferentes de Bocas Rolhadas”, que o seu desenho da época bem elucida.

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Democracia Rima com Cidadania

Gabriela Nunes, Associação para o Desenvolvimento das Comunidades Locais (ADCL) gabrielanunes@sapo.pt

Winston Churchill

Escrever sobre Abril, Liberdade e os enredos profissionais que abraço em Guimarães é um desafio hercúleo para escassas linhas. Restam-me breves pensamentos de afirmação de um tempo em que cresci, contemporânea de mudanças e direitos sociais que me orgulham. Nas palavras de tantos que cantam a história e o tempo, passado ou futuro, que honram o passado e redefinem o futuro com novos sentidos, me suporto e defendo este Abril, onde me encontro e revejo e viso honrar o convite da Associação Osmusiké – Associação

Cultural e Artística do CFFH, com um percurso reconhecido e sustentado de formação, investigação e criação artística.

Se retrocedêssemos no tempo, até antes do 25 de Abril de 1974, não reconheceríamos Portugal. Sem liberdade. Sem democracia. Sem paz. A Constituição não garantia o direito dos cidadãos à educação, à saúde, ao trabalho e à habitação. Sem direito de reunião e de livre associação, as manifestações eram proibidas. A atividade política e associativa era escassa e controlada. A informação e as formas de expressão cultural eram censuradas. Portugal perpetuava a guerra colonial, particularmente isolado na comunidade internacional. Não reconheceríamos Portugal! Não reconheceríamos Guimarães!

Com a implantação de um regime democrático, após a revolução de Abril, Portugal abraça múltiplos desafios para a construção de uma sociedade mais justa e em que o bem-comum se impõe aos interesses particulares e corporativos. Neste Abril, a construção de um estado de bem-estar, ainda que tardiamente por comparação com muitas outras sociedades europeias, torna-se um imperativo democrático. A saúde, a educação e a proteção social tornam-se pilares fundamentais deste estado de bem-estar. Portugal inicia, então, um processo firme, mas longo, de regeneração de uma sociedade autocrática, fechada sobre si mesma, iletrada, desigual no acesso aos cuidados de saúde mais básicos e em que a pobreza era o único horizonte material de vida para a generalidade dos portugueses. Nas palavras simples cantadas e maiores

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“Democracy is the worst form of government, except for all the others”

de Zeca em Menino do Bairro Negro: “Onde não há pão, não há sossego”34 .

Muitos de nós não tem qualquer memória vivenciada desse tempo. Mas, a história não engana. Eu, como a maioria, também não tenho memória, mental ou física, das agruras vividas pelos nossos “egrégios avós” durante, pelo menos, meio século do Estado Novo. Mas todos nós, no seio das nossas famílias, conhecemos as histórias sobre: a guerra; a “meia sardinha” para cada um; a esperança de “fazer quartaclasse”; o trabalho infantil; a falta de cuidados de saúde, que condenavam à morte muitas crianças; o medo de falar; os livros proibidos e assim por diante. O Estado-Novo, por definição, era um regime autocrático que preconizava a existência de um assistencialismo corporativo restritivo e de base caritativa, com critérios ético-religiosos ou sociopolíticos na organização e na concessão de recursos35 (Joaquim, 2015). Esta matriz de destituição social e de indigência material serviria a alguns, certamente, mas não servia o bemcomum.

Guardo na memória as canções de Abril, aquelas em que nasci e que inocentemente cantava, inspiradas na liberdade e na esperança democrática, porque “a cantiga é uma arma”36 (José Mário Branco). No colo da minha mãe, quando ouvia qualquer acorde, mesmo que na missa, só a letra da canção de Ermelinda Duarte “Somos Livres” de uma gaivota “voava, voava, asas de vento, coração de mar. Como ela somos livres, somos livres de voar!”37 me ocorria e cantava. Cantava alto, convicta e sobrepunha ingenuamente às outras vozes, sobre o pedido maternal de silêncio e os olhares surpresos e sorridentes em redor, complacentes com a idade inocente, por ventura presságio de novas infâncias e vivências.

Hoje, tenho a memória vivida e clara sobre os avanços nos direitos sociais e na proteção social, pós 25 de Abril de 1974, pois enformam a minha vida pessoal, mas também profissional, com quase um quartel de século, sobretudo na Associação para o Desenvolvimento das Comunidades Locais (ADCL). Sou já filha da escola pública, que generalizou o ensino e o acesso ao conhecimento e à qualificação, do serviço nacional de saúde que nos auxilia na doença e acompanha-nos por toda a vida, e de um sistema de proteção e segurança social que promove uma redistribuição mais equitativa dos rendimentos, construindo uma “safety net” preventiva da pobreza e da exclusão social. A cidadania é o único critério para o acesso à escola pública, ao serviço nacional de saúde e à proteção social e não a pertença a uma qualquer elite predestinada.

34

“O Menino do Bairro Negro”, uma das mais belas baladas de Zeca Afonso, editada 1963 na EP Baladas de Coimbra. 35

Cf. Joaquim, Cláudia (2015) “Proteção social, terceiro sector e equipamentos sociais: que modelo para Portugal”, in os Cadernos do Observatório, CES, Universidade de Coimbra. 36

“A Cantiga é uma Arma”, composta por José Mário Branco, em 1973, durante o seu exílio em França. 37

“Somos Livres (a gaivota voava, voava) ”, uma das mais populares músicas de revolução de Abril, escrita e interpretada por Ermelinda Duarte.

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Proliferam associações de âmbito social, associações juvenis e de estudantes, associações ambientais, associações culturais, associações de moradores, associações de pais, entre muitas outras. Como refere Cláudia Joaquim (2015:34): “O Estado abandonou o papel supletivo que vinha a adotar até então no domínio da assistência social, e assumiu o seu intervencionismo em matéria de solidariedade social, tendo inclusive clarificado o papel das Instituições Particulares de Solidariedade Social no sistema de segurança social”38 . Com a alteração do paradigma a proteção social foi enquadrada pelo sistema de segurança social o qual engloba três subsistemas: 1) o de proteção social; 2) o previdencial; e 3) o complementar39 .

Sob o símbolo dos cravos e com os sons de Abril, que lembram que “o povo é quem mais ordena”40 , a cidadania, o acesso à proteção social, à saúde, à cultura e à educação vieram melhorar as condições de vida, potenciar o acesso a oportunidades sociais e profissionais, ao conhecimento e à fruição de bens culturais, e desenvolver competências valorizadas profissionalmente. Define o artigo primeiro da Constituição da Republica Portuguesa: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.”41

Em Guimarães, cidade que escolhi para viver, Abril pulsa. E a democracia rima com cidadania. Nas ruas e praças, nas escolas, nas múltiplas associações e instituições, nas respostas sociais e de saúde e no reforço dos apoios sociais. Mesmo nas zonas mais inusitadas. Entre o património e a história que a Cidade e os Vimaranenses tanto se orgulham, assumem-se os desafios da contempo-

38

Joaquim, Cláudia, ibidem p 34.

39 O primeiro visa o direito a mínimos vitais por parte dos cidadãos em situação de carência económica e a igualdade de oportunidades, bem como o bem-estar e a coesão social, prevenindo e erradicando as situações de pobreza e de exclusão, bem como a compensação por encargos familiares. O segundo, a componente contributiva do Sistema de Segurança Social, assente no princípio de solidariedade de base profissional, visa garantir prestações substitutivas de rendimentos do trabalho. O terceiro engloba regimes de capitalização, de natureza pública e privada, com carácter facultativa e voluntária (Lei de bases gerais do sistema da Segurança Social). Cf. Decreto-Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro. As bases gerais do sistema de segurança social.

40 A canção “Grândola, Vila Morena”, de Zeca Afonso, talvez a mais icónica de Abril incluída no álbum Cantigas de Maio de 1971.

41 Artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa.

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raneidade e valoriza-se a vitalidade associativa, criativa e cultural, a solidariedade, a cidadania e o bemcomum. Hoje, por imperativo de saúde pública, não podemos viver a cidade como desejamos e a sentimos. Mas, perante os desafios, permanece e até se agiganta, de formas mais ou menos inovadoras e criativas, a vivacidade das gentes e das instituições e o espírito cívico e democrata. Na ADCL, onde trabalho, que se desdobra em serviços, respostas e projetos sociais, comunitários, formativos e culturais ou, n’ Osmusiké, onde se canta, se dá cor e representa a cidade, o seu património, a sua cultura, as suas gentes, a infância e o conhecimento, perpetuam-se as conquistas de Abril.

Mas este percurso não é linear: é feito de avanços, recuos e de ajustes que, democraticamente, se vão operando. Se é inegável que se vive melhor, há ainda um longo caminho a fazer. Mais, importa estar atento, muito atento e perceber que é responsabilidade de todos, pela democracia e pela liberdade, defender estes avanços democráticos e direitos sociais, promovendo outros, sobretudo contra preceitos obscurantistas travestidos de mitos e falsidades. Num contexto de democracia resiliente e madura, sejamos capazes de ultrapassar os novos e grandes desafios que se erguem, exacerbados por uma pandemia e consequente crise social, económica e financeira. Como referiu o Papa Francisco “Cada dia é-nos oferecida uma nova oportunidade, uma etapa nova. Não devemos esperar tudo daqueles que nos governam; seria infantil. Gozamos dum espaço de corresponsabilidade capaz de iniciar e gerar novos processos e transformações.”42 42

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Francisco (2020) “Fratelli Tutti: Carta Encíclica sobre a Fraternidade e a Amizade Social”, Paulinas Editora, Lisboa, pp 48 a 49.

A Muralha43

Em 1981 respirava-se ainda, e muito, os acontecimentos políticos de 1974. As pessoas falavam com paixão das suas opiniões, dos seus desejos, da sua visão de futuro. Já havíamos tido duas eleições para Presidente da República, quatro eleições para a Assembleia da República e duas eleições autárquicas. Discutia-se então as escolhas democráticas e o progresso que, ontem como hoje, é um vocábulo pesado e não delimita muito bem a sua incontida subjetividade.

Guimarães não escapava à onda da necessidade desse progresso, desse desenvolvimento alicerçado na escolha, na opinião e no estaleiro visível que rasga a cidade. Nas praças e nas ruas os seus cafés alimentavam essa discussão: o progresso muito ligado ao crescimento urbano, novo, que o poder autárquico aqui ao lado, em Braga, dava corpo com especial devoção. E Guimarães não cresce? E Guimarães não arrasa para fazer do novo a excitação do momento?

É neste contexto de euforia na mudança, seja ela de ideias ou de construção civil, que surge a Muralha, associação de Guimarães para a defesa do património. Creio que na mente da Comissão Instaladora se instalara a certeza de que estávamos, enquanto comunidade, no palco de escolhas políticas decisivas em termos de urbanismo. E esse momento era importante, demasiadamente importante para que os cidadãos esclarecidos não se envolvessem na discussão, não lutassem por aquilo que sendo decisivo era também o correto, o desejável. A importância da conservação e recuperação do nosso património edificado era uma luta a ter naquela altura, apesar da sensibilidade que os vimaranenses sempre tiveram relativamente ao seu património a época que se vivia atirava para experimentalismos perigosos cujas consequências irreversíveis só muito mais tarde daria para a comunidade perceber. Guimarães era ontem, como é hoje, uma cidade histórica. Quem conhecia as cidades europeias sabia da importância de preservar o edificado, de o mostrar, de tirar dele as necessárias vantagens culturais, sociais e económicas. Quem as não conhecia ou não as apreciava devidamente encavalitava-se na palavra progresso para arrasar sem dó nem piedade a nossa história comum, esperando que o deslumbramento da novidade se sobrepusesse à saudade das coi43

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Texto adaptado e atualizado do artigo “A Muralha e a grande causa”, publicado na revista Cidade Invisível (2016)

sas a que conhecíamos a forma.

Guimarães teve até àquela altura três documentos importantes em termos urbanos: o Plano de melhoramentos da cidade (1863) de Almeida Ribeiro, o Plano de alargamento da cidade (1925) de Luís de Pina e o Anteplano de Urbanização de Guimarães (1949) de David Moreira da Silva. Em 1981 discutia-se e construía-se um documento de igual importância e impacto, coordenado por Fernando Távora: o Plano Geral de Urbanização (1979-1982). Se o Plano vingasse Guimarães poderia chegar até hoje como a conhecemos agora, se o Plano fosse triturado pelos arautos do progresso as consequências seriam previsivelmente imprevisíveis com enorme custo para a cidade, para os seus cidadãos, e para o orgulho que eles sentem na cidade que habitam.

O grupo de cidadãos que fundou a associação Muralha tinha essa noção de urgência. Quando o tempo é de mudança convém perceber e afirmar o que importa preservar, o que importa fazer para destacar o que se quer manter. E o Plano Geral de Urbanização estava na linha da preservação patrimonial, incluindo em si um Plano de Pormenor do Centro Histórico (1981) a cargo de um Gabinete Municipal, uma das boas ideias da altura e que daria, mais tarde, origem ao Gabinete Técnico Local (1985).

A preocupação era garantir o futuro pelo respeito pelo nosso património comum. E a recuperação cuidada do Centro Histórico era uma preocupação central. O envolvimento de Fernando Távora com a Muralha é disso um exemplo claro. O notável arquiteto é o primeiro presidente eleito da associação em 1982. Voltaria em 1985 para novo mandato. Mas havia outras preocupações. A coleção de imagens antigas de Guimarães, em clichês de vidro, das casas Foto Eléctrica Moderna e Foto Moderna de Domingos Alves Machado poderia perder-se se nada fosse feito. Assim, em 1981, a associação adquire uma parte das imagens que completaria alguns anos depois. Hoje a Colecção de Fotografia da Muralha, constituída por 5646 clichês fotográficos em vidro, tem uma vida própria e constitui-se como uma das mais bem estruturadas e estudadas coleções de fotografia portuguesa dos inícios do século XX, o que permitiu a realização de um conjunto de exposições no âmbito da capital Europeia da Cultura através do programa Reimaginar Guimarães – A Cidade da Muralha (2011-2012), Rever a Cidade (2012) e Plano Geral-Grande Plano (2012-2013) –e fora dela – Guimarães a preto e branco (2009), o Trabalho (2014), a Celebração (2015), Na Cidade (2016), Álbum de Família (2016) e O Verde a Preto e Branco (2017). Hoje a Colecção de Fotografia da Muralha apresenta, pela solidez dos contributos anteriores, um caráter dinâmico e virado para o futuro com o estudo de outros acervos e a incorporação de visões contemporâneas da cidade.

A Muralha, associação de Guimarães para a defesa do património, pela natureza das suas preocupações, não teve vida fácil. O apontar o dedo àquilo que não estava correto causou, ao longo do seu historial, um conjunto de tensões nem sempre levadas com a necessária elevação por parte dos intervenientes a

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quem a instituição alertou para erros ou omissões. Mas a associação sobreviveu com a altivez própria da sua razão a todos os contratempos e pressões. Ao longo destes quase 40 anos de existência, não contando com as inúmeras colaborações a que acedeu, a instituição cerca de 70 exposições e organizou mais de uma centena de visitas guiadas. As exposições e as visitas guiadas são os principais instrumentos públicos da sua atividade enquanto participante cívica ativa da vida da comunidade a que pertence. Mas também a atividade editorial da Muralha se destaca com várias publicações nos anos oitenta e noventa a chamar a atenção para património e usos em risco de se perderem, acelerando decididamente a partir da Capital Europeia da Cultura com publicações em que deu a conhecer a sua Colecção de Fotografia (A Cidade da Muralha, Rever a Cidade, Plano Geral Grande Plano). Destacam-se ainda António Azevedo e Guimarães – vida e obra (2012), O Dia V (2013), O Trabalho, A Celebração, Na Cidade e Álbum de Família (2016), ou O Verde a Preto e Branco (2017).

As exposições e visitas organizadas pela Muralha tiveram, muitas vezes, um cunho de alerta à comunidade para a degradação patrimonial e ambiental. São exemplos disso as exposições Rios do Concelho (1982), O Rural na Cidade (1985), Capelas de Guimarães (1996) ou Sobre Pontes (2010), ou as visitas guiadas Azulejos de Guimarães (1982), Mosteiro de S. Salvador de Souto (1983), Capela de Nossa Senhora da Conceição (2000), Rota do Fresco (2012), À volta da Muralha (2015), Guimarães Conventual – III (2016) ou a Fábrica do Castanheiro (2019). Outras exposições foram aos aspetos menos conhecidos do património como as mostras Pormenores da Arquitectura de Guimarães (1984), Mobiliário Urbano de Guimarães (1986) ou Das Casas, lugares e tradições (2019), sem esquecer a dimensão concelhia de Guimarães – Património do Concelho (1985), S. Torcato (1987) ou Bandas e Coretos (2000) e um conjunto grande de visitas guiadas ao património de várias freguesias de Guimarães.

A causa do património não é uma causa de passado: é uma causa de futuro. A elevação de Guimarães a património cultural da humanidade, em 2001, é disso o mais acabado exemplo e o sinal de que vale a pena. Para termos chegado até aqui, apesar da boa sensibilidade dos vimaranenses em relação ao seu património, foi preciso lutar muito, foi preciso tomar decisões difíceis, foi preciso dizer ao progresso para esperar um momento que o passado importa e tem existir na memória e no olhar de todos. A Muralha esteve sempre, creio, do lado certo desta complicada barricada ética, moral, cultural.

Respeitar o nosso legado e a nossa cultura, conhecê-la melhor, divulgá-la adequadamente é, e sempre foi, o papel da Muralha. Abrindo sempre, como hoje acontece, a sua estratégia a novas dinâmicas e à colaboração daqueles que têm uma contemporânea visão sobre o nosso legado histórico, sobre as pessoas, enfim, sobre aquele que é o nosso património comum.

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O caminho para a Democracia e a Misericórdia de Guimarães

A primeira experiência de democracia existente em Guimarães é certamente a eleição do Provedor da Misericórdia de Guimarães.

Tal como a eleição do responsável máximo da Igreja Católica é uma das eleições mais antigas do mundo, se excetuarmos a Grécia antiga. A eleição do Provedor da Santa Casa é, em Guimarães, certamente o ato democrático mais antigo da cidade.

Embora há 500 anos atrás houvesse uma separação entre irmãos “de primeira” - os que tinham uma melhor condição social e poder de voto, e os irmãos “de segunda” - aqueles que operacionalizavam as atividades da Misericórdia e sem poder de voto -, o ato eleitoral está registado em várias atas como uma participação digna de tempos atuais.

Sendo os responsáveis da câmara designados pelas cortes, a Misericórdia assumia-se como a única Instituição com base democrática na indicação do seu líder.

Outro período curioso em que a Santa Casa passou um dos períodos conturbados foi aquele em que alguns portugueses lutaram por, a par da Monarquia, aprovarem uma constituição que lhes garantisse direitos e apontasse em direção a uma democracia.

Neste contexto, as lutas liberais e miguelistas em Portugal completaram um ciclo de oito anos no seu total e dividiram Guimarães e a Santa Casa em duas fações: aqueles que queriam ver uma constituição que promovesse a Igualdade, a Liberdade e a Fraternidade e outros que defendiam o absolutismo e o despotismo de D. Miguel.

Portugal inteiro dividiu-se entre apoiantes de D. Pedro e D. Miguel.

Guimarães mergulhou nesta luta de forma intensa. Infelizmente, é um período pouco estudado em Guimarães, mas que se reveste de grande interesse pois são mais que muitas as peripécias, as batalhas e as estratégias políticas que se deram no berço da nação.

Houve muitas crueldades cometidas: mortos, feridos, bens confiscados, terras abandonadas, roubo, fogo posto, lares desfeitos, etc...

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Mesário – Secretário.

A Misericórdia de Guimarães não foi exceção e talvez tenha tido, neste período, a fase mais difícil de toda a sua história, mas a introdução de uma constituição que nos iria conduzir a uma democracia prevaleceu no final com a vitória dos constitucionalistas.

Na sessão da Mesa Administrativa de 1826 foi constatada a afluência de feridos no Hospital, em resultado de uma das batalhas mais sangrentas com mortos no Toural e um pouco por toda a cidade, devido a um confronto entre liberais e miguelistas.

O medo assolou toda a cidade e nas semanas consequentes a cidade ficou deserta, tal era o receio das pessoas de irem à rua…parecendo que uma pandemia teria chegado a Guimarães….

A Mesa Administrativa confrontada com o auxílio a tantos feridos militares deliberou “que se suspendessem as rações e esmolas e mais se não admitissem entrevados e inválidos” e “que se despedissem do Hospital os doentes de queixas venéreas e os incuráveis…”

Mas, o que podemos constatar de mais cruel foi a perseguição exercida contra todos quantos fossem de ideologia contrária, ou seja, despediam-se funcionários e riscavamse Irmãos conforme fossem liberais ou miguelistas.

Na sessão de 4 de agosto de 1828 da Mesa, por se saber que estavam presos os médicos da Misericórdia António Joaquim Ferreira de Castro e Manuel José Faria por serem liberais foram imediatamente substituídos dos quadros da Santa Casa.

O capelão, Padre Francisco Xavier Pereira Guimarães, e o sacristão mor foram igualmente substituídos por desafeto a D. Miguel.

Outro capelão do coro chamado Padre António Luís Carvalho Reis foi igualmente “despedido” da Misericórdia por ter ímpetos constitucionalistas.

O boticário vimaranense Teotónio Ferreira da Cunha Carvalho, que tomou armas no Porto contra D. Miguel, deixou também de colaborar com a Santa Casa por Ordem da Mesa Administrativa.

A 18 de Março de 1829, procedeu-se a uma depuração no rol dos Irmãos. Todo aquele que era suspeito de ser liberal, era apelidado de maçónico e riscado de Irmão da Misericórdia.

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Imagem 39 - Sede da Misericórdia

Quando os ventos políticos mudaram, a folha 62 V. do códice 14 foi traçada em trinta linhas para ocultar os nomes aí escritos e os dizeres inflamados à causa de D. Miguel.

Mas como a vida dá muitas voltas e a sorte política muda à velocidade da luz, sucedeu-se à perseguição Miguelista, o ajuste de contas Pedrista ou Liberal.

Em 1834, os antigos empregados voltam aos seus lugares, o mesmo sucedendo com os irmãos riscados.

A requerimento do Reverendo Francisco Xavier Guimarães, referido anteriormente, um dos capelães expulsos, é dada como legítima a sua readmissão porque “Não era agora crime o que então tal era apelidado”.

O mesmo fundamento é apresentado pelos Irmãos aos quais haviam dado baixa, no rol da Irmandade, “Não podendo esse suposto crime ser causa suficiente para serem riscados…. Acrescendo que tal crime não existia, sendo pelo contrário uma virtude resistirem à usurpação, conservando o juramento de fidelidade prestado à causa legitima da Rainha e que da mesma forma não podiam atender a outras causas, por tudo o que parecia se deviam restituir, como se nunca fossem riscados, ao número dos Irmãos desta Santa Casa”. (arq. da Mis. Códice 14, fis. 138 e 142)

Sem embargo a readmissão foi realizada na sessão imediata.

O período após as lutas liberais continua extremamente complicado pois a causa miguelista instalada na Mesa Administrativa contraiu dívidas em prol do apoio às campanhas militares de D. Miguel.

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Abril e a Liberdade – Osmusiké Teatro

Abril é um mês emblemático na história da Revolução Portuguesa. Em 25 de abril de 1974 é derrubada a ditadura. O processo então iniciado permitiu a conquista da liberdade e a instauração do regime democrático depois de 48 anos de ditadura. Com o surgimento da crise pandémica a sociedade vêse privada de um dos seus mais importantes direitos, o Direito à Liberdade. Relembramos alguns momentos do Grupo de Teatro Osmusiké na comemoração do 40º aniversário da Revolução dos Cravos.

Exposição dos trabalhos na Casa da Memória…

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Radionovela

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“President’ Talent – Candidato a Belém” in CMG – Comemoração dos 40 anos do 25 de abril.
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PORTUGAL AMORDAÇADO”, Peça de Teatro inserida na programação das Comemorações do 40.º Aniversário do 25 de Abril – Fábrica das Associações, foi apresentada ao público em geral, em 10 de Abril na EB 1 de Monte Largo, em colaboração com a Associação de Pais da mesma escola. Reposição em 24 de abril, com quatro sessões, duas em colaboração com a Associação de Pais da EB 1 de Oliveira do Castelo –10 e 11 horas, no Pavilhão da EB 1 de Oliveira do Castelo e 12.30 e 15.30 no Auditório da EB 2/3 Santos Simões. A peça foi vista por mais de 700 alunos.

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Imagens do espetáculo:

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O nosso sentir… sem cultura não há liberdade…

“Os meus heróis na vida real são os que desafiam a lei em nome de um ideal” Natália Correia

A liberdade de expressão e o fim da opressão são o motivo de celebração que impulsiona Osmusiké a comemorar a Revolução dos Cravos, com a edição do Caderno 2 e a realização de dois espetáculos: “Vozes e sons da Liberdade” e “Guimarães Tesouros Clandestinos”

No dia 25 de abril de 1974, explodiu a revolução! A senha para o início do movimento foi dada à meianoite através de uma emissora de rádio, a senha era uma música proibida pela censura, “Grândola Vila Morena”, de Zeca Afonso.

Zeca Afonso, uma referência nacional entre as vozes de contestação ao regime do Estado Novo — a ditadura, que já se prolongava desde 1926, em Portugal , era ele que a encabeçava. Foi precisamente a partir da arte, da composição lírica, da música, que expressou a sua indignação em relação ao estado do país, fazendo-o de forma tão sagaz e subtil que foi fintando a austeridade da censura. Grândola, Vila Morena, uma canção que viria a ser determinante na Revolução dos Cravos, protagonizada pelo Movimento das Forças Armadas a 25 de abril de 1974. Seria a palavra-chave do início das movimentações do golpe pelo qual Zeca tanto se bateu. Luís Almeida (Júnior) é um artista vimaranense, apaixonado pela música de Zeca Afonso. Não há uma comemoração da Liberdade em que ele não cante a música de “ZECA”. Mas o Luís não é só talentoso cantando Zeca Afonso. É também cantando e tocando música galaico-portuguesa e do cancioneiro popular, entre outras. É um artista multifacetado nas várias vertentes da arte. Seguiu as pisadas do pai, Luís Almeida, elemento do conjunto “Ritmo Louco” e ator do teatro de Ensaio Raul Brandão, onde desempenhou vários papéis, levando o teatro a várias localidades do concelho e não só, dirigido por António Soares de Abreu e, mais tarde, por Santos Simões. O Luís Almeida Júnior foi fazendo escola acompanhando o pai.

Osmusiké tem usufruído do seu talento, desde 2012, ininterruptamente, até ao presente, quer na participação e colaboração como sonoplasta, técnico de som e luz, quer na criação de músicas, para espetáculos, como ainda no papel de encenador e autor. Destacamos algumas das peças em que acumulou funções de ator e sonoplasta: O Avejão de Raul Brandão; O Auto do Vaqueiro de Gil Vicente; D’Assis de Paulo César Gonçalves; Frei João e as Beatas; Pêro do Paço e as Regateiras; Os Saltimbancos chegam à cidade; A Insustentável leveza do casar; Guimarães in moda – Casamento singular anos 20; Colombina e seus dois

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amores; Sons com História; Reencontros com mitos e lendas; Deusas Gregas e Charlot ou a Alma de um povo; Cinema mudo ou talvez não; Afonso Henriques e o Festival da Canção; Sitio de Memórias; Raul Brandão na Rua…

No pretérito dia 27 de março, Dia Mundial do Teatro, o Presidente de Junta de Freguesia – União de Freguesias de Oliveira, São Paio e São Sebastião, homenageou-o com o galardão – Gil Vicente. Uma homenagem mais do que merecida!

“Rejubilo de contentamento por apoiar e promover esta iniciativa comemorativa do Dia Mundial do Teatro, ao mesmo tempo, em nome da Junta de Freguesia homenageamos um cidadão desta cidade que tem dedicado parte da sua vida, seguindo uma tradição de família à Arte da Talma- Luís Almeida Júnior.” Rui Porfírio, Presidente da Junta de Freguesia

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Parabéns Luís Almeida!

O teatro é arte... é cultura... A cultura de um povo é património ... é património do seu país e da humanidade.

Expressamos e ajudamos o outro a entender e a compreender melhor o mundo. Além disso conhecimentos, valores e até crenças são perpetuadas por gerações através da arte e da cultura.

Sem cultura não há liberdade!

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Cravos e Nicolinas - as Festas nos anos de 1974-1975

José

Testemunhos:

António Amaro das Neves

Gaspar Vitorino de Sousa Ferreira José Carlos Ferreira Gomes Correia José da Cunha Oliveira Ribeiro

LIBERDADE!

Outono de 1974.

O país vive a ressaca do 25 de Abril. O regime tinha sido deposto. Respira-se enfim. Fervilham as movimentações políticas. Todos têm opinião sobre tudo e sucedem-se as Assembleias, Reuniões Gerais e debates mais ou menos ad hoc.

Aproximam-se as Festas Nicolinas carregadas, há vários séculos, aos ombros dos estudantes vimaranenses.

Diz-nos José Carlos Correia, que seria presidente da Comissão de Festas neste 1974: “Nos meses pós 25 de Abril houve muita agitação no Liceu, com sucessivas RGA’s a propósito de tudo e mais alguma coisa, mas foi das poucas escolas onde não houve saneamentos”.

António Amaro das Neves, aluno do Liceu de Guimarães de então, diz-nos também: “aqueles eram dias em que tudo se discutia”.

ELITISMO

As Nicolinas, na senda “progressista”, eram acusadas de elitismo e anacronismo. A história repetia-se. Já nos tempos de uma anterior revolução, aquela que desembarcou na implantação da República, pelos idos de 1910, houve acusações do mesmo jaez. Como diz António Amaro das Neves, “muitos defenderam que as festas dos estudantes a S. Nicolau, com os seus batuques de selvagens, não eram próprias de um meio civilizado, pelo que deviam ser extintas”. Já por essas alturas os estudantes faziam questão de rebaixar os caixeiros, considerando-os de estatuto social inferior.

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Regressando a 1974, o elitismo era manifesto na desconsideração dos estudantes da então Escola Industrial que não tinham o estatuto Nicolino. Há um conhecido episódio que se passou pouco antes, quando os estudantes do Liceu, em dia de Roubalheiras, afixaram à entrada da dita escola a placa que surripiaram à Casa dos Pobres, numa mensagem clara.

Em Coimbra, poucos anos antes, em 1969, o Presidente da Associação Académica, o vimaranense e Nicolino Alberto Martins, no famoso episódio do “peço a palavra”, tinha desencadeado a Crise que culminou no Luto Académico e, entretanto, na sequência, o traje académico havia sido abolido.

PROCESSO DE ELEIÇÃO DA COMISSÃO

Outono de 1974.

Aproximam-se as Festas Nicolinas e o primeiro passo para a sua prossecução é o processo de eleição da Comissão de Festas. Foi feita, como desde há décadas atrás, ao pé do chafariz, no Largo Martins Sarmento, junto ao Convento do Carmo. Chafariz, com mais de quatro séculos, ele próprio anterior à mais antiga notícia que temos sobre as Nicolinas, datada de 1645, e que estava desterrado do seu lugar original para onde regressou recentemente: o Largo do Toural.

Diz-nos António Amaro das Neves que “[a eleição decorreu] com todos os eleitos a envergarem trajo casual, como hoje se diria, em vez do rigor da capa e da batina da tradição. Sinal dos tempos…” (A fotografia prova-o).

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Imagem 40 - Comissão de Festas Nicolinas, 1974, eleita no Jardim do Carmo pelas 15 horas do dia 4 de novembro

Assembleia presidida por-Alberto José Guedes Lameiras

Presidente- José Carlos Ferreira Gomes Correia Tesoureiro- José Carlos das Neves Macedo Guimarães Vice-presidente- José Alberto Ribeiro Gomes Alves Secretário- Henrique Alcino Mendes Carvalho Machado Primeiro-vogal da Academia- Gaspar Vitorino de Sousa Ferreira Segundo-vogal da Academia- António Manuel da Costa Machado Faria Primeiro-vogal de Festas- Simão Roriz Marques Segundo-vogal de Festas- José Maria Teixeira de Oliveira Nogueira Chefe de Bombos- Abel Fernando de Bessa Monteiro Subchefe de Bombos- Fernando José de Matos Martins Fernandes

Socorremo-nos, novamente, de José Carlos Correia que afirma que “[a eleição] foi pacífica e dentro daquilo que até aí vinha sendo habitual, ou seja, reunião no Largo do Carmo, candidatando-se os estudantes na hora e sendo a votação por voto ‘mais ou menos secreto’, isto é, cada um de nós segredava ao ouvido do ‘Presidente’ o seu voto”.

Esta escolha sempre se manteve democrática, mesmo durante os tempos da ditadura do Estado Novo, resistindo a interferências da Mocidade Portuguesa porque, antes de mais, era da ‘rapaziada vimaranense’. E, de novo, naqueles tempos de política exacerbada, não se deixaram manobrar pelos atores de então. Diznos de novo José Carlos Correia que “as únicas tendências políticas organizadas eram as de extremaesquerda e tinham o bom senso de não de meterem em coisas que poderiam ser ‘perigosas’ e, como tal, mantiveram-se fora de problemas”.

PEDITÓRIO

Mas as Festas implicam a recolha de fundos. O usual peditório decorreu com normalidade. Os estudantes, não se podendo identificar pelo traje, identificavam-se através de um cartão autenticado pela secretaria do Liceu e pela direção da AAELG.

Ouçamos outra vez José Carlos Correia, Presidente da Comissão de Festas que refere que“o financiamento das Festas foi feito através dos moldes habituais, ou seja, com peditórios porta-a-porta, sem qualquer tipo de apoio municipal, peditórios esses em que a malta (leia-se os membros da Comissão) ia aproveitando para surripiar uns cobres que davam para uns lanchezitos melhorados e com um peditório mais substancial nas empresas da zona de Moreira de Cónegos, Vizela e Lordelo”.

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PROGRAMA DAS FESTAS

António Amaro das Neves reporta que, “No essencial, o programa das festas de 1974 seguiu o modelo dos anos anteriores, que eram tempos de altos e baixos nas festas a S. Nicolau. Nos anos antecedentes, havia números que eram vítimas de intermitência: as Posses, o Magusto e as Danças. Nenhum deles se realizou em 1974. Dos números tradicionais, só se realizaram o Pinheiro, o Pregão e as Maçãzinhas. Por outro lado, não falharam dois números de introdução recente: o Baile de encerramento e a Gincana (então rebatizada como Prova de Perícia Automóvel).

As inovações daquele ano foram as “Reuniões de Convívio” no ginásio do Liceu, nos dois sábados que antecederam o Pinheiro e uma novidade absoluta, fruto daqueles dias, uma mesa redonda, também no Ginásio do Liceu, onde se debateram as propostas dos partidos para ‘um ensino verdadeiramente democrático’, em que participaram representantes dos partidos políticos: Miller Guerra, pelo Partido Socialista, Amândio de Azevedo, representando o Partido Popular Democrático, José Craveiro da Costa, em representação do MDP/CDE, António José Cruz Mendes, pelo MRPP e Gonçalo Reis Torgal, em representação dos Núcleos Sindicais. O moderador foi Acácio de Melo, professor do Liceu. O PCP não se fez representar por recusar sentar-se ao lado do MRPP…”.

Vejamos, então: No dia 29 de novembro, como é de antigo costume, saiu o Cortejo do Pinheiro. Escutemos, uma vez mais, José Carlos Correia que refere que, “Nesse tempo e após as 19 horas, apenas tocavam caixa e bombo os antigos estudantes, homens… O Pinheiro era erguido no jardim que existia na esquina da Praça da República do Brasil e da Rua Dr. José Sampaio. Até esse ano tudo era feito manualmente, apenas com a ajuda de um aparelhómetro manobrado ‘à broa’. Um colega meu da Comissão, já falecido, disse-me que um empresário madeireiro, à troca de depois poder ficar com o Pinheiro, se propunha erguê-lo por meios mecânicos (como hoje, aliás, é feito). Depois de todo o cortejo e de termos entregue ao Zé das Vacas o valor combinado, mais figos e bagaço para o pessoal dos bois, constatei que não estava qualquer máquina no local. Questionado aquele meu colega, fui informado de que seria um camião com grua que dali a pouco tempo lá estaria. Completamente ‘rebentado’, não quis saber de mais nada e lá fomos para o Bar Avenida onde iríamos comer a mais que merecida ceia. Cerca das 6/7 horas fomos avisados de que o Pinheiro continuava deitado no chão porque não tinha aparecido camião nenhum e os lavradores haviam-no tirado dos carros. Escusado será dizer que nessa noite não fomos à cama e, logo de manhã cedo, fomos tentar arranjar alguém que nos ajudasse. Essa ajuda veio de uma empresa de Covas que com um

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camião grua lá levantou o Pinheiro, tendo nós pago o serviço como era justo”.

No dia 1 de dezembro organizou-se a Gincana nos campos de jogos do Liceu.

A 4 de dezembro, realizou-se, no ginásio do Liceu, o já referido Debate com representantes partidários.

A 5 de dezembro, como manda o calendário, recitou-se o Pregão, da autoria do prolífico A. Meireles Graça, figura cimeira Nicolina, dedicado pelo autor “aos que morreram sonhando liberdade e aos que viverem sonhando democracia”. Note-se que foi o primeiro Pregão, em cerca de quatro décadas, que não teve de ser objeto de análise prévia pela Censura.

Eis um excerto desse Pregão:

«Vamos soltar aqui de Nicolau Pregão Que mostra uma vez mais ser o nosso patrono O senhor da Verdade, o senhor da razão Que no nosso País outrora tinha dono: É Nicolau, o Santo, o nosso capitão Somos todos na Festa os generais sem sonos Abertos para a luta e para a evolução Decretando à Mentira um total abandono!»

A 6 de dezembro, saiu o Cortejo das Maçazinhas “que, como já vinha a acontecer há alguns anos, teve uma adesão pequena, mas bem maior do que a atual”, na análise de José Carlos Correia.

No dia 7 dezembro, decorreu o Baile, “outra importante fonte de receita para as Festas, que não se realizou no Restaurante Jordão, mas sim no ginásio do Liceu com a atuação do Quarteto 1111, com o José Cid, o Michel, o Mike Sergeant e o Tozé Brito. Foi um êxito”, refere, ainda.

Outras testemunhas afiançam ter havido contestação no público com várias bocas e alguma confusão…

Assim encerraram as Festas Nicolinas de 1974.

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P.R.E.C.

No ano seguinte veio o ‘Verão Quente’ e o ‘Processo Revolucionário em Curso’, o ‘P.R.E.C.’. O país – e o Norte em particular –, estava a ferro e fogo. O 25 de novembro haveria de chegar quase em cima das Nicolinas.

Com ajuda de José Ribeiro, que integrou a Comissão de Festas, vejamos o que se passou em 1975 numa penada: “Em pleno ‘PREC’, algumas forças políticas, bem presentes no meio estudantil sobretudo no antigo Liceu, tudo fizeram para acabar com esta secular tradição.

Recordo muito bem uma das tentativas. Eram normais, à data, as famosas RGA’s (Reunião Geral de Alunos). Bastava angariar pouco mais de meia dúzia de assinaturas.

Acontece que uma dessas RGA’s, convocada por um grupo de opositores das Festas, tinha como ponto principal votar o fim das Nicolinas. Entrámos em pânico. Tínhamos que delinear uma estratégia que o impedisse. No dia da Reunião, com o ginásio à pinha e um barulho ensurdecedor, só era possível comunicar através da instalação sonora. A estratégia cumpriu-se: munidos de alicates, um grupo de ‘heróis’ do qual eu

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Imagem 41 - Cartaz do Baile das Nicolinas, 1974

fazia parte (a maioria viria a fazer parte da Comissão), cortou todos os fios da instalação sonora não permitindo a continuação da RGA. Que grande confusão! Tudo aos berros, sem se aperceberem no imediato do que tinha acontecido. Não foi, pois, possível levar a proposta a votação. Apesar de mais tentativas, os opositores foram vencidos pelo cansaço. As convocatórias eram sempre retiradas dos expositores, nem que para isso tivéssemos que dormir no Liceu. A continuação das Festas estava garantida. É minha convicção que, mesmo que levada a votação, esta estupidez não passaria, mas não podíamos correr este risco.

E assim, neste clima, se realizaram as festas de 1975.

A eleição decorreu nos moldes habituais junto do Chafariz. Uma fila de alunos ditava o nome do candidato preferido ao ouvido do Presidente, por norma do ano anterior. Estava eleita a Comissão sem registo de qualquer incidente. A fotografia do grupo, como mandava a tradição, foi tirada com o traje académico, contrariando a do ano de 1974.”

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Imagem 42 - Comissão de Festas Nicolinas, 1975, eleita no Jardim do Carmo pelas 15 horas do dia 22 de outubro

Assembleia presidida por José Carlos Ferreira Gomes Correia

Presidente- José Alberto Ribeiro Gomes Alves

Tesoureiro- Henrique Alcino Mendes Carvalho Machado Vice-presidente- Gaspar Vitorino de Sousa Ferreira Secretário- Simão Roriz Marques Primeiro-vogal da Academia- António Manuel da Costa Machado Faria Segundo-vogal da Academia- José da Cunha Oliveira Ribeiro Primeiro-vogal de Festas- Bento Gomes Martins Ferreira Segundo-vogal de Festas- Francisco da Cunha Oliveira Ribeiro Chefe de Bombos- José Maria Teixeira de Oliveira Nogueira Subchefe de Bombos- Carlos Duarte da Silva Araújo Ribeiro

“As Festas decorreram com muitas bocas e até ameaças, mas, com exceção das Roubalheiras, Posses e Danças, todos os números foram realizados e com grande adesão da população. Recordo que o cortejo das Maçãzinhas teve mais de 12 carros alegóricos. O meu tinha como tema precisamente o ‘PREC’. Em cima do carro, as figuras do momento. Otelo (eu) Rosa Coutinho, Álvaro Cunhal. Os símbolos do comunismo (foice e martelo) eram puxados por cordas e rastejavam atrás do carro.

Na Comissão de Festas reinava a confusão. Fora das grandes decisões, os mais novos queriam impor algumas regras. Os peditórios tinham que ser mais transparentes. Perante a ameaça de demissões é permitida a criação da primeira e, penso que única, ‘comissão sindical’ dentro da própria Comissão de Festas, que tinha como principal objetivo controlar os peditórios e obrigar os grandes a partilhar as decisões.

Criadores da comissão sindical foram: eu, José Ribeiro, o Xico Ribeiro, meu irmão, o Bento Ferreira e o Manuel Machado. Foi comprado um cofre com dois segredos onde era depositada a receita dos peditórios que ficou à guarda, na casa do Bento (Alameda S. Dâmaso), entretanto nomeado presidente do ‘sindicato’.”

Como reconhece António Amaro das Neves, nesses anos, opositor das Festas: “Estavam errados, os que defenderam que as Festas Nicolinas deveriam ser condenadas à extinção por serem elitistas. Hoje sabemos que não era preciso acabar com as festas, por causa da sua natureza elitista. Bastava acabar com o elitismo nas festas, que foi o que, com o tempo, aconteceu”.

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MORAL DA HISTÓRIA

As Nicolinas são uma lição de resistência há mais de três séculos e meio.

Nunca se deixaram instrumentalizar. Tudo ultrapassaram: a Monarquia, a República, a Ditadura, as Revoluções e os censores, mais ou menos oficiais, que cada época instituiu.

As Festas sobreviveram reinventando-se, contando sempre com o melhor de cada sucessiva geração: a Juventude. E, também, com uma quantidade apreciável de ‘velhos’ que, resgatando a sua, todos os anos, ajudam a, mais do que não as deixar morrer, fortalece-las pelo exemplo e pelo legado.

Temos, pois, um dever de gratidão para com aqueles e aquelas que lutaram contra as adversidades ao longo de séculos e, neste caso, para com os rapazes dos ‘anos da brasa’ de 1974/75.

Bem hajam! Viva São Nicolau!

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A presença da Cruz Vermelha Portuguesa em Guimarães

Quando a 17 de fevereiro de 1863 Henri Dunant, após ter assistido à carnificina provocada pela guerra na Batalha de Solferino, funda o Comité Internacional da Cruz Vermelha, estava longe de imaginar as repercussões que essa sua atitude teria no mundo inteiro.

A batalha de Solferino aconteceu no norte de Itália a 24 de junho de 1859. Foi um episódio decisivo na luta pela unificação de Itália e também um momento importante na evolução do humanitarismo moderno. Está na origem do movimento da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho e das Convenções de Genebra.

Tropas aliadas francesas e sardas, comandadas pelo Imperador Napoleão III, enfrentaram soldados austríacos. Estavam em confronto mais de 300 mil soldados. Após quinze horas de luta sangrenta, mais de seis mil soldados mortos jaziam por terra e mais de trinta e cinco mil estavam feridos ou desaparecidos.

Nem os serviços médicos franceses nem os serviços médicos austríacos conseguiam atender tanto ferido. Praticamente não havia serviço de transporte de doentes; a água e comida começavam a faltar.

Um jovem suíço (Henri Dunant) que se encontrava na região a tratar dos negócios de seu pai, perante tamanho desastre, tomou a iniciativa de tratar dos feridos e moribundos. Na igreja de Castiglione fez o que pôde com a ajuda de voluntários locais. O grupo cuidou de todos os homens de forma igual, independentemente de que lado haviam lutado, inspirando a criação da frase “tutti fratelli” (todos irmãos).

A batalha de Solferino levou Dunant a incentivar a criação de uma organização neutra e imparcial para proteger e assistir os feridos de guerra – Comité Internacional da Cruz Vermelha. Propôs ainda que deveriam ser criadas sociedades voluntárias para socorrer e tratar feridos de guerra e catástrofes, desencadeando a fundação de Sociedades da Cruz Vermelha e Crescente Vermelho nos mais diversos países.

Sugeriu ainda que fosse estabelecido um princípio internacional para servir de base para essas sociedades, culminando na assinatura das Convenções de Genebra, que a 12 de agosto de 2019 completaram 70 anos.

Humanidade, Imparcialidade, Neutralidade, Independência, Voluntariado, Unidade e Universalidade: os Princípios Fundamentais que são o alicerce do compromisso do Movimento para atender as pessoas e

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comunidades vulneráveis afetadas por conflitos ou desastres.

O Comité Internacional da Cruz Vermelha é a única entidade a quem foram outorgados três Prémios Nobel da Paz.

Após a fundação dessa enorme instituição muitos países lhe seguiram o exemplo fundando Sociedades Cruz Vermelha nos respetivos países.

Um dos primeiros a fazê-lo foi Portugal, em 1865, pela mão do médico militar José António Marques.

Ao longo da sua história a Cruz Vermelha Portuguesa esteve presente em praticamente todos os acontecimentos e catástrofes que assolaram o nosso país. Chamamos a especial atenção para o combate à Pneumónica ou gripe espanhola que ocorreu entre maio de 1918 e outubro de 1919.

Embora seja um assunto ainda pouco estudado, existe documentação suficiente que demonstra o papel desempenhado pela Cruz Vermelha no combate à pandemia dessa época.

E, embora estejamos habituados a ouvir dizer que a “história não se repete”, no atual momento de pandemia que vivemos, a Cruz Vermelha é uma das muitas organizações que têm estado na linha da frente no combate à mesma e no apoio aos mais carenciados.

No que diz respeito à presença da Cruz Vermelha Portuguesa em Guimarães, existem registos de, em abril de 1950, o cidadão vimaranense Carlos Pinto Leite ter procurado junto da sede nacional autorização para a fundação de uma Delegação em Guimarães, a cuja Direção era proposto presidir o então Presidente da Câmara João Martins da Costa (Aldão).

Após estes registos, nada mais temos (para já) que nos permitam seguir o desenvolvimento deste assunto.

Em 1980, um grupo de vimaranenses liderados pelo Doutor Luís Teixeira e Melo consegue obter autorização da Direção Nacional da Cruz Vermelha Portuguesa para a criação de uma Delegação, em Guimarães. Essa Delegação foi inaugurada a 22 de março de 1980.

A Delegação de Guimarães da Cruz Vermelha Portuguesa tem sede na Rua Camilo Castelo Branco R/C nº 1, e atualmente é constituída pelos seguintes órgãos sociais: uma Direção da Delegação Local, uma Assembleia da Delegação Local e um Conselho de Curadores da Delegação Local.

6 eixos de intervenção / 35 projetos/atividades:

Serviços de apoio à comunidade: Gabinete de Saúde; CVP nas Escolas; Zona de concentração e apoio à população (Covid19); Centro de Acolhimento e Emergência Social (apoio aos sem abrigo); Estrutura Operacional de Emergência; Brigadas de Testes Covid 19; Portugal +Feliz; Missão Continente; Banco do Bebé; Gabinete de apoio ao cuidador;

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Voluntariado Geral: Voluntariado Hospitalar; Unidade de Cuidados Continuados da Santa Casa da Misericórdia; Centro Juvenil de S. José (apoio ao estudo); Olhares em perspetiva (Estabelecimento Prisional); Solidão acompanhada (apoio a idosos); Juventude Cruz Vermelha: Esvoaçar (apoio a crianças de bairros sociais); Hospital Divertido (apoio à Consulta de pediatria do HSO); Colorir o sábado na Casa da Criança; alimentação saudável; Copos…quem decide és tu… (combate ao alcoolismo); o meu sol # vive mais o verão (proteção solar); Corpo Europeu de Solidariedade; Inovação e Empreendedorismo: Comunidade Criativa de Inclusão Digital; Play4equality; Y Adapt; Bisar; Ensino e Formação: Cuidar em casa; Ensino de socorrismo; Violência e Igualdade de Género; Angariação de Fundos: Centro de Artes do Espetáculo S. Mamede; Loja Social; Participação em eventos; Donativos; Embrulhar uma causa; Angariação de associados.

O ano de 2020 e os desafios atuais exigiram que a nossa Delegação se reinventasse. Obrigou-nos a refletir e a analisar e considerar as forças, fraquezas, as oportunidades e ameaças da nossa capacidade institucional.

À data de hoje, podemos afirmar que conseguimos dar uma resposta digna da instituição que representamos.

Fomos solidários interna e externamente, colocamos toda a nossa capacidade produtiva ao serviço das forças vivas do concelho, criamos respostas inovadoras e audazes no apoio a pessoas em situação de sem abrigo, no combate ao isolamento e solidão de pessoas idosas, na resposta ao socorro e emergência, enfrentamos com coragem e valentia a COVID 19 , contribuindo para o aumento da capacidade local e nacional de testagem, na disponibilização de condições dignas para o acolhimento de doentes COVID 19 , capacitamos organizações sociais para estratégias de prevenção e combate a surtos, entre outras.

Enaltecemos o princípio do Voluntariado com a gestão da rede de emergência social municipal, que contemplou mais de 500 voluntários inscritos e mais de 150 ativações, nas mais variadas áreas de intervenção social, destinadas a pessoas idosas, crianças e jovens, pessoas em isolamento ou quarentena COVID 19, profissionais de saúde, entre outras.

Bibliografia:

Dunant, Henry - Memórias de Solferino, Lisboa - Cruz Vermelha Portuguesa, 2019. Plano de atividades para 2021 da Delegação de Guimarães da CVP

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Grã Ordem Afonsina - “Protocolos de Criatividade Turística”

A melhor alavanca de atração de turistas externos ao território é a animação das cidades com atividades de diferente cariz cultural, promovidas regularmente pelas autarquias ao longo de todo o ano. O valor económico e social destas realizações é enorme, pois para além de superar de forma exponencial as verbas investidas, reforça a visibilidade externa da cidade ou do território e cria nos residentes hábitos especiais de consumo.

Há até eventos que podem mudar o destino de um território, como é o caso das chamadas «Sextas-Feiras 13», evento que ocorre em Montalegre por iniciativa da Câmara Municipal sempre que um dia 13 calha a uma sexta-feira. Tendo começado em Vilar de Perdizes à volta do tema da Medicina Popular, este evento tornou-se em poucos anos um verdadeiro “caso de estudo”, na medida em que reveste uma identidade particular e uma fortíssima capacidade multiplicadora.

O desenvolvimento turístico de Guimarães terá de passar pela criação de relações emocionais entre a cidade e as pessoas, pela colocação da emoção como o pilar da experiência turística, pela atração de turistas a partir da oferta de acontecimentos exclusivos e memoráveis baseados na história, na cultura, nos saberes locais, nas lendas, no artesanato, na gastronomia (entre outras manifestações materiais e imateriais únicas e peculiares). A arte de encantar, emocionar e transformar a sensibilidade dos turistas, marcar o seu espírito com experiências inesquecíveis e gerar o desejo de as reviver, indo além do sentimento de satisfação, tem de ser o desafio do futuro.

Apesar do imaginário coletivo do povo barrosão ser suficientemente diferenciador, será que o «esoterismo» tem mais potencialidades turísticas para se impor a um mundo de animações culturais atrativas e competitivas do que, por exemplo, a mística que envolve a «Fundação de Portugal»? Não será a Cidade de Guimarães aquela que neste país reúne melhores condições para ser o palco privilegiado de grandes manifestações culturais, únicas e singulares, associadas à Fundação de Portugal, capazes de constituírem uma marca de identidade particular e de se transformarem

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numa importante alavanca de atração de turistas nacionais e estrangeiros?

Para que isto aconteça, é fundamental que a Cidade coloque o património imaterial como paradigma do seu desenvolvimento económico e social, à semelhança do que fez no passado recente com o património físico monumental classificado de Património da Humanidade.

Além de aumentar a notoriedade da Cidade e atrair mais visitantes e turistas, a organização de grandes eventos culturais e temáticos em várias alturas do ano permitirá um melhor aproveitamento dos recursos endógenos, como é o caso das associações culturais (verdadeiras indústrias criativas) e do excecional palco de eventos que é o seu Centro Histórico.

Sucede que, entre os anos de 2010 e 2018, o município de Guimarães aumentou em mais de 62% o investimento nos domínios da cultura e do desporto, crescendo de 6,5 milhões de euros para cerca de 11,5 milhões de euros, valor que representa 13,3% das despesas totais e ultrapassa em mais dois pontos percentuais o investimento médio dos 308 municípios portugueses. Em 2019 o orçamento da cultura foi de 7 milhões de euros, assentando em quatro tipos de programas, a saber: Festas de Interesse Concelhio, Protocolos de Descentralização Cultural, RMECARH e Excentricidades. Os Protocolos de Descentralização Cultural englobaram 66 associações culturais e envolveram um investimento do montante global de 69.100 €, distribuído por sete tipos de entidades: Bandas Musicais e Orquestras, Grupos Folclóricos Federados, Grupos Folclóricos Não Federados, Grupos de Teatro, Grupos Corais, Grupos de Música Popular e Escolas de Música.

Que resultado tem produzido este investimento no contexto da animação turística da Cidade?

Aquilo que sabemos é que com a celebração dos «Protocolos de descentralização cultural»em que a Câmara Municipal investe quase 70 mil euros por ano - cada associação contratante fica obrigada a contribuir com um certo número de atuações (em regra duas), como contrapartida da quantia que recebe. E com que critério são utilizados estes créditos sobre as associações ao longo do ano?

Ora, em nosso modesto entender, este recurso poderia ser aproveitado para «financiar» a criação de programação cultural (eventos) especialmente destinada aos visitantes e turistas. Bastaria consignar esses «créditos» para a realização de eventos desenhados para esse fim, utilizando as performances de cada grupo cultural. Os «Protocolos de descentralização cultural» deveriam converter-se em «Protocolos de criatividade turística», ou seja, num instrumento que incentivasse

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as associações culturais (indústrias criativas) à criação das mais variadas performances artísticas ou culturais relacionadas com os valores históricos e culturais associados a Guimarães, especialmente direcionadas para os visitantes/turistas.

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Momento de perseverança e esperança

Encontrando-nos em mais um Estado de Emergência, desde que o vírus SARS-CoV-2 começou a fazer parte do nosso quotidiano, o país e o mundo sofreram mudanças inquestionáveis e tornou-se visível para o cidadão comum o quão frágeis somos, e o quão frágeis são as sociedades em que vivemos.

Vivendo um momento de perseverança e esperança numa cura, ou pelo menos nas vacinas que se apresentam como uma luz ao fundo do túnel, toda uma sociedade sofre e tenta levantar-se dos escombros criados por um vírus. Social e economicamente, as soluções apresentadas e os apoios possíveis apenas se assemelham a “pensos rápidos” para estancar uma hemorragia devastadora. A s vozes de protesto e indignação fazem-se ouvir nos meios de comunicação, nas ruas, e um pouco por todo o lado, seja endereços físicos ou virtuais.

O vinte e cinco de abril e a luta pelos direitos que consideramos inalienáveis permitiramnos este grau de demonstração de insatisfação e questionamento sobre políticas e medidas que, na qualidade de cidadãos na plenitude dos seus direitos, consideramos serem lesivas das nossas liberdades e garantias.

Poderemos, pois, questionar se a luta dos capitães de abril e de todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para pôr fim a uma ditadura que se estendeu por quase meio século, continua viva, tendo em conta a atual limitação de liberdades por um período tão alargado em que os nossos direitos se encontram agrilhoados pela ansiedade e pelo medo pro-

45 Membro do Núcleo de Estudos 25 de abril (NE25A).

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vocados pela situação pandémica em que vivemos.

Segundo o art.º 19.º, nos pontos n.º 4 e n.º s da Constituição da República Portuguesa, 4., “A opção pelo estado de sítio ou pelo estado de emergência, bem como a respetiva declaração e execução, devem respeitar o princípio da proporcionalidade e limitar-se, nomeadamente quanto à sua extensão e duração e aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional. 5. A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência é adequadamente fundamentada e contém a especificação dos direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica suspenso, (…)”.

Esta suspensão de direitos, liberdades e garantias, não na sua totalidade, mas naqueles que estão especificamente definidos, apesar de necessários, amplia em nós a capacidade de podermos questionar, de criticar, mas também nos obriga inexoravelmente a contribuir, a fazer aquilo que, como cidadãos, nos compete para melhorar a nossa sociedade, propor alternativas. Não é isso o que podemos observar, diariamente, por um conjunto enorme de peritos de tudo e coisa alguma, de “treinadores de bancada”, apontado as falhas, criticando as soluções, sem apresentarem medidas alternativas.

Mas será pertinente este questionamento? Ou será porventura apenas o resultado de uma desconexão “umbiguista”? Ou será que uma definição mais egoísta, desinformada e carente de lógica política e social leva à criação, imaginação e persistência de opiniões disruptivas, não fundamentadas e que convergem em teorias da conspiração, e num espetro mais alargado e negativista, numa radicalização de opiniões?

A situação que vivemos, apesar de difícil economicamente, é também complexa social e cientificamente. Encontrando-se milhares de pessoas encerradas em casa, afastadas daqueles que mais amam, daqueles que até há pouco mais de um ano faziam parte do seu quotidiano, e interrompendo rotinas que os povos do sul da Europa tanto acarinham, como o contacto físico e a socialização, o desfrutar das suas localidades, dos seus pequenos (agora grandes) prazeres, dos seus negócios e empregos que sustentam famílias e sociedades, a democracia e os direitos que lhe são inerentes tornam-se ainda mais importantes.

Continuamos encerrados numa bolha em que o medo, a ansiedade, a frustração, tornam a lógica uma disciplina secundária e a proibição como forma de preservação, um inimigo a abater.

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Mas ponderando tudo o que perdemos com este “pausar” de alguns direitos, liberdades e garantias e aquilo que ganhamos com estes Estados de Emergência e as limitações que provocam, talvez o saldo seja positivo a médio e longo prazo.

A libertação de uma sociedade, de um povo, em Portugal, com o 25 de Abril, não acarreta apenas liberdade e direitos, obriga também a responsabilização e cidadania; não permite apenas criticar o que nos incomoda, impõe a apresentação de soluções; não força a aceitação da nossa opinião, constrange o direito a não reconhecer as múltiplas opiniões como válidas desde que fundamentadas e factualmente comprovadas.

Talvez este, mais um, estado de emergência, que se avizinha, não venha a proporcionar a libertação de todos de um período conturbado física, social, psicológica e economicamente. Apesar de ser baseado em dados científicos concretos, com perspetiva de resultados realistas e consequentemente com políticas que promovam a compreensão de todos para a necessidade de implementação das medidas, não erradicará os radicalismos e opiniões mais ou menos alteradas. Mas proporcionará a todos aqueles que veem a cidadania como a forma de viver em sociedade, a esperança de que todos remamos para uma mesma direção e alcançaremos o porto seguro que pretendemos. No entanto, mantendo sempre a convicção de que a excecionalidade se tem tornado regra e que concordando com a necessidade, com a excecionalidade do ato, a sua manutenção ad aeternum será mais um período negro da nossa história. Concordamos, pois, com Isabel Moreia, jurista e deputada na Assembleia da República eleita pelo Partido Socialista, aquando da votação para o décimo terceiro Estado de Emergência, quando referiu que “Debater e votar o décimo terceiro estado de emergência devia cobrir-nos de angústia. Para quem pensa que a opção por esta banalização é coisa menor, esperemos pelos anos futuros, esperemos que não seja eleito um inimigo da democracia encantado com este precedente que lhe demos de bandeja.”

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Escola de Abril!

EB1/JI de Mascotelos eb1jimascotelos@gmail.com Somos felizes porque crescemos, aprendemos e ensinamos em liberdade!

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Obrigado Francisca

Celebrar Abril em 2021, em plena pandemia, é recordar Francisca Abreu e honrar o seu legado na cultura vimaranense.

A par de muitos outros momentos que se antecederam e outros que irão suceder, nunca será demais lembrar e reconhecer a incontornável influência e ação da inesquecível Francisca Abreu.

O percurso, a ideologia, a atuação e a mensagem que deixou nas nossas memórias e nos nossos corações remete sempre, direta ou indiretamente, para a Liberdade. Para a liberdade de ser, pensar, escrever, falar, agir, decidir, sonhar e até de amar. Abril é Mulher. Abril é igualdade. Abril é Mãe, Filha, Avó, Professora e Política. Abril é também Francisca, interventiva e inconformada.

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Lembrar Francisca Abreu é recordar os momentos altos vividos por Guimarães, antes da pandemia, em plena liberdade. Exemplo disso, foram os milhares de eventos da Capital Europeia da Cultura, em 2012 (inverso de 2021), que nos permitiram encher praças, salas, casas e ruas, com a alegria e o orgulho imenso de ver o nome de Guimarães espalhado pelos quatro cantos do Mundo.

Destes vários momentos, escolhi a imagem da abertura da CEC2012, no Toural, a 21 de janeiro, com a performance extraordinária dos catalães La Fura dels Baus, na qual sobressai a imagem do cavalo e um sol projetado.

Convido-vos a parar 10 segundos e a olhar para esta foto, tendo presente a pandemia que vivemos hoje e na memória uma das pessoas que esteve por detrás deste momento de reconhecido mérito para Guimarães e para todos os vimaranenses: Francisca Abreu. O que vos parece? O que é que, subtraindo nesta equação, seria diferente?

A escolha propositada desta imagem remete-nos para um tempo em que podíamos juntar-nos, con-

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centrar-nos e respirar sem máscaras. Enfim, sem clausuras. Tempos em que vivíamos cultura sem cessar, onde nos alimentávamos com experiências e vivências, que absorvíamos incessantemente. Tempos em que os nossos sentidos eram estimulados e as nossas emoções desafiadas ao limite. O cavalo na imagem, também ele propositado, é símbolo universal da Liberdade. A liberdade de viver e de correr. Para os Celtas representa o Sol, portanto, uma estrela. Na cultura chinesa simboliza coragem, integridade, diligência, fidelidade, inteligência e espiritualidade. Já na Grécia antiga o primeiro cavalo representado foi Pégaso, simbolizando o lado instintivo do ser humano. Nada é obra do acaso. É por isso que ao ver esta simples imagem, ao relembrar tudo o que ela traduz, ao saber o que foi feito até ali chegar, fico emocionado e invade-me um sentimento de gratidão eterna pela Mulher que, em nome de Guimarães, da cultura vimaranense e do associativismo cultural se debateu, durante anos, para que todos crescêssemos, evoluíssemos e fossemos reconhecidos através da cultura e da liberdade. À Francisca Abreu deixo um grande Obrigado por este enorme legado, que jamais será despido das nossas peles e extraído das nossas raízes, e por ajudar a que Abril continue a florir.

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Articles inside

Obrigado Francisca

2min
pages 327-329

Cravos e Nicolinas as Festas nos anos de 1974 1975

17min
pages 306-317

O nosso sentir… sem cultura não há liberdade

4min
pages 303-305

Grã Ordem Afonsina “Protocolos de Criatividade Turística

4min
pages 318-320

O caminho para a Democracia e a Misericórdia de Guimarães

4min
pages 294-296

Democracia Rima com Cidadania

7min
pages 287-290

A Muralha

6min
pages 291-293

Gil Vicente fez 556 anos

6min
pages 279-281

150 anos das Conferências do Casino

3min
pages 282-284

A propósito do dia Mundial do Teatro

4min
pages 276-278

5 de maio dia mundial da Língua Portuguesa

5min
pages 267-269

Dia do Livro Português

7min
pages 270-275

Ferreira de Castro A propósito de Abril

11min
pages 261-266

Sonhos meus

1min
page 258

Sonhos de Criança

1min
page 257

O rapaz que tinha dois corações

9min
pages 251-254

Quem sou eu?

2min
pages 255-256

Bem prega Frei Tomás

5min
pages 245-247

Melro de bico amarelo

6min
pages 248-250

Do miolo da vida

1min
pages 241-242

A Aldeia de Santa Teresa

1min
page 240

Ferreira de Castro e(m) Guimarães

1min
page 239

Novo livro de Lino Moreira da Silva

3min
pages 237-238

O monte de Santo Antonino

4min
pages 232-234

Santa Rosa de Lima em Guimarães

4min
pages 228-231

Linhas de Liberdade do SAL (comentadas

3min
pages 183-189

A terra onde nascemos

14min
pages 205-212

A Política e a Democracia Cultural

19min
pages 213-222

A Cidade

1min
pages 179-180

A madrugada dos sonhos

5min
pages 174-177

Coronam virumque cano

1min
page 178

Poemas de Abril

1min
page 171

A poesia está na rua

3min
pages 162-164

Abril

1min
page 168

Asas da Liberdade

1min
pages 169-170

25 de Abril sempre

5min
pages 159-161

Memórias do 25 de Abril

4min
pages 155-158

Canções de Abril

10min
pages 149-154

Aprender o valor da Liberdade: o papel das aulas de história

9min
pages 141-146

Liberdade

2min
pages 139-140

Análise sumária sobre 25 de Abril

2min
pages 137-138

Liberdade… ou… a falta dela

2min
pages 135-136

Serviço Nacional de Saúde Uma conquista do 25 de Abril

5min
pages 132-134

A Educação Sexual na Escola e o 25 de Abril

7min
pages 129-131

O 25 de Abril e a oportunidade perdida

4min
pages 127-128

Liberdade

5min
pages 123-125

Velhos e novos de Abril

3min
page 126

A minha visão do 25 de Abril

5min
pages 120-122

Liberdade religiosa

7min
pages 117-119

Guimarães: Tesouros Clandestinos

11min
pages 104-109

Meias tintas e uma aguarela

6min
pages 101-103

Crónica da democracia. Era uma vez um país

9min
pages 110-113

Liberdade no feminino

5min
pages 114-116

Com perfume de cravo vermelho

6min
pages 98-100

Abril com primavera nos cravos liberdade

6min
pages 95-97

A Soma e a Combinação

3min
pages 93-94

Conquistas de Abril

3min
pages 83-84

Mudanças

4min
pages 81-82

25 de abril em Guimarães

9min
pages 87-92

25 de Abril Sempre

4min
pages 78-80

O meu 25 de Abril o antes, o durante e o depois

10min
pages 74-77

Que viva Abril, sempre

5min
pages 70-73

25 de Abril Aquela velha e teimosa senhora chamada Utopia

10min
pages 41-45

Onde estavas no 25 de Abril?

6min
pages 30-33

47 anos depois, o 25 de Abril na 1ª pessoa

13min
pages 62-67

A Minha Memória e a Cidade

8min
pages 56-59

Onde estava no 25 de Abril?

3min
pages 60-61

Recordações que marcaram

12min
pages 49-55

Memórias de Abril

3min
pages 46-48

25 de Abril, Quarenta e sete anos depois

12min
pages 34-40

Vivências do 25 de Abril de 1974

22min
pages 19-29

Apresentação

5min
pages 11-13

Abril, Liberdade para Expressar

1min
pages 9-10

A presença da Cruz Vermelha Portuguesa em Guimarães 3

1min
pages 15-16

Celebremos ABRIL

1min
page 14
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