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Canções de Abril
from OsmusikéCadernos 2
by osmusike
Júlio Dias, compositor e Maestro juliofilosofo@gmail.com
A música é capaz de produzir sensações e despertar sentimentos e, entre as suas várias possibilidades, é capaz de mobilizar indivíduos e grupos sociais. Por isso, a importância da música nos períodos de repressão de direitos humanos. Os regimes ditatoriais sempre se notabilizaram pelo uso da força e pelo cerceamento das liberdades, dentre elas a liberdade de expressão. Controlavam todas as formas de expressão, o que abarcou também as artes e, em especial, a música. Em Portugal, no contexto da ditadura, com a censura a limitar a liberdade de expressão, a música foi uma das formas mais exploradas pelos artistas para exporem os seus sentimentos, ideias e críticas ao sistema político vigente, ainda que muitas vezes feitas de forma extremamente subtil, com o constante uso de metáforas e trocadilhos. A música tornou-se numa forte arma de protesto, contando com a participação de diversos poetas, compositores e intérpretes de que resultaram as canções de resistência. As canções de resistência ou canções de protesto, consideradas após a Revolução de Abril de 1974 como música de intervenção, são constituídas por poemas e músicas de denúncia de um presente de repressão e surgem como luta por um mundo melhor. Sem finalidade comercial, recorrendo, com frequência, à balada e com acompanhamento à viola ou à guitarra, possuem uma mensagem universalista, em poemas que exprimiam o sentimento do povo oprimido, com a esperança da liberdade. Estas canções da resistência assumem, assim, uma função social e política importante desde os anos 40, mas, especialmente desde o princípio dos anos 60, nomeadamente com a eclosão da Guerra Colonial em Angola, Moçambique e GuinéBissau. O período revolucionário e pós-revolucionário que se seguiu ao 25 de Abril foi muito rico ao nível da expressão musical. A “música de intervenção” deixou-nos centenas de cantigas de qualidade muito desigual, mas que tinham quase sempre em comum o empenhamento militante dos seus autores e cantores nas transformações económicas, sociais e políticas que o país atravessava. Pela consciência social que estas canções podiam formar, muitos poetas, compositores e cantores viram os seus discos censurados pelo Estado Novo: Adriano Correia de Oliveira, José Afonso, Luís Cília, Manuel Freire, José Mário Branco, José Barata Moura, Sérgio Godinho, Carlos Alberto Moniz, Maria do Ampa-
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ro, Teresa Paula Brito, Fausto, Carlos Paredes e muitos outros. Eis algumas das canções que ficaram indelevelmente associadas a esta mudança política, social e cultural em Portugal: + E Depois do Adeus / Paulo de Carvalho (José Niza e José Calvário) + Grândola Vila Morena / José Afonso (José Afonso) + Liberdade / Sérgio Godinho (Sérgio Godinho) + Trova do Vento Que Passa / Adriano Correia de Oliveira (Manuel Alegre) + Pedra Filosofal / Manuel Freire (Rómulo de Carvalho) + Somos Livres / Ermelinda Duarte (Ermelinda Duarte)
E DEPOIS DO ADEUS
Por volta das 22.55 horas do dia 24, João Paulo Dinis, na antena dos Emissores Associados de Lisboa, pôs no ar “E depois do Adeus”, canção vencedora do Festival da Canção de 1974, com letra de José Niza e música de José Calvário, interpretada por Paulo de Carvalho, que serviu de senha para as tropas saberem que se deviam preparar e estarem a postos. Não tendo um conteúdo político explícito e sendo uma música que estava em voga nessa altura, não levantaria suspeitas e a revolução poderia ser cancelada sem que os ouvintes desconfiassem de alguma coisa de anormal. E Depois do Adeus é uma canção de amor dos anos 70 em forma de balada. O povo, na sua generalidade, não sabia o que estava prestes a acontecer. Mas os militares e outras partes preparavam uma revolução para instituir a democracia e pôr fim à ditadura e opressão em que vivia Portugal. Aguardavam o sinal para saber que era a hora de se prepararem para iniciar o golpe militar tão esperado. E ele chegou através da rádio. “E depois do adeus” foi o primeiro sinal tão esperado que soou.
GRÂNDOLA
A Grândola Vila Morena “nasceu” uma década antes de um poema de três quadras enviado por José Afonso à Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, dias depois de lá ter atuado na celebração do 52.º aniversário da coletividade (primeira parte de Carlos Paredes; segunda “Dr. Zeca Afonso”). Foi inspirado, diria mais tarde Zeca Afonso, pelo clima solidário e fraterno vivido na SMFOG - espaço com uma biblioteca “de evidentes objetivos revolucionários”. O poema viajaria até França, onde “caiu” nas mãos de José Mário Branco, o produtor do álbum Cantigas do Maio, que lhe daria forma de cante alentejano: Grândola, Vila Morena, o poema de José Afonso, trocou a última quadra da primeira versão
“Capital da cortesia Não se teme de oferecer Quem for a Grândola um dia Muita coisa há de trazer”
por:
“À sombra de uma azinheira Que já não sabia a idade Jurei ter por companheira Grândola, a tua vontade”, e acrescentou-lhe a inversão das quadras e o arrastar de passos que seriam os dos camponeses a regressar da monda. A 29 de março de 1974, Zeca Afonso cantou o tema num concerto no Coliseu dos Recreios - menos de um mês depois, os passos dos camponeses viraram marcha militar: às 00h20 de 25 de abril, soava na Rádio Renascença a senha final. A revolução começava.
LIBERDADE
Sérgio Godinho, cantor de intervenção, em maio de 1968 estava em Paris, perto de Zeca Afonso, de Luís Cília e de José Mário Branco que, para além de terem em comum a escolha da capital francesa como refúgio, acabaram por influenciar, de alguma forma, as suas composições. No 25 de Abril estava no Canadá, mas logo regressou a Portugal onde se vivia o novo espírito da revolução. Entre muitas canções, em que o poeta e compositor encontra na música uma forma de intervir na luta pelos ideais de Abril, podemos destacar a canção Liberdade. Esta canção de Sérgio Godinho, ao propor explicitamente uma série de objetivos sobre condições básicas da existência humana, transformou-se num hino às reivindicações do povo português para uma vida melhor. A paz, o pão, a habitação, a saúde e a educação são cinco conceitos onde se materializaria a verdadeira liberdade.
“Só há liberdade a sério Quando houver
A paz, o pão, habitação
Saúde, educação”
TROVA DO VENTO QUE PASSA
Porventura uma das primeiras canções de clara contestação ao regime ditatorial, e que ainda hoje ressoa na nossa memória coletiva, Trova do vento que passa inaugura e propõe, nas suas próprias palavras, a missão interventora que não mais largará os cantores da resistência ao fascismo: “Mas há sempre uma candeia Dentro da própria desgraça Há sempre alguém que semeia Canções no vento que passa”.
O poema, diz Manuel Alegre, “nasce” em Coimbra, com a participação do amigo Adriano Correia de Oliveira, sendo musicado por António Portugal. Manuel Alegre perseguido pela PIDE exprime, aqui, a sua revolta:
“Mesmo na noite mais triste Em tempos de servidão Há sempre alguém que resiste Há sempre alguém que diz não”.
Trova do vento que passa foi cantada pela primeira vez numa festa de receção aos caloiros na Faculdade de Medicina sem pedir a respetiva autorização à PIDE. Manuel Alegre foi apresentado por Silva Graça, fez um discurso emocionado, depois o Adriano cantou e quando acabou de cantar “foi um delírio, teve que repetir três ou quatro vezes, depois cantou o Zeca, depois cantaram os dois. Saímos todos para a rua a cantar. A Trova do vento que passa passou a ser um hino para aquela gente” (Manuel Alegre, in Raposo, Eduardo M., Cantores de Abril, Lisboa, Ed. Colibri, 2000, p 172).
PEDRA FILOSOFAL
É, talvez, o poema mais “representativo” do Químico - Rómulo Vasco da Gama de Carvalho (professor de físico-química do ensino secundário no Liceu Pedro Nunes e Liceu Camões, pedagogo, investigador de História da Ciência) e Escritor/Poeta - António Gedeão (Pseudónimo), que foi publicado no seu livro Movimento Perpétuo, em 1956. O título do poema – Pedra Filosofal – remete para a Alquimia, isto é, para a substância que se adicio-
nava aos metais pobres para serem transformados em ouro. Assim, com este título, António Gedeão associa o sonho humano à magia dos alquimistas, sugerindo que aquele, qual pedra filosofal, transforma em ouro as fraquezas e as pequenas ambições humanas. O sonho é tão frequente, concreto e definido na vida como diversas outras coisas: uma pedra, um ribeiro, os pinheiros, as aves, etc. Estas diversas comparações que surgem no início do texto sugerem que o sonho é uma coisa simples e, ao mesmo tempo, complexa, porque é muito difícil de definir; sugerem ainda que algo abstrato e subjetivo pode ser transformado em algo “tão concreto e definido como outra coisa qualquer”. Os sonhos podem ser “mansos” ou “sobressaltados”; estão relacionados com algo grandioso e envolvidos pela ideia da esperança constante. Os sonhos são também o “bichinho (…) sedento” cujo focinho pontiagudo que “fossa através de tudo”, ou seja, consegue penetrar nos lugares mais recônditos. É o sonho que dinamiza a vida e impele o progresso humano nas áreas da arte (“tela…sinfonia.”); da ciência e da tecnologia (“átomo, radar…televisão”), da história e da geografia (“caravela quinhentista… Cabo da Boa esperança”). O Homem sonhou que existiam outros mundos além dos conhecidos e sonhou que os poderia descobrir e, através da força imparável do sonho, esses universos foram sendo desvendados!
Termina com uma espécie de crítica aos que não sonham, porque “o sonho comanda a vida” e é o sonho que faz avançar a humanidade. Manuel Freire, aproveitando a musicalidade do poema, apresenta em 1970 o poema musicado, que se transformou rapidamente num hino e numa bandeira da resistência contra a ditadura.
SOMOS LIVRES
Também conhecida como “A Gaivota Voava, Voava” foi escrita e cantada pela atriz Ermelinda Duarte, com arranjos de José Cid, e pertencia à peça de teatro Lisboa 72/74, da autora teatral e encenadora Luzia Maria Martins então levada à cena no Teatro Estúdio de Lisboa, na Feira Popular em Lisboa. Ficou imortalizada como uma das canções da Revolução. A canção celebra a liberdade conquistada, tendo sido, pelo seu simbolismo, um dos temas mais populares a seguir ao derrube da ditadura do Estado Novo e fim da censura pela Revolução de 25 de Abril. Uma canção simples e despretensiosa que sintetiza de uma forma feliz o que nos ficou da Revolução e que não foram nem a reforma agrária ou as nacionalizações, o poder popular ou até a independência nacional, mas sim a liberdade e a instauração da democracia, a mais duradoura herança do 25 de abril de 1974. Por muitos anos, “Somos Livres” continuou a ser cantada nas ruas, nas festas populares e nas escolas,
assumindo-se como uma das canções mais populares a seguir ao derrube da ditadura do Estado Novo e acompanhou a infância de muitos portugueses e portuguesas. “Uma criança dizia, dizia quando for grande não vou combater. Como ela, somos livres, somos livres de dizer”.
CONCLUSÃO
A música pode ser considerada umas das formas mais eficientes e contagiantes de comunicação. Ela faz com que possamos trazer ao de cima um meio de expressão que não depende somente das palavras, mas também da melodia. Esta característica faz com que atinja, potencialmente, um maior número de pessoas, por se tratar de algo com o qual se pode ter um contacto mais rápido ou de mais fácil acesso do que a um texto, por exemplo. Além disso, a música agrada e contagia de uma forma singular e quando tem não somente uma melodia e ritmos agradáveis, mas também uma letra, com um conteúdo consistente, ela torna-se algo ainda mais procurado e precioso. O grande alcance da música faz com que ela possa estar em vários lugares ao mesmo tempo. A música e a cultura tiveram parte crucial na revolução que mudou o país e Abril foi possível com a “participação” da música que, informando poemas que denunciam atropelos aos princípios básicos dos direitos humanos e revindicam a sua aplicação nas políticas de governação, acaba por ser um veículo importantíssimo de pregão de valores fundamentais como a liberdade, a igualdade, a fraternidade, a justiça e, tomo-o como tal, o sonho que comanda a vida. Valores e ideais que nos deveriam comprometer a todos ainda hoje, porque ainda não totalmente concretizados.
Em tempos de pandemia, valerá a pena refletir se estes ideais estão a ser cumpridos “despidos” de carga ideológica e “vestidos” de respeito por todos os seres humanos. A liberdade não pode ser vista só como liberdade de cada um, mas, como diz a canção, deverá ser partilhada com “fraternidade” e “igualdade”. Ao vermos as desigualdades que emergem desta crise pandémica, será preciso continuar a afirmar que “só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, habitação, saúde e educação” para todos.