
22 minute read
Vivências do 25 de Abril de 1974
from OsmusikéCadernos 2
by osmusike
Vivências do 25 de Abril de 19742
Jorge do Nascimento Silva3 Jorgenascimentosilva@gmsil.com
Advertisement
Cheguei a Guimarães, no Carnaval de 1970, em plena Primavera Marcelista. Frequentei o Colégio Egas Moniz e concluí o Ensino Secundário no Liceu Sá de Miranda, em Braga e no Liceu Nacional de Guimarães. Sou natural de Mujães, Viana do Castelo, estive em Braga a estudar no Seminário diocesano mais de 6 anos, antes de me radicar em Guimarães. A integração na comunidade vimaranense foi rápida. Os jovens têm esta caraterística. Frequentávamos o célebre snack-bar Avenida, o Café do Toural, o Café Arlequim, isto durante o dia. Parava lá muita gente. Depois, fomos parar ao Nicolino e, finalmente, ao Café Óscar, que foi o meu café durante uma década. Fui para Coimbra frequentar Direito em 1971 e fui incorporado em 10 de outubro de 1972 no serviço militar obrigatório por necessidade de recrutar militares para a Guerra colonial, interrompendo, deste modo, o Imagem 1 – Jorge Nascimento, curso de Direito, em Coimbra. fardado, em 1973/74
Nesses grupos de cafés, as ideias políticas não eram muito abordadas. Havia um ou outro mais informado, mas havia receios. As coisas eram como eram. Fora dos cafés, havia um grande descontentamento pois os jovens, nessa época, tinham um cutelo sobre a cabeça, que era a guerra, nas Ex-Colónias. Muitos iam, alguns fugiam para França ou para a Alemanha ou Inglaterra. Muito poucos conseguiam “livrarse”. No café, quando havia conversas mais “coisa”, como se dizia, sentia-se um certo temor, um certo medo. Em África, morriam solImagem 2 - Almoço em abril de 1974, no RI 8dados. Havia sempre um certo pesar. Guima-
2 Texto adaptado e atualizado do testemunho, publicado no livro “Guimarães. Daqui Houve resistência “(2014) 3 Ex Alferes Miliciano em 1974
rães era um meio com conhecidos resistentes, tínhamos conhecimento de cidadãos que, volta e meia, iam presos. Tínhamos algumas preocupações. A guerra era o destino de quase todos nós. Ou éramos mobilizados, normalmente, como alferes ou, passados dois ou três anos da passagem à disponibilidade, éramos chamados de novo para frequentar um curso de Capitães e íamos para África comandando uma companhia.
Prestei serviço militar cerca de três anos. Se não fosse a revolução de abril, poderia ficar seis anos ou mais, na vida militar. E houve mortes de amigos nossos no exército, mesmo cá em Portugal. Nos cursos de Comandos ou Rangers havia um ou outro acidente. Na tentativa do golpe das Caldas da Rainha de 16 de março, foram presos os oficiais que nele participaram e recrutaram oficiais e outros graduados de vários Regimentos de Infantaria, para completar a instrução dos Instruendos do curso de Sargentos que ficaram sem Comandantes de pelotão e/ou Companhia com o objetivo de concluírem as recrutas. Do RI 8 (Braga) também foram alguns oficiais, entre os quais o Dantas da freguesia do Pinheiro, que viria a falecer num acidente já no final da recruta. Foi um enorme pesar para todos. Um momento de muito pesar em Guimarães, no funeral deste colega e amigo. Mas o abortaImagem 3 - Oficiais do RI 8 do golpe das Caldas levou a deslocar compulsivamente para unidades militares distantes das dos grandes Centros a que pertenciam aqueles que demonstrassem alguma simpatia pelo golpe de 16 de março das Caldas, pensávamos nós. Mas, segundo parece, também se dizia que houve uma tentativa de antecipação. Nunca ninguém percebeu como veio parar ao RI 8 o destacado Major Carlos Fabião, que passava quase despercebido no quartel, mas que no pós 25 de abril desempenhou funções importantes. Foi governador da Guiné Portuguesa de maio a 15 de outubro de 1974. Fez parte da Junta de Salvação Nacional assim como do Conselho de Estado, tendo também sido chefe do Estado-Maior do Exército (1974-75). A partir de 14 de março de 1975 fez parte do Conselho da Revolução. Só depois, viemos a saber que veio para Braga castigado por ter dito aos alunos do Instituto de Altos Estudos Militares algo que não agradou às Chefias. Era um grande amigo do general Spínola.

A respeito de cidadãos que foram presos, conheci o caso do Dr. Santos Simões, meu professor no Colégio Egas Moniz, depois colega de profissão e amigo. Um excelente Homem. Foi muito castigado na sua própria carreira docente por motivos políticos. Por isso é que estava no ensino privado, no Colégio Egas Moniz. Tinha conhecimento de outras figuras da resistência que foram muito incomodadas, como Eduardo Ribeiro e as pessoas ligadas, mais tarde, ao MDP-CDE (Movimento Democrático Português – Comissões Democráticas Eleitorais). O professor Hélio Alves, um grande amigo e também colega, mais tarde, na Escola Secundária Francisco de Holanda. Também frequentava o Café Óscar, onde convivíamos. Quando entrei na Universidade, em Coimbra, para uma passagem curta, entre 1971 e 1972, a Crise de 69 ainda estava presente, e ouvia-se contar o que se tinha passado. Aliás Alberto Martins era o presidente da Direção Geral da Associação Académica. Em Coimbra, já havia um pequeno grupo rebelde e muito politizado que até contestava o próprio líder dos estudantes porque lhe atribuíam ter sido recebido oficialmente, em Lisboa, entendendo eles ser uma espécie de desculpa pelo que tinha acontecido em 69. Nessa época, Zeca Afonso passava por Coimbra de vez em quando, mas nem sempre seria por acaso. Houve alguns desacatos no final de alguns espetáculos. Falava-se num que teve lugar no ginásio abarrotado junto à velha e única cantina da velha Coimbra. Pretendiam contrariar a ideia de que o que estava a acontecer, ao mesmo tempo, no Teatro Gil Vicente, promovido por gente ligada ao poder, era suficiente para dar a ideia de uma pacificação da população estudantil de Coimbra. Mas a maior parte da malta passava ao lado destas questões. Havia receios. Nunca se sabia quem estava ao lado. Quando estes estudantes, saídos da Crise de 69, foram integrados na Marinha, na Força Aérea ou no Exército, já eram indivíduos muito mais politizados, do que outros das incorporações anteriores. Muito politizados e, muitos deles, muito revoltados. Sobretudo os que tinham sido expulsos da universidade, na sequência da Crise de 69, e que eu já não conheci como colegas. Muitos não se aperceberam do papel que os milicianos desempenharam no 25 de Abril. Fala-se nos Capitães de Abril e no MFA (Movimento das Forças Armadas), e bem, mas os milicianos tiveram um papel importante na adesão ao golpe, fruto da rebeldia da juventude e de alguma formação que tinham e que introduziram nos quarteis. Acabar com a guerra era importante para toda a gente, para os do quadro, para os milicianos e para a população em geral. Era a forma de se mudar de regime. E os milicianos foram importantes nas ações do 25 de Abril. Disseram "presente". Há figuras do 25 de Abril que destacaram o papel dos milicianos, sobretudo os vindos de Coimbra, depois de 69. Traziam uma cultura política, que foi muito importante para a formação política de capitães, designadamente, aqueles que vieram a formar o Movimento dos Capitães, mais tarde MFA. Salgueiro Maia confessou que a presença daqueles milicianos foi fundamental para a sua formação política. Melo Antunes,
altamente politizado, também salientou o papel dos milicianos. É bom não esquecer que os milicianos aderiram à primeira, não questionaram. Quando o capitão, hoje, Coronel, Rui Guimarães perguntou: “Posso contar consigo?” Apenas respondíamos: “Claro que sim, Capitão! Consigo vamos para qualquer lado”. A cidade de Guimarães, ao tempo, estava bem representada em Braga, pois para além do capitão Rui Guimarães também estavam no RI 8, o capitão Machado Ferreira, o capitão Sidónio, o capitão Soares Leite. Fui lá colocado em abril de 1973 com um grupo de amigos que ainda nos mantemos unidos, tantos anos depois. Recordo que o RI 8 teve vários comandantes, mas a gente do meu tempo retém sempre dois nomes: o coronel Passos Esmoriz, que depois foi para o Porto, para o RI 6, que foi um dos homens da Revolução e que, após o 25 de Imagem 4 - Alferes de abril, colegas no R I 8, mais de 40 anos depois de abril, foi comandante da Região Militar Norte. Já o coronel Rui Mendonça, 1974 visivelmente um conservador, era o Comandante nessa madrugada. Foi tratado dignamente porque tinha boa relação com os oficiais do Regimento e aceitou ser apenas formalmente o Comandante não obstruindo a “linha nova do comando”, que passou, cremos nós, a pertencer ao capitão Rui Guimarães. Segundo parece, a distribuição de um panfleto anónimo, pouco tempo depois, ligando-o ao regime, levou-o a abandonar as funções por se considerar desautorizado e apresentou-se no Quartel Gene-
Imagem 6 - Alferes de abril, colegas no RI 8, mais de 40 anos depois de Imagem 6 - Alferes de abril, colegas no RI 8, mais de 40 anos depois de 1974 1974


ral. A ideia que eu tenho é que o Coronel estava fora do quartel a pernoitar quando foi abordado pelo capitão Rui Guimarães. E, quando chegou ao quartel, foi o capitão Rui Guimarães que o recebeu e informou da
situação que ele terá compreendido e aceite. No dia 25 de Abril, o Coronel Passos Esmoriz, que tinha sido comandante do R I 8, em Braga, já nos conhecia, tendo tido o RI 8 uma participação ativa na Região Militar Norte. E foi por isso que colaborámos em várias ações, na região Norte, sobretudo no Porto. As coisas aconteceram em Lisboa, sobretudo, e no Porto. No resto do país estava tudo mais calmo. Alguns alferes e furriéis formaram algumas secções e estavam disponíveis para prestar apoio ao comando da Região Militar Norte. Saímos de Braga comandados pelo capitão Rui Guimarães, em algumas missões, e pelo capitão Machado Ferreira, noutras, que eu me lembre.
Viemos a Guimarães, como retrata o Convite da Comissão Concelhia de Guimarães do Movimento Democrático do Distrito de Braga, comandados pelo capitão Machado Ferreira no dia 26 de abril, uma tarde de sol, e subimos para as varandas do Café Oriental, de onde várias pessoas se dirigiram ao povo: Eduardo Ribeiro, Santos Simões, José Augusto Silva, o primeiro presidente da Comissão Administrativa que dirigiu a Câmara Municipal, e julgo que também terá falado o Dr. Mota Prego. O então capitão Machado Ferreira, hoje também coronel, falou, em nome dos militares. Eu estive lá! Entretanto, o Capitão Rui Guimarães já estava no Porto, acompanhado por outros colegas do R i 8, pois integrou, desde o início, o Movimento dos Capitães que deu origem ao MFA e tinha missões a desempenhar.

Imagem 7 - Convite à população de Guimarães para participar numa manifestação de júbilo ao MFA
Imagem 9 - O MFA agradece ao povo de Guimarães da varanda do Café Oriental - Largo do Toural, 26 de abril de 1974 Imagem 9 - O MFA agradece ao povo de Guimarães da varanda do Café Oriental - Largo do Toural, 26 de abril de 1974


No Porto, estávamos de prevenção no CICA 2 (Centro de Instrução e Condução Auto n.º 2), onde víamos as notícias das televisões, para ver e ouvir o que era dito e o que estava a ser feito. Fomos, depois, fazer o controle do aeroporto de Pedras Rubras, que já estava tomado, mas com necessidade de reforço de segurança. Também colaboramos nessa missão. No aeroporto eram, normalmente, grupos de alferes que estavam presentes. Fiz equipa com o alferes José Castelar, também de Guimarães. Estivemos nesse tipo de missões durante bastante tempo, mas revezávamo-nos ao fim de um determinado período de tempo, regressando a Braga.
No regresso do Porto, parávamos nas cidades situadas no percurso. Numa dessas vindas do Porto


viemos por Guimarães. Foi no dia 29 de abril, um momento alto para quem conhecia a cidade, como eu, voltar a vir a Guimarães com os companheiros de armas, neste dia comandados pelo então capitão Rui Guimarães, agradecer, informar e receber o apoio do povo. Reencontramos, de novo, o Dr. Santos Simões e aquele grupo de pessoas mais politizadas que apareceram na altura, uns mais jovens, outros mais adultos. Foi inesquecível. Foram momentos únicos que se viveram no Toural. Estamos a ver isto à distância de quarenta e sete anos, mas continuo a sentir muito aquelas tardes de abril. O capitão Rui Guimarães falou, improvisadamente, ao povo que nos envolvia em cima do próprio Jeep. Quem viveu estas situações sente de forma diferente Abril. Foi uma alegria, um orgulho, poder participar num movimento que estava a libertar o país. Uns mais politizados, outros menos, mas sabíamos que estávamos a fazer História. Vir agradecer ao povo a adesão pacífica em nome do MFA. Esse é um momento fantástico e único que não esqueço. A forte adesão em Guimarães, mais ou menos consciente, foi muito natural e genuína. Já não estive lá no 1.º de Maio de 1974, mas no Porto, para onde fomos destacados, de novo, e foi fantástico ver e conviver com a multidão a jorrar, como dizia Fernão Lopes. Saudavam-nos, acarinhavamnos, abraçavam-nos, traziam-nos de comer e de beber. Onde estávamos era sempre motivo de enorme alegria. Era um mar de gente e de cravos. Todos os dias muita gente ia ao CICA, a nossa base no Porto, saudar-nos e oferecer-nos coisas! Fomos sempre muito bem tratados. Aquele 1.º de Maio de 1974 foi genuíno, como já referi. Todo o Povo aderiu. Hoje as pessoas são consideradas de direita, de esquerda, mas naquele dia era Portugal que estava ali. Uma vontade coletiva. Quem faz a Revolução é o Povo e o Povo estava ali. Nesse sentido, foi uma felicidade, a circunstância revolução do 25 de Abril ter sido uma semana antes do 1.º de Maio. Fez-se um ciclo de tempo muito curto e o Povo saiu para a rua a festejar a liberdade no dia do trabalhador. Como muitos, estive lá. Inicialmente foi um golpe de Estado que correu bem. Mas pode dizer-se que o 1.º de Maio de 1974 foi a festa do 25 de Abril, uma festa coletiva. Abril em maio parece-me bem. No Porto, fizemos segurança à sede do MDP-CDE, situada acima da Trindade, já não me recordo do número de polícia. Movimentávamo-nos dali em direção ao edifício da Câmara, na Avenida dos Aliados. Era um mar de gente, era uma alegria. Era sobretudo uma cidadania enorme, o povo deu uma lição de cidadania, que deixa saudades. As pessoas, provenientes de diferentes quadrantes, jovens, velhos, todos, entendiam-se em torno do mesmo objetivo. Entretanto, fomos vivendo o pós 25 de Abril, os movimentos que foram aparecendo e todas as convulsões que foram surgindo. Chegámos a ter de intervir em coisas desagradáveis, distúrbios em empresas, em
estações do Caminho de Ferro, em comícios, em diversos locais e situações. Estava ali um país cheio de contradições. Naqueles tempos, logo após o 25 de Abril, houve necessidade de ter os comandantes nos quartéis, até para não haver retaliações sobre o golpe militar. Nós também ficávamos muito tempo no quartel. Havia muitos dias e noites em que, de repente, entrávamos de prevenção. Quartéis de prevenção ao longo de muito tempo, com frequência. Uma reserva sempre pronta para acudir aqui ou ali. Quaisquer complicações que houvesse no exterior, como manifestações, problemas com trabalhadores e outras situações que viriam a agravar-se no tempo que se seguiu. Começaram a surgir sinais complicados. Lembro-me, em Guimarães, no Teatro Jordão, de um comício do CDS. Mas outros houve. Em Braga, havia problemas todos os dias. Destruíram a Sede do PCP. O nosso distrito era difícil. Guimarães, Famalicão, Braga, o distrito não era pacífico. Começaram a aparecer grupos mais rebeldes e esclarecidos, ditos de extrema-esquerda, que criavam sempre alguns desaguisados. Quando havia manifestações ou comícios, havia sempre militares de prevenção.
Um dos momentos mais difíceis que vivi, e estive em muitas situações nada simples, foi na Estação dos Caminhos de Ferro de Nine. O comandante da estação deparou-se com um grupo de soldados que se recusavam a pagar bilhete, mandando reter os comboios no cruzamento das linhas para Braga e para o Alto Minho, numa sexta feira à noite. Gerou-se uma situação explosiva entre pessoas civis(ansiosas), muitos soldados e o chefe da Estação. Uma multidão! Muitos soldados de tropas especiais (paraquedistas, marinheiros, comandos, rangers) e muitos outros exigiram da nossa ação ponderação, sensatez e equilíbrio na decisão. Liderei esse grupo de intervenção e pareceu-me adequado mandar seguir os comboios e foi o que fiz. Tínhamos 22 ou 23 anos! Mas sabíamos que corríamos o risco de pôr soldados contra soldados ou contra a população civil que já ali estavam ali, há horas, cansados e com vontade de chegar às suas casas. Foi a decisão certa. Fomos ovacionados e os comboios iniciaram a sua marcha em direção aos seus destinos.
Ainda era militar no “28 de setembro” e no “11 de março”. As coisas ficaram mais quentes. Só saí da tropa depois do 11 de março. Lembro-me que estava de licença nesse dia e tive de regressar ao quartel. Do tempo dos quartéis, a memória que eu tenho é a de muitas reuniões envolvendo oficiais e sargentos. Recordo-me, por exemplo, da questão da unicidade sindical, em torno da CGTP, defendida pelo PCP, e da posição dos que defendiam a existência de diversas “Centrais Sindicais” (Unidade Sindical), defendida pelo PS. Dentro do quartel também havia um grande debate em volta desses temas. Tínhamos colegas nossos que já eram muito politizados. Uns militavam ou simpatizavam com o MES, outros com o MRPP, para
falar dos mais à esquerda. O meu amigo e colega de quarto, António Mota, alferes como eu, era um dos bem formados ao nível da ciência política. Aprendi imenso com ele. Éramos todos colegas, amigos uns dos outros, cada um aderia ao que lhe parecia melhor e não pessoalizávamos as nossas opções e divergências. No caso do nosso quartel, em Braga, logo que surgiu a discussão em torno da questão sindical, perdeu quem defendia a unicidade sindical. Ganharam os mais moderados do lado do Salgado Zenha. Os capitães de Abril, em geral, tinham uma ligação mais forte ao setor do Vasco Lourenço e do Melo Antunes, o que viria a ser o movimento dos NOVE, como veio a suceder. Eu revia-me nessa linha mais moderada. Mas julgo que, por vezes, nem temos bem noção de como isto andou próximo de um embate mais sério, com consequências imprevisíveis. As divisões entre os militares, que geravam discussões bem acaloradas dentro dos quartéis, não eram mais do que o reflexo das divergências e contradições que a sociedade portuguesa estava a resolver consigo mesma. De repente, saltou tudo cá para fora, sucederam coisas extraordinárias, algumas inéditas. E não é por acaso que o mundo estava com os olhos postos em Portugal, desde intelectuais, militares, políticos. Éramos um balão de ensaio, uma revolução ao vivo, em direto. Tivemos o que se designou de “turismo revolucionário”. Hoje, a esta distância, é curioso ver as fotografias de Jean-Paul Sartre com uma G3 na mão a confraternizar com os militares. Contaram-me que Sartre chegou de total surpresa, sem conhecimento de ninguém e tocou à campainha de um quartel e disse: “sou o Jean Paul Sartre”. Passados momentos está com uma arma na mão a confraternizar entre os soldados e, dias depois, está a sugerir numa conferência no Instituto de Altos Estudos Militares que, em Portugal, as hierarquias militares tinham demasiado poder. Isto é um tanto estranho, para não dizer arriscado. Só naquele tempo se compreendia. O debate era intenso e a política vivida com fúria, por vezes. O episódio do militante do MRPP atirado ao Tejo, e que morreu, é um exemplo de como as coisas nem sempre eram pacíficas. As prisões em série de militantes do MRPP são mais um exemplo disso mesmo. Contou-me o meu colega mais próximo, no RI 8, que, numa só noite, foram presos, sem qualquer mandato, 432 militantes do MRPP. Aliás ele escapou de ser detido mesmo por pouco, em Lisboa, no final de uma conferência do partido em que participou. Também queriam as gravações da conferência e a identificação de quem nela participou. Aqueles que ficaram detidos durante mais de três meses sem acusação ou julgamento, contavam que sofreram, no mínimo, humilhações constantes, mas houve quem sofresse mais ainda do que simples humilhações. Soltaram-nos sem qualquer explicação depois de muitas manifestações dos colegas em frente às prisões onde havia chaimites, tanques de água e o COPCON, claro. E, na nossa região, houve inúmeros casos bem graves. Um deles deu dois mortos na Têxtil Manuel Gonçalves, em Famalicão, empresa onde houve vários problemas. E
aí foi com intervenção de militares. As coisas estavam muito quentes. A política era o assunto e, de um momento para o outro, toda a gente era política, discutia política, uma coisa incrível. Como é possível hoje pensar num debate político em direto na televisão durar quatro horas? E com uma audiência impressionante, tudo colado no ecrã. Mas foi o que sucedeu com o histórico debate entre Mário Soares e Álvaro Cunhal. Quatro horas. Ficou célebre aquele olhe que não Sr. Dr., olhe que não, com que Cunhal comentava as afirmações de Soares. Participei neste período político muito especial com o prazer de um jovem rebelde. Depois, com a vida aprende-se e vamo-nos tornando mais maduros e moderados. Não é por acaso que António Lobo Antunes – que não é propriamente conotado com a direita – quando lhe perguntaram qual foi o dia mais importante da vida dele, respondeu que tinha sido o 25 de Abril, mas também logo acrescentou que um dos primeiros sentimentos que então o assaltaram foi o de medo. Dizia ele que, até aí, tínhamos uma referência que já vinha feita, só tínhamos que recusar, ser do contra. Vinha daquele lado, éramos do contra. A partir dali, tínhamos de construir e construir dá muito mais trabalho. Temos de errar, levantarmo-nos de novo, caminhar. O primeiro sentimento foi de errar. Faz todo o sentido. Esse sentimento também passou por nós. Esse sentimento passava por todos. Éramos jovens, o 25 de Abril disse muito a todos, mas aos que estavam no serviço militar disse muito mais, porque nos retirava o risco de ir para uma guerra injusta e que não tinha solução militar. Depois daquele período inicial, fui para o serviço de informação interna. Criou-se, no quartel, um serviço de informação interna e colocaram-me lá. Todos lá iam ter: empresários e trabalhadores iam lá pedir auxílio, tantas coisas que não lhes podíamos dar. Esse serviço era da nossa responsabilidade. Estive lá com o Tarroso Gomes, praticamente até passar à disponibilidade. Controlava-se o material que vinha da Legião Portuguesa, da PIDE, e íamos armazenando, fazíamos relatórios diários para enviar para o Quartel General. Os responsáveis do serviço foram os capitães Rui Guimarães e, depois, o capitão Machado Ferreira. Quando havia eleições nos corpos gerentes de uma escola, por exemplo, ia a lista dos nomes candidatos a uma verificação prévia que passava pelo nosso serviço. Algumas vezes corriam boatos. A partir de certa altura, queria-se deitar abaixo alguém, dizia-se que tinha pertencido à PIDE ou até à Legião. Era a pior coisa que se podia dizer de alguém na altura, eram olhados de lado. O Eduardo Ribeiro fala disso no seu livro. Mais tarde, estive nas sessões de esclarecimento do MFA, no distrito de Braga, e recordo-me de ter ido para as zonas de Vieira do Minho e Cabeceiras. Cheguei a ir com colegas, uma vez ou outra, com os mais politizados, que lideravam, e principalmente os capitães. Ia-se explicar ao povo o que era o MFA, como as coisas funcionavam, mas, já aí, de vez em quando, havia problemas. Várias tendências políticas ten-
taram ser dominantes e as mensagens iam passando de modo muito contraditório, com divergências muito acentuadas. As aldeias eram mais conservadoras, pacatas. Havia sempre alguém que ia lá tentar fazer passar a sua mensagem e, se não agradasse, por vezes dava conflitos. Na altura tínhamos o então capitão Rui Guimarães como grande referência para muitos de nós dentro de uma linha equilibrada e era o Comandante da minha companhia. Não tinham nada a ver com os radicais do pós 11 de Março. Era de formação dos comandos, militarmente com regras, competente, determinado e de grande humanismo. Como homem também era fantástico, um amigo que encontrei e mantenho para sempre. E era muito necessário termos homens firmes, até para sabermos resistir àqueles períodos cheios de episódios contraditórios. Constou que, logo no dia 26 de abril de 1974, um grupo militar do Caçadores 9 trouxe alguns agentes da PIDE, cerca de 20, e libertou-os perto da Trofa. Uns discordavam e outros ignoravam. Havia notícias que não caíam bem. Uns prendiam-se, outros libertavam-se. Havia ordens superiores contraditórias. Não era fácil, naqueles momentos, assegurar uma atuação unívoca. Havia muitos setores militares a atuar, interesses e abordagens diferentes. Quando saímos, no dia 25 de Abril, não sabíamos muito bem o impacto que aquela nossa ação viria a ter no futuro de todos nós. Os capitães perguntavam apenas: Vocês confiam em nós? Respondíamos: Confiamos! Voltavam a perguntar: Estão comigo? Respondíamos: Estamos! E lá fomos! Um pouco como a cena do Salgueiro Maia em Santarém: “quem quiser vir comigo dá um passo em frente”, disse o capitão Rui Guimarães. Demos esse passo, todos. Tivemos a felicidade de estarmos num espaço e num tempo em que pudemos intervir e fazer História. Calhou à nossa geração. Se voltasse atrás, faria o mesmo. Hoje, estamos mais informados. A falta de informação nunca ajuda nada, nem ninguém. A minha participação deu-me gozo. Estive lá, vivi situações muito diferentes, sofremos alguns bocados, mas é um orgulho ter estado lá. Nunca me envolvi em grandes debates sobre o 25 de Abril. Colaboro quando me solicitam. Não segui a vida política. Costumo dizer que o meu partido foi a educação, e foi-o ao longo da vida toda. E, dentro da educação, foi a formação dos professores, em particular. Ainda hoje, o que faço na Universidade Católica é em prol da educação. Vivo o 25 de Abril, sinto-o à minha maneira e nunca mais o esquecerei. Quando vejo aquelas imagens a passar na televisão, não deixo de me emocionar, claro. Ter estado lá faz muita diferença. É o problema da representação e da vivência. Entre a vivência e a representação, vai uma grande distância.