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Liberdade religiosa

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Obrigado Francisca

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Armindo Cachada (Ex-jornalista JN) cachada.armindo@gmail.com

O 25 de Abril é uma data essencialmente associada à liberdade. Liberdade é autonomia, independência, direito a professar e a exprimir opiniões políticas, religiosas ou outras, sem se ser inquietado por causa das suas opiniões. Tais liberdades, aliás, estão consignadas e protegidas na Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de dezembro de 1948. No que concerne à Liberdade Religiosa, ela incide particularmente no direito à liberdade de consciência, religião e culto. Segundo a constituição portuguesa, reformulada após a revolução de Abril, ela é inviolável. Nem sempre foi assim ao longo da história dos povos e continua a não ser, atualmente, em muitas partes do globo. Ainda hoje a religião continua no cerne de muitos conflitos e confrontos bélicos causados por diferenças étnicas, culturais, sociais e políticas, mas também e muito particularmente, por diferenças económicas que geram situações de pobreza extrema, de marginalidade, de exploração e mesmo de escravatura. Poderíamos fazer aqui uma leitura alargada sobre os conflitos religiosos no mundo de hoje e sobre as causas que os originam, começando pelo palco de guerra que é o Médio Oriente, onde nasceram e sempre se digladiaram as religiões monoteístas de ascendência abraâmica: judaísmo, cristianismo e islamismo. Mas essa leitura levar-nos-ia demasiado longe. Vamos, antes, debruçar-nos sobre a liberdade religiosa, historiando por alto as suas origens, no mundo ocidental.

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O Direito à Liberdade Religiosa proclamado pelo Édito de Milão no ano 313

No mês de Junho deste ano de 2021, comemoram-se os 1.708 anos sobre uma das maiores conquistas da humanidade: o direito à liberdade religiosa. Foi em Junho do ano 313 que os imperadores romanos do Ocidente e do Oriente, Constantino e Licínio, concederam por decreto aos cristãos e a outros crentes "o direito de observar livre e abertamente sua fé”. Estava-se então, no início do século IV, na velha Roma, num dos períodos de maior perseguição religiosa aos cristãos, ditada sob o império de Diocleciano. Este

publicara, em 303, um conjunto de éditos contra os cristãos, que mandavam demolir as igrejas, queimar as cópias da Bíblia, executar as autoridades eclesiásticas, privar os cristãos dos seus cargos públicos e direitos civis, obrigá-los a sacrificar aos deuses sob pena de morte, e outras medidas coercivas, no que ficou conhecido como a "grande perseguição". Pensava o imperador, com estas medidas, instigadas por Galério, reforçar a unidade do Estado, cheio de problemas e retalhado administrativamente sob várias tutelas, mas supostamente ameaçada pelo cristianismo crescente, que não prestava veneração à suposta divindade do imperador. Mas estas medidas não conseguiram exterminar o cristianismo que continuava a crescer, e Galério, um dos tetrarcas nomeado “César” por Diocleciano para administrar as províncias balcânicas e apaziguar a situação, publicou em 311 o chamado “Decreto da Indulgência”, pelo qual terminavam as perseguições aos cristãos. Estes passaram, então, a ter reconhecimento legal com direito a poderem celebrar o seu culto e construir templos.

Entretanto, Constantino, que ficou conhecido para a história como Constantino Magno, fora aclamado pelas suas tropas como “Augusto” e, na sequência de guerras e manobras políticas, declarado imperador do Ocidente, dominando a Gália, a Germânia e a Hispânia, com capital em “Tréveros” (atual cidade de Tréveris, na Renânia-Palatinado - Alemanha). Na altura, o império romano encontrava-se mergulhado em guerra civil entre os diferentes imperadores. Após ter vencido o imperador Magêncio, em Outubro de 312, na Batalha de Ponte Sílvia (sobre o rio Tibre, em Ro-

Imagem 21 - Porta Nigra (séc. III) - Portal de entrada na Cidade Augusta de Treveros (atual Tréveris - Alemanha), ma), vitória que atribuiu a desígnio divino, Constantino reuoutrora capital da porção do império romano governado pelo imperador Constantino, no século IV. niu-se em Milão com o imperador Licínio, que dominava a parte oriental do império romano. Nesse encontro, realizado em fevereiro de 313, os dois imperadores redigiram os termos de uma "Paz Universal". Daí resultou, igualmente, o chamado "Édito de Milão", na versão de uma carta dirigida ao Governador da Bitínia que, entre outras mensagens, dizia o seguinte: "Pensamos que é adequado entregar essas coisas inteiramente aos vossos cuidados, para que saibais que temos dado aos cristãos a livre e irrestrita oportunidade de culto religioso. Quando virem que esta lhes foi concedida por nós, o seu culto vai saber que nós também concedemos a outras religiões o direito de seguir aberta e livremente a sua adoração pela paz dos nossos tempos, que cada um possa ter a oportunidade de liberdade de culto que lhe agrade; este

regulamento é feito para que não possa parecer depreciar qualquer dignidade ou religião". (Lactâncio, De Mortibus Persecutorum 45.1, 48.2, cit. e tr. Clarke, 662–63). Neste documento, que terá sido promulgado a 13 de Junho de 313, estabeleceram-se os princípios da liberdade de religião e de culto para todos os cidadãos e, consequentemente, também para os cristãos. Numa segunda parte do documento, ficou estabelecido que fossem devolvidos aos cristãos os seus antigos locais de religião e de culto, bem como as propriedades confiscadas pelo Estado. Constantino ficou na História como o primeiro imperador romano a professar o cristianismo, devendose a sua conversão ao facto de ter atribuído a vitória contra Magêncio a uma visão da Cruz, símbolo do cristianismo. Na Cruz ter-lhe-ão aparecido os seguintes dizeres: “In hoc signo vinces”. Por este sinal vencerás!

O cristianismo veio a tornar-se, mais tarde, ao tempo do imperador Teodósio I, pelo “Édito de Tessalónica” (380),19 a única religião autorizada em todo o império romano. Após 67 anos de liberdade religiosa, o império romano voltava a ter imposta uma nova religião oficial, o cristianismo. O tradicional culto aos deuses foi definitivamente abandonado em favor de uma religião monoteísta com as normas morais que a acompanhavam. A história do Ocidente é a história do cristianismo. O Direito à liberdade religiosa e a outros aspetos fundamentais da vida humana estão hoje consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela ONU a 10 de Dezembro de 1948. Esta Declaração é o culminar de muitas outras declarações que, ao longo da história, foram sendo proclamadas, embora de forma parcelar, por diversas civilizações, antigas e modernas. De certo modo, são-lhe precursoras. Mas, ao olharmos para o atual panorama mundial, verificamos que tais direitos continuam a ser, em muitas culturas e civilizações, letra morta. E o mundo, hoje, não é muito mais pacífico do que o de então,

19 Édito dos imperadores Graciano, Valentiniano (II) e Teodósio Augusto, ao povo da cidade de Constantinopla. Queremos que todos os povos governados pela administração da nossa clemência professem a religião que o divino apóstolo Pedro deu aos romanos, que até hoje foi pregada como a pregou ele próprio, e que é evidente que professam o Pontífice Dâmaso e o bispo de Alexandria, Pedro, homem de santidade apostólica. Isto é, segundo a doutrina apostólica e a doutrina evangélica cremos na divindade única do Pai, do Filho e do Espírito Santo sob o conceito de igual majestade e da piedosa Trindade. Ordenamos que tenham o nome de cristãos católicos quem sigam esta norma, enquanto os demais os julgamos dementes e loucos sobre os quais pesará a infâmia da heresia. Os seus locais de reunião não receberão o nome de igrejas e serão objeto, primeiro da vingança divina, e depois serão castigados pela nossa própria iniciativa que adotaremos seguindo a vontade celestial. Dado o terceiro dia das Kalendas de março em Tessalônica, no quinto consulado de Graciano Augusto e primeiro de Teodósio Augusto. Dat. III Kal. Mar. Tessal(onicae) Gr(ati)ano A. V et Theod(osio) A. I Conss. (Código Teodosiano, 16.1.2)

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