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Ferreira de Castro A propósito de Abril
from OsmusikéCadernos 2
by osmusike
Álvaro Nunes alvaroamanunes@gmail.com
“Tenho residido em vários povoados do Minho, sobretudo nas Caldas das Taipas, onde o Ave, de dia, e a Lua, de noite, falam muito comigo; e tenho convivido, Verão após Verão, com numerosos camponeses”. De facto, ao longo da década de 60, era habitual ver o escritor José Maria Ferreira de Castro (1898-1974) a veranear nas termas das Caldas das Taipas (“a terra onde a lua fala”), ocupando um quarto das traseiras do Hotel das Termas, com vistas para o parque. Esta assiduidade e convivialidade entre os taipenses granjeou-lhe empatia, que, em paralelo com a admiração pela sua obra, culminaria com a sua homenagem pública em 17 de abril de 1971, já lá vão 50 anos. Realmente, nessa data que agora evocamos, Ferreira de Castro, na companhia da sua (segunda) esposa Elena Muriel, seria homenageado nas Caldas das Taipas por iniciativa do Círculo de Arte e Recreio, presidido por J. Santos Simões, em cerimónia pública que contaria com a inauguração do seu busto na vila taipense; e, subsequentemente, intervenções diversas, entre as quais do crítico literário Arsénio Mota, do Presidente da Junta de Caldelas e admirador José Oliveira e J. Santos Simões que leria também uma saudação especial do amigo e escritor Jorge Amado. Ora, é a propósito desta evocação que trazemos à colação este excelente escritor, cuja obra e vida se confundem numa intrínseca relação de coerência fidedigna. Com efeito, Ferreira de Castro lutou praticamente toda a sua vida e subiu-a a pulso para ser jornalista, escritor e homem, e combateu com a arma da pena, tal como Camões e muitos outros, com o objetivo de melhorar o mundo nos tempos de “apagada e vil tristeza”.
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Urbi e orbi não só vivenciada entre a I e a II República portuguesa e a ditadura salazarista, mas também nos conflitos das grandes guerras mundiais, da guerra civil espanhola e da revolução russa que, na agitação política da sublevação, içaram novas bandeiras como o anarquismo, o socialismo e o comunismo. Ferreira Castro teria, porém, como principal bandeira a luta pelas condições de vida do povo, ele que fora filho de camponeses pobres de Ossela (Oliveira de Azeméis), órfão de pai, durante a sua infância. Ele que teve de emigrar e de buscar o pão que o diabo amassou em terras brasileiras, ainda adolescente, partindo com a simples instrução primária na algibeira. Com efeito, seria no seringal amazónico e na cidade de Belém do Pará que o jovem Zé Maria viveria
entre 1911 e 1919, em trabalhos e biscates variados e se iniciaria nas letras, publicando os primeiros textos jornalísticos e a sua primeira obra, “Criminoso por Ambição” (1916), que distribui de porta em porta. A sua escrita cresce paulatinamente num autodidatismo sem precedentes, que lhe está nas veias profundas desde a adolescência e sustentada nas vicissitudes da vida funcionaria como anelo apelativo desde a sua juventude e como instinto de sobrevivência:
“Se me perguntassem nesse tempo o que eu dese- O busto de Ferreira de Castro nas Taipas java ser na vida, teria respondido sem hesitar: jornalis- “ - Uma pena, botaram-me a perder o veraneio. Todos ta” os anos. no verão, vinha para aqui para uns dias de (…) descanso. Antes do sol de pôr, à tarde, sentava-me naquele banco – aponta o banco junto ao busto ,
“O jornalismo representa para mim o forno de on- conversava sobre a chuva e o bom tempo, a vida e a de me vinha o pão e assim poder realizar os meus po- morte com os patrícios, sabem coisas, contavam-me bres livros à sua ilharga, nas horas destinadas ao repou- das pessoas e dos costumes, os detalhes com que se so (…) Era ele que me punha a mesa sóbria, que substi- fazem os romances. Sabes como é. O vento na praça, Ferreira de Castro ajeita o cachetuía os fatos e os sapatos quando muito usados me pacol: gava os cigarros e os cafés. Sem ele (…) eu não podia - Conheciam-me como o homem do chapéu porque entregar-me, naqueles dias, ao meu teimoso sonho de ando de cabeça coberta para não apanhar defluxo, não romancista” (…) sabiam quem eu fosse, conversavam à tripa solta, eu era um deles. Agora, acabou-se, não serei eu quem irá sentar-se diante do busto, papel ridículo. Deixei de ir
O JORNALISTA ao veraneio, a conversa se perdeu, já nada me contam, Efetivamente, quer no Brasil onde permaneceria passei a ser Vossa Excelência, dão boa tarde e se desaté 1919, quer em Lisboa, nos primeiros anos após o pedem. Uma tristeza. Vamos embora antes que penseu regresso, a vida de Ferreira de Castro seria inicial- sem que vim aqui para vos exibir o busto, pavonearme” mente difícil e penosa até se impor pela profundeza da Jorge Amado, in "Navegações de Cabotagem (1999) sua escrita. Deste modo, em 1922, afirmar-se-ia veementemente na revista “A Hora” e mais tarde no jornal” O Século” (1927), a que se seguem as colaborações no suplemento literário do jornal operário “A Batalha”, semanário da Confederação Geral do Trabalho, bem como a assunção da direção do “Diabo”, hebdomadário de crítica literária e artística de oposição ao Estado Novo. Efetivamente, Ferreira de Castro sobressai jornalisticamente com excelentes trabalhos de humanismo social que suscitam a admiração e o guindariam à presidência do Sindicato dos Profissionais da Imprensa de Lisboa (1926). E, curiosamente, é também neste meio que conhece a primeira esposa, a jornalista e escritora Diana Lis, que precocemente faleceria em
1930, ano da sua consagração como romancista. Datam, assim, deste período excelentes crónicas e reportagens sobre as Constituintes da II República Espanhola, a Revolta da Andaluzia e o plebiscito sobre a autonomia da Catalunha, a entrevista ao líder republicano irlandês Eamon de Valere, bem como trabalhos sobre os albergues noturnos, ou o mutualismo, a que junta “perigosos” artigos sobre as condições de vida nas prisões portuguesas, como na prisão do Limoeiro e/ou nas Minas de S. Domingos, ambos proibidos pela censura. Aliás, a censura iniciada em junho de 1926 e reorganizada em 1932, seria, ao longo da sua vida jornalística, um dos seus principais combates, que o levam a abandonar esse mister. No entanto, como disse, “a censura tem, porém, uma virtude: é demonstrar quanto vale ser homem livre, um povo livre”. Ademais, o jornalismo seria também, em complemento da primeira homenagem taipense, a motivação para um novo preito nas Caldas das Taipas, levada a cabo pelo Gabinete de Imprensa de Guimarães, presidido pelo livreiro e jornalista Luís Caldas, no âmbito do XII Encontro Regional da Imprensa do Norte, em 28 de novembro de 1983. Homenagens a que se acrescentaria uma outra, ocorrida em 6 de fevereiro de 1999, que congregaria instituições vimaranenses e taipenses e o Grupo Cultural e Recreativo de Ossela. Imagem 36 - Ferreira de Castro e Jorge Amado

O ROMANCISTA CONSAGRADO
Realmente, ainda que várias obras tenham sido produzidas antes de 1928, este ano aziago da política portuguesa marca e lança Ferreira de Castro na literatura nacional e no mundo. De facto, após a publicação de “Emigrantes” e, dois anos depois, “A Selva”, o escritor projeta-se universalmente, com traduções em várias línguas, enveredando por uma prosa pejada de um forte humanismo social, adstrita ao povo deser-
dado e oprimido:” nada me poderia interessar tão profundamente do que esta luminosa ideia de aliar o meu nome ao povo da nossa terra, ao povo de Portugal, talvez porque sou povo também”.
“Emigrantes” é, assim, nas palavras do italiano A. R. Ferrarin, “o romance de todos os emigrantes”, enquanto drama da busca do pão quotidiano e melhoria das condições de vida, cujo protagonista Manuel da Bouça se configura como um arquétipo e alter-ego ficcional da própria experiência migratória do escritor: “sabeis, meus amigos, que o problema da emigração é dolorosamente familiar e que eu fui mesmo, porventura, o primeiro romancista português a tratá-lo com experiência própria” “A Selva”, por sua vez, seria anunciada pela UNESCO, em 1973, como um dos dez romances mais lidos em todo o mundo, dando azo a uma adaptação cinematográfica e a série televisiva. Uma obra que transmite uma forte mensagem e justiça e fraternidade humana, que Jorge Amado considera ser” o bálsamo sobre a chaga aberta da violência mais ignóbil desabada sobre os índios iguais a crianças órfãs”. Mas também um livro de duas pátrias (Portugal e Brasil), que revela “a selva amazónica, pelo muito que nela sofri durante os primeiros anos da minha adolescência e pela coragem que me deu para o resto da vida (…) que há de registar a tremenda caminhada dos deserdados através dos séculos em busca do pão e da justiça”. Todavia, este ciclo de obras de forte humanismo social prossegue em 1933 com “Eternidade”, romance dedicado à Imagem 37 - Frases de Ferreira de Castro falecida esposa Diana Lis, que transpõe catarticamente para a escrita o seu drama íntimo perante o absurdo da existência e fragilidade humana. Uma obra passada na Madeira na qual se a matriz castriana de cariz social se manifesta na personagem Juvenal, que consciencializando-se das discrepâncias sociais ente a burguesia funchalense e os camponeses, operários e bordadeiras da ilha trava uma luta de resistência que o levam à deportação para Cabo Verde. Porém, ficam as sementes do seu trabalho no ventre de sua companheira Elisabeth, cujo filho como esperança no futuro da humanidade e crença na capacidade de transmutação do homem continuará a luta:” a vida é mais forte e só ela

existe! Quando eu já não puder lutar, lutará ele. E creio no seu futuro, no de todos os homens que hão de vir” …
Por sua vez, “Terra Fria” (1934), consagrada com o Prémio Ricardo Malheiros, cuja ação romanesca decorre em terras barrosãs, não só se constitui como obra de páginas vivas de singular antropologia, como também e fundamentalmente como testemunho de crítica feroz ao abuso de poder, sob princípios feudalistas dos poderosos da terra, cujo povo subjugado sob a canga da pobreza luta esforçadamente contra as condições de vida adversas.
Na mesma esteira, “A Lã e a Neve” (1947) assume-se também como uma epopeia do trabalho sob o paradigma social de transformação do mundo. De facto, quer o operário anarquista Marreta, quer o seu pupilo e pastor Horácio, assumem-se neste romance, passado entre o proletariado têxtil e o pastoreio da Serra da Estrela, como forças vivas de rutura do cerco da miséria, injustiça e opressão que abafa a iniciativas dos homens de boa vontade. No fundo, uma obra concentrada no meio da tecelagem da serra, mas que, como cita Fidelino Figueiredo representa” em miniatura, toda a vida portuguesa, na sua imobilidade”
OUTRAS OBRAS E CONSAGRAÇÕES
Ferreira de Castro haveria ainda de escrever interessantes livros, como “Pequenos Mundos e Velhas Civilizações” (1937) e, após uma viagem planetária em 1939, livros de viagens como “A Volta ao Mundo” (1944) e “As Maravilhas Artísticas do Mundo (1959) que, em 1963, receberia o Prémio Catenacci da Academia de Belas Artes de Paris. Aliás este último seria até o tema da exposição ocorrida na Universidade do Minho, em Guimarães, em 2018, cidade que também evoca o autor na toponímia daa cidade, numa Imagem 38 - Livros de Ferreira de Castro
artéria nas Quintãs. No entanto, uma obra completa que fecharia com uma terceira fase, que concilia os conflitos interio-

res com as realidades sociais e históricas. Destacam-se deste período obras como “A Curva da Estrada” (1950), com ação no decurso da Segunda República espanhola ou “A Missão”. (1954) que reúne três novelas, uma das quais dá título ao livro e que se passa em França, durante a ocupação alemã.
“Instinto Supremo” (1968), que se crê parcialmente redigido nas Caldas das Taipas, seria a sua última obra que marca o seu regresso à selva amazónica. Uma obra centrada na figura do sertanejo Cândido Randon, republicano e abolicionista, e no processo de proteção e pacificação dos índios paratintins.
A título póstumo, seria ainda publicado em 1974” Os Fragmentos – Um Romance e Algumas Evocações” que edita alguns textos suprimidos pela censura. E falta conhecer o conteúdo do misterioso embrulho de cartas femininas, à guarda do Museu Ferreira de Castro, em Sintra, que por vontade expressa do escritor, em março de 1974, só deverá ser aberto em 2050.
Em súmula, uma obra ímpar e exemplar que levou o romancista à presidência da Sociedade Portuguesa de Escritores em 1962 e a ser proposto para o Prémio Nobel em 1951 e em 1968, desta última vez em parceria com Jorge Amado, sob proposta da União Brasileira de Escritores. Porém, o escritor receberia o Grande Prémio Águia de Oiro no Festival do Livro em Nice, em 1970, cujo valor monetário seria aplicado na construção da Biblioteca de Ossela, sua terra natal, e ainda o Prémio da Academia do Mundo Latino, atribuído também a Eugénio Montale e Jorge Amado. Como cidadão empenhado, para além da luta contra a censura, é ainda relevante a sua ação política cívica na defesa dos valores democráticos, em especial no seio do Movimento de Unidade Democrático (MUD), que, em 1958, o sondaria para ser candidato da oposição à Presidência da República, convite que recusaria. De facto, lutador até à morte, em 1974, logo após a Revolução do 25 de Abril, que ainda viveu com entusiasmo, Ferreira de Castro nunca virou a cara à luta, ciente que, como dizia, “em muitas coisas podeis aperfeiçoar o mundo e a vós próprios. Mas não é de joelhos que o fareis; é de pé e a lutar”.
Participaria ainda no desfile do primeiro 1º. de maio, em Lisboa, a gritar “Escrever é lutar! Escrever é lutar! …, sempre convicto que “transformaria a aldeia, transformaria o velho mundo num mundo novo com uma sociedade nova e um homem novo, transformaria em realidades as esperanças tanto tempo reprimidas”. Re(ler) Ferreira de Castro e visitar seus espaços sagrados em Ossela (Oliveira de Azeméis) e Sintra é talvez um salutar exercício de boa leitura e de reflexão sobre o 25 de Abril que mais uma vez nos bate à porta.