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Crónica da democracia. Era uma vez um país
from OsmusikéCadernos 2
by osmusike
Agostinho Ferreira agostinhoferreira@esfh.pt
“Somos também um povo cheio de fé. Temos fé na guerra, na justiça, na crueldade, no amor, na eternidade. Somos todos loucos.” Herberto Hélder - Os Passos em volta, p. 119
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“Vivemos numa cultura da imagem. O «ópio do povo», hoje, é a propaganda política, cultural, económica, cuja arma mais eficaz e ilusão mais insidiosa estão no persuadir-nos de que os signos são as coisas. Os reis eram até ainda há pouco os filhos dos deuses, que os enviam à terra com a vinha e com o milho; hoje, os presidentes são as criaturas da televisão desembarcadas no ecrã mítico entre a margarina e os enzimas glutões. Mas começamos, pelo menos, a saber que vivemos entre os signos – e a apercebermo-nos da sua natureza e do seu poder. Esta consciência semiológica poderá tornar-se, amanhã, a principal garantia da nossa liberdade.” Pierre Guirraud – A semiologia, p 95
Era uma vez um país que, como qualquer país, tinha pessoas, famílias, crenças, e muito futebol. As pessoas eram muito crentes. Acreditavam em tudo: nos deuses, nos políticos, na economia, no sucesso, na felicidade, no ensino, nos horóscopos, nas desgraças, nas mentiras televisivas, nas estatísticas manipuladoras e, sobretudo, no futebol. E orientavam a sua existência pelo que viam na televisão e nos muitos sítios da internet. As novelas e as redes sociais passaram a fazer parte dos rituais indispensáveis do quotidiano. Os jornalistas verificaram o sucesso das novelas e começaram a dar notícias como as novelas: por episódios e insistentemente repetitivas e escandalosas. E, depois, as pessoas discutiam essas notícias como se fossem verdades absolutas e eternas. E começaram a não saber distinguir as notícias das novelas, até porque começaram a surgir novelas ao vivo. Uma confusão. Nesse país, quem definia o que estava bem e o que estava mal, o que era certo e o que era errado eram as televisões e as redes sociais. De modo que as pessoas deixaram de ter a capacidade de pensar por conta própria. Pensavam pela televisão e pelas ditas redes sociais. E aqueles factos que eram escandalosos deixavam de o ser, quando as televisões diziam que não eram escandalosos. E os factos mais banais passavam a ser escandalosos se as televisões assim os apresentassem. Nesse país, não havia governo, porque quem, de facto, mandava eram as televisões e as redes sociais.
Eram elas que moldavam as mentes e as vontades dos cidadãos. Era uma democracia feita pela televisão e pela internet. Mas as pessoas acreditavam nos políticos e escolhiam-nos para governar, porque eles prometiam a felicidade. E depois cansavam-se de esperar, porque a felicidade não aparecia. E, quando achavam que já lá estavam há demasiado tempo, escolhiam os que estavam na oposição, porque prometiam ser mais rápidos a trazer a felicidade ao povo. E depois voltavam a cansar-se de esperar e voltavam a escolher os anteriores, etc. Mas a sua fé nos políticos nunca vacilava e, por isso, periodicamente lá voltavam à mesa de voto. Era um país de humores muito variáveis. Como as pessoas acreditavam em tudo e generalizavam tudo e, como quem mandava eram a televisões e as redes sociais, o estado de espírito das pessoas alternava com períodos de alegria e períodos de desfalecimento e depressão. Quando acontecia um caso isolado de sucesso, o povo achava que o país era todo um sucesso. Um dia, o país ganhou um campeonato de futebol europeu. Também teve uma canção de sucesso num certame de canções. E durante muitos anos as pessoas ficaram felizes, porque um dia ganharam esse campeonato e tiveram uma canção. Mas quando algo corria mal, tudo corria mal, porque as televisões, de tanto insistir, faziam acreditar que o mal era geral. E todo o país entrava em depressão. E os governantes, que conheciam o povo, pintavam o sistema económico com as desgraças que os outros tinham inventado. E, então, eram aumentados os impostos, perante o silêncio deprimido das pessoas. Os governantes tinham sempre desculpas para os seus desgovernos ou para as situações que não corriam como o prometido. Normalmente, as culpas eram de um ditador que já tinha morrido há mais de cinquenta anos. Nesse país, as pessoas acreditavam na felicidade. Mas a felicidade não era um estado de espírito, nem correspondia ao bem-estar pessoal ou coletivo. Não. Nesse país, a felicidade era quantificada. Media-se pela riqueza, pelo estatuto social, pelo aparato que as pessoas conseguiam transmitir. Até a felicidade se regia pelas leis da livre concorrência. De modo que toda a gente queria ter uma felicidade melhor um bocadinho que a dos outros. Todos queriam enriquecer mais que os outros, para serem mais felizes. Mas nunca reparavam que a única felicidade estava exatamente nessa procura, nessa incessante busca, nessa permanente conquista. Nesse país, até a dieta diária das pessoas era feita pelas televisões e pelas redes sociais. Um dia as televisões noticiaram que havia doenças que podiam ser transmitidas pelos animais. Logo surgiam listas de animais proibidos para a alimentação, ao mesmo tempo que se davam abates gerais. Em tempos longínquos, as televisões falaram de vacas que eram loucas e passavam loucura para as pessoas. Depois falaram de doenças numas galinhas, depois nuns porcos, depois em morcegos, depois em animais da China. E havia
ainda o problema da radiação no mar, e de produtos químicos que havia nas plantas. E, de tanto noticiarem, as pessoas acreditavam sabiamente que poucos eram os produtos que podiam ingerir. Iam controlando a sua dieta pela televisão e pelas redes sociais, porque acreditavam que tudo era verdade. Não comiam o que gostavam. Comiam aquilo que as televisões e as redes sociais não proibiam. Nesse país, os cidadãos também acreditavam na igualdade, na fraternidade, na justiça e no futuro. E nem reparavam que todos eram diferentes, que cada um fazia a sua conquista diária, que cada um lutava à sua maneira. Mas, como acreditavam em tudo, havia muitas coisas que não compreendiam. Não compreendiam como era possível haver cidadãos mais empreendedores do que os outros. Tinham dificuldade em compreender as pessoas que pensavam de modo diferente. Não entendiam como era possível alguns cidadãos, sentados no conforto da lareira sem nada fazer, recebiam exorbitâncias, enquanto a maioria, que trabalhava arduamente, recebia um escasso ordenado a que chamavam de mínimo. Tudo isto chocava com a fé que tinham na igualdade. E até houve, em tempos remotos, um governo que, para que o povo acreditasse ainda mais na igualdade, criou o ministério da igualdade, porque era mais popular gerir a igualdade do que gerir as diferenças. Também acreditavam na fraternidade. Mas a fraternidade deveria ser sempre um atributo dos outros porque cada um, individualmente, não tinha tempo para essas coisas. E acreditavam na justiça, nos juízes, nas leis. E eram tantas as leis que nenhum cidadão sabia se estava a agir corretamente ou se estava a transgredir. E as pessoas viviam com medo porque não podiam invocar desconhecimento das leis. Os valores que, durante séculos, orientaram a sociedade desapareceram. E as pessoas deixaram de entender-se porque havia alguns mais espertos que utilizavam as leis a seu favor. E as leis eram feitas partindo sempre do princípio de que os cidadãos não eram pessoas decentes. As leis não ditavam normas de conduta. Apenas definiam os limites até onde os indivíduos podiam transgredir sem serem castigadas. Depois os tribunais não funcionavam. Viviam entupidos em processos de muitas páginas e em códigos legais que estavam sempre a mudar. De modo que a justiça passou a ser feita pelas televisões e pelas redes sociais. Quando acontecia algum crime ou alguma injustiça social, chamavam-se as televisões e logo se faziam os julgamentos públicos. E os governos viam-se obrigados a ceder aos juízos sumários da opinião pública. Os juízes passaram a ser os jornalistas e os políticos. Eram aqueles que utilizavam uma linguagem fina capaz de manipular as opiniões. Depois, as redes sociais encarregavam-se de adulterar a verdade, de caricaturar as situações. E os cidadãos absorviam tudo. Não tinham sequer a capacidade de duvidar. Os cidadãos também acreditavam no futuro porque as redes sociais e as televisões apresentavam grandes projeções, que não se confirmavam, e grandes projetos, que não se concretizavam. Houve, até, um
aeroporto que andou de projeto em projeto durante mais de cinquenta anos e, no fim, nem se construiu. Mas era nesse futuro que projetavam os sonhos, as alegrias, as vitórias inalcançáveis. Os políticos, para acentuar a sua preocupação com a felicidade do povo, começaram a contratar psicólogos. Mas nesse país, a psicologia não era a ciência que estudava a verdade da pessoa humana. Nem se preocupava com os problemas do espírito. Era uma espécie de arte de enganar. A psicologia que se aplicava não era mais do que um conjunto de mentiras bondosas que faziam com que as pessoas ficassem felizes enquanto dormiam. Era uma espécie de droga moral de curta duração. Quando as pessoas acordavam, verificavam que estavam enganadas e as teorias psicológicas deixavam de funcionar. Contudo, era uma arte que tinha bastante aceitação, porque havia muitas pessoas que passavam uma grande parte da vida a dormir ou raramente abriam os olhos. Nesse país de liberdade, ninguém era controlado, porque havia liberdade. Mas havia localizadores nos telemóveis, havia um sistema de finanças que sabia todas as compras que os cidadãos efetuavam, havia a possibilidade de o estado saber os saldos bancários dos cidadãos. E as pessoas eram castigadas se se esquecessem de pagar alguns cêntimos ao sistema dos impostos. Só não eram castigados os habilidosos que desviavam milhões. Era uma questão técnica e informática. Era um país em que os políticos e os ídolos do povo sabiam utilizar conceitos generalistas como liberdade, igualdade, fraternidade, justiça social, progresso e até bazucas metafóricas. Mas estes conceitos, com fortes cargas míticas, não correspondiam a realidades concretas. Eram apenas signos que contribuíam para a manipulação das mentes e para a manutenção do poder. Os cidadãos acreditavam em tudo: no país, nos outros, no progresso, nas televisões, nas redes sociais. Só não acreditavam neles próprios. E por isso, o país, porque a sua construção estava sempre a cargo dos outros, não progredia.
Era uma vez um país…