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Que viva Abril, sempre
from OsmusikéCadernos 2
by osmusike
Torcato Ribeiro torcatoribeiro@gmail.com
À pergunta (hipotética) do Batista Bastos “Onde é que estavas no 25 de Abril?”, respondo que nesse dia estava numa aula no laboratório de Física e Química na Escola Industrial e Comercial de Guimarães, da parte da manhã, quando pela primeira vez ouvi falar em algo de anormal que estava a acontecer em Portugal. Num determinado momento ouvimos correrias e gritos nos corredores, mas só depois de a aula acabar, a professora apavorada não nos deixou sair, é que soubemos que os estudantes do Liceu de Guimarães estiveram no exterior da escola a mobilizar alunos para integrarem a manifestação de apoio ao golpe militar. Naquela sala de aulas, o medo, pilar e imagem de marca do regime fascista, agonizava, mas ainda bulia. Confirmado o êxito da operação militar no derrube do regime, começou o processo de adaptação a uma nova realidade onde foram sendo eliminadas as muitas barreiras que nos tolheram o comportamento durante a ditadura. Nesta escola, como em muitas outras espalhadas pelo país, havia espaços de circulação separados para os rapazes e para as raparigas não sendo permitido no seu interior qualquer convívio entre os diferentes sexos. Ultrapassar esta linha proibida ficou-me gravado na memória como o primeiro passo simbólico da mudança de regime, na escola e no país. Inicialmente foi um golpe militar, para acabar com a guerra, mas o povo, até aqui adormecido, despertou, perdeu o medo, libertou-se das amarras e invadiu as ruas, e era tanto, tanto, que facilmente o golpe adquiriu outra dimensão, transbordou das mãos dos seus criadores e transformou-se em revolução! E que revolução! Em contraste com o país anterior, remediado e a preto e branco, as pessoas, individual ou colectivamente, participaram na construção dum país diferente e novo com tal convicção que parecia quererem recuperar o tempo perdido, vivendo-o intensamente, mas agora em modo colorido. Os que o viveram tiveram a felicidade de participar na história enquanto verdadeiros protagonistas das transformações ocorridas na vida política e social portuguesa. A festa, propriamente dita, durou pouco, mas pela primeira vez após quarenta e oito anos de ditadura, respirou-se liberdade plena e praticou-se, sem conta nem medida, solidariedade, fraternidade e igualdade no seu mais puro e genuíno significado. Os portugueses passaram a poder pertencer a um partido político,
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um sindicato ou associação cultural em pleno, sem censura nem constrangimentos. A guerra colonial, que ceifou mais de oito mil vidas da nossa juventude, e provocou milhares de feridos e estropiados, acabou. A polícia política, PIDE/DGS, instrumento de terror ao serviço do regime deposto, foi extinta. Foram libertados todos os presos políticos e os portugueses exilados no estrangeiro, para fugirem à guerra e à perseguição, puderam finalmente regressar ao país. Com a extinção da Comissão de Censura, passamos a ter liberdade de expressão e de manifestação, bem como o direito à greve. Todos participaram com entusiasmo na construção dum país novo e a jornada de trabalho voluntário num Domingo, a pedido do Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves, é prova desse entusiasmo e determinação.
Os trabalhadores e as classes mais desfavorecidas passaram a ter o direito à habitação, à saúde e à educação. Passaram igualmente a ter direito às férias e ao subsídio de férias, ao décimo terceiro mês e a um salário mínimo cujo valor, hoje, seria o equivalente a cerca de mil euros, que trouxe maior rendimento para quem trabalha garantindo melhores condições e oportunidades para uma vida mais digna para a esmagadora maioria da população.
A Constituição da República Portuguesa, aprovada em 2 de Abril de 1976, consagrou os direitos e conquistas emanados da Revolução dos Cravos e, mesmo após Imagem 15 - 25 de Abril de 1974 em Guimarães – Foto Simão as sete revisões que a alteraram significativamente, continua a ser o garante de importantes direitos políticos, económicos, sociais e culturais dos trabalhadores e do povo. Estamos em Abril de 2021 e já passou mais de um ano desde que pela primeira vez tomamos conhecimento de uma realidade que nenhum de nós imaginara vir a acontecer: a pandemia da COVID-19. Tempo em que fomos obrigados a mudar pequenos gestos do dia-a-dia, hábitos, e a redobrar precauções para evitar a propagação do vírus e salvaguardar a nossa vida e a dos outros. Um ano em que se aprofundou o isolamento e a solidão de muitos de nós, com maior incidência nas camadas mais idosas da população.
A palavra confinamento passou a regrar o nosso quotidiano, adiando encontros, afectos, e condicionando diversas actividades profissionais, com consequências que, não estando ainda devidamente quantificadas, sabemos que serão negativas num futuro próximo. A vacinação, sendo a fórmula descoberta em tempo record, decorre muito mais lenta que o desejado, exigindo de todos muita paciência e resignação até atingirmos a imunidade de grupo. O confinamento prolongado, com todas as limitações impostas, inunda-nos de saudades da liberdade a que estávamos habituados. Da liberdade que conquistamos há 47 anos, na madrugada do dia 25 de Abril de 1974.
As gerações após Abril encontraram um país livre e com uma boa parte das necessidades básicas resolvidas. Não estão todas, infelizmente, mas muito foi feito para melhorar as condições de vida dos mais desfavorecidos de acordo com as exigências do tempo em que vivemos. No entanto, fruto de sucessivas políticas, tem aumentado o fosso entre ricos e pobres pondo em causa o princípio da igualdade de oportunidades e da justiça social. O que está por cumprir tem sido habilmente aproveitado por aqueles que sempre Imagem 16 - Alteração da Toponímia em Guimarães estiveram contra os direitos e a liberdade conquistados. O populismo cavalga a onda de insatisfação de muitos portugueses e o seu discurso demagógico, xenófobo e racista, não augura um futuro promissor para os mais desprotegidos. Sopram ventos adversos que nos enchem de inquietação e nos obrigam a uma vigilância permanente em defesa dos valores democráticos e de políticas que promovam a distribuição da riqueza reduzindo as actuais desigualdades sociais. Esta é apenas uma parte do tempo em que a vontade de muitos permitiu os avanços civilizacionais que as gerações que nos precederam encontraram. A geração de Abril deixou um mundo melhor do que o que lhe calhou em destino, porque teve a oportunidade de recusar a realidade que lhe impuseram e lutar

para a transformar. Saiba a geração herdeira destas vontades, alcançadas com muito sacrifício, lutar para honrar e manter os valores conquistados em Abril. Um Abril completo e sem interrupções que o desviem do caminho na busca de uma sociedade verdadeiramente livre, justa e democrática.