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Liberdade no feminino
from OsmusikéCadernos 2
by osmusike
Maria Beatriz Martins Roberto, Professora Bea.roberto1955@gmail.com
Naquela manhã, há tanto tempo e por tantos desejada, encontrava-me no Magistério Primário de Guimarães, para mais um normal dia de aulas, quando, inesperadamente se ouviram vozes envergonhadas a falar de uma revolução a acontecer em Lisboa. Entre admiração, desconfiança e excitação, lá regressamos todos a casa imbuídos de um sentimento nunca antes experimentado, entre surpresa e curiosidade, dada a falta de esclarecimento. As aulas tinham sido suspensas, acontecimento único em toda a minha vida de estudante, o que nos transmitia ainda mais admiração e sensação de estarmos a fazer parte de algo importante. E assim foi de facto. Quando entrei em casa e ia anunciar aos meus pais a razão de estar ali, reparo que o meu pai se encontrava em frente à televisão a tentar entender o que se estava a passar, mas qual não foi o meu espanto quando me apercebi de que ele, sem tirar os olhos do ecrã, chorava emocionado, o que de imediato respeitei não interrompendo esse momento tão marcante, que ainda hoje recordo como uma memória vívida e importante na minha vida. Só passados alguns anos, consegui compreender e alcançar o turbilhão de sentimentos que se tinha apoderado do meu pai. Pelo facto do meu pai ter nascido em Arraiolos, no seio de uma família pobre e numerosa, experienciado a realidade alentejana, levando-o a fugir da miséria para o Norte, esse momento tinha um significado mais profundo para ele. Penso que, em mim, também houve influências das férias passadas no Alentejo. Vejo-me muitas vezes a correr nas searas sem fim e com a sensação de liberdade que sentia. O Alentejo sempre me tocou a alma. Para mim, na altura com apenas dezanove anos, acabados de fazer, e toda a ingenuidade da minha pequena existência quis acompanhar os movimentos, os acontecimentos, as pessoas, os soldados, enfim, tudo o que ia aparecendo e era dito na televisão. Jamais esquecerei esses dias cheios de espectativas no futuro, vividos intensamente, assim como as inevitáveis transformações que surgiriam para todos os portugueses. Na manhã seguinte, ficamos todos a saber que tinha acontecido uma revolução, sem mortes registadas a que se chamaria a “Revolução dos cravos “que, finalmente, tínhamos conseguido acabar com a ditadura. Para os mais esclarecidos chegara o momento há tanto tempo esperado. Não faltaram manifestações de alegria em todo o País, e pela primeira vez, estávamos todos e cada um à sua maneira, a sentir e a respirar liberdade. Os presos políticos foram libertados, os exilados regressaram à sua pátria, a censura terminou e os portugueses, aos poucos, foram-se habituando a falar de tudo sem medo. Os diversos partidos
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foram aparecendo e passamos a poder votar em eleições livres, escolhendo o que entendíamos ser melhor para o País. O mais importante de tudo era a liberdade de expressão que surgia em cada café, em cada festa, em cada encontro. Acabou o medo da Pide e da censura. Os artistas portugueses puderam, finalmente, dar largas à sua capacidade criativa. Surgiram, finalmente, muitas canções, algumas desconhecidas, outras ouvidas à socapa, para todos que as quisessem ouvir e não só para os mais esclarecidos. No ano seguinte, abracei a minha profissão em pleno, sempre transmitindo aos meus alunos a noção de liberdade consciente e responsável, incutindo-lhes valores como de saber dizer não, de questionar, de procura da verdade, de reflexão, de argumentar com sentido. Os festejos do 25 de Abril eram sempre uma grande festa esclarecedora. Tive sempre como objetivo fundamental do meu trabalho a construção de cidadãos dignos, felizes, interventivos e livres. Toda a minha vida passou a ser feita de pequenas conquistas, avanços e recuos almejando sempre a libertação das mulheres. Foram lutas internas e externas, nos diversos contextos: familiar, profissional, social, no meu ciclo de amigos, em todo o lado. Tudo era pretexto para contestar ideias agarradas ao passado recente que insistiam e insistem em prevalecer. Fui aprendendo o quão difícil é romper preconceitos e mudar mentalidades, mas nunca desistirei de o tentar. Lentamente chegaremos lá. Hoje, fruto das minhas experiências e passados quarenta e sete anos de vida em liberdade, considero que agarrei as oportunidades que me foram surgindo, orgulhando-me das tomadas de decisões e resoluções que abracei em relação a cada etapa da minha vida. Gosto do ser humano em que a vida e a Revolução dos cravos me transformaram. Orgulho-me do que consegui transmitir aos meus filhos, alunos, familiares e amigos. Nas encruzilhadas da vida, nas interações, nas partilhas, no viver para e com os outros sentime sempre um ser humano inteiro e livre. Tenho presente, no entanto, que tudo isso só foi possível graças a todos os homens e mulheres que com altruísmo e grande coragem, combateram o fascismo e proporcionaram que a república e a democracia vigorassem em Portugal. Só neste regime é possível nascermos e crescermos com oportunidades idênticas, respeitarmo-nos nas diferenças, assumirmos os nossos sonhos, vivermos de acordo com o que idealizamos para cada um de nós, abraçarmos projetos em que nos damos aos outros, sentindo a felicidade da partilha e da interação com quem comunga os nossos ideais. Assim acontece comigo e com quase uma centena de amigos que fazem parte de OSMUSIKÉ. Sei que devemos ser eternamente gratas àquelas que lutaram pelos direitos das mulheres, pagando preços demasiado altos, por vezes com a própria vida. As mulheres não desistem de lutar pela igualdade de género, contra a violência doméstica, contra a discriminação, em tantas outras situações que não nos dignificam, acreditando que é possível um mundo melhor para todos. Apesar das deceções com atitudes de alguns políticos e de alguns
homens, seguiremos em frente com o propósito de deixarmos um legado digno às mulheres que nos irão suceder. VIVA A MULHER!!! VIVA A VIDA!!! VIVA A LIBERDADE, SEMPRE!!!