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O rapaz que tinha dois corações
from OsmusikéCadernos 2
by osmusike
rui galiano ruiviana@live.com
A Vida não tem certo dia… porque a vida é o tempo todo, mas os dias, esses, sim… têm história... têm Vida. E a história, por si, é um papel, tinta, letras e palavras.
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Já a Vida está sempre a acontecer…
Certo dia… uma menina disse ao pai que os olhos dele não tinham cor. Depois, para melhor se entender, continuou dizendo que não era uma cor porque umas entravam nas outras e são várias formas... Ontem à noite, junto da cama, a deitar o filho pequeno, este último, deu duas voltas à cabeça, dois esticões e preparava um sono de rocha, quando, ao pôr a mão por cima da cabeça do pai e ao fechar as pálpebras, olhou, vagamente, sobre o sorriso do pai. Voltou-se, repentinamente, voltou a abrir os olhos, fixando-os nos do pai para dizer:
- Os teus olhos são engraçados, têm a ceninha preta, a seguir, um sol… a forma de um sol castanho claro e à volta redondos por fora verde tropa. E… adormeceu. De manhã, o pai parou a olhar para o espelho, claro que após lavar a cara e… lá estava… a seguir à ceninha preta tinha, realmente, um sol. Riu-se com gosto e viu que, de tanto ver o sol, os seus olhos eram o espelho dessa luz dada e, afinal, de tudo o que via. O rapaz foi para a escola, mas o pai aguarda-o para lhe dizer que, realmente, viu o sol que ele lhe dissera ontem à noite e que nunca tinha visto. Mas aquele sol que lhe estava nos olhos era dum sol reflectido das estrelas que via à sua frente. Esse indivíduo já sabe do sorriso abafado do filho, até o pode guardar numa caixa. E… à noite, já sabe a história que pode contar ao filho, para o adormecer, porque dentro de si… uma luz.
Era uma terra distante e isolada onde uma doença começou a impedir que as pessoas abrissem as pálpebras. Quando alguém se lembrou de recorrer ao médico, ver do que se tratava, já era tarde demais. A doença era muito rápida e fez com que as pessoas, todas as pessoas, perdessem a força para abrir as pálpebras e, estas, fecharam-se como persianas sem fita. O curioso, desta história, não foi a doença curiosa, mas que, ao terceiro dia das pessoas com os olhos fechados, o sol começou a ser menos sol, um sol a enfraquecer de dar boa luz. Só, ou apenas, ninguém notava porque estavam todos com os olhos fechados. O
certo foi que o sol vendo que não era, ou melhor, julgando que não era desejado, nem necessário àquelas pessoas, encerrou a actividade e poupou a sua luz. Ficou, então, sempre noite. As pessoas logo souberam que não havia nenhum remédio para a sua doença e conformaram-se com a sua sorte, deixando de se importar com o azar. Dia a dia habituaram-se a viver e a fazer tudo como se fosse noite. Muitas vezes, recorriam à memória para saber onde estavam as coisas. Faziam tudo às apalpadelas com a memória e o coração. As pessoas ajudavam-se muito umas às outras. E a vida continuou por uns tempos. Mas quando já era tempo de vir a Primavera, ninguém sentia nada... os seus sinais. Deixaram passar mais dois meses e… nada! nem flores novas, nem perfumes, nem cores! Claro… Nem o calor do sol!
Claro… Alguém se lembrou, então, que só não podia haver Primavera se não houvesse sol. Nessa altura, todos desconfiaram de que pudesse não haver sol. Houve logo um que se lembrou de que a doença pudesse, mesmo, ter vindo de o sol estar doente. E estavam isolados, pois ninguém de fora daquela terra queria aproximar-se com o medo de ficar, também, sem ver. O problema veio para ficar e crescia. É claro que aquelas pessoas deixaram de brilhar… em primeiro por fora… Depois, uma grande tristeza começou a apoderar-se de cada um. As pessoas começaram a perder todo o ânimo, a deixarem de se ajudar e… numa que parecia ser a última noite… (é claro… a noite só era noite pelo cansaço das pessoas que tinham que dormir, até os galos deixaram o canto da aurora), um filho, já deitado, disse ao pai: - Ó Pai, não sei, não me lembro, como eram os teus olhos?… E o pai, esquecendo-se de que não havia luz, nem havia ver, num gesto ensonado, sem pensar, foi com o dedo indicador à pálpebra levantou-a e disse: - Olha, vê! Nessa altura, o miúdo pensou que o pai estava maluco, pondo, a si próprio, a pergunta: vê como? Acto contínuo, o miúdo lembrou-se de levantar a sua própria pálpebra, com o seu dedo. E nesse preciso momento… nasce um fogo por entre uma rocha: numa imensa escuridão, do tempo e do lugar, os dois olhos acenderam-se em cor, como se fossem iluminados por dentro. No ar, a lançar uma luz maravilhosa e linda fizeram explodir, dessa luz, também, os seus corações.
Dois tesouros… De tão bonito, abraçaram-se os dois a chorar, talvez de felicidade, e neles cresceu uma enorme força que não cabia ali, naquele só lugar. Dois, que pareciam loucos, a correr e a gritar… via-se que era de alegria. Correram para a Praça e gritavam sobre todos daquela terra. A noite que parecia ser a última, estava estranha. Pessoas de todos os lados começaram a caminhar para o local anunciado. Toda a agitação crescia e fazia as pessoas saltarem o seu passo e apressarem os familiares e amigos. Alguns até foram em cuecas, pois ninguém os via… Quando já se ouvia um grande frenesim em toda a Praça e tanta dúvida...
o homem do coração a saltar, subiu o muro do chafariz e pediu a todos para dizer uma coisa, a coisa que não tem por onde prender. E toda a Praça fez um silêncio igual ao tamanho da escuridão. Nessa altura, ele até podia falar baixinho, porque todas as orelhas pararam para o escutar. Então, disse: - Com os vossos próprios dedos levantem as vossas pálpebras…
E… não disse, nem pôde dizer mais nada. Conforme o fizeram e viram… eram olhos de luz, muitos, um mar de olhos reluzentes e lindos, soltos à noite de breu e que deu, a todos, ao mesmo tempo, o que era de dar, uma enorme comoção no coração que fez explodir, de ponta a ponta, um grito tão alto e tão forte que acordou o sol. Este, intrigado com o som desconhecido, para ele, que vinha de um lugar esquecido, talvez até comido pela noite, pô-lo curioso e foi lá espreitar atrás das rochas da montanha. Tantos pontos de luz? O que é aquilo?! E, à medida da sua tentativa de aproximação, não se desfaziam. Espantado com tamanha beleza e luz própria, desceu até ao lugar onde julgava ser uma festa da alegria. Afinal, não era uma festa, era a própria Vida. Ele viu a Vida e era própria e nunca tinha visto. É claro, em pouco tempo, o sol tomou o centro da festa. Foi então que começaram a aparecer todas as coisas que existiam antes da doença: a Igreja, o Café, os Bombeiros, até o símbolo do boné do Polícia brilhava como dantes. Não há palavras para tanta vida. Era tudo a nascer… Uma atrás de outra voltava cada coisa ao seu lugar. Mas o rapaz interrogou-se: - Não estamos em julho? - Sim! Responderam todos. E o pequeno foi à grande pergunta: - E a Primavera? Todos rodaram a cabeça sobre o jardim público e, este, estava lá, mas apenas em terra…. Houve por momentos uma certa tristeza. Certa… porque, logo a seguir, como que guiada pelas palavras, começaram a soltar-se da terra umas folhinhas, em princípio minúsculas, que cresciam cada vez mais verdes e como se estivessem a ser sopradas de dentro da terra. Era inacreditável. Quando as plantas já tinham uma altura que parecia de idade jovem, começaram a dar flores, mas depressa uma explosão de flores, em toda a volta… parecia um festival de fogo-de-artifício, mas com flores, foi o maior espectáculo do mundo, ouvia-se. As pessoas abraçavam-se e faziam promessas umas às outras de que nunca mais iam esquecer em como a Vida é a festa. Nunca mais iam ser más, que isso não valia a pena. Só pensavam em fazer ou realizar ideias de ajudar aqueles que mais careciam e que iam viver para os outros, para servir aos outros, sem pensar
neles próprios, nem na beleza deles, nem em telenovelas, nem em grandes nem em pequenas mentiras. Iam gozar o bom da vida e não mais iam deixar de agradecer a sorte da Vida e a abundância ao Bom Deus que lhes havia dado uma grande lição.
Estiveram três dias em festa... Até à exaustão… E, já muito cansados, pai e filho, deitados na cama, para o que o pai julgava serem dois esticões, diz o pequeno: -Ó Pai, acho que nunca vou esquecer a luz que estava dentro dos teus olhos… era fantástica… Diz o pai: - Talvez a íris, que é a cor dos olhos, tenha a capacidade de absorver a luz do dia e a deixe ficar ali por um tempo… E o sol viva dentro de nós... assim… Fixado no rosto do pai e no caminho dessa luz o miúdo diz: - Ó Pai, os teus olhos são muito fixes, à volta da ceninha preta agora tens um sol dourado… O pai sorriu. E olhando fixamente para a íris do filho viu o quê?
À volta da ceninha preta estava um coração rosa… Afinal, aqueles olhos... eram de ver e serem vistos, enquanto espelhavam o que lhes ia na alma, depois de terem bebido a Vida. Tudo junto dava um coração. O menino tinha dois corações, um para correr, outro para amar. E esta história só pôde acontecer porque no dia que era para todas as pessoas, daquela terra, entristecerem para sempre, um miúdo quis saber como eram os olhos do pai.
Conclusão:
O amor começa em coisas pequenas, está nos outros, em olharmos os outros, em olharmos de frente, nos olhos, como as crianças, mas isto só é possível se tivermos uma só cara.