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O meu 25 de Abril o antes, o durante e o depois
from OsmusikéCadernos 2
by osmusike
Guilherme Ribeiro guilhermana@sapo.pt
No dia 25 de Abril era militar à espera de mobilização, em rendição individual, para Moçambique. Vivi os tempos do início da revolução com um sentimento de descrédito: militares e democracia são como a água e o azeite. Ouvir alguns militares falar de democracia era penoso por saber que as palavras soavam a falso, tal o trato que eles próprios davam aos soldados com a aplicação rigorosa do RDM (Regulamento de Disciplina Militar) segundo o badalado princípio de “manda quem pode, obedece quem deve” e que ninguém dá o que não tem. Eram muito poucos os militares que tinham uma cultura democrática e de tratamento humano dos seus subalternos. Alguns “apanharam” o comboio da revolução já com ele em andamento, num golpe oportunista. O 25 de Abril foi campo fértil para o aparecimento de tantos “democratas” que despertaram para a política como os cogumelos de geração espontânea, o mesmo aconteceu na sociedade civil, daí o nome de vira-casacas. Atribuir todo o mérito aos militares é um exagero pois os movimentos civis, como o do MDP-CDE, até do MRPP que viu um seu dirigente, Ribeiro da Silva, ser morto pela PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) que na época de Marcelo Caetano passou a chamar-se DGS (Direção-Geral de Segurança) tiveram um papel muito ativo, assim como inúmeros grupos, como os chamados “católicos progressistas”, militantes comunistas, e de esquerda, que foram presos, torturados, desterrados e alguns assassinados. Na população estava enraizado um sentimento de revolta silenciosa, era os “do contra”. Foram estes que muito contribuíram para o derrube da ditadura com a guerra do Ultramar a precipitar os acontecimentos. Às promessas de uma vida melhor, como Sérgio Godinho cantava: “a paz, o pão, habitação, saúde, educação, só há liberdade a sério … …” correspondeu em massa o povo que transbordava de alegria cujo exponente máximo foram as Comemorações do 1º de Maio de 1974. Momento único de união popular e, infelizmente, irrepetível. Passados quinze dias sou chamado ao Aeroporto de Figo Maduro para embarcar e, mais uma vez, éme comunicado que não vou embarcar. Dia 25 de maio de 1974, terceira chamada ao Aeroporto; desta vez, o chefe de operações, reconheceu-me e lá me encaminhou para o avião - um Boeing 707 da FAP - rumo à cidade da Beira com a guia de
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marcha para Lourenço Marques (atual Maputo) em rendição individual. No assento, junto à janela, um furriel com 22 meses de mato, ao meu lado direito um militar moçambicano, recém-regressado da Alemanha, onde fez tratamentos numa clínica especializada em recuperação de soldados vítimas de minas.
O militar fez algumas perguntas da praxe ao novato “checa” (noutras colónias maçarico e periquito) e depois de algumas provocações, encostou-se e adormeceu. O meu “parceiro” da direita já ressonava sonoramente e, aí, numa observação atenta descobri que tinha o olho esquerdo sempre aberto. Era um olho de vidro como prótese a substituir o que tinha perdido com a explosão da mina. Um cenário perfeito. Fiz, mesmo cansado, um esforço para dormir e, depois de treze horas de voo com passagem por Luanda, lá cheguei à cidade da Beira. À minha espera um sol radioso, uma temperatura agradável e uma humidade do ar, muito alta, pele pegajosa, um clima inóspito. Não é destino de férias.
Afinal não há “férias” em Loureço Marques, mas uma guia de marcha para Nampula. Onde fica? Perguntei a um militar “velhinho”. É perto, fica a 800 km e, pela picada, até nem é ruim. Há calor, frio, chuva. É o clima. Passados 5 dias lá vai o furriel Ribeiro para Nampula, não de coluna pela picada, mas num moderno Boeing 737 das LAM (Linhas Aéreas de Moçambique). Ao chegar ao aeroporto fica a agradável sensação de ver uma cidade moderna, de longas avenidas, traçada a régua e esquadro, mas, para minha tristeza, não seria por muito tempo pois a um militar de armas pesadas o destino mais certo seria o “mato”, em pleno teatro de guerra onde o foguetório do IN (sigla militar para definir inimigo) seria uma constante. Os militares das Colónias a quem lhes foi dito que a Guerra Colonial tinha acabado, queriam o rápido regresso à Pátria, os que cá estavam, para embarcar, diziam: “nem mais um soldado para o ultramar” e, nestes entretantos, a desorganização militar, saber recuar em segurança para soldados e pessoas (mais tarde apelidados de retornados) acautelando interesses de Portugal e dos portugueses, resultou em muitas mortes desnecessárias e perdas de bens. Fui colocado no 2º Pelotão de Recompletamento da Companhia de Comando e Serviços do Quartel General. Chamava-se pelotão e como indica o próprio nome, destinava-se a substituir quem tinha terminado a comissão, tinha adoecido ou morrido. Mas, ao todo, tinha mais de 2.200 militares, sargentos, cabos e praças distribuídos por todo o Moçambique. Todos os dias tinha que me apresentar ao Comandante, 2º Tenente José Jerónimo Velez, um excelente militar e homem, que me dizia: Ribeiro, ainda não tenho colocação para si, passeie, divirta-se, vá conhecer a cidade. Mas como a “guerra” só fechava às cinco da tarde, não tinha companhia para deambular pela cidade ao ponto de me oferecer para fazer qualquer coisa na secretaria para “matar o tempo”. Os movi-
mentos de libertação aproveitaram a euforia e a desorganização para com palavras de: “a nossa luta é contra o fascismo e o colonialismo” continuaram a atacar como aconteceu com a Frelimo, que no dia 1 de agosto de 1974, cercou a companhia que estava em Omar, tornou-a refém e levou-a para a Tanzânia. Foram retirados todos e pertences, despojados das fardas, substituídas pelas do movimento guerrilheiro, tornados prisioneiros. Só no dia 19 de setembro é que regressaram a Moçambique. Momento embaraçoso e humilhante. Mesmo com o aviso: “Ribeiro divirta-se” lá me arranjou um serviço: organizar o arquivo. Nesse entretanto, encontrei um rapaz do meu tempo de escola, em Tabuadelo, donde sou natural, que me pergunta: Ó Ribeiro o que é que fazes aqui? - Estou no Pel/Rec a aguardar colocação. Olha lá: tu sabes tocar órgão? Resposta: sim, toco alguma coisa, desde que haja pauta. É que o organista da Capela Militar acabou a comissão e estamos – (o Faria era 2º Cabo dos Serviços Religiosos) - sem organista. Vou falar com o Capelão Capitão Bártolo, que chegou a estar na Colegiada da Oliveira. Está bem. Não me importo de ir a um ensaio. Dois ensaios, que correram muito bem e, no domingo seguinte, duas missas. Na homilia da missa da manhã, celebrada pelo capelão da marinha, o Padre Bártolo pergunta-me: onde vais almoçar? - À messe de Sargentos. Não vás, vais almoçar connosco. Lá fomos todos para um bom restaurante, com música ao vivo, boa comida, vinho Casal Garcia, com o carimbo “para uso exclusivo das forças armadas” – isto a 100 metros do Quartel General, (negócios paralelos à luz do dia) em que a conversa era sobre a nova fase do Grupo Coral e novos projetos. Ouvi com agrado, mas esclareci que estava em Nampula de passagem, em rendição individual e que, a todo o momento, poderia ser colocado no mato. Aí o Capelão só me disse: Ribeiro, dá-me o teu nome completo e o número mecanográfico que eu vou tratar do assunto. No dia seguinte foi ter comigo ao meu serviço e disse-me: “Fui falar com o General expliquei a situação, disse que tinha apreciado o que cantamos e pediu, de imediato, ao ordenança para lhe trazer o teu processo da 1ª Repartição onde colocou numa folha agrafada. Não colocar sem minha autorização, é organista da Capela Militar”. Diz-me o Capelão: “eu vou estar qui até setembro, vou recomendar-te ao novo capelão, mas, até essa data, “eles” vão vender esta trampa, numa palavra mais popular. Tinha que tocar as duas missas e o trabalho na secretaria, já com funções autorizadas (delegadas) de assinar ofícios numa empatia e amizade que resultou nesta pergunta do Comandante: “Ribeiro, você não quer ir passar o Natal com a sua família. Oh! Meu Tenente, quem me dera, mas isso não é possível”. Eu trato disso. E assim foi, tratou das autorizações e dos bilhetes e eu para que o Grupo Coro continuasse com o mesmo desempenho dei umas dicas e fiz umas anotações para que um elemento, Cabo da Polícia Militar,
tocasse as músicas que eram do agrado da assembleia que as cantava em uníssono, digno de se ver. Estive aqui mais de três semanas até que, por telegrama, fui convidado a regressar à terra dos Macuas. Já ao serviço, sou surpreendido, mais uma vez, pelo Tenente Velez: Ribeiro, você tem direito a ir para Portugal em maio, quer ir em março. Resposta pronta: Meu Tenente, o que é que tenho que dar em troca? Que assuma a Comissão Liquidatária no Batalhão de Caçadores 5 em Lisboa. – Meu Tenente, estou na disposição de trocar estes dois meses por seis na Metrópole. Foi uma vida regalada, com vencimento de mais de treze contos (o salário mínimo era de 3,3 contos). Era para embarcar em Nacala no dia 12 de março, por causa da intentona de 11 de março, só embarquei a 13 e, à chegada a Figo Maduro dois grandes cartazes sobre as eleições a 25 de abril. De um lado o do MFA: “o voto é arma do povo”, do outro lado o do MRPP: “não votes senão ficas desarmado”.
Passei o designado “verão quente” em Lisboa onde fiquei ciente da imaturidade política existente, sem tolerância, num extremar de posições impróprias de quem se diz democrata.
Desse “verão”, da “revolução anárquica na rua” recordo que poucos dias depois antes de passar à disponibilidade, o meu ex-colega seminarista Alexandrino de Sousa, natural de São Pedro de Arcos, Ponte de Lima foi assassinado. Integrado num pequeno grupo do MRPP que, junto ao Tejo, colava cartazes é cercado por um grupo de cerca de 60 militantes da UDP que os agride e os deita ao Tejo. O Alexandrino bem gritava que não sabia nadar, nem assim, ficou preso no lodo e morreu afogado. Recordo-me dele como alguém que era aluno brilhante, idealista e lírico, mas íntegro. Foi preso pela PIDE, sujeito a várias sevícias e à tortura do sono, mas, nem assim o vergaram, não denunciou os seus camaradas. Do 25 de Abril há a amarga sensação de não se ter feito mais e continuamos com muitas injustiças sociais, económicas e políticas que dão razão aos romanos: “não se governam, nem se deixam governar”.
Este meu depoimento é um pouco ao arrepio da “versão oficial”, dos cravos bem cheirosos, podíamos ter feito mais e melhor se o esforço de guerra do Ultramar fosse devidamente canalizado para o desenvolvimento do país e do último dos três “D” - Democratizar, Descolonizar e Desenvolver”. Ao fim de 47 anos ainda falta muito desenvolvimento, tolerância e democracia. O 25 de Abril valeu? Foi útil? Sem dúvida e continua a valer pelo que trouxe: Liberdade, Democracia, mais justiça social, reconhecimento dos direitos fundamentais das crianças, das mulheres, no trabalho. Contudo ainda há muito a fazer pela liberdade, justiça e fraternidade. Há direitos que ainda estão esquecidos, como os dos idosos. Estamos a caminhar para o adormecimento da reivindicação dos direitos de cidadania em que os jovens, o futuro de Portugal, se distinguem pela ausência neste combate.