19 minute read

A Política e a Democracia Cultural

Next Article
Obrigado Francisca

Obrigado Francisca

José Bastos josebastos@simbiose.me

A partir dos anos 90 a cultura, no sentido de prática cultural no campo das artes performativas, assumiu em Guimarães um papel com crescente relevância. Paulatinamente foram acontecendo atividades diversas, promovidas pela Câmara Municipal de Guimarães e por diversas associações do concelho. É no final da década de 80, princípio da década de 90 que têm início, de forma sustentada, atividades que perduram até hoje (Festivais Gil Vicente – com reinício em 1987 -; Guimarães Jazz-1992) ou que tiveram grande importância no contexto cultural e associativo (Encontros da Primavera - 1990). Estas iniciativas permitiram o desenvolvimento de um conjunto de atividades de natureza artística, funcionando como suporte de credibilidade para uma programação tão regular e diversificada quanto possível. Os constrangimentos a esta atividade eram enormes, mas a dificuldade transformou-se em oportunidade. A inexistência de um espaço de programação, com as condições técnicas mínimas, fez com que a cidade se transformasse no espaço de programação (O Paço dos Duques de Bragança, o Castelo de Guimarães, as praças do Centro Histórico, as inúmeras e belíssimas igrejas, os cantos de cada recanto, tornaramse espaços cénicos). Com a recuperação do Centro Histórico, que levou a UNESCO (em 2001) a inscrevê-lo na lista do Património Cultural da Humanidade, tornou-se necessário e premente potenciar a sua vivência. Assim nasceu o Verão Vale a Pena em Guimarães que consistia num ritmo frenético de programação e que rapidamente conquistou e alargou públicos. Conquistou desde logo o público residente que assistia “de camarote” aos espetáculos (em determinada altura do ano eram diários), conquistou o público que passou a frequentar o espaço e conquistou o público que estava ansioso por fruir música, teatro e dança. Como tudo na vida, este ciclo de frenesim teve que inverter tendências, o espaço estava definitivamente conquistado na fruição cívica e sem riscos de retorno e os “donos dos camarotes” começavam a acusar cansaço. Fruto de uma parceria da Câmara Municipal de Guimarães com a Universidade do Minho passou a existir, desde 1994, um espaço com condições razoáveis para a realização de programação artística. Finalmente existia em Guimarães um espaço para que permitia regularidade e coerência sem condicionalismos

Advertisement

meteorológicos. Assim nasceu o Festival de Inverno (janeiro a março), primeira prática programática consistente e regular que permitiu iniciar hábitos de frequência sem interrupções temporais e saindo da trilogia Maio (Encontros da Primavera), junho (Festivais Gil Vicente) e novembro (Guimarães Jazz), isto para além da continuidade da programação em espaços não convencionais. Passou a existir uma prática miscelânica na programação. Passou a ser possível acolher projetos que até então não passavam de utopia. Passou a ser possível fidelizar públicos que passaram a deslocar-se aos espaços de apresentação, passou a ser possível cobrar entradas nos espetáculos. Tudo isto poderia ter acontecido de outra forma, poderiam ter sido feitas outras opções, mas a opção política foi a de definir a cultura como vector estratégico de desenvolvimento, crucial para o tão importante reforço da postura qualitativa e competitiva dos cidadãos e da cidade. A política cultural foi estruturalmente concebida de forma a reforçar e manter uma oferta qualificada e que ao mesmo tempo fosse capaz de atrair, formar e satisfazer diferentes segmentos da procura. A autarquia teve como objetivo assegurar a preservação do património arquitectónico, cultural e histórico, infraestruturas e equipamentos, assim como apoiar e incentivar as instituições e coletividades produtoras e promotoras de atividades na área da cultura. Desta forma pretendeu não só salvaguardar e divulgar as diferentes práticas culturais tradicionais, mas também dinamizar e potenciar o aparecimento de atividades e eventos com caráter inovador. No que concerne às práticas culturais da população o grande objetivo foi a formação e a atracão de diferentes segmentos de público, onde se incluía, por um lado, a população residente, destacando-se destes os mais jovens e, por outro, os turistas e visitantes. Atendendo à política traçada, os principais eixos estratégicos de intervenção tiveram por finalidade dar respostas aos desafios contemporâneos e às aspirações dos cidadãos, contribuindo para o desenvolvimento, valorização, afirmação e promoção da cidade. Diversificar a oferta cultural de acordo com as exigências de um público com novos padrões de consumo cultural, de forma a qualificar Guimarães como espaço de cultura e lazer de qualidade foi um objetivo claro da política cultural da cidade. A promoção da imagem do concelho passou, por isso, pela aposta forte em eventos culturais de vanguarda e de qualidade, de que o Guimarães Jazz é o exemplo mais consolidado no calendário cultural de Guimarães. A formação foi, desde muito cedo, uma presença assídua no panorama da programação cultural. Os Cursos Internacionais de Música, as Oficinas de Jazz, a Semana da Dança, a ODIT – Oficina Dramatúrgica de Interpretação Teatral (que mais tarde deu origem ao Teatro Oficina), os ateliers, os colóquios, os debates,

foram instituindo uma forma diferente de participar, foram fazendo com que o conceito de posse, de apropriação, estivesse cada vez mais presente. O projeto cultural de Guimarães não era de ninguém, era de muitos. O projeto ODIT teve uma aceitação que ultrapassou em muito qualquer expectativa otimista (foram mais de 600 inscrições). Esta enorme procura de formação descomprometida, de formação pelo prazer de experimentar, pelo prazer de conhecer, teve a resposta mais difícil - aceitar todas as inscrições, promover a experiência e ganhar tempo para repensar o projeto. Aquilo que seria um projeto de teatro transformou-se num projeto que respondia aos desafios propostos. Fez-se de tudo: teatro, dança, movimento, fotografia, vídeo, cenografia, figurinos, desenho de som, desenho de luz, etc., etc., etc. Todas estas dinâmicas levavam, de forma crescente, à constatação clara da inexistência de espaços para resposta às necessidades. A Oficina (cooperativa cultural) foi crescendo, foi conquistando espaços no Palácio Vila Flor. De sala em sala ficou com praticamente todo o espaço, foi adaptando, inventando, recriando, dando novas funcionalidades, novas utilizações. Mas a dinâmica continuava sem ser correspondida com condições físicas. A Oficina adquiriu um armazém com cerca de 700m2 e, sem capacidade para realizar de imediato as obras de beneficiação, utilizou-o assim mesmo, inventando soluções. Só em 2004 as obras ficaram concluídas e o espaço passou a funcionar como local de residência do Teatro Oficina e como mais um local de apresentação de espetáculos. Nessa altura já se vislumbrava no horizonte o sonho de muitos anos – a construção do Centro Cultural Vila Flor – após arrojada decisão do então Presidente da Câmara (António Magalhães) que reagiu ao rasgar de contrato de financiamento, por parte do estado, com a decisão de avançar sozinho para um projeto de grande dimensão que 18 meses e cerca de 15 milhões de euros depois foi inaugurado (a 17 de setembro de 2005). Entretanto, em finais de 2003, a Câmara Municipal de Guimarães assina um protocolo de colaboração com a Oficina transferindo para esta a responsabilidade de programar os principais eventos culturais, que até então assumia por si própria e em parceria com diversas associações mantendo, no entanto, os parceiros originais de cada projeto. Durante quase dois anos, a Oficina assumiu responsabilidades de programação artística em Guimarães, seguindo a estratégia delineada e com o objetivo claro de iniciar um trabalho que pudesse ser capitalizado por quem viesse a gerir o Centro Cultural Vila Flor.

Estes dois anos foram determinantes para que a Câmara Municipal de Guimarães decidisse que seria a própria Oficina a capitalizar o trabalho desenvolvido e entregou-lhe o desafio de gerir o CCVF. O capital adquirido foi determinante para a Oficina ter a capacidade de aceitar o desafio, reestruturando-se e assumindo a abertura e funcionamento do espaço sem constrangimentos de maior e numa lógica de continuidade e crescimento. O Centro Cultural Vila Flor passa a ser uma realidade pela força de um trabalho de muitos durante muitos anos, resulta de uma inevitabilidade latente, de uma asfixia existente e de uma falta de soluções para que o projeto cultural de Guimarães pudesse crescer. A vontade, a exigência, a necessidade de crescer pressionavam demasiado a camisa de forças que aprisionava o projeto. O Ministério da Cultura apoiava financeiramente o primeiro ano de funcionamento dos espaços que tivessem sido comparticipados pelo estado para a construção. Como a construção do CCVF não teve qualquer financiamento do estado também não foi possível aceder ao financiamento para o arranque do seu funcionamento. No entanto, a visão de quem decidiu construir o espaço foi suficientemente ampla para perceber que um espaço com as características do CCVF e com a missão que lhe foi atribuída apenas poderia funcionar com um investimento claro e significativo. Foi assim que aconteceu e acontece. Mais de 15 anos depois da abertura do Centro Cultural Vila Flor, e extravasando o estafado esgrimir de números que, sendo importantes, não podem qualificar ou desqualificar só por si o alcance do trabalho desenvolvido, parece-me consensual que a abertura do CCVF foi um ponto de viragem fundamental para Guimarães na sua dimensão cultural. Outro ponto de viragem fundamental foi, naturalmente, a Capital Europeia da Cultura em 2012. Como quase nada acontece por acaso, sem a existência do Centro Cultural Vila Flor e do trabalho por si e à sua volta desenvolvidos, dificilmente Guimarães teria tido a possibilidade de ambicionar ser Capital Europeia da Cultura. Tenho dado particular ênfase à programação cultural, às artes performativas, pela proximidade que tive e tenho neste âmbito, mas não é possível deixar de referir outras iniciativas de grande importância para a consolidação do projeto cultural de Guimarães. A Biblioteca Municipal Raúl Brandão, o Arquivo Alfredo Pimenta, o Museu de Alberto Sampaio, a Sociedade Martins Sarmento, as diversas Associações Culturais, todos tiveram e têm um importante papel na construção daquilo que é hoje um projeto cultural abrangente e assumido por muitos como crucial para o desenvolvimento próximo e longínquo. Deixando a história de lado, passaria a uma reflexão sobre a necessária sustentação de um projeto

cultural. Falar sobre sustentação cultural abre um conjunto de caminhos imensamente sinuosos e plenos de encruzilhadas. Divagar sobre a cultura é um exercício que procurarei fazer, sem pretensiosismo nem certezas inabaláveis, mas com convicções que a realidade quotidiana se encarrega de questionar repetidamente. Desde logo, surge o questionamento basilar acerca do que é a cultura; acerca do que se fala quando se fala de cultura; acerca da comunicação que se estabelece entre emissor e receptor quando a palavra soa. Cultura significa exatamente o quê? Aquilo que está imanente nos conceitos de quem diz? Ou aquilo que significa em função dos códigos de quem ouve? No meio da encruzilhada avanço em várias direções e volto sempre atrás em busca do caminho inexistente da totalidade. Na perspetiva humanística da definição de cultura, e na utopia da universalidade da erudição globalizada, a cultura aparece como uma característica inerente a cada indivíduo e perfeitamente diferenciada de outro. Isto porque a cultura, neste sentido, resulta de um vasto conjunto de conhecimentos assimilados, independentemente da sua natureza temática, permitindo afirmar que dois indivíduos de elevada erudição pouco têm em comum no que concerne à sua cultura. Nesta medida, apesar de reducionista, a cultura não poderá nunca ser uma característica intrínseca de um povo, de uma região ou de uma vivência. No limite haveria tantas culturas como indivíduos e a palavra cultura, enquanto elemento de significação objetiva deixaria de ter sentido. Cada vez mais, aquilo que diferencia e que assume um registo de marca indelével de uma cultura terá tendência para se esbater em consequência da normalização a que todos são conduzidos na busca de uma aceitação individual e coletiva; na busca dos modelos que as culturas mais fortes impõem como referenciais e indiscutíveis e funcionando como castradores da manutenção das culturas e castradores do aparecimento de novas culturas. Em suma, poderá correr-se o risco da existência globalizada de uma aculturação, imposta pelas culturas dominantes que apagam as características intrínsecas doutras culturas que consideram fora dos cânones que estabeleceram para si próprios. Posto isto, questiono-me acerca do que será feito da cultura como conjunto de características que permitam agrupar um conjunto alargado de indivíduos em função do que de comum possuem como prática vivencial em resultado dos hábitos e práticas adquiridas ao longo dos tempos. Porventura passaremos a ter uma cultura universalista e sem características suficientemente fortes e marcantes para que se possam diferenciar.

Ultrapassado este exercício especulativo, e considerando que a sustentação cultural de um projeto cultural se mede pela sua capacidade em contribuir para o crescimento do indivíduo nas várias dimensões da sua vivência, urge falar dos princípios que darão sustentabilidade a um qualquer projeto cultural. No âmbito da programação artística e na sua relação com os públicos, é comum a utilização de frases feitas e a atribuição de epítetos donde se destaca o “elitismo”. Importa referir que um espaço de programação artística, quando utiliza dinheiro público, tem responsabilidades acrescidas no papel que desempenha e deve resistir à tentação fácil da programação populista orientada para números, para estatísticas e sem nenhuma preocupação com o objetivo primeiro de qualquer programação – ser mediador entre a arte e os públicos. Esta abordagem programática será facilmente acusada de elitista, elitismo que não rejeito e que pelo contrário desejo, apropriando-me do sentido das palavras de George Steiner:

“É essencial ser elitista – mas no sentido original da palavra: assumir responsabilidade pelo «melhor» do espírito humano. Uma elite cultural deve ter responsabilidade pelo conhecimento e preservação das ideias e dos valores mais importantes, pelos clássicos, pelo significado das palavras, pela nobreza do nosso espírito. Ser elitista, como explicou Goethe, significa ser respeitador: respeitador do divino, da natureza, dos nossos congéneres seres humanos, e, assim, da nossa própria dignidade humana.”27 A sustentação do projeto cultural persegue-se através do objetivo traçado para a prossecução de uma missão, procura-se a sustentação cultural pela presença da convicção do trabalho desenvolvido no campo da programação e da criação artística. Procurar sustentabilidade significa disponibilizar propostas artísticas de forma regular e com abrangência de área e género. Sustentabilidade significa que o programador está munido de convicções e de conhecimentos para executar a tarefa em apreço, significa que o programador é um mediador entre o objeto artístico e os públicos, significa que o programador está ao serviço da mediação e não se serve dela para outros fins que não o de tentar utilizar os recursos disponíveis para aproximar e colocar em diálogo o sujeito (públicos) e o objeto. A adequação da programação, em função do conhecimento e interpretação do território, potencia a sustentação do projeto, consolidando relações e favorecendo a apropriação. Sustentação programática é dar primazia ao objeto artístico, em detrimento de lógicas meramente economicistas ou numéricas. Sustentação é propiciar uma proximidade relacional entre o público e a arte. Sustentação é formação; é criação, é diálogo, é divergência; é convergência; é ter opinião; é fazer opinião; é ouvir; é não hesitar; é avançar humildemente; é recuar orgulhosamente; é gerir tensões; é ousar.

27 Steiner, G. (2006). A Ideia da Europa. Lisboa: Gradiva.

Sustentação é elevação. Sustentação é tudo isto e muito mais, desde que utilizado como veículo e como forma de veicular a aproximação do público às artes e à cultura no seu conceito mais humanista – ao serviço do homem. Sustentação é, ainda, dar condições para que todos possam ter acesso a um exercício de cidadania pleno e é neste pressuposto de exercício de cidadania que o projeto cultural se deve apoiar.

“A cidadania que não cria, que não se expressa em produtos e serviços culturais de qualidade tem uma alma cidadã anémica. É uma cidade colonizada, sem diálogo relacional com outras cidades.”(Puig, 2004)

Para que se possa falar em projeto cultural é necessário assumir que o mais importante, no processo de gestão cultural, são os cidadãos. É fundamental assumir que uma cidadania coesa e plena só é possível se sustentada na cultura. A cultura é o resultado da resolução dos problemas do homem ao longo da história. Cultura é criação; cultura é inovação; cultura é a busca incessante de novos paradigmas. O homem não só recebe a cultura dos seus antepassados como também cria elementos que a renovam. Cultura é um fator de humanização. Cultura é fusão de horizontes. Na linha de pensamento de Toni Puig28, é fundamental que haja a consciencialização de que a cultura não é espetáculo, a cultura não é diversão tonta, não é homogeneizada, insípida e vazia. É necessário, por isso, distinguir cultura de diversão e cultura de qualidade de vida; é necessário distinguir cultura de sentido e espetáculo de diversão. Coloca-se aqui em prática o princípio da democracia cultural, o princípio de uma cidade com uma gestão cultural relacional que recusa a visão redutora da atividade cultural enquanto dicotomia artista/consumidor, assumindo, pelo contrário, o princípio de que todo o indivíduo pode ser também agente ativo no processo de criação artística. Nesta conceção, a atividade cultural não é entendida como atribuição das instituições públicas, mas sim como espaço de liberdade, de participação democrática e de imaginação dos indivíduos. É nesta perspetiva que se geram novas possibilidades de encontro e interação entre os diferentes agentes privados e associativos do tecido cultural da cidade, ao serviço do reforço da capacidade criativa local, do crescimento da participação cívica e da formação de um público envolvido e conhecedor.

28 Puig, T. (2004). Vamos Gerir a Cultura da Cidade com os Cidadãos. In J. Trilla, Animação Sócio Cultural.Teorias Programas e âmbitos (pp. 301-316). Lisboa: Instituto Piaget.

A cidadania cultural assume-se, por isso, como parte de toda a ação cultural de cidade numa dupla perspetiva: por um lado, porque os agentes culturais da cidade são, e devem ser, os parceiros prioritários das organizações; por outro, pela integração no projeto cultural de cidade do trabalho desenvolvido e implementado pelas organizações da cidade, garantindo a efetiva participação no projeto daqueles que diariamente vivem e trabalham a cultura local. A cidade, no seu conceito mais amplo, não pode ser apenas consumidora de cultura importada, deve ser uma cidade criadora de cultura, criadora de sentido. Criadora e exportadora. Mas como ter uma cidadania criadora se a formatação do ensino nas escolas coarta a notável capacidade criativa das crianças? Os serviços educativos devem perseguir o objetivo de potenciar o espaço para a criatividade, o espaço para o crescimento diferenciado e as artes são um contributo fundamental para tal. As crianças conseguem, simultaneamente, viver num mundo real sem deixarem de ter a sua existência vivencial num mundo imaginário, sem formatações prévias e com uma enorme liberdade de pensamento criativo, porque não sujeito às normalizações que os adultos ainda não conseguiram, vitoriosamente, introduzir. A necessidade da comparação com os outros, a necessidade da perfeição, a definição de um padrão apresentado como normal, leva aquilo que a sociologia define como institucionalização resultante da habituação, resultante da socialização primária. Assim, desde muito cedo, a escola e as famílias procuram formatar as crianças, retirando-lhes espaço para a criatividade, certos que essa é a melhor forma de garantir o seu desenvolvimento mais adequado e esquecendo-se que, dessa forma, estão a restringir o crescimento de cada um ao seu ritmo e de acordo com liberdade criativa que existe, em potência, nas crianças. Piaget dizia:

“O essencial é que, para que uma criança entenda, deve construir ela mesma, deve reinventar. Cada vez que ensinamos algo a uma criança estamos a impedir que ela descubra por si mesma. Por outro lado, aquilo que permitimos que descubra por si mesma, permanecerá com ela”29 . Carlos Drummond de Andrade, num artigo publicado no Jornal do Brasil em 1974, já abordava a questão da criatividade como elemento essencial para o desenvolvimento equilibrado:

“Por que motivo as crianças, de modo geral, são poetas e, com o tempo, deixam de sê-lo? Será a poesia um estado de infância relacionada com a necessidade de jogo, a ausência de conhecimento livresco, a

29 Piaget, J. (1998). A Psicologia da Criança. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

despreocupação com os mandamentos práticos de viver – estado de pureza da mente, em suma? Acho que é um pouco de tudo isso, se ela encontra expressão cândida na meninice, pode expandir-se pelo tempo afora, conciliada com a experiência, o senso crítico, a consciência estética dos que compõem ou absorvem poesia. Mas, se o adulto, na maioria dos casos, perde essa comunhão com a poesia, não estará na escola, mais do que em qualquer outra instituição social, o elemento corrosivo do instinto poético da infância, que vai fenecendo, à proporção que o estudo sistemático se desenvolve, até desaparecer no homem feito e preparado supostamente para a vida?

... Se há inflação de poetas significantes, faltam amadores de poesia – e amar a poesia é forma de praticá-la, recriando-a. O que eu pediria à escola, se não me faltassem luzes pedagógicas, era considerar a poesia como primeira visão directa das coisas e, depois, como veículo de informação prática e teórica, preservando em cada aluno o fundo mágico, lúdico, intuitivo e criativo, que se identifica basicamente com a sensibilidade poética.

... E a arte, como a educação e tudo o mais, que fim mais alto pode ter em mira senão este, de contribuir para a educação do ser humano à vida, o que, numa palavra, se chama felicidade?”30 Esta questão mantém hoje uma grande atualidade, atendendo ao facto de a escola continuar a não responder a uma necessidade primordial das crianças e que os Teatros, Centros Culturais, Fundações e outras estruturas ligadas às artes estão, felizmente, cada vez mais a assegurar. Importa referir que toda a sustentação, de qualquer projeto cultural, apenas pode acontecer se cimentada numa visão política e estratégica de quem tem o poder decisório. Só um poder sustentadamente estratégico e convictamente esclarecido consegue dar condições para que se cumpra o serviço público, sem interferências casuísticas a propósito deste ou daquele interesse, com uma cumplicidade partilhada no que concerne a duas questões essenciais: o conhecimento do ponto de partida e a partilha do objetivo de chegada. Nota: Este artigo é uma versão revista do originalmente publicado em novembro de 2010 no livro “O Estado do Teatro em Portugal” dos autores José Dantas Lima, Marcelino de Sousa Lopes e Roberto Pascual Rodriguez.

30 Andrade, C. D. (1974). A educação do ser poético. Jornal do Brasil .

Com este artigo presto ainda uma singela homenagem a Francisca Abreu que teve um papel primordial na sustentação do projeto cultural de Guimarães.

Bibliografia:

Andrade, C. D. (1974). A educação do ser poético. Jornal do Brasil . Piaget, J. (1998). A Psicologia da Criança. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. Puig, T. (2004). Vamos Gerir a Cultura da Cidade com os Cidadãos. In J. Trilla, Animação Sócio Cultural. Teorias Programas e âmbitos (pp. 301-316). Lisboa: Instituto Piaget. Steiner, G. (2006). A Ideia da Europa. Lisboa: Gradiva.

This article is from: