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Aprender o valor da Liberdade: o papel das aulas de história

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Obrigado Francisca

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Helena Pinto, CITCEM / AEVST mhelenapinto@gmail.com

Ao responder ao desafio deste Osmusiké Cadernos 2, não poderia, uma vez mais, deixar de relacionar o(s) tema(s) deste segundo número – "Abril e a liberdade" / "Guimarães -Vivências da democracia"– com a minha atividade profissional predominante, a docência de História. Esta atividade está, também, relacionada com uma abordagem educativa caracterizada pela investigação-ação que, desde há mais de duas décadas, tem guiado as minhas práticas e se fundamenta em duas linhas de pesquisa que se complementam – a Educação Histórica e a Educação Patrimonial – sendo que ambas colocam o enfoque na problematização constante e na criação de possibilidades de interpretação de fontes de tipologias diversas e com diferentes perspetivas, pelos alunos de diferentes turmas e anos de escolaridade. Neste contexto, é fundamental que se proporcionem aos alunos experiências educativas desafiantes que os levem a implicar-se no processo de aprendizagem e a desenvolver a sua capacidade de reflexão crítica. Recentemente, a publicação, pelo Ministério da Educação, do Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (Direção-Geral da Educação, 2017), veio completar um processo que se vinha desenhando, com avanços e recuos, desde finais do século passado, de forma a “criar condições de equilíbrio entre o conhecimento, a compreensão, a criatividade e o sentido crítico. Trata-se de formar pessoas autónomas e responsáveis e cidadãos ativos” (Direção-Geral da Educação, 2017: 2). Neste documento, destacamos desde já, pela relação com o tema deste Osmusiké Cadernos 2, a liberdade, entre os valores que crianças e jovens devem ser encorajados, nas atividades escolares, a desenvolver e a pôr em prática, e pelos quais se deve pautar a cultura de escola. A liberdade caracteriza-se, segundo o documento, pela manifestação de “autonomia pessoal centrada nos direitos humanos, na democracia, na cidadania, na equidade, no respeito mútuo, na livre escolha e no bem comum” (Direção-Geral da Educação, 2017: 17). Em articulação com este documento, o Ministério da Educação aprovou e publicou as Aprendizagens Essenciais para os alunos dos diferentes anos de escolaridade. Apresenta-se, de seguida, uma seleção de aprendizagens essenciais relacionadas com o tópico em análise neste texto e com o tema deste Osmusiké Cadernos 2. No 1.º ciclo, é, em Estudo do Meio, no 4.º ano de escolaridade, que podemos encontrar de forma explicita, no documento relativo às Aprendizagens Essenciais, uma primeira referência à recuperação de liberdades e direitos após o processo de democratização de 1974: “Relacionar a Revolução do 25 de Abril de

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1974 com a obtenção de liberdades e direitos.” (Direção-Geral da Educação, 2018a: 6). Já em relação ao 6.º ano, o documento das Aprendizagens Essenciais (2018b) apresenta uma clara distinção entre o período do Estado Novo e a fase democrática que se seguiu à revolução de 25 de Abril de 1974: “sintetizar as principais características do Estado Novo, nomeadamente a ausência de liberdade individual, a existência da censura e de polícia política, a repressão do movimento sindical e a existência de um partido único; relacionar a guerra colonial com a noção de império no contexto do Estado Novo; identificar/aplicar os conceitos: ditadura, censura, guerra colonial, oposição, liberdade de expressão (Direção-Geral da Educação, 2018b: 8) e “reconhecer os motivos que conduziram a revolução do 25 de abril, bem como algumas das mudanças operadas; caracterizar o essencial do processo de democratização entre 1975 e 1982; identificar/aplicar os conceitos: democracia, descolonização, direito de voto, câmara municipal, junta de freguesia, UE, ONU, PALOP, sociedade multicultural” (Direção-Geral da Educação, 2018b: 8). Por sua vez, no 9.º ano de escolaridade, o último ano do currículo português em que todos os alunos frequentam História como disciplina obrigatória – o que se revelará manifestamente insuficiente e uma lacuna na formação de muitos cidadãos portugueses, agravada pela diminuição, nos últimos anos, da carga letiva semanal da disciplina no 3.º ciclo – mantem-se esta distinção entre o Estado Novo e a fase democrática posterior, agora contextualizada, em termos internacionais, na conjuntura europeia e mundial da Guerra Fria. Além disso, é atribuído destaque ao impacto da Guerra Colonial no processo de desagregação do Estado Novo: “analisar a guerra colonial do ponto de vista dos custos humanos e económicos, quer para Portugal quer para os territórios coloniais, relacionando-a com a recusa em descolonizar; contextualizar a mudança de regime que ocorreu em 25 Abril de 1974 com a crescente oposição popular à guerra colonial e à falta de liberdade individual e coletiva” (Direção-Geral da Educação, 2018c: 9); assim como ao período imediatamente após a revolução de abril de 1974: “Realçar a importância do 25 de Novembro para a estabilização do processo democrático” (Direção-Geral da Educação, 2018c: 9). Relativamente ao Ensino Secundário, a disciplina de História surge na área de Formação Específica dos currículos dos Cursos Científico-Humanísticos de Línguas e Humanidades (História A) e de Ciências Socioeconómicas (História B). O currículo de História assume uma vez mais, em ambos os casos, uma organização cronológica ao longo dos três e dois anos do ciclo de estudos, respetivamente. Apresentando uma maior profundidade quer na abordagem dos conteúdos quer na complexidade da análise de fontes diversas, em História A, podemos salientar as seguintes aprendizagens essenciais: Compreender que a realidade portuguesa do após guerra a 1974 foi marcada pelo imobilismo político e pelo crescimento económico; Interpretar o surto industrial e urbano, a estagnação do mundo rural e os consequentes movimentos migratórios; Descrever as diversas correntes oposicionistas ao

Estado Novo, destacando os acontecimentos de 1958; Interpretar o fomento económico das colónias à luz da retórica imperial e do progressivo isolamento internacional; Analisar as fragilidades do marcelismo, nomeadamente o inconsequente reformismo político e o desgaste que a Guerra Colonial provocou no regime, interna e externamente; Compreender que a modernização da sociedade portuguesa nas décadas de 60 e 70, na demografia e nos comportamentos, constituiu-se como fator fundamental para a desagregação do regime; Descrever a eclosão da revolução de 25 de abril de 1974, o papel exercido pelo MFA e o processo de desmantelamento das estruturas de suporte do Estado Novo; Problematizar o processo de democratização, do PREC à progressiva instalação e consolidação das estruturas democráticas, o processo de descolonização, a política económica antimonopolista e a intervenção do Estado nos domínios económico e financeiro; Avaliar o sucesso da Revolução de 74 e do consequente processo de democratização do país.” (Direção-Geral da Educação, 2018d: 11-12).

De forma similar, em História B, além das aprendizagens referidas acima, podemos destacar a importância atribuída à análise das “transformações culturais e de mentalidade ocorridas após a Revolução de 1974” (Direção-Geral da Educação, 2018e: 12). Em setembro de 2019, o Ministério da Educação, através da Direção-Geral de Educação, publicou as Aprendizagens Essenciais de História, Culturas e Democracia (Direção-Geral da Educação, 2019), uma nova disciplina de opção para os alunos do 12.º ano de escolaridade que não frequentem a disciplina de História A. Um dos objetivos principais, desde logo tidos em consideração pela equipa que elaborou a proposta do documento – constituída por membros da direção da Associação de Professores de História e investigadores do CITCEM, e que integrei22 – foi o de possibilitar a alunos que deixaram de frequentar História a partir do 9.º ano de escolaridade ou que frequentaram História B, ou mesmo História da Cultura e das Artes, até ao 11.º ano, possam continuar/aprofundar o desenvolvimento do seu conhecimento histórico e a problematizar situações históricas de um passado recente, “recorrendo à multiperspetiva e a comparações entre realidades espácio-temporais distintas, possibilitando que o aluno desenvolva a compreensão do mundo em que vive e uma consciência histórica que lhe permite assumir uma posição informada, crítica e participativa na construção da sua identidade individual e coletiva, num quadro de referência humanista e democrático” (Direção-Geral da Educação, 2019: 2). Os quatro temas propostos – A História faz-se com critério; “Glocal” e consciência patrimonial; Passados dolorosos na História; História e tempo presente – surgem “estruturados em torno de três eixos organizadores: construção do conhecimento histórico com base em metodologias específicas; compreensão do mundo atual a partir da exploração do local, do regional e do global; problematização de temas da História recente, integrando as relações passado-presente, pensados

22 Informação disponível em: https://aph.pt/nova-disciplina-anual-historia-culturas-e-democracia-hcd/

em articulação com princípios, visão e valores identificados no Perfil dos Alunos À Saída da Escolaridade Obrigatória” (Direção-Geral da Educação, 2019: 2). Considera-se, por isso, que o contributo da História é fundamental para o desenvolvimento de “competências de análise e críticas de caráter transversal, essenciais para os desafios profissionais e para o exercício de uma cultura democrática interventiva em sociedades em mudança acelerada” (Direção-Geral da Educação, 2019: 4). O que até aqui foi exposto encontra eco na declaração de Guilherme d’Oliveira Martins, no prefácio ao Perfil dos Alunos À Saída da Escolaridade Obrigatória:

As humanidades hoje têm de ligar educação, cultura e ciência, saber e saber fazer. O processo da criação e da inovação tem de ser visto relativamente ao poeta, ao artista, ao artesão, ao cientista, ao desportista, ao técnico – em suma à pessoa concreta que todos somos. Um perfil de base humanista significa a consideração de uma sociedade centrada na pessoa e na dignidade humana como valores fundamentais. (Direção-Geral da Educação, 2017: 6).

Em síntese, dadas as características da organização curricular e do lugar atribuído à disciplina de História, se é fundamental a realização de atividades educativas que permitam o desenvolvimento, pelos alunos de todos os níveis de escolaridade, de competências de pensamento crítico – observar, identificar, analisar e dar sentido à informação, argumentar a partir de diferentes premissas, tirar conclusões fundamentadas –e de pensamento criativo, aplicando ideias em contextos específicos ou abordando as situações a partir de diferentes perspetivas (Direção-Geral da Educação, 2017), essa necessidade é ainda mais premente no que respeita à abordagem de temas relacionados com o passado recente, nas aulas de História com alunos do 9.º ano, no final do Ensino Básico. Tal pode fazer-se, por exemplo, através da realização, pelos alunos (individualmente ou em grupo) e com orientação do professor, de trabalhos de pesquisa sobre aspetos da vida social, económica, política e cultural, antes, durante e após a revolução de 25 de Abril de 1974, recorrendo a fontes diversas (e não limitadas ao manual escolar), nomeadamente a objetos e fotografias de arquivo familiar, e ao testemunho de pessoas que experienciaram essas situações históricas – avós entrevistados pelo netos em conversa áudio/videogravada, por exemplo – seguindo-se a comparação de perspetivas e a discussão em grupo-turma. Desta forma, a aprendizagem torna-se mais significativa, porque mais próxima e situada, não de “matéria de História a memorizar”, mas como um processo em que os alunos mobilizam conceitos históricos e constroem conhecimento. Desta forma, compreendem que o passado não pode ser vivido novamente, mas podem inferir sobre ele usando evidências, entendendo também as razões das ações e escolhas feitas noutros contextos, ou seja, mostrando empatia histórica. A compreensão das questões socialmente relevantes do passado, que em alguns casos continuam vivas no presente, permitirá a estes jovens a aprendizagem de valores, como o da liberdade, e a tomar decisões fundamentadas, base

para uma participação cívica ativa, consciente e responsável nas comunidades em que se inserem.

REFERÊNCIAS:

DIREÇÃO-GERAL DA EDUCAÇÃO (2017). Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória. http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Projeto_Autonomia_e_Flexibilidade/perfil_dos_alunos.pdf ______ (2018a). Aprendizagens Essenciais - Ensino Básico. 4.º ano. Estudo do Meio. http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/1_ciclo/4_estudo_do_meio.pdf ______ (2018b). Aprendizagens Essenciais - Ensino Básico. 6.º ano. História e Geografia de Portugal. http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/2_ciclo/6_historia_e_geografia_de_p ortugal.pdf ______ (2018c). Aprendizagens Essenciais - Ensino Básico. 9.º ano. História. http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/3_ciclo/historia_3c_9a_ff.pdf ______ (2018d). Aprendizagens Essenciais - Ensino Secundário. 12.º ano. História A. http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/12_historia_a.pdf ______ (2018e). Aprendizagens Essenciais - Ensino Secundário. 11.º ano. História B. http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/11_historia_b.pdf ______ (2019). Aprendizagens Essenciais - Ensino Secundário. 12.º ano. História, Culturas e Democracia. http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/ae_hcd_12.o.pdf

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