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Melro de bico amarelo

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Obrigado Francisca

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Franklim Fernandes entrevistaseouvidos@gmail.com

Decorria o ano de 2011, reinava então José Sócrates naquele que foi o seu segundo e último governo. Dessa governação, pela pena do zeloso Secretário de Estado que tutelava a passarada, certamente com as orelhas a assobiar de insinuações de amigos e camaradas de lazer e de borga, saiu um hilariante despacho a incluir os melros nas espécies cinegéticas da próxima temporada de caça. Determinava a penada que cada caçador poderia matar até 40 melros por dia. Terá ele idealizado a esperança de recolher as primícias da caça deste canoro pássaro de jardim, bem na mira de qualquer espoleta de carregar pela boca ou da espingarda de pressão do meu sobrinho Diogo que, pesadote para grandes caminhadas de nariz levantado a farejar pelos ermos dos montes e silvados, poderia vazá-lo de chumbo a partir da janela do quarto. Mudado o governo e apeado o governante mata-melros, o Secretário de Estado do governo de Passos Coelho que sucedeu ao do socrático filósofo, o limiano engenheiro Daniel Campelo, alcandorado aos píncaros da fama por ter protagonizado, enquanto deputado, uma “traição” ao seu CDS votando ao lado do PS de forma a viabilizar um Orçamento de Estado de António Guterres naquele que ficou para a posteridade como o “Orçamento do Queijo Limiano”, reverteu a medida. Com um só tiro certeiro, o famoso limiano, conhecedor profundo do meio rural, enlevado pelo mavioso canto daquele melodioso “turdus merula” vestido de preto, e liberto da gula ou da ingenuidade que atacou o seu antecessor, despachou, com um só tiro certeiro, a revogação daquela estapafúrdia decisão e a retirada da iguaria dos cadernos de receitas e dos cardápios das petisqueiras deste país. Numa arrumação de confinamento desta pandemia incómoda e possessiva, encontrei um jornal velho com uma crónica do saudoso Manuel António Pina cujos textos semanais publicados no JN eu devorava com prazer, escrevendo sobre uma ninhada de melros acabados de nascer numa trepadeira do seu jardim, feito que o levou a esquecer, por um momento, essa coisa de política que é um animal com mais tetas que a porca de Murça à volta de quem os profissionais da política se atrapalham e atropelam na azáfama de chegar à mais gostosa e apetecível mamadura. Encorajado com este exemplo, também eu dei em meditar sobre a existência dos melros e, na tentativa de afastar a lembrança dos políticos e dos malefícios dessa classe cujos reiterados exemplos de desviante comportamento ajavardaram a nobre arte do serviço público, tentei, num exercício mental, encontrar afinidades entre as duas espécies, os melros e os profissionais da res pública. Percorri um vasto caminho retroativo de memória e, afinal, consegui descobrir esse parentesco, bem

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mais próximo que o que seria suposto admitir. Num jantar de aniversário natalício do meu amigo Zé Freitas, ocorrido antes desta prisão domiciliária, já não sei a que propósito, os melros vieram à mesa, não numa bandeja ou travessa mas no decurso da conversa da treta, e logo se instalou uma acentuada divergência de opiniões e simpatias. Enquanto eu defendia esse simpático pássaro que me acorda às cinco da matina com enternecedores trinados, que canta e encanta desde o raiar da aurora, o meu vizinho da esquerda e o da frente clamaram contra essa maldita raça vestida de luto carregado que lhes atormenta o descanso e devasta a fruta. Dizia o Anselmo que nem os frutos ainda verdes e duros de mais de uma centena de pereiras e os pêssegos de várias árvores da sua quinta escapam à voracidade dessa ave insaciável. Deus, que a revestiu de negro, certamente bem sabia a espécie de bicho que ali estava. Eu contrapus que comigo isso não acontece, e tanto os pericos como os pêssegos do meu quintal se mantêm inviolados, descontando a bicharada que carregam no ventre. Ripostando, o meu soberbo opositor exclamou, vitorioso: - E tu queres comparar o teu mísero quintal de para aí cem metros quadrados com a minha quinta de mais de dois hectares, com muitas dezenas de árvores de fruto? Aí tive de me calar, se bem que o meu quintal tenha cinco vezes mais do que a área desdenhosamente referida pelo meu vizinho de jantarada. Mas imediatamente descobri a afinidade dos melros com os políticos. Também estes colhem onde não semeiam, e estragam muito mais que toda a passarada que se banqueteia com a fruta do Anselmo. Afinal, os políticos não passam de refinados passarões, os políticos-melros. É que, enquanto os melros vão poupando os pericos dos pobres e dos pequenos da sociedade afinfando o bico amarelo nos tomates dos latifundiários, os políticos-melros divertem-se a exocrinar a paciência do pobre. Atacam em alcateia os quintalinhos da propriedade privada e fanam tudo ao pobre, mesmo a fruta mais escondida, preservando a abastança das grandes herdades, coutadas, domínios e interesses económicos que formam o círculo que almejam conquistar em aliança e cumplicidade. Depois desta descoberta, cresceu a minha simpatia pelos melros, aqueles que voam, cantam e comem no meu terreiro, certamente de outra casta que não a que ataca as peras e as outras partes do Anselmo. E prometo que deixarei sempre qualquer melro petiscar a fruta da minha única pereira e os pêssegos carecos de três ou quatro pessegueiros bravios nascidos espontaneamente no meu quintal. Só para me vingar dos outros passarões que nos oprimem. P.S. – Em boa verdade, a razão porque os melros desprezam as minhas peras é que elas são tão duras como paralelo de calçada, e intragáveis, São peras bravas. Mas isso eu não digo ao Anselmo. É fácil imagi-

nar que nenhum bico melral entraria no seu ventre. Poderia acontecer o que aconteceu com os tomates (reais, vermelhos, vegetais, carnudos) de uma estória que por aí se conta e que, vindo a propósito, não deixo de reproduzir, que bem pode servir para solucionar o problema do Anselmo: - Havia uma senhora que plantara no seu quintal tomateiros de boa qualidade. Produziram esplendorosos frutos, daqueles que se comem com a vista. Era um regalo admirar aquela qualidade e aspeto: que beleza! Que riqueza de frutos! Que esplendor de tomates! Aconteceu, porém, que os melros, atraídos pela cor e aroma dos frutos, assentaram arraiais no tomatal e banquetearam-se com os carnudos leguminosos furando os tomates que eram o orgulho da Tia Miquelina. E assim foi apodrecendo a cultura, para grande desgosto da hortelã. No quintal vizinho, um outro tomatal resplandecia de vitalidade e cor sem vestígios de ataque do enlutado passaredo, facto que intrigava a desditosa vizinha, atenta a proximidade das culturas. Interrogada a sortuda dona dos tomates intactos, a senhora Maria informou que, no princípio, a sua plantação também fora atacada, mas, notando o facto, foi a uma loja de ferragens e comprou umas bolas de chumbo que pintou de encarnado e misturou com os frutos verdadeiros. Deste modo, debicando os tomates falsos, partiam o bico e, por isso, escarmentaram dali abandonando o quintal, e dedicaram toda a voracidade nos tomates da horta contígua. – Olhe, vizinha, foi remédio santo! Assim aconselhada, a Tia Miquelina dirigiu-se também à loja do senhor Artur. Era este um idoso de mais de oitenta anos que caminhava com dificuldade, curvado ao peso e às enxaquecas da idade, apoiado numa bengala. Perguntou a senhora: - Ó senhor Artur, o senhor tem tomates de chumbo? Respondeu-lhe o comerciante: - Não tenho, não, minha senhora. É este maldito reumatismo que me consome!

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