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25 de Abril, Quarenta e sete anos depois

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Obrigado Francisca

Obrigado Francisca

Victorino Costa5 victorinocosta2@gmail.com

Quarenta e sete anos! Parece que foi ontem!... O tempo passa, deixa as suas marcas indeléveis, indiferente, majestoso na sua imponência avassaladora. Mas os sinais, esses deixa-os, para que os possamos ler, os possamos recordar, enquanto o destino tal permitir. É na procura dessas recordações que penetro nos escaninhos do meu límbico hipocampo onde se sediam as memórias de longo prazo, que me permitem viver o ‘hoje de ontem’.

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25 de abril de 1974!... Esbaforido e apressado desço em marcha rápida a rua Gil Vicente, na tentativa de superar com a maior eficácia os cerca de cinco minutos que faltam para a aula das 08.30, na Escola Comercial e Industrial de Guimarães. Concentrado na preocupação de chegar a horas, alheio-me totalmente do que me cerca. Estou a chegar ao portão. Olho o relógio e suspiro nos dois minutos de escadas que tenho pela frente até chegar à sala de professores. Ufa, ainda vou chegar a tempo!...

Só então reparo no portão semicerrado, na ausência de movimento. O sr. Constantino, chefe do pessoal auxiliar, com um olhar sorridente, mas enigmático, lança-me o aviso: - Não corra, sr. Professor. Hoje não há aulas, a escola está fechada. - Fechada, mas porquê, sr. Constantino? - questiono eu com um olhar de espanto. - Foi ordem lá de baixo de Lisboa. Parece que há por lá m…. - M…, mas quem…? - Eu sei lá. Olhe vá até casa e veja se consegue ver ou ouvir qualquer coisa, ou então vá até ali ao Toural, onde já não falta gente.

Só então me apercebo do que me rodeia. À porta do quartel dos bombeiros (onde agora é o Triângulo e o início da rua S. Gonçalo) dois ou três grupos de voluntários a conversar com ar preocupado. À entrada do ‘Meia Noite’, (mais tarde ‘La Coupole’) mais grupos, situação idêntica à que

5 IESF-Instituto de Estudos Superiores de Fafe

se passava à porta do ‘Café Vitória’. Algo realmente se deve passar, não há dúvida. Seja o que for, vamos lá até ao Toural.

Entro na rua Paio Galvão, envolto numa nuvem cinzento-escura, composta de incerteza e ansiedade. Percorro-a, angustiado, passo a entrada Norte para o Mercado Municipal e o Museu Martins Sarmento, apercebendo-me do movimento cada vez mais compacto. Pessoas apressadas, aos pares, a falar e a gesticular descoordenadamente. Observo e concluo que deve mesmo ter acontecido algo importante.

Entro no areópago da cidade, o Toural. Ao longo dos seus canteiros floridos (que lindos que ficavam…) grupos de pessoas, a conversar, a gesticular. No cimo das árvores que ladeiam o recinto, cirros negros que a incerteza tecia, mesclados de pequenas clareiras de um azul-esperança. À volta da fonte (agora frente à Escola Francisco de Holanda) magotes de pessoas. Vejo ali, mesmo em frente do Banco de Portugal, um grupo de conhecidos e amigos. Curioso, dirijo-me para lá, na ânsia de uma resposta, que abrande as minhas incertezas. Nada se sabe ao certo, mas parece que há uma revolução em Lisboa. Falta é saber a favor de quem. Os comunicados das Forças Armadas dizem que está em curso um movimento para libertar o país. Mas será que vence? A incerteza aumenta a cada minuto que passa, a cada notícia que surge. Numa dialética quase incompreensível, oprime, mas alimenta a esperança. Dúvidas mescladas de desejos, de sonhos amassados na desilusão.

Após perpassar por diversos grupos decido ir até casa para ver se consigo algo de mais concreto na rádio ou na televisão. São 11 horas da manhã: ligo a televisão e a rádio, que pouco mais fazem do que repetir comunicados anteriores, intervalados de marchas militares. Até que… 11.15 horas, um novo comunicado ao país. Vamos lá a ver o que se passa!...

Ah, agora sim. Agora já começamos a ver luz ao fundo do túnel, já ficamos a saber com mais clareza do que se trata “… com o objetivo de derrubar o regime que há longo tempo oprime o país, as Forças Armadas informam que de Norte a Sul domina a situação e que em breve chegará a hora da libertação”.

Mas libertação de quê e de quem? As Forças Armadas, em princípio são fiéis ao regime! Há que esperar pela hora do almoço para regressar ao Toural à procura de novidades.

A tarde passa-se num misto de esperança e euforia contida, intervalada com umas cervejas

bem geladas, que da Docélia, do Café Toural, do Milenário ou do Mourão facilmente se alcançam. Ao fim da tarde, um ‘sururu’, um aglomerar das gentes que confluíam da Paio Galvão, o surgir carros do exército onde, em pé, num jipe, vem um oficial, um capitão. Instintivamente, como num ‘tsunami’ a multidão corre toda naquela direção. Alguns já não se contêm e gritam Vitória, Liberdade. Pouco tempo antes, soubera-se já da rendição de Marcelo.

De uma das varandas do Oriental, o capitão Machado Ferreira do RI 8 de Braga dá a notícia oficial da vitória da revolução. Fala da aliança Povo-MFA, fala de liberdade. Quando acaba, o Toural explode num clamor enorme que abraça toda a cidade, que se propaga por todo o país. As pombas dos telhados de Igreja de S. Pedro e casas contíguas irmanam-se num voo de felicitação, no que são acompanhadas por dezenas de levandiscas, entretanto regressadas aos ramos das árvores do Toural. No firmamento, o céu espelha um azul-felicidade, debruando no horizonte uma longa e intensa mancha vermelha que emoldura, naquele pôr-de-sol, as pétalas escarlates de um gigantesco cravo de uma ansiada LIBERDADE.

Agora, aqui sentado, recordo aqueles tempos, vivo-os quase com a mesma intensidade daquele dia. Imagino-me, de mãos dadas convosco a entrar no comboio do tempo, para refazer as linhas que urdiram ABRIL.

Entremos, então! Vamos esperar que as carruagens transportadoras do passado se interconectem, para nelas, sub-repticiamente, podermos penetrar.

Indecisos? Também eu!

Por que carruagem começamos? Pela pintada de negro, ou vamos antes pela pintada a verde, enquanto perpassamos pela amarela? Na indecisão, vamos arriscar e começar logo pela primeira. É a carruagem da ditadura, da desgraça, da opressão, da emigração e da miséria. É a preferida dos atuais ‘pavões’ da política que, sem terem perpassado pelos trilhos desta carruagem se apresentam hoje como corifeus salvadores de uma realidade que nunca viveram. Mas ‘Chega’! Vamos entrar!... Reparem, logo nos primeiros assentos; eis os esbirros da opressão. PIDE, grandes monopólios, miséria, emigração, guerra colonial, exploração!...Horror de tempos silenciosa e angustiosamente vividos e que a ‘gentalha neofascista’ de agora parece querer reviver. Pena que não tenham sentido na pele o que sentimos, que não tenham sido submetidos à opressão a que nos forçaram. Teriam, certamente, outra postura,

outra maneira de ser… Mas esperem, esperem! Reparem naquela nuvem que fugazmente perpassa. Tão densa, tão branca de esperança. É a campanha de Humberto Delgado, grávida de esperança, prenhe de sementes que florirão, pese embora a brevidade, já que a ditadura, pelas mãos da PIDE, vil e cobardemente a assassinou.

Atravessemos rapidamente, a carruagem amarela, a da desilusão. Aquela que, logo após a morte do ‘ditador’ nos deixou vislumbrar um horizonte de mudança, de imediato esmagada. Carruagem fétida, porque insidiosa, querendo parecer o que não é. Foi a época marcelista, dominada por ‘invertebrados’, pelo engano, pela insídia. Não vale a pena permanecermos aqui mais tempo. É o rosto da ditadura, imersa nas águas mornas e infetadas da podridão, da mentira e da demagogia. Por isso, vamos à carruagem seguinte, a carruagem verde.

Esperem. Não avancem já. Reparem que a ligação entre as carruagens parece querer partirse. Sente-se um vapor de frescura, de mudança a surgir no horizonte. Paira no ar um perfume de pétalas de um cravo perdido, que, esvoaçando nas asas do vento da esperança nos pedem que entremos, com audácia, sem receio. Mãos dadas, aí vamos nós.

Entremos de uma vez por todas. Esplendorosa, brilhante, assentos pétalas de cravos vermelhos a pedir a mudança, a afirmar liberdade, sustentados nos verdes caules de esperança anunciada.

Raios de um sol dessa esperança resplandecente entram a jorros pelas janelas. No teto, um firmamento sem nuvens de opressão, pleno de estrelas ponteadas de anseios, desenhando no firmamento o que de mais belo tem ABRIL: LIBERDADE!

Avancemos, depressa, antes que o tempo acabe. Mergulhemos com todas as nossas forças no seio dessas pétalas de revolta, de luta, de sofrimento; agarremo-nos com ganas a esses verdes caules de esperança, porque, mesmo ali, à nossa frente, resplandece, encantadora, a luz da LIBERDADE!

Liberdade que jorra do apito do comboio, que ecoa na voz de um povo que grita que ‘unido jamais será vencido’, que afirma com todas as forças jamais querer voltar ao passado, jamais tolerar a opressão, a miséria, os fantoches demagogos que, servindo-se do lado mais negro da empatia, procuram aliciar os mais incautos, os desiludidos.

Olhemos o horizonte, onde esvoaça a auréola dessa liberdade, em nuvens de sonho soltos

das pétalas dos cravos, do som dos gritos incontidos de um povo que rejubila, porque finalmente livre. Comissões de Moradores, Centros Culturais e Educativos, Aliança Povo-MFA, Cooperativas… rios com águas de sonhos e margens de esperança. Mundo único, de riqueza ímpar, só plenamente compreendido, por quem ABRIL viveu!...

Ei… o que foi isto? Porque parou o comboio?

Chegamos à estação da contemporaneidade.

Olhamos à nossa volta. Custa a acreditar no que vemos!... Quarenta e sete anos depois, as esperanças de ABRIL jazem por terra nas pétalas esmagadas dos cravos. Jazem na indiferença e no cansaço da desilusão valores há quarenta e sete anos ansiados, aplaudidos, com sangue e sofrimento conquistados. Nas paredes da estação brilham as cores da partidocracia, da corrupção, do compadrio, da vilania na justiça. As tintas da demagogia fácil começam a denegrir as cores da carruagem que, de verde, se vai paulatinamente mudando novamente para negro. Novos ‘vampiros’ assomam às janelas, com sorrisos amarelos, sedentos de poder e opressão. Incontida, corre-nos pelo rosto uma lágrima desiludida, escorreita no sal da desilusão de tanta esperança esmagada no oportunismo que a partidocracia a cada dia em seu venenoso ventre engendra.

Sonhámos um mundo de liberdade, de democracia. Cedo, porém, o maior cancro da democracia, a partidocracia, começou a corroer sub-reptícia, mas inexoravelmente as suas veias. Oportunismos, nepotismo, corrupção, passaram a ser moeda corrente, dando razão aos apelos de uma nova ditadura, capaz de deixar em ordem o caos em que os ‘vampiros’ querem transformar o país.

Mas, deixem-me gritar bem alto e com toda a força dos meus pulmões, nada disto foi, é, ou será ABRIL. Foi e é o resultado do oportunismo, da vilania, da ganância, da falta de escrúpulos daqueles que, alimentados nos e pelos bafientos mantos da partidocracia gangrenam a toda a hora as veias da democracia.

ABRIL foi maravilhoso. Foi o eco do grito incontido do sofrimento de meio século de opressão e tirania de um povo. Foi o clamor imenso pela liberdade, pela igualdade, pelo progresso.

É assim que recordo e quero continuar a lembrar ABRIL!

O cravo da liberdade, queiram ou não, continuará a germinar, independentemente dos esforços daqueles que o querem matar, porque traz no seu ventre, eternamente parida a essência da

humanidade, a LIBERDADE.

Desenganem-se os corifeus da desgraça, os candidatos à ditadura, à opressão e demagogia e à vilania. Enquanto a nossa geração tiver forças, há de gritar bem alto que ABRIL está e continuará vivo, ‘queiram, ou não queiram os papões’ . E esta certeza será a força que alimentará ABRIL nos mais jovens, naqueles que dele apenas ouviram ou ouvem falar. Dizemos-lhes, olhos nos olhos, que se não deixem enganar pelas vozes vampirescas dos demagogos, dos oportunistas, dos partidocratas. Por isso, e para que nunca o esqueçam, termino este meu grito com parte de um poema que, há meia dúzia de anos atrás, ofereci aos meus alunos, na esperança de que neles germinem as sementes da esperança, o desejo insaciável da LIBERDADE, que ABRIL pariu!

ABRIL foi um sonho. Sonho de um povo amordaçado, De um país anos a fio humilhado, Em cada esquina destroçado.

ABRIL foi o culminar de uma luta, Engendrada no silêncio dos quarteis, Na resistência, nas perseguições, No sofrimento e miséria de um povo, Que a partir da sua dor Fez raiar um dia novo!

ABRIL foi acordar, Sair de um pesadelo, Calcar com raiva o medo, Soltar-se da ligadura Que durante meio século Nos prendeu à ditadura.

Por isso, ABRIL não é só uma data, Um mero acontecimento. ABRIL é a história de um povo, A história da sua luta, Expressão do seu sofrimento.

Dir-vos-á alguém que ABRIL foi um erro;

Que não passou de um engano, D' infeliz acontecimento.

Não acrediteis!... Abril teve erros, é certo; Permitiu desvarios, Oportunismos, Deslealdade. Mas ABRIL, Ninguém o pode negar, Trouxe o que de mais caro há ao homem, O direito à igualdade Trouxe-nos o que de mais digno temos, a nossa liberdade!

A liberdade, O maior dom que o homem tem, Que lhe dá identidade, Que lhe permite afirmar-se como ser! Sem liberdade, não somos ninguém, Somos fantoches nas garras das ditaduras, Marionetas presas em inconfessáveis ligaduras, Carne para canhão, Daqueles que nos 'chupam' o sangue, Que nos arrancam o coração.

Disfarçados em roupagens mil, Hoje querem trucidar ABRIL. Esquecem-se, porém, Esses neofascistas e partidocratas, Que ABRIL não morre, não morreu, ABRIL está e estará vivo! Porque ABRIL sou eu, É cada um de vós, É a história de um povo, Que somos todos, Todos nós!...

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