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Com perfume de cravo vermelho

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Obrigado Francisca

Obrigado Francisca

Eva Machado luanegra.eva@gmail.com

“Pairava sobre a pátria portuguesa uma aflição, que oprimia e que sufocava. A vontade de rir fora-se. Sob este céu clemente e azul só ficara a vontade das lágrimas ou a vontade da revolta.“ (Raul Proença, 1884 – 1941)

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O 25 de Abril faz 47 anos. E este dia de aniversário tem um etéreo perfume a cravos vermelhos. Mas enquanto nós, seres humanos, vamos somando as transladações da vida, o 25 de Abril, o nosso, tem obrigatoriamente de se ir renovando para que as novas gerações encontrem nos seus valores o futuro e lutem por eles. Esta é uma data que não pode ser esquecida! Ela fechou uma ditadura de 48 anos. Ditadura que vigiou, prendeu, torturou e matou homens e mulheres; que censurou livros, música, artigos de jornal, teatro, televisão, cinema… já que nada escapava aos abutres de Salazar e ao perverso lápis vermelho. Ditadura que obrigou ao exilio quem se levantava contra a repressão e a miséria de um Portugal cinzento e analfabeto sem perspectivas de futuro. Ditadura que também deu início a uma guerra colonial sangrenta que roubou a juventude e a vida a milhares de jovens e desmembrou famílias. A minha também. Levou-me dois irmãos muito jovens para o exilio por se recusarem a combater contra os povos irmãos. Essa coragem abriu um vazio de dor e ausência que só terminou quando Abril floriu. Era meia noite do dia 24 de Abril e a voz de Zeca Afonso, finalmente livre da censura e da ditadura, pintou as ruas de vermelho ao som da “Grândola, Vila Morena”. Passaram 47 anos! Muito se conquistou. Mas a cada dia que passa percebemos que as conquistas de Abril são frágeis como o cristal! E essa fragilidade obriga-nos a estar vigilantes porque os vampiros, como diz Zeca Afonso10 , vêm em bandos com pés de veludo/chupar o sangue fresco da manada. Hoje, mais do que nunca pululam por aí. Vivemos um tempo perigoso capaz de colocar a Liberdade e

10 Os Vampiros (1963), letra e música de José Afonso.

a Democracia naquele estado de clandestinidade que vigorou até Abril de 1974. Sabemos que juntamente com esta crise sanitária e social, ou a coberto dela, renasceu outro vírus perigoso que, insidiosamente, se vai instalando em cima das democracias, das liberdades e dos nossos direitos. Dizem-nos que todas as regiões do mundo registaram um retrocesso democrático num ano marcado pela pandemia11 . Portugal também. Em 2020 perdeu a classificação de "democracia plena" e integra, agora, o grupo dos países considerados como "democracias imperfeitas."12 Vemos também, com tristeza e apreensão, voltarem atitudes antidemocráticas. Uma delas era prática típica da ditadura, a delação ou denuncia, hoje incentivada como sendo um dever cívico em tempo de pandemia. Não podemos deixar que discursos apaziguadores a bem da saúde pública nos tolha o direito de fazer perguntas incómodas, de criticar comportamentos e decisões políticas, de manifestar a nossa posição. O medo, o isolamento, a depressão e a tristeza instalam-se e levam as pessoas a obedecer, sem questionar, a medidas que limitam ou retiram liberdades e direitos, concentrando, perigosamente, poderes nos mordomos do universo todo/ Senhores à força mandadores sem lei13. E destas medidas nunca sabemos as que ficam, como força de lei, depois da pandemia. Não podemos ficar indiferentes! A democracia e a liberdade precisam do nosso olhar vigilante e crítico para proteger os valores que conquistamos em Abril, porque do dia para noite… eles comem tudo/e não deixam nada14 . Comemorar Abril é abrir os olhos para o que se passa à nossa volta! Na aldeia global em que vivemos não podemos fugir ao “efeito borboleta15”. Assim sendo, vigiar a nossa Democracia e Liberdade é um dever que nos une aos povos do mundo inteiro. É uma luta que não tem fronteiras! É o segundo ano que comemoramos Abril com a sombra de um vírus, que cresce e decresce, ao sabor não sabemos muito bem de quê… Este ano chegaram as tão desejadas vacinas contra o Covid 19. Respiramos de alívio! Havia a garantia, por parte dos decisores políticos, de que a sua distribuição global seria “democrática e igualitária”. Mas o que vemos, com revolta, é uma guerra de interesses entre governos, países ricos, multinacionais farmacêuticas e uma União Europeia ineficaz na gestão e aquisição de vacinas, com a agravante de os países mais

11 Pesquisa efectuada em: https://www.dw.com/pt-002/democracia-piorou-em-todos-os-paises. 12 Idem. O estudo feito pela Economist Intelligence Unit (EIU) que mede, anualmente, os níveis de democracia em 167 países, refere mais de 80 países que viram a sua Democracia afectada. 13 Os Vampiros (1963), letra e música de José Afonso. 14 Idem. 15“O bater de asas de uma borboleta aqui pode provocar um tsunami do outro lado do mundo”.

pobres não terem acesso a elas.16 O lucro conta mais do que o controlo da pandemia e a saúde pública. E assim, de dia para dia, se vão agigantando as desigualdades no acesso à educação, ao trabalho, à habitação e à saúde. São desigualdades que contam histórias dramáticas de vida, agravadas pela pandemia, onde não há pão, não há casa, não há trabalho e não há espaço para se ser criança ou jovem… ao mesmo tempo que crescem, perigosamente, os populismos, a xenofobia, o racismo, os movimentos de extrema direita… aqui e no resto do mundo! Por Abril, e por um mundo mais digno e justo, não podemos fugir ao combate! É em momentos de crise, como o que vivemos, que mais precisamos de afectos e de cultura. Eu sinto essa falta! Abril também foi sonhado à volta do dedilhar das violas, do desfolhar de livros, da pintura de murais e da poesia que levavam ao debate de ideias, à consciência política e à resistência. A Cultura abre janelas de esperança! Não é ingénuo que continue a ser vigiada, censurada e, muitas vezes, rotulada de “bem não essencial”. Mas uma população culta “bem informada e motivada é geralmente mais poderosa e eficaz do que um povo ignorante guardado pela polícia17". ABRIL continua a convocar-nos para que se cumpra o Sonho! Um sonho que não tem idade nem teme fronteiras porque nos une na luta global pelos mesmos valores: Liberdade, Democracia, Justiça! Viva o 25 de Abril! Viva Portugal!

16 https://expresso.pt/coronavirus/2021-02-28-Covid-19.-Paises-mais-pobres-comecam-a-receber-vacina-e-tambem-queremproduzi-la 17 https://www.infobae.com/america/cultura-america/2020/03/28/como-estan-pensando-los-filosofos-la-crisis-global-

que-provoco-el-coronavirus

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