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Guimarães: Tesouros Clandestinos
from OsmusikéCadernos 2
by osmusike
Teresa Macedo18 Macedo.mariateresa@gmail.com
Preâmbulo
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Leitores há que me perguntam se eu invento estas narrativas ou se parte da minha vida se espelha nelas: digo que não, mas sei que nos meus livros e neste, em particular, as personagens ficcionais entrelaçam-se com as reais num convívio que só o narrador é capaz de discernir. Porém, deixo o exercício de descoberta dos modelos que povoam os meus livros para o leitor, que encaixa as personalidades nos factos que a História e as estórias guardam nas páginas ou nas memórias, abrindo as portas a certas viagens que a mim pertencem como cidadã do mundo. Através de alguns excertos deste livro, cujo enredo se inicia em Guimarães no dia 26 de abril de 1974, na teia de uma cidade que se movimenta, questiona, intimida ou se arroja na compulsão de uma sociedade a acordar para uma era política balizada por sentimentos antagónicos e impulsivos, assiste-se ao desaparecimento do tesouro do Museu da Colegiada de Guimarães, segue-se o trilho dos assaltantes, enquanto nas aldeias da periferia as populações entram em confrontos ideológicos, esforçando-se alguns por derrubar comportamentos de desigualdade e abuso de poder muito cristalizados nos modos de viver o quotidiano. Como refere o autor do prefácio que abre esta narrativa historiográfica, há uma “Conversa Secreta de Armando Bastos que criou uma pergunta emblemática: - “Onde é que estava no 25 de abril (de 1974)? O narrador de “Guimarães, Tesouros Clandestinos”, tentando um natural realismo, diria que, no dia seguinte, porque as notícias nesse Imagem 17 - Capa do livro publicado pela tempo tinham passo lento, estava na Cidade-Berço, entre uma agitação Editora Labirinto (2019)
18 Teresa Macedo é natural de Gominhães, Guimarães, onde nasceu em maio de 1962. Iniciou-se no ensino em 1985, tendo, desde aí, exercido o seu labor entre as práticas pedagógicas, como professora, e as teorias literárias, como aluna e investigadora, na Universidade do Minho. Mestre em Estudos da Criança, Especialidade de Análise Textual e Literatura Infantil; Doutorada em Ciências da Educação, dedica parte do seu tempo à escrita, preferencialmente ao desenvolvimento de artigos científicos, à Poesia, aos Contos e às narrativas Bio historiográficas.
inusitada, repetindo slogans como “Chegou a Liberdade” ou “Somos Livres”, enquanto os sentidos dessas expressões se agitavam no sangue como a flor vermelha da “Revolução dos Cravos”, que se erguia nas mãos de todos.
A Cidade de Chula
A sirene da fábrica do Cavalinho chamava à mudança de turno. Era um ronco que saía das alturas e cobria toda a cidade como um manto de névoa que se rasgava e acelerava os passos por todas as artérias da urbe. Chula arregalou os olhos estremunhados e, percebendo o despertar da manhã, bocejou e, vagarosamente, começou a mover o corpo, sentindo-o pesado e saibroso, a língua a saber a fel, um hálito alcoólico a evaporar-se, clandestino e opaco. Fitou as chapas de zinco que cobriam a barraca onde dormia nos tanques de curtir peles na Rua de Couros e viu-lhes espelhada a humidade das madrugadas primaveris, ainda com um subtil visco de gordura e cristais de sal nas paredes, um ranho persistente como a sua miserável vida. Tinha de ir! Ao lado, a Mila resmungava algo com o seu companheiro, o engraxador Milhão. (…) Era preciso apanhar o cartão abandonado pelas esquinas, atá-lo para fazer dele uns escudos. Nunca se olhara ao espelho, nem era preciso pois a imagem que de si tinha vinha dos que o espiavam e fixavam no seu andar desordenado. O nariz reto pousado numa cara defensiva, nervos saltitantes sob a mácula crescente daquela bola de matéria que o deformava, o corpo meão, engelhado e esquelético dizia-lhe que tinha uma figura de espantalho capaz de assustar os pardais nas hortas semeadas de fresco. Saiu da barraca sem se despedir da irmã, nem era preciso porque cedo se cruzariam pelas ruas, ela com molhos de papel à cabeça, outro que pudesse preso debaixo dos braços e haviam de se deitar um ao outro um olhar indiferente, carregado daquela partilha constante dos mesmos Imagem 18 - FONTE DA NINFA (Imagem de espaços e da mesma pobreza. Ao chegar perto da Caldeiroa já via o arvo- Pedra Formosa. Blogue Informativo) redo da Alameda. Tinha de arranjar dinheiro para uma postinha de bacalhau para por a demolhar na Fonte da Ninfa, da qual se aproximava, contemplando-a numa familiaridade íntima. Dos seus braços escorriam gotas de água vagarosas. Passou as mãos por elas e espalmou-as no rosto sulcado de sujidade, sentindo a frescura da manhã a despertá-lo após aquele gesto. Hoje não pararia ali. Seguiu em frente e dirigia-se à
Praça da Oliveira quando, subitamente, olhou umas escadinhas duma casa mesmo ao lado e decidiu parar um pouco, dormitar, que os berros do engraxador com a irmã na noite passada tiraram-lhe umas horas ao sono e o corpo estava ressentido daquela míngua de descanso. (…) Oh, Chula, estás a guardar o teu bacalhau?
Ruas Agitadas
A Praça da Oliveira começava a receber os primeiros raios de sol daquele dia, luz que se espalhava sublime ainda em forma de estrela. O chão empedrado deixava-se notar numa respiração ofegante, ainda húmida. Mas nessa manhã do mês de abril, a cidade tinha um burburinho diferente. Era ainda cedo, mas a rua estava com mais gente do que era habitual. Por isso, ao sentar-se na sua espécie de trono, rodou o olhar e deixou o rosto levantado para observar melhor o grupo que ia engrossando junto ao Padrão do Salado, gente que falava alto e trazia panos com umas coisas escritas que não sabia decifrar de entender. (…) - Que foi que aconteceu? – atreveu-se Chula a perguntar… (…) - Oh, homem, não sabes? Hoje é um dia muito feliz. Houve uma revolução! Somos livres!
O Toural, de repente, parecia rebentar com tanta gente que aparecia de todas as ruas que nele desembocavam. O burburinho era inquietante, mas tinha uma sonoridade alegre, organizada, embora não se visse nenhum regente a dar-lhe o molde que se estendia e contagiava. Junto ao cerieiro da Porta da Vila encostou-se à esquina da rua, aproveitando a inclinação que lhe permitia ter uma visão panorâmica mais geral da praça. Milhares de pessoas de todas as Imagem 19 - Toural em 1974 (Créditos: Memórias de Araduca) idades começavam a cantar o Hino Nacional e Claudina começou a acompanhá-las, sentindo que a sua vozita ainda jovial poderia destoar um pouco naquele coro de emaranhados sons e timbres. Mas o importante era juntar a sua à voz de todos: - É o Dr. Santos Simões, aquele… - dizia um homem, apontando para o meio da multidão onde o outro
discursava, sempre interrompido por grandes aplausos de vivas à liberdade e ao general António de Spínola.
A rapariga não conseguiu perceber o resto. Os seus olhos iam-se colando nas sacadas dos edifícios que contornam a praça e aferiu que raramente as tinha visto com as portas abertas ou com alguém às varandas. Acontecia no dia das Maçãzinhas em que os estudantes do Liceu de Guimarães entregavam às jovens escolhidas as maçãs vermelhas e pequeninas enquanto as colegas, aos risinhos, atavam na cana que erguera o tão esperado fruto, o presente com que gratificavam os companheiros por tão galante oferta. Só no lado do Café Milenário se estendiam as capas negras sobre os varandins de ferro, ficando o lado oposto entregue à mesma nostalgia, à escorrência da chuva ou à secura nos azulejos das fachadas, consoante o tempo que fizesse em dezembro, e o povo ali especado, de braços cruzados e os olhos distantes, medindo a alegria do grupo estudantil com um enlevo morno e contraído.
A Rebelião
Ao terceiro toque do sino, recolheram-se no interior da capela, mas todos dispersos entre as mulheres, que mal respiravam. O padre subiu ao altar todo paramentado e verificou pelos espaços abertos que havia demasiados lugares vazios à sua frente. Os homens não tinham vindo à missa? Estendeu o olhar para o fundo da capela e viu os guedelhudos de rostos altivos e desafiadores. Percorreu-o um calafrio pela espinha fora, sentindo de antemão a chegada de problemas: - Antes de começar a missa, queiram os senhores que estão entre as mulheres, sair da igreja ou vir ocupar os lugares no espaço dos homens. Ninguém falou. As pessoas começaram a ficar nervosas. Olhavam umas para as outras. Os anciãos, sentados à frente, moveram o corpo para verem o que estava a suceder. - Repito. Devem os senhores que estão abusivamente nos lugares entre as mulheres, sair da igreja. Enquanto isso não acontecer não se inicia a missa. - Eu não saio daqui! – ouviu-se uma voz colocada ao centro, Imagem 20 - Capela do Bom Despacho (Gominhães) impregnada de um tom inequivocamente determinado.

- Daqui eu também não saio… - Nem eu!… Nem que me matem… - Vivemos com as mulheres em casa e não podemos assistir à missa junto delas? Que mal lhes fazemos?
Um rumor espontâneo encheu a capela. Um calor como febre começou a largar suor nas faces dos presentes: - Meus amigos, – ergueu-se uma voz, vindo da parte de cima, uma fala destemida – aqui fazeis o que vos estão a mandar fazer! Caso contrário tendes de sair a mal… - Fora, seus comunistas! Fora! Até vos mato!... (…) Em Gominhães, as portas do povoado fecharam-se tarde. Os mais velhos suplicavam a ação de Deus para o mafarrico que se meteu nas cabeças dos moços, tão bons foram sempre, e os que presenciaram a cena da igreja relatavam o sucedido, simulavam os gestos, os passos da ofensiva, acrescentando-lhe mais uns pormenores, o que captava a atenção plena dos que ouviam, reluzindo nos rostos as feições de espanto, consternação e surpresa. Rodolfo Taveira não permaneceu na aldeia. Apressou-se a chegar com a notícia à sede do partido, dizendo que a política se faz fora das paredes, no contacto com os cidadãos, vivendo os seus problemas e alterando as suas velhas rotinas por ideias e comportamentos mais progressistas, ajustados às necessidades dos tempos que se vivem. Jesualdo Antunes sentia que esse pragmatismo era um ponto incontornável que pesava a favor de Rodolfo. Mas não dava impulsos àquela energia peculiar que se gerava no companheiro com receio das consequências. Achava-se covarde no temor que o invadia. Não era homem de lutas desenfreadas, daquelas que incitam à violência e podem gerar confrontos físicos. Vivia o cargo que ocupava no partido como um bom cidadão que é firme dentro das paredes que resguardam a sua voz dos ouvidos populares, mas não gostava demasiado de se expor, de gerar conflitos e de criar opositores severos ao seu modo de ser. Contudo, reparava que, em Guimarães, desde o 25 de abril pouco tinha acontecido. O resto do país sofria com assaltos às sedes dos partidos de esquerda, mas naquela sede do MRPP as aranhas tinham tempo de fazer as suas teias de forma tranquila, estas engrossavam com o peso da poeira, porque nem o chão se limpava há imenso tempo. A cidade não tinha o rumor nem a agitação do resto do país. Grupos de homens liam o Jornal de Notícias em frente ao Quiosque Marinho em pé, alinhados e, de vez enquanto, aproximavam os braços sem nunca largarem as páginas abertas e mostravam uns aos outros as notícias mais escaldantes, de títulos densos, impressos a tinta preta ou vermelha, sobre desacatos e ataques bombistas que
começavam a grassar por todo o país, mesmo a norte, no Minho. (…)
– Agora – pensava - tinha de se deparar com aquele grupo de agitadores, que pretendiam fazer numa tarde aquilo que ele, padre Justino, não conseguiu mudar em anos! Nem pensar!… Mas observava que nada mais poderia fazer. A sua igreja estava transformada num adro onde a pancadaria eclodira, havia desordem, pessoas agarradas aos colarinhos umas das outras em discussões particulares: - Vai ajudar os teus pais, seu bandido! – gritava Amândio para o sobrinho, um dos revolucionários. - Você é um fascista! O povo é quem manda aqui! E não tem nada a ver com a minha vida. – Gaguejava, nervoso, Toneco, o sobrinho, defendendo-se com as mãos dos murros que sobre si iam caindo. - Já te disse: fora da igreja. Aqui não entram homens de cabelos grandes, nem mulheres de cal-
ças!...
- Não saio! Só se me matarem!... Os pés de Amândio começaram a pontapear o rapaz que protegia o rosto entre as pernas dobradas, ali no centro da igreja como um lixo largado após uma grande feira. As malditas das lágrimas atraiçoavamno e já escorriam pelo rosto abaixo. Sentia-se furioso com a sua fragilidade desnudada em lugar público e pensava que isso o poderia diminuir perante todos, desqualificar a sua determinação política. Rodolfo Taveira, depois de se desenvencilhar da luta corpo a corpo que o empurrou para fora do edifício, foi ao encontro do amigo: - Anda, pá. Isto é apenas o começo da nossa luta contra estes canalhas fascistas. Ao dizer que os haviam de vencer, notou que o padre já tinha largado as roupas de cerimónia e vociferava, na sacristia, contra aquele incidente, não um ato revolucionário, expressão que só de a pensar lhe causava secura na pele, uma dor na garganta e uma arritmia que o fazia percorrer com a mão todos os bolsos à procura de um calmante. Quando se meteu dentro do seu carro VW de cor cinzenta, sentia pressa em ir embora e daria tudo para não ver as pessoas reunidas aos grupinhos pelos caminhos. Nunca lhe tinha sucedido não conseguir dizer missa, estando já pronto para iniciá-la. Sentia que exagerar na sua autoridade perante o povo era perigoso, pois com o 25 de abril a palavra liberdade entrou nas pessoas, deu-lhes força que seria capaz de embater com a prepotência, podia trazer-lhe outros dissabores.” in Macedo, Teresa (2019). Guimarães: Tesouros Clandestinos. Fafe. Editora Labirinto.