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A madrugada dos sonhos

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Obrigado Francisca

Obrigado Francisca

A madrugada dos sonhos23

José Fernandes de Matos zematos2@sapo.pt

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“De mãos dadas vamos para o sono comum.” (DANIE FILIPE)

POEMA I - A madrugada dos sonhos

Na madrugada clara a rua enche-se de luz. Nas suas entranhas uma felicidade irresistível, um fogo envolvendo a terra.

Olho-te nos olhos, saboreio a ternura do teu corpo, o calor dos passos

23 (do livro “A MADRUGADA DOS SONHOS, vencedor da 11ª edição do Prémio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres, edição Junta de freguesia de Fânzeres, dezembro de 2000, (esgotado). Recentemente incluído no livro “30 ANOS DE POESIA”, Antologia do Prémio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres / 1990 - 2020, edição da Elefante Editores transfigurados no silêncio, a incisão da luz desvendando o sonho.

Relembro a felicidade soletrada em tua boca, amada até ao limite da ternura. Terra – mãe, esperança que se inventa em nossas mãos, alegria que floresce num olhar. Na madrugada clara, um rio desliza sobre a rua, um sonho paira em nossos ombros. (Qual raio de azul incidindo contra a muralha de silêncio, uma explosão de cor e som na magia das palavras, na quietude dos sentidos.)

Um sopro de ave rasgou a claridade do teu corpo felino, a terra transformou-se num simples gesto. A rua envolveu-se num orvalho fresco e livre, assim permaneceu na lassidão dos sonhos, como uma pomba

sobre os ombros de uma criança.

De repente, sentiu-se a leveza irresistível da ternura. Num instante moveram-se nuvens sobre os olhos e o azul da esperança tomou o brilho inconfundível da alegria.

Sobre a noite pairava ainda o teu sorriso, o calor das tuas mãos o semblante doce do teu rosto.

(Na rua um menino descobre uma flor, sente-lhe o aroma, apercebe-se que finalmente a primavera vai nascer livre em suas mãos.)

O teu corpo ávido de ternura preenche a rua de um fogo invisível e descobre entre as mãos a noite, a alegria, o sonho.

POEMA II - Abril de sonho e de esperança

Abril deu-me tudo o que sonhei: liberdade, paz, alegria, serenidade. Devolveu-me o direito de pensar e agir, de expressar sentimentos e dúvidas. Também me deu asas para voar sobre os umbrais das casas em busca de desejos e emoções. Deu-me coragem para interagir como cidadão de corpo inteiro, subir as montanhas da aventura para descobrir quão diferente é o homem que se fez livre. Abril ensinou-me a dignidade, uma norma inteligente e cívica para interagir na sociedade. Ensinou-me a pensar e a agir com a minha própria cabeça, a tomar as minhas decisões. Ensinou-me a viver, amar e sonhar, a ver os outros de modo diferente, a ter projetos, ideias, convicções, a poder sorrir, cantar, amar, expressar toda a euforia que a liberdade comporta. Abril deu-me razões para sentir a emoção e a alegria que o vento transportara naquela manhã inesquecível de sonho e fantasia. Abril de esperança focado na alegria e na emoção, na participação desta aventura por espaços desconhecidos onde o céu se pinta com todas as cores do arco-íris, prenunciando o advir de um tempo novo. Abril que abriu as portas do pensamento e da razão da harmonia e da fraternidade,

tornando os homens mais irmãos, mais compreensivos e solidários. Devolveu-nos a esperança e a confiança que estavam subornadas e esquecidas e povoou as praças com risos de crianças, janelas escancaradas, varandas coloridas com arranjos florais de todo o ano. Ó meu país livre de esperança e de saudade, de sol e desejo misturado, de emoções e fantasias, fervor puro e inesperado nas margens da poesia. Ó meu canteiro de esperança, janela aberta à ternura, peladinha desta eufórica aventura pela liberdade sem caução. Ó país de abril que a brisa tece, Suave, perene, sublime, fruto da felicidade que enaltece.

POEMA III - vem, liberdade!24

Em vão procurei-te nos escombros da memória, nas vielas clandestinas do medo, nas noites chuvosas e frias, na rigidez dos passos, nos esconderijos mais recônditos onde os sonhos não foram proibidos.

Foste durante anos a fio a musa promotora desta luta, a deusa silenciosa da minha inspiração.

24 (do livro “O DESPERTAR DA ALEGRIA”, prémio nacional de poesia Natércia Freire, 2018, edição da Câmara Municipal de Benavente, 2019, 250 exemplares) Com a tua intransigência expulsavas os fantasmas da memória, tocavas os corações para que sem medo adormecessem.

Ensinavas-me a combater a solidão e a angústia com determinação e audácia, com ironia e presunção. Caminhavas a nosso lado para onde quer que fôssemos como amiga, companheira, mentora da felicidade que ambicionamos alcançar.

Quantas vezes vieste até nós oculta numa obscura névoa, envolta em mistérios e fantasias, para que os tiranos não te reconhecessem e te apertassem a vigilância?

Quantas vezes povoaste os nossos segredos de solidários anseios, de inquestionáveis certezas e sorrateiramente partias para que a tua presença não nos denunciasse?

Sempre que te queríamos tocar, tornavas-te ar, fumo, sombra, nuvem ou fluido invisível. Esfriavas o combate quando a vitória parecia possível, quando o infinito parecia ao alcance das mãos.

Quantas vezes sofreste a prisão, os maus tratos, escondeste-te atrás de um disfarce para não seres reconhecida ou sentiste-te ameaçada sem poderes pedir ajuda, entregue ao teu próprio destino, sem que ninguém te pudesse socorrer?

Sofrias, sempre que um pedreiro livre era amordaçado, um operário perseguido, um grevista espancado ou um poeta assassinado. Viveste clandestina nas palavras, escondida nas metáforas, disfarçada nas alegorias.

A tua imagem estava presente em toda a parte, dando-nos força na hora do desânimo. Sei como era incómodo sentir-te sem te poder abraçar, falar-te, sem te poder ouvir, tocar-te, sabendo que eras feita de sonhos, ar, sombras e mistérios.

Um dia, porém, tomaste forma humana, abandonaste o teu esconderijo, vieste para a rua, com o teu invulgar espírito de mudança. Entraste nas casas, nas ruas, nas praças e nas instâncias do poder. Subiste muralhas, agitaste bandeiras, converteste gestos e palavras em ações de luta. Acordaste consciências que estavam adormecidas ou talvez entorpecidas pelo medo e pelo desânimo.

Estavas tão feliz, como se tivesses despertado de um sonho e por um golpe de magia caído ali no meio da praça, onde a esperança sem receio renascia. A multidão avançava ao teu encontro. Os olhares fixavam-te com ansiedade, tentando assimilar-te na tua plenitude, proteger-te para que ninguém mais se aproprie de ti. Eras a rainha desta vontade coletiva. Tomavas nas tuas mãos os destinos de um povo quando ias para a frente da luta formar grupos de opinião, invadir os jornais, as rádios, os meios de comunicação, as instâncias do poder e colocá-los ao serviço de todos.

Trouxeste o poder para a rua, depositaste-o nas nossas mãos aboliste a censura, abriste as prisões, declaraste livre o pensamento e todo o ato criativo. Agora respiramos um ar de festa e alegria. Um sonho de ternura dominava todos os nossos gestos, uma paz invisível circulava pelo nosso corpo.

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