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47 anos depois, o 25 de Abril na 1ª pessoa

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Obrigado Francisca

Obrigado Francisca

Teresa Portal teresaportal@gmail.com

47 anos depois do 25 de abril de 1974, falar na 1ª pessoa não é fácil pela distância temporal e por tudo quanto daí adveio tanto a nível pessoal, como profissional e interrelacional. Frequentava o 1º ano da Faculdade de Germânicas, que abrira no Porto nesse ano, num edifício lindíssimo, casa apalaçada na Rua das Taipas por trás da Cadeia da Relação, onde esteve preso Camilo Castelo Branco, em 1860, (desde 1997 Centro Português de Fotografia, mantendo a cela onde o escritor esteve preso), quando aconteceu a Revolução dos Cravos. Até à data, as aulas tinham decorrido normalmente e já se tinham realizado algumas das primeiras frequências. Para mim, que não “vivia” a política e não sofrera nenhuma perseguição familiar pela PIDE foi como se o mundo se virasse do avesso e aí sim, vi a minha libertada coartada, pois fui proibida de ir às aulas pelos que faziam piquete e diziam que o boicote era uma forma de luta pelos nossos direitos. Bem, o direito às aulas já tinha voado e fartei-me de RGAs naquele grande salão do Instituto Abel Salazar, antiga Faculdade de Letras, onde se discutiam coisas que não me diziam absolutamente nada e se procurava decidir o que fazer com um ano que terminara abruptamente em abril e que ninguém queria perder. Também voaram as praxes e o traje académico, pois a capa e batina assim como as batas dos liceus eram fascistas. Nunca entendi como um traje que igualava toda a gente podia ser fascista. Só sei que nunca trajei a não ser quase cinco anos depois quando se retomou a Queima das Fitas e o Cortejo com os estudantes de Engenharia e de Economia, todos virados para a extrema-esquerda, a atiraram-nos com ovos, tomates e outros materiais pegajosos. Andei num Orfeão Universitário do Porto em que cantávamos todos de preto, (camisola decote em V, saia e meias e eles, camisola de gola alta e calças) e usávamos a capa apenas para combater o frio, mas, em Beja, logo no ano após o 25 de abril, nem saíram à luz do dia e mesmo assim fomos vaiados. Andar a estudar era sinónimo de ser fascista. “Ide trabalhar! A terra a quem a trabalha!” Retomando o fio à meada. Naquele ano voou a tranquilidade com as notas a transformarem-se em ap-

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tos e posteriormente em 10, mesmo que se tivesse tido um 19 na altura. Na minha Faculdade, fizeram a média das frequências positivas das cadeiras que já as tinham realizado e atribuíram essa nota às restantes. Uma maravilha, não? Pior ainda, vimos alunos que nunca tinham frequentado a Faculdade, fosse ela qual fosse, com o ano oferecido de bandeja e muitos acabaram assim os cursos em que faltavam as cadeiras de precedência ou os cadeirões que apenas meia dúzia fazia e os outros iam tentando ao longo do curso. Mais tarde, pagou-se cara a brincadeira, quando as ofertas de emprego nos jornais diziam claramente “Precisase de engenheiro, de licenciado em… que não tenha concluído o curso entre 1975 e 1980”. Foi mais tarde que despertei para o que a ditadura fizera ao país, sonegando informações do que se passava lá fora, principalmente nos Estados Unidos, e compreendi a revolta liderada pelos estudantes desde 1968, (seguindo o “maio francês”) ano em que o professor Oliveira Salazar foi exonerado e o governo entregue ao professor Marcelo Caetano, que prometeu “renovação na continuidade”, num Portugal que continuava em ditadura e em guerra colonial desde 1961, com protestos contra essa guerra e contra a Guerra do Vietname, e a tropa obrigatória (e as mensagens dos soldados no Natal) e os milhares que perderam a vida nesses confrontos em Angola, Moçambique, Guiné…e as notícias que iam sendo difundidas de forma metaforizada para passarem na Censura. Foi nessa altura que compreendi o porquê do Canto IX dos Lusíadas (a Ilha dos Amores) estar cortado nos livros dos alunos e de haver livros proibidos como “Os Maias” e “O Crime do Padre Amaro” de Eça de Queiroz, e muitos outros em prol de uma moral “subvertida, doentia e estupidificante”. E as regras fizeramse para ser quebradas, mesmo então, pois a Madre Isabel, uma freira e professora de Religião e Moral, deu o aparelho reprodutor feminino (que não constava nem podia ser mencionado nos livros de Ciências - os meninos vinham de Paris ou de cegonha), porque era pecado falar-se do corpo quanto mais mostrar-se (as batas tinham de ficar por baixo do joelho!) e nos falou de toda uma panóplia de assuntos que, se tivessem caído nos ouvidos da reitora, a tinham prendido por atentado ao pudor ou outro crime bem mais cabeludo encontrado pela Polícia Internacional de Defesa do Estado. Lembro-me de uma série de proibições, completamente idiotas, mas que, formatados (?) pelo sistema aceitávamos. As meninas usarem calças, que começou em 1970, foi um bico de obra. O Liceu Carolina Michaelis (e não só) proibiu-as, porque só as mulheres da vida as usavam. Foi preciso que as mães se impusessem para que a regra fosse abolida no fim do ano letivo, andava eu no 6. º ano do liceu, ou seja, por volta de 1973. Lembro-me dos saraus de ginástica em que todos os liceus, escolas industriais e comerciais escolhiam um grupo de alunos para, nos estádios de futebol, fazerem ginástica sincronizada com bolas, fitas, arcos…

cumprindo um esquema recebido e apenas ensaiado duas ou três vezes na véspera para comemorar o Dia de Camões, de Portugal e da Raça. Lembro-me de ter pertencido à Mocidade Portuguesa (que existiu de 1936 a 1974), no meu caso Mocidade Portuguesa Feminina, criada à imagem de outras ditaduras europeias, e lamentar não me fardar pois os rapazes vestiam a farda verde com o célebre cinto que tinha um S na fivela e que todos silabávamos em segredo (Sociedade Socialista Soviética Sem Salazar Saber. Se Salazar Soubesse Seria Sério Sarilho) e iam ao sábado para o liceu fazer atividades: uma espécie de instrução militar- marchar, aprender o alfabeto com bandeiras, ginástica, natação (O Liceu Nacional Manuel II era o único que tinha piscina), aulas teóricas de cidadania e o Hino da Mocidade escrito por Mário Beirão em 1937 “Lá vamos cantando e rindo/ levados, levados sim/ pela voz do som tremendo/ das tubas, clamor sem fim”... Foi quando preparava este meu depoimento que percebi porque é que o hino que ainda hoje sei de cor não é o acima mencionado. É que o Hino da Mocidade Feminina era diferente “Mocidade Lusitana/ herdeira de Portugal, / esta história nos foi dada/ para ser por nós guardada…” E a Mocidade editava revistas de BD - e lembro-me da Fagulha, a revista feminina. Até nas publicações da Mocidade havia diferenças de género.

Depois do 25 de Abril… Lembro-me da Faculdade transformada em liceu, com obrigatoriedade de assistência às aulas e assinaturas. Lembro-me dos professores universitários se vingarem nos alunos de algumas das liberdades que porventura tivessem desaparecido. Lembro-me de os alunos recusarem as aulas nos liceus e de terem feito a vida negra aos professores (no Garcia da Orta, um dia, a turma recebeu a professora sem calças nem cuecas) porque havia liberdade e de os professores se reformarem em massa. Lembro-me de ter descoberto, quando o meu pai faleceu, a licença que ele tinha de tirar para ter isqueiro a gás, para ter rádio, para ter televisão. Lembro-me da quebra total das regras, deixando de haver regulamentos e bom senso. Lembrome de, no meu 5º ano da Faculdade, se retomarem as praxes, a Queima das Fitas nos Clérigos, a Serenata na Sé, o Cortejo que já mencionei… Lembro-me de a luta dos Capitães de Abril para garantirem a liberdade ao povo maltratado e escravizado de repente quase virar de rumo e quase descambar em uma ditadura da extrema-esquerda. Depois a vida seguiu o seu rumo e a liberdade foi-se transformando e sendo sinónimo de acabar com tudo que o governo anterior tivesse realizado porque de cor contrária, sem se fazerem avaliações e sem se racionalizar. E a Educação foi a que mais bofetadas apanhou. O que era hoje já o não era amanhã. E eu que andei de cravo ao peito e fui delegada sindical da minha escola pelo SPN, sindicato ligado à FENPROF, durante vinte anos ou mais, comecei a ver que nada havia verdadeiramente mudado a não ser a

liberdade de expressão. Essa existia e existe de tal modo que hoje se insulta quem quer que seja publicamente e fica-se impune. Fazem-se afirmações sensacionalistas para se venderem jornais sem se verificarem as fontes ou a veracidade das mesmas. Os políticos, infelizmente na sua maioria, são corruptos e enriquecem à custa de quem os elege, principalmente dos funcionários públicos que têm de tapar os buracos… os buracões dos orçamentos, não se exigindo responsabilidades. Rouba-se às claras centenas de milhares de milhões e os culpados ou permanecem em liberdade em processos no tribunal que se arrastam por anos e anos… ou são presos em cadeias, autênticos hotéis de luxo de cinco estrelas. Desgraçados continuam a ser os que roubam centenas de euros para comer, porque há fome e muita, isso não mudou, ou para alimentarem o vício, a droga que também cá entrou com a liberdade. Se chegou até aqui, está horrorizado como eu, porque das duas uma: ou eu sou uma grande fascista e andei a enganar todo o mundo, porque por onde passei antes de chegar às Taipas fiquei conotada como sendo da extrema-esquerda, ou então, Deus nos salve, resta muito pouco do 25 de Abril, aquela Revolução dos Cravos que nos devia ter trazido a liberdade e nos trouxe a libertinagem, o roubo descarado e alguns partidos de que nem é bom falar… Serei a única a fazer uma análise tão “deprimente” do 25 de Abril? É que eu vivi-o na pele e os deputados que agora elegemos (grande parte deles) só aprenderam a revolução nos livros, no que está na Internet e no que ouviram dizer. E alguns nem isso. Os atuais ativos nos partidos falam do que não sabem, da doutrina que recebem. Houve muita coisa má na ditadura, sem dúvida, mas os cofres do Estado estavam cheios. Hoje estamos cheios de dívidas e, como os nossos ministros são quem mais rouba (desculpem-me os sérios que se contam pelos dedos!), andamos com uma mão à frente e outra atrás.

“Deus, Pátria e Família” eram os ideais que nos norteavam. Deus desapareceu, porque o estado é laico, dizem. Porém, não aparece em lado nenhum da Constituição de 1976 essa afirmação, pelo contrário, apenas se afirma no seu artigo 43º «O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.» Mas essa “verdade” foi propalada num estado que continua a ser católico e a ter pausas letivas no Natal e na Páscoa, não vamos mais longe, dois dos principais momentos da Sua vida: o nascimento e a morte e ressurreição. O significado de pátria (a terra natal ou adotiva de um ser humano, que se sente ligado por vínculos afetivos, culturais, valores e história) desapareceu e com ele o ser patriótico. Eu sou-o, porque penso pela minha cabeça e sou exigente com os outros e comigo e não me considero superior a ninguém. Ser patrióti-

ca significa aceitar a pluralidade e o que é português. Se eu quero o melhor para o meu país, então procuremos sinergias que nos permitam melhorar este cantinho à beira-mar plantado que tão bem foi cantado por Camões. Ser patriótica é ter um sonho de que a vida é uma constante mudança e cantar com Manuel Freire a Pedra Filosofal de António Gedeão “Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida, tão concreta e definida como outra coisa qualquer…” Ser patriótica é amar a bandeira nacional e ter orgulho em ser portuguesa, apesar dos erros do passado e dos trambolhões do presente, é aceitar que a mudança nem sempre é positiva. Quanto à Família é melhor nem falar, porque os jovens de hoje desrespeitam os adultos (com muitas e honrosas exceções) a começar pelos próprios pais que se abstêm e solicitam à escola, com a mão direita, que os ajude a educá-los por se considerarem incapazes de o fazer e depois, com a esquerda, a desautorizam negando-lhe a possibilidade de ajuda. Onde errámos? Não sei. Uma coisa é certa. A minha geração não soube educar, porque deu tudo de mão beijada aos meninos e estes também falharam como educadores porque lhes foi sonegado o modelo a seguir que deveríamos ter sido nós. As revoluções são como as latas de feijão. Os de cima e os de baixo mudam, os que estão no meio ficam iguais. Eu, como sempre estive no meio, era e sou da classe média, fiquei igual e, com o decorrer dos tempos, como funcionária pública, fui piorando. Quem me dera receber o ordenado que recebia em 2000 e mais não digo. Mas, pelos vistos, pertenço a uma família que não baixa a cerviz nem a uns nem a outros, razão porque nunca me partidarizei. Comigo, não há voto partidário, há voto pessoal. Sou livre para dizer bem ou mal deles todos. Quando a minha mãe faleceu (hoje teria 100 anos!) soube que ela, obrigada a pertencer à Ordem dos Farmacêuticos para exercer, foi uma das primeiras a inscrever-se no Sindicato dos Farmacêuticos, antes do 25 de abril e não autorizado pelo governo. E, na vila de Caldas das Taipas onde praticamente moro há 40 anos, já fui há muito tempo convidada para liderar a lista do CDS para as eleições, fui contactada pelo líder do concelho de Guimarães para ser a cabeça de lista pelo PSD, soube que o meu nome foi lançado para a discussão pela CDU e, embora nunca fosse convidada pelo PS para nenhuma lista, participei num debate por eles realizado em que fui uma das cinco mulheres convidadas e dei uma mão numa exposição de mulheres que se tivessem demarcado nas Taipas no Centro Comercial Passerelle não vai há muitos anos. Muito sinceramente, acho que os Capitães de Abril e os grandes lutadores da liberdade –Álvaro Cunhal, Mário Soares, Sá Carneiro- devem andar às voltas nos túmulos a verem toda esta democracia que

acabou numa pseudoliberdade, em que os governos se sucedem sem respeitarem nada nem ninguém e, hoje como ontem, há quem esteja muito mal e passe fome e não tenha emprego e até seja convidado a emigrar para arranjar emprego… não me estou a referir à maldita pandemia que ainda veio dar uma ajuda. Se todos estes desabafos são sinónimo de que sou fascista, então sê-lo-ei de cravo ao peito como no primeiro dia sem ter enxovalhado nem a democracia nem o meu país.

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