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Bem prega Frei Tomás

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Obrigado Francisca

Obrigado Francisca

Franklim Fernandes entrevistaseouvidos@gmail.com

“Fazei o que ele diz, não façais o que ele faz” é rifão antigo, mas de uma gritante atualidade na panorâmica social em que vivemos, tão frequentes são as situações de incoerência entre o discurso e a prática com que diariamente nos confrontamos, entre o que se proclama para fora e a realidade de uma vivência antagónica. A sociedade está repleta de exemplos em que a letra não bate com a careta nem a bota com a perdigota. Apesar disso, vamos vivendo alegremente o nosso egoísmo sem que estas distorções de caráter melindrem ou inquietem a nossa consciência convivendo com um doentio narcisismo que merece o vómito de quem nos rodeia. Dizer e não fazer é a absoluta negação da personalidade e uma manifestação de falsa superioridade moral que pretende impor aos outros o que não serve para si próprio, desobrigando-se de regras cujo cumprimento lhes exige com toda a veemência. Veio-me à memória uma história de um padre do século passado que, tendo-se esquecido da determinação do quarto mandamento da Santa Madre Igreja, mandou preparar um nutrido leitão para devorar no almoço da confessada do segundo mandamento, em Sexta-feira Santa. Antes de começar o lauto repasto, um dos abades comensais, algo escrupuloso e de consciência mais sensível, chamou a atenção para o ilícito que todos iriam cometer. Respondeu o prior anfitrião: - “Maior pecado seria lançar aos porcos tão saboroso e delicado manjar. Por isso os meus reverendos colegas não tenham escrúpulos e deixem para mim o ónus moral deste pecadilho do qual me penitenciarei no final perante um de vós, com profunda dor de coração e propósito firme de emenda. E, afinal, este desvio é como a minha burra: anda de ano e no resto do tempo vazia e leve. Comei e que vos faça bom proveito, que bem o mereceis depois de terdes testemunhado uma manhã inteira os desvios deste povo que vive em permanente violação dos deveres do sétimo sacramento”. E assim definitivamente serenada a voz interior que, embora timidamente, apontava a dupla e mortal contravenção à lei do jejum e da abstinência, os comensais serviram-se como abades após o que, tresandando a bagaço, arrotando e bocejando, afogueados e de batina aberta, todos foram digerir o banquete em pachorrenta cavaqueira pelas alamedas do passal. Outro exemplo da falta de rigor entre a palavra e a ação é plasmado nesta outra parábola que refere

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que um padre, invetivando desde o púlpito os fiéis que, em contravenção ao primeiro mandamento da Igreja, teimavam em colher ao domingo a azeitona, ameaçava com as labaredas do inferno aqueles que não de abstinham de trabalhos servis nos dias santificados. “Tomai nota - pregava o distinto orador sagrado –que Deus deu ao homem seis dias para trabalhar guardando para Si apenas um que o homem deve respeitar para Sua glória. Guardai-o como sagrado, que os caldeirões do inferno são alimentados com o azeite das ripadas do domingo”. Ora, aconteceu que o padre herdou de um parente um lagar de azeite. Do ambão passou a admoestar os que, por manifesta falta de tempo, deixavam apodrecer a azeitona: -“Deus criou o homem e dispôs para o seu serviço todas as coisas boas da Natureza. É grande pecado, apenas expiado eternamente nas profundas do inferno, em caldeirões de azeite a ferver, esbanjar os frutos que Deus lhe deu. Tendes vós de colher a azeitona da qual deriva a luz que arde perenemente na lamparina do Sacrário. E se achais que seis dias não são suficientes, aproveitai o domingo para ripar o fruto da árvore da paz que não pode ser desperdiçado. Se doze horas do dia não chegam, de noite também é dia, e assim vos mantereis afastados das tentações de outras “ripadas” que deixarão marcas na harmonia familiar e na saúde do corpo e da alma”. Destes exemplos de contradição proveio o rifão de que fizemos título. E quem terá sido este frei Tomás, celebrizado pela incoerência entre o mandar e o fazer que deambulou, peregrino, neste vale de lágrimas? Por intermédio do meu amigo Óscar Barros, chegou-me à mão um exemplar do ALMANAQUE DE SANTO ANTÓNIO, no seu vigésimo sexto ano de publicação, de 1924, edição da empresa do “Boletim Mensal”, de Braga. Passo a transcrever, na íntegra, as suas páginas 255 e 256, quedando-me por aqui no texto de autor. O resto é do Almanaque.

FREI TOMÁS – Fazei o que êle diz, e não façais o que êle faz.

“Mal sabem os leitores que o rifão tão sabido tem por autor, em parte, um autêntico frei Tomás, por sinal eminente pregador português, e em parte um fidalgo, provavelmente abespinhado com os seus sermões. Nasceu em Ponte de Lima aí pelo ano de 1530, filho natural de Manuel de Magalhães, morgado da Fonte Arcada. Entrou para a Ordem Dominicana, vestindo o hábito no convento de S. Domingos, em Lisboa, para onde foi ainda muito novo.

Frei Tomás de Sousa, pois assim se chamava, mal ordenado consagrou-se ao púlpito, revelando-se desde logo insigne orador. Alcançou tal fama o seu talento que El-Rei D- Sebastião nomeou-o pregador régio, e a rainha D. Catarina escolheu-o para seu confessor. Quis o bom frade aproveitar a sua influência na Côrte para corrigir com liberdade apostólica os vícios tão asados aos paços reais. Um fidalgo, cujo nome a história não regista, mas provavelmente ferido nalguma mazela pelo pregador do Rei, prega-lhe à porta um papel com este lembrete:

“Aqui mora frei Tomás, que bem o diz e mal o faz”. O padre viu, leu e não se incomodou. Apenas lhe escreveu o seguinte:

“Fazei vós o que êle diz, e não façais o que êle faz”. E foi-se embora. A corte aplaudiu a boa saída do frade. O cardial D. Henrique é que não gostava dele. Anulou a eleição que o elegera para Provincial, em 1578. O seu patrício Diogo Bernardes no seu Lima fala dele:

Divino preceptor da lei divina Tomás, que ao grão Tomás vai imitando, Na vida, na lição e na doutrina.

Que duro coração, que ânimo fero Te poderá ouvir que não se abrande! Eu já desde que te ouvi, só isso quero.

O soberbo em seus mandos se desmande; Descubra o cobiçoso novas minas. Cada um a seu gosto viva e ande.

É esta porventura a lei que ensinas? Não mostrar tu ser tudo só vaidade Fora do amor do céu, em que te afinas?

Bem pregas a verdade da Verdade, Bem verdades guardam quanto pregas Se olhas sempre em Deus, sempre à vontade.

Frei Tomás não deixou de si maior fama. Morreu ignorado na sua ignorada cela. Mas anda em provérbio. Ficou mortal”.

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