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Democracia Rima com Cidadania
from OsmusikéCadernos 2
by osmusike
Gabriela Nunes, Associação para o Desenvolvimento das Comunidades Locais (ADCL) gabrielanunes@sapo.pt
“Democracy is the worst form of government, except for all the others” Winston Churchill
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Escrever sobre Abril, Liberdade e os enredos profissionais que abraço em Guimarães é um desafio hercúleo para escassas linhas. Restam-me breves pensamentos de afirmação de um tempo em que cresci, contemporânea de mudanças e direitos sociais que me orgulham. Nas palavras de tantos que cantam a história e o tempo, passado ou futuro, que honram o passado e redefinem o futuro com novos sentidos, me suporto e defendo este Abril, onde me encontro e revejo e viso honrar o convite da Associação Osmusiké – Associação Cultural e Artística do CFFH, com um percurso reconhecido e sustentado de formação, investigação e criação artística. Se retrocedêssemos no tempo, até antes do 25 de Abril de 1974, não reconheceríamos Portugal. Sem liberdade. Sem democracia. Sem paz. A Constituição não garantia o direito dos cidadãos à educação, à saúde, ao trabalho e à habitação. Sem direito de reunião e de livre associação, as manifestações eram proibidas. A atividade política e associativa era escassa e controlada. A informação e as formas de expressão cultural eram censuradas. Portugal perpetuava a guerra colonial, particularmente isolado na comunidade internacional. Não reconheceríamos Portugal! Não reconheceríamos Guimarães! Com a implantação de um regime democrático, após a revolução de Abril, Portugal abraça múltiplos desafios para a construção de uma sociedade mais justa e em que o bem-comum se impõe aos interesses particulares e corporativos. Neste Abril, a construção de um estado de bem-estar, ainda que tardiamente por comparação com muitas outras sociedades europeias, torna-se um imperativo democrático. A saúde, a educação e a proteção social tornam-se pilares fundamentais deste estado de bem-estar. Portugal inicia, então, um processo firme, mas longo, de regeneração de uma sociedade autocrática, fechada sobre si mesma, iletrada, desigual no acesso aos cuidados de saúde mais básicos e em que a pobreza era o único horizonte material de vida para a generalidade dos portugueses. Nas palavras simples cantadas e maiores
de Zeca em Menino do Bairro Negro: “Onde não há pão, não há sossego”34 . Muitos de nós não tem qualquer memória vivenciada desse tempo. Mas, a história não engana. Eu, como a maioria, também não tenho memória, mental ou física, das agruras vividas pelos nossos “egrégios avós” durante, pelo menos, meio século do Estado Novo. Mas todos nós, no seio das nossas famílias, conhecemos as histórias sobre: a guerra; a “meia sardinha” para cada um; a esperança de “fazer quartaclasse”; o trabalho infantil; a falta de cuidados de saúde, que condenavam à morte muitas crianças; o medo de falar; os livros proibidos e assim por diante. O Estado-Novo, por definição, era um regime autocrático que preconizava a existência de um assistencialismo corporativo restritivo e de base caritativa, com critérios ético-religiosos ou sociopolíticos na organização e na concessão de recursos35 (Joaquim, 2015). Esta matriz de destituição social e de indigência material serviria a alguns, certamente, mas não servia o bemcomum. Guardo na memória as canções de Abril, aquelas em que nasci e que inocentemente cantava, inspiradas na liberdade e na esperança democrática, porque “a cantiga é uma arma”36 (José Mário Branco). No colo da minha mãe, quando ouvia qualquer acorde, mesmo que na missa, só a letra da canção de Ermelinda Duarte “Somos Livres” de uma gaivota “voava, voava, asas de vento, coração de mar. Como ela somos livres, somos livres de voar!”37 me ocorria e cantava. Cantava alto, convicta e sobrepunha ingenuamente às outras vozes, sobre o pedido maternal de silêncio e os olhares surpresos e sorridentes em redor, complacentes com a idade inocente, por ventura presságio de novas infâncias e vivências. Hoje, tenho a memória vivida e clara sobre os avanços nos direitos sociais e na proteção social, pós 25 de Abril de 1974, pois enformam a minha vida pessoal, mas também profissional, com quase um quartel de século, sobretudo na Associação para o Desenvolvimento das Comunidades Locais (ADCL). Sou já filha da escola pública, que generalizou o ensino e o acesso ao conhecimento e à qualificação, do serviço nacional de saúde que nos auxilia na doença e acompanha-nos por toda a vida, e de um sistema de proteção e segurança social que promove uma redistribuição mais equitativa dos rendimentos, construindo uma “safety net” preventiva da pobreza e da exclusão social. A cidadania é o único critério para o acesso à escola pública, ao serviço nacional de saúde e à proteção social e não a pertença a uma qualquer elite predestinada.
34 “O Menino do Bairro Negro”, uma das mais belas baladas de Zeca Afonso, editada 1963 na EP Baladas de Coimbra. 35 Cf. Joaquim, Cláudia (2015) “Proteção social, terceiro sector e equipamentos sociais: que modelo para Portugal”, in os Cadernos do Observatório, CES, Universidade de Coimbra. 36 “A Cantiga é uma Arma”, composta por José Mário Branco, em 1973, durante o seu exílio em França. 37 “Somos Livres (a gaivota voava, voava) ”, uma das mais populares músicas de revolução de Abril, escrita e interpretada por Ermelinda Duarte.
Proliferam associações de âmbito social, associações juvenis e de estudantes, associações ambientais, associações culturais, associações de moradores, associações de pais, entre muitas outras. Como refere Cláudia Joaquim (2015:34): “O Estado abandonou o papel supletivo que vinha a adotar até então no domínio da assistência social, e assumiu o seu intervencionismo em matéria de solidariedade social, tendo inclusive clarificado o papel das Instituições Particulares de Solidariedade Social no sistema de segurança social”38 . Com a alteração do paradigma a proteção social foi enquadrada pelo sistema de segurança social o qual engloba três subsistemas: 1) o de proteção social; 2) o previdencial; e 3) o complementar39 .
Sob o símbolo dos cravos e com os sons de Abril, que lembram que “o povo é quem mais ordena”40 , a cidadania, o acesso à proteção social, à saúde, à cultura e à educação vieram melhorar as condições de vida, potenciar o acesso a oportunidades sociais e profissionais, ao conhecimento e à fruição de bens culturais, e desenvolver competências valorizadas profissionalmente. Define o artigo primeiro da Constituição da Republica Portuguesa: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.”41 Em Guimarães, cidade que escolhi para viver, Abril pulsa. E a democracia rima com cidadania. Nas ruas e praças, nas escolas, nas múltiplas associações e instituições, nas respostas sociais e de saúde e no reforço dos apoios sociais. Mesmo nas zonas mais inusitadas. Entre o património e a história que a Cidade e os Vimaranenses tanto se orgulham, assumem-se os desafios da contempo-

38 Joaquim, Cláudia, ibidem p 34. 39 O primeiro visa o direito a mínimos vitais por parte dos cidadãos em situação de carência económica e a igualdade de oportunidades, bem como o bem-estar e a coesão social, prevenindo e erradicando as situações de pobreza e de exclusão, bem como a compensação por encargos familiares. O segundo, a componente contributiva do Sistema de Segurança Social, assente no princípio de solidariedade de base profissional, visa garantir prestações substitutivas de rendimentos do trabalho. O terceiro engloba regimes de capitalização, de natureza pública e privada, com carácter facultativa e voluntária (Lei de bases gerais do sistema da Segurança Social). Cf. Decreto-Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro. As bases gerais do sistema de segurança social. 40 A canção “Grândola, Vila Morena”, de Zeca Afonso, talvez a mais icónica de Abril incluída no álbum Cantigas de Maio de 1971. 41 Artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa.
raneidade e valoriza-se a vitalidade associativa, criativa e cultural, a solidariedade, a cidadania e o bemcomum. Hoje, por imperativo de saúde pública, não podemos viver a cidade como desejamos e a sentimos. Mas, perante os desafios, permanece e até se agiganta, de formas mais ou menos inovadoras e criativas, a vivacidade das gentes e das instituições e o espírito cívico e democrata. Na ADCL, onde trabalho, que se desdobra em serviços, respostas e projetos sociais, comunitários, formativos e culturais ou, n’ Osmusiké, onde se canta, se dá cor e representa a cidade, o seu património, a sua cultura, as suas gentes, a infância e o conhecimento, perpetuam-se as conquistas de Abril. Mas este percurso não é linear: é feito de avanços, recuos e de ajustes que, democraticamente, se vão operando. Se é inegável que se vive melhor, há ainda um longo caminho a fazer. Mais, importa estar atento, muito atento e perceber que é responsabilidade de todos, pela democracia e pela liberdade, defender estes avanços democráticos e direitos sociais, promovendo outros, sobretudo contra preceitos obscurantistas travestidos de mitos e falsidades. Num contexto de democracia resiliente e madura, sejamos capazes de ultrapassar os novos e grandes desafios que se erguem, exacerbados por uma pandemia e consequente crise social, económica e financeira. Como referiu o Papa Francisco “Cada dia é-nos oferecida uma nova oportunidade, uma etapa nova. Não devemos esperar tudo daqueles que nos governam; seria infantil. Gozamos dum espaço de corresponsabilidade capaz de iniciar e gerar novos processos e transformações.”42
42 Francisco (2020) “Fratelli Tutti: Carta Encíclica sobre a Fraternidade e a Amizade Social”, Paulinas Editora, Lisboa, pp 48 a 49.