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25 de Abril Aquela velha e teimosa senhora chamada Utopia
from OsmusikéCadernos 2
by osmusike
António Mota6 mota.antonio.mr@gmail.com
Ao Coronel Rui Guimarães e ao Dr. Jorge Nascimento Silva, em reconhecimento e homenagem.
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1.
Ensinaram-me, ainda menino, nos bancos da escola, um certo sentido épico da História de Portugal. Daí, talvez, este meu arreigado apego à terra e ao povo a que pertenço. Para mal dos meus pecados, pertenço à raça daqueles que não concebem viver sem a sua terra e sem a sua gente. Trazem-nas no peito. E com elas a dor de quem muito exige, porque muito lhes quer - até aos limiares da injustiça, que é o exigir transfigurações a quem não sabe, não quer, ou não pode dar mais.
Esse sentido épico mantém-se e reforça-se criticamente com escritores que me fascinam e me apaixonam: Fernão Lopes, Camões, Vieira, Antero, Herculano, Aquilino, Jorge de Sena, Torga. Também Pessoa, na Mensagem. Em todos eles ressuma uma tensão épica, utópica e mítica que, a um tempo, me seduz e magoa. O mesmo direi daquele 25 de Abril, já quase só mito, onde pulsou o fogo da alma que alimenta a vida.
Foi a 25 de Abril. Poderia ter sido noutro dia qualquer. Mas foi a 25. A mudança era inevitável. O regi-
6 António Mota, natural da Portela das Cabras, Vila Verde, Braga. Tem uma forte ligação afectiva a Guimarães, onde, dos 10 aos 14 anos estudou, no seminário do Verbo Divino, na Costa e na Madre de Deus, tendo feito o antigo 4º ano no Liceu de Guimarães. Estudou na faculdade de Direito de Coimbra, e na UM (Universidade do Minho). Professor de Língua e Literatura Portuguesa, dedica-se hoje à escrita de intervenção crítica e literária. Foi Alferes Miliciano, em Braga, no RI8, no 25 de Abril, juntamente com o também, então, Alferes Miliciano, Jorge do Nascimento Silva, hoje professor universitário, amigos de mútua confiança e cumplicidade, bem necessária nesses tempos de resistência nada fácil. Ambos tiveram por Comandante de Companhia o, então, Capitão Rui Guimarães, também de Guimarães, hoje Coronel, o homem forte do 25 de Abril, no Regimento de Braga, e não só. Dedica o autor o presente texto ao Coronel Rui Guimarães e ao Dr. Jorge do Nascimento Silva, em reconhecimento e amizade, e em homenagem.
me fascista era uma maçã bichosa. Podre. Incapaz de se suster. Qualquer aragem a faria cair. E fez. Estava tudo cansado e descrente. Mesmo os indiferentes. Mesmo os ignorantes. Mesmo os colaboracionistas e os "bufos". Todos sabiam que a queda do fascismo era iminente. Caiu a 25 de Abril. Sonhos secretos explodiram, contagiando tudo e todos. Rebentou-se o calendário parado num tempo que nos abafava. Acabou o pesadelo castrante da ridícula ditadura que nos mantinha isolados e imóveis numa Idade Média fora do tempo. Reencontrámos o nosso tempo. Recuperámos o nosso orgulho de pátria. Reconciliámo-nos todos numa esperançosa bebedeira de vida. Fomos actores de primeira nos palcos da rua. E, numa alegria épica de povo, pintámos tudo de cores garridas, e inventámos um mito. Demos-lhe um nome - 25 de Abril.
2. A história, porém, não se faz num só dia. Mas há dias que fazem história, por consubstanciarem ideais que longa e sofridamente esperaram para florir. Foi o que aconteceu a 25 de Abril de 1974, neste país isolado, ofendido e humilhado, onde as espingardas floriram em cravos. Mas esse dia, que hoje é mito, não se descomprimiu abruptamente do nada, por capricho dos deuses. Nasceu de gestos e de atitudes de homens e de mulheres que ousaram sonhar e que ousaram erguer a voz contra a ditadura, pela liberdade, numa resistência de muitos e longos anos. Foi o caso de Humberto Delgado, e de todos quantos o acompanharam no desafio à ditadura nas eleições presidenciais de 1958, cujo combate por um regime democrático abriu brechas na suposta solidez absoluta do Estado Novo, e mostrou que a conquista da liberdade exige coragem, determinação e ousadia. Foi também o caso de muitos outros, em associações clandestinas, em associações “toleradas”, em gestos de coragem individual. Todos eles deram passos decisivos para que se criasse aos poucos uma nova mentalidade e uma nova cultura política, ao recusarem ser escravos do medo, pagando, embora, um preço muito elevado – a discriminação, a perseguição, a prisão, e até a morte. Associar, pois, todos esses homens e mulheres, e o eco positivo da sua luta pela liberdade, com o 25 de Abril de 1974, afigura-se-me não só lógico, como justo, dada a sua acção precursora pelo derrube da ditadura e pela instauração de um regime democrático. Dizer isto não é apoucar os homens de Abril, mas sim mostrar a consequência histórica da razão do seu nobre gesto e, deste modo, dignificá-los mais, não deixando que o 25 de Abril se confunda com uma mera acção corporativista, militarista, desgarrada e voluntarista, sem ligações profundas com a história e com a alma de um povo. Na verdade, e sem deixar de reconhecer alguns dos chamados homens de Abril, e
lhes prestar homenagem pela grande coragem que demonstraram, outros heróis há que os precederam: os que longamente resistiram, os que não desistiram, os que se sacrificaram, os que morreram.
3. No 25 de Abril, o verdadeiro herói foi colectivo. Como em Fernão Lopes. Para legitimarem o Mestre. Foi o povo que, com a sua acção transfiguradora, épica e utópica, legitimou o golpe militar de Abril. Cada vez se vai falando menos desse povo na rua, marginalizando a sua acção, e não lhe dando a relevância histórica que por direito tem. Nas comemorações oficiais e nacionais do 25 de Abril vê-se bem essa marginalização. Elas primam, regra geral, pela ostentação da pompa, da circunstância e do alarido, aliando a sua efemeridade a um sensacionalismo promotor dos celebrantes, à custa do apagamento da importância do acto celebrado, naquilo que ele tem de histórico, sociológico e politicamente sério. Nessas comemorações, promovem-se uns e esquecem-se outros, de acordo com as conveniências, as circunstâncias e as simpatias. Fazem-se listas de quem é e de quem não é de Abril; de quem é e de quem não é herói. Este jogo chega a atingir os limites do brincar com a memória crítica de quem viveu os acontecimentos, tentando reescrever a história, mutilando-a. E é por isso que os oficiosamente identificados como heróis de Abril, vítimas muitas vezes de si próprios, e destas vicissitudes, vão aparecendo como heróis sem a consistência necessária para serem tais. O povo, esse não cabe, nem poderia caber, nas listas. Deixou o palco da rua e os celebrantes subiram aos palanques das comemorações decorativas e do elogio fácil. Do elogio fútil. Do elogio mútuo, onde cabe tudo. Assim, as comemorações foram perdendo o espírito de Abril, restando-lhes quase só o simulacro. Mas o que é que foi ou como é que foi verdadeiramente o 25 de Abril? Que resta dele? O que é que se perdeu e o que é que se ganhou? Como recuperar o seu sentido épico?
4. O 25 de Abril foi um golpe de Estado, conduzido por oficiais intermédios, os capitães, seguido de uma revolução popular, que os militares não previram nem tiveram condições de conter ou de controlar. Vitoriosos no golpe, os capitães não entregaram o poder aos generais, quebrando desse modo a cadeia de comando, e enfraquecendo drasticamente o poder político-militar, que não mais conseguiu conter os ventos da liberdade, à solta pelas ruas do país.
O povo saltou para a rua, e foi na rua que explodiram todas as tensões acumuladas na sociedade portuguesa, assistindo-se a uma enorme vaga de reivindicações sociais e políticas. Esse movimento popular discutia tudo, e tudo transformava num mar de esperanças, não aceitando outro limite que não fosse o sonho da criação imediata de um céu na terra. O poder político-militar, esse quase sempre seguia a reboque da acção empreendedora desse povo eufórico. O povo perdeu o medo, que respeito já não tinha, ao aparelho de repressão política do regime, cercou, assaltou e destruiu a PIDE, a Legião, a Mocidade Portuguesa e a União Nacional. Não pediu licença a ninguém e conquistou, na rua, sem que ninguém lhas tivesse oferecido, as liberdades de associação e de expressão a todos os níveis. E isto é que foi a revolução. Isto é que fez tremer todas as hierarquias instituídas, e ousou mesmo alterar radicalmente a relação de forças existente no plano salarial, das condições de trabalho, da segurança social, da contratação colectiva, das férias pagas, da liberdade de organização sindical, da justiça social, e questionou até a própria apropriação privada dos meios de produção. O que resta de tudo isto? Sabemos que muitas das conquistas de Abril foram traídas, derrotadas, subvertidas, abandonadas, principalmente com prejuízo, e isto é que dói, do mundo do trabalho, do mundo das preocupações sociais. Em alguns domínios, de recuo em recuo, foi-se perdendo tudo. E em muitos, que viveram esses acontecimentos, e neles participaram de forma activa, surgiu a tristeza, o desencanto, o abandono, a mágoa, o cinismo até. Foram-se embora, e a política ficou mais pobre sem eles. E continua cada vez mais pobre sem eles. E quase ninguém os veio substituir. Nem tudo foi em vão, porém. Muito do essencial foi-se. Permanece, porém, ainda algo a realçar e a ter em atenção, quer no domínio das liberdades conquistadas, quer no domínio dos direitos sociais (cada vez mais ameaçados) e políticos então alcançados, quer no desenvolvimento alcançado, quer na abertura ao mundo. Perdeu-se muito do 25 de Abril. E, nos tempos que correm, continua a perder-se muito do que se esperou, muito do que se sonhou, muito do que se conseguiu. Perdeu-se a ousadia, a coragem e a frontalidade; perdeu-se a motivação, a espontaneidade e a sinceridade; perdeu-se a vontade, os sentimentos e as ideias; perdeu-se a paixão; perdeu-se até a esperança e a utopia.
5. A revolução foi uma paixão, explosão de energias incontroladas e excessivas que nos encheram a alma. Mas, naturalmente, foram-se diluindo na normalização das instituições democráticas. Tudo entrou na normalidade. Tudo ficou normal. E hoje o normal tornou-se tão assepticamente normalzinho que já é in-
comodativo. Morreu a revolução. Morreu a paixão. Fugiu o sentido épico duma consciência de povo orgulhoso, crente e vivo. A paixão é sempre breve e tem de morrer, pois a sua beleza excessiva absorve-nos e vira-se contra nós. Mas esse tal sentido épico não. Deveríamos recuperá-lo, por amor á liberdade, à democracia, à participação, à consciência, à responsabilidade individual e colectiva. Sem ele, aproximamo-nos a passos largos do empobrecimento catastrófico de ideias, da diluição dos valores, da política reduzida a uma coutada de profissionais, cujos lugares se pagam ao preço da obediência e do silêncio. Precisamos de reencontrar esse sentido épico da acção como povo. A política precisa de voltar a ser vivida por todos. Se não com paixão, que não há como a primeira, pelo menos com o amor próprio que dignifica o homem no exercício das responsabilidades que lhe competem como ser. Só assim se evitará este adormecimento castrante e irresponsável, e se incentivará a fecundidade e a responsabilidade do livre pensamento, do espírito crítico e da memória crítica, cada vez mais necessários. Esta seria a melhor forma de honrar o sentido épico que nos vem da história, dos nossos melhores pensadores e do espírito de Abril. E o que deve dar ânimo a todos os que honradamente se bateram, ontem, e se batem, hoje, pela implantação, aprofundamento e dignificação permanente da democracia, continua a ser aquela velha e teimosa senhora, chamada utopia, e que dá também pelo nome de liberdade e de democracia, que nos deve guiar na construção de um mundo melhor para todos, com o empenho de todos e com a participação dignificante e consciente de todos. Só essa velha e teimosa senhora, chamada utopia, nos pode dar o fogo do ser. Porque a utopia é a alma de um povo. E um povo sem alma não é povo nem nada. Porque a utopia é a alma do homem. E um homem sem alma é um cadáver adiado. Seja a utopia nossa companheira. E a ousadia.