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Dia do Livro Português
from OsmusikéCadernos 2
by osmusike
Álvaro Nunes
No dia 26 de março celebrou-se o Dia do Livro Português, comemoração criada pela Sociedade Portuguesa de Autores com o intuito de destacar a importância do livro, do saber e da língua portuguesa em todo o mundo. A efeméride tem como referência o 26 de março de 1487, data em que se imprimiu o primeiro livro em Portugal, intitulado “Pentateuco”, editado em hebraico pelo judeu Gracon, na Vila-a-Dentro, em Faro. Porém, um livro cujo único exemplar, infelizmente, se encontra na Inglaterra, depois de ter sido pirateado por Francis Drake, quando este atacou e saqueou a capital algarvia, em 1587, antecipando o turismo de massas dos séculos XX e XXI. No entanto, dois anos mais tarde terá surgido “Confissom”, o primeiro livro cristão impresso, utilizando o sistema do alemão Johannes Gutenberg (1400-1468). Data, porém, de 4 de janeiro de 1497 o primeiro livro escrito em português, produzido pelo impressor luso Rodrigo Álvares, intitulado “Constituições que fez o Senhor Dom Diogo de Sousa, bispo do Porto”
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Assim, para evocar esta efeméride do Dia do Livro Português escolhemos a obra “Clepsidra” de Camilo Pessanha, por duas razões fundamentais: comemora-se o centenário da sua edição; e é um livro de poesia, o que permite também recordar o Dia Mundial da Poesia, memorado recentemente, em 21 de março, possibilitando matar dois coelhos de uma(só) cajadada! Por outro lado, esta escolha é pertinente, porquanto esta obra encontra-se inserida na lista dos 27
grandes livros portugueses33 .
33 27 Grandes Livros Portugueses - Os Lusíadas, Luís de Camões - Os Maias, Eça de Queirós - Amor de Perdição, Camilo Castelo Branco - Mensagem, Fernando Pessoa - Auto da Barca do Inferno, Gil Vicente - Memorial do Convento, José Saramago - Sermão de St. António aos Peixes, Padre António Vieira - Peregrinação, Fernão Mendes Pinto - As Pupilas do Senhor Reitor – Júlio Dinis - Bichos – Miguel Torga -Viagens na Minha Terra, Almeida Garrett - Aparição, Vergílio Ferreira - Rimas – Bocage - O Livro de Cesário Verde - Clepsidra, Camilo Pessanha - Gaibéus, Alves Redol - A Balada da Praia dos Cães, José Cardoso Pires - Mau Tempo no Canal, Vitorino Nemésio - AS Mãos e os Frutos, Eugénio de Andrade -A Sibila, Augustina Bessa Luís - Pena Capital, Mário Cesariny - O Medo, Al Berto . A Colher na Boca, Herberto Hélder - Felizmente há luar! Luís de Sttau Monteiro - Sinais de Fogo, Jorge de Sena - Charneca em Flor, Florbela Espanca - Poesia, Sophia de Mello Breyner Andresen É só escolher …
De facto, Camilo Pessanha (1867-1926), poeta nascido em Coimbra, já lá vão mais de 150 anos, está atualmente na berlinda, mercê da comemoração do centenário da obra “Clepsidra” (1920). Deste modo e a propósito das efemérides aludidas, recordamos aqui e agora este vate finissecular, que terá sido o expoente máximo do simbolismo português. Ora, Camilo Pessanha, formado em Direito, em 1891, viria a viver grande parte da sua vida em Macau, terra que geraria uma mudança radical da sua existência e onde acabaria por falecer. Com efeito, aí, no território macaense, exerceria funções no âmbito da justiça e ensino, bem como de conservador do registo predial, a que ajuntaria a profícua atividade como estudioso e tradutor da cultura chinesa que o deslumbra pela sua diversidade. Quanto à sua obra, inicialmente e esparsamente divulgada em revistas e jornais e, mais tarde, coligida no volume Clepsidra (1920), reflete acima de tudo um tom de angústia, desencanto e inquietação perante a efemeridade da vida, bem como uma marcante apologia e mística da dor, tal como Raúl Brandão.
Uma poesia melancólica e pessimista de uma mundividência marcada pela ótica da dolorosa da existência, como é por exemplo evidente no poema “Castelo de Óbidos”:
“O meu coração desce, Um balão apagado… Melhor fora que ardesse,
Nas Trevas, incendiado.”
Clepsidra, título da sua coletânea lírica que reúne a sua produção poética, aponta assim, enquanto instrumento de medição cronológico, através da água que mede o tempo, usado desde os ancestrais gregos, para esse fluir inexorável do tempo, impedindo que nada se fixe na retina e remetendo para a fragilidade da vida e da condição humana. Um negativismo e conflito existencial que o poema “Inscrição”, logo de início anuncia:
“Eu vi a luz em um país perdido. A minha alma é lânguida e inerme. Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído! No chão sumir-se, como faz um verme.”
Com efeito, considerado o mais importante representante do simbolismo português, Pessanha oferece-nos assim uma poesia em que a técnica impressionista é dominante, dotada de um cariz claramente cético e pessimista, embora não confessional, cuja temática mais relevante assenta na transitoriedade da vida, na mágoa e dor, no tédio e desilusão, no sono abúlico e mesmo na morte, patente no desejo de desaparecimento silencioso e infiltração no cosmos. Perpassa assim na sua poesia, uma evidente perceção da fugacidade e caducidade da vida e a dolorosa consciência de que a realidade não passa de imagens rápidas e passageiras e/ou sonhos transitórios evanescentes ou mesmo dúbios:
“Imagens que passais pela retina Dos meus olhos, porque não vos fixais? Que passais como a água cristalina Por uma fonte pra nunca mais !…
Ou para o lago escuro onde termina Vosso curso, silente de juncais, E o vago medo angustioso domina, - Porque ides sem mim, não me levais?
Sem vós o que são os meus olhos abertos? - O espelho inútil, meus olhos pagãos! Aridez de sucessivos desertos …
Fica sequer, sombra das minhas mãos, Flexão causal de meus dedos incertos, - Estranha sombra em movimentos vãos …
As imagens recorrentes do tempo, espelho e a água (como no soneto transcrito), o amor pelas paisagens outoniças e crepusculares, um certo distanciamento do real, assente na arte da sugestão e musicalidade, não só pela sonoridade dos versos como também pela sua ressonância interior, são com efeito algumas marcas simbolistas do poeta. Música que se expressa através de 3 instrumentos musicais: a flauta enquanto temporalidade suspensa; a viola relacionando-se com a solidão, e o violoncelo ligando-se a sentimentos de destruição, ruína e fragmentação.
De facto, “a arte de Camilo Pessanha é uma das mais elaboradas de toda a poesia portuguesa” – afirma Jorge Vaz de Carvalho, na edição do “Público” de 19 de março, que acrescenta:
“Colhe de Verlaine a musicalidade e o poder evocativo no depurado requinte das palavras, dos ritmos, das sonoridades, das imagens, no rigor dos versos ordenados em estruturas fixas, estrofes simétricas de metrificação e rima regulares, como água que flui sobre a rocha firme e em recipientes sólidos.” Relevante também a influência do simbolismo português, e de Pessanha em particular, na antecipação de alguns princípios das tendências modernistas, cujos principais representantes manifestariam alguma simpatia por esta nova corrente literária. Fernando Pessoa, por exemplo, endereçou-lhe uma carta elogiosa, com o seguinte teor: “(…) o meu pedido é que V. Exª. permitisse a inserção, em lugar de honra do terceiro número, de alguns dos seus admiráveis poemas (…) Nós não pedimos só por nós, mas por todos quantos amam a arte em Portugal” Como é óbvio, Pessoa referia-se à publicação de poemas de Camilo Pessanha na revista “Orpheu” (1915), que nunca seria editada, acabando estes por serem publicados na revista “Centauro”, em 1916.
Interessantes serão também as leituras dos sonetos do tríptico “Caminho”, bem como do poema a seguir apresentado, redigido aquando da morte da mãe, que pela sua polissemia poderá facultar interpretações diversas:
“Quem polui, quem rasgou os meus lençóis de linho. Onde esperei morrer – meus tão cansados lençóis? Do meu jardim exíguo os altos girassóis Quem foi que os arrancou e lançou no caminho?
Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!) A mesa de eu cear –tábua tosca, de pinho? E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho? - Da minha vinha o vinho acidulado e fresco …
Ó minha pobre mãe! … Não te ergas mais da cova Olha a noite, olha o vento. Em ruínas a casa nova … Dos meus ossos o lume a extinguir-se em breve.
Que dizer então das interrogações laceradas deste soneto? Um poema sobre o processo violento da destruição a que nada há que se lhe possa opor? A temática da recusa do passado, que a mãe simboliza e que simultaneamente em absoluta negatividade, prepara a abertura para a morte? Ou um poema de convocação da mãe e da dor sentida pela sua morte, que privou com o eu lírico da sua intimidade, presente nos símbolos de pureza que foram torpemente violados? Não cabe aqui e agora alongar mais esta dissertação sobre o poeta e/ou transcrever outros seus poemas como “Floriram por engano as rosas bravas”, “Singra o navio. Sob a água escura” ou “passou o Outono já, já torna o frio”, entre outros, que se sugere a leitura Efetivamente, importa sim (re)ler e recordar Camilo Pessanha, o mestre do simbolismo português, neste centenário de “Clepsidra”, no âmbito das concomitantes efemérides do Dia do Livro Português e Dia Mundial da Poesia.
Ademais porque, como diz José Fanha “a poesia é a língua materna da Humanidade” …