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A terra onde nascemos
from OsmusikéCadernos 2
by osmusike
Vergílio Vieira26 vergilioalbertovieira@sapo.pt
Imagem 26 – Capa do livro de Vergílio Alberto Vieira
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A terra onde nascemos
Fotografia | Rui Sousa D. Afonso Henriques |
João Cutileiro
Edição | Crescente Branco 2017
Técnico Gráfico | César Antunes
Execução Gráfica | Graficamares Lda.
Depósito Legal | 426470/17 Com todas, e nenhuma, se parecem as cidades a que chegámos, pela primeira vez, levados pela emoção, que o fio de ouro da memória trocou pelo enlevo que as contempla. O homem ignora que todas as cidades são a cidade, e passa adiante, depreciando a luz que as encanta. Acaso, não são as cidades o que existe em nós de cada uma? Guimarães, por exemplo. Sem qualquer razão, ninguém seria capaz de se apaixonar pela terra onde, há séculos, nascemos. Seja qual for o itinerário, que até ela leva o visitante, não há orago que a não proteja de invasor furtivo, que lhe saqueie o nome, ou lhe apoquente a alma. Por isso, forasteiro, que a visite, jamais levará da cidade o que não é dele, nem disporá de quanto lá ficou: se tanto foi, o muito que não teve; pouco, o tanto que perdeu. Para quem, vindo de longe, escolheu com tempo o plano da jornada, o castelo, qual sentinela, de atalaia sobre a mais alta colina da cidade, não teme que o conquistem. Mas o que reza a história desde o tempo em que Hermenegil-


26 Vergílio Alberto Vieira (1950, Amares, Braga) licenciou-se na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, tendo lecionado até 2009. Poeta, ficcionista e autor de livros para a infância, publicou pela primeira vez em 1971, com o título na margem do silêncio. Entre 1975 e 2000, foi crítico literário na revista África, no Jornal de Notícias, no Faro de Vigo e no semanário Expresso. Foi jurado em diversos prémios literários da APE, Pen Clube Português, Correntes d'Escritas, entre outros. Colaborou em inúmeras publicações e é cofundador da revista Delphica - Letras & Artes.
do e Mumadona mandaram levantar, pelo ano mil, torre e muralha, é o juramento que Vimaranes, segundo seus costumes e primores, nunca quebrou, sempre que o reboto, pelas armas, impunha a lei; e São Redanhas, pela fé, a salvação. Com o furor guerreiro da Reconquista cresceu o condado; com o condado, o jovem príncipe que D. Henrique e D. Tareja de Portugal, pelo baptismo, haviam confiado a São Miguel, na ermida que se tornou berço do reino, apesar de León desejar que não nascesse. Eis, pois, porque não se furtou, Camões, quatro séculos mais tarde, à louvação do que incitou Afonso, primeiro Rei de Portugal, a libertar o condado, e a torná-lo reino, contra vontade dos que queriam impedir que, respeitando a memória de seu pai, o conde D. Henrique, ousasse correr risco de em suas terras não ter parte. Herói por conta própria, não deixou, o bravo rei Conquistador, de sair vitorioso da contenda, assegurando o trono a 24 de Junho de 1128. Porque assim foi, cumpriu-se a história: de um reino cristão, outro se ergueu, segundo as chronicas – ad gloriam dei, e conforme o oráculo do bispo São Torcato. Do burgo, a que o signo não retirou o que a consequência do lugar agendaria como herança: primeiro, enquanto reino; depois, como império, e por fim nação, ainda as pedras falam; que, dos celtiberos aos vindouros – os que, de idade a idade, foram notícia da numerosa gente que aqui ficou – com a história se fez história; e, com o povo, lustrosa e honrada companhia. Lavradas páginas onde, em sonho, ficou o que Portugal na alma
tinha escrito. Pela protecção da estrela que, justamente, inspirou batalhas, e cavalos, seguiu Vimaranes o seu caminho, deixando atrás de si a poalha de oiro que, da colonização romana aos legados suevo, visigótico e arábico; da afirmação dinástica ante Castela; da aventura marítima e das migrações para o Brasil; da resistência às invasões francesas e às lutas liberais, convirá reconhecer que aos ancestrais pertence o que lhes é devido pelos domínios alcançados: próspera vila; meritosa cidade, em 1853, através da carta régia de D. Maria II – pela sua dedicação à cultura das artes e dos trabalhos úteis.
Entre o amanho dos campos e a primeira industrialização, não parou, Guimarães, de a si chamar o interesse da Coroa, e governos, que a foram agraciando, do séc. XVIII à implantação da República, umas vezes por lhe reconhecerem merecimento, outras proveito, com o que o progresso ia exigindo: a rede viária, o caminho-de-ferro (1884), o embelezamento urbano e a iluminação, bem ainda a aquisição de equipamento industrial, nas áreas dos têxteis, curtumes, cutelaria, ourivesaria, entre outras mais. Inicie-se, o leitor, em O Livro de Cesário Verde, o poeta que, por tão jovem ter partido, morreu sem ver a luz onde o primeiro rei abriu os olhos para o mundo, e lá estão dois versos que a posteridade há-de guardar, para memória futura, do burgo afonsino: de um lado, um retalhinho de horta aglomerada; do outro, a cidade fabril, industrial. Se à história há que deixar o que é da história e, ao tempo, o que é do tempo, nada melhor que confiar a chave do Castelo a São Miguel, e descer a colina, depois de render preito a Camilo (18251890), e entabular dois dedos de conversa com a estátua do fundador – recomendada aos políticos locais nas Novelas do Minho, nem mais nem menos que no ano de 1870. Não jurava, o romancista de Ceide, que Guimarães passara a ser opulenta cidade e com ouro em barda? O certo é que não tardou, a ser levada em conta, a sentida pretensão, quando a autarquia encomendou ao mestre Soares dos Reis (1847-1889) a entronização do monarca, primeiro rei de Portugal, corria o ano de 1887. Como à época das guerras liberais, cujo invasor, em terras de Guimarães e Amarante, pagou com sangue a flagelação das nossas gentes, e com lágrimas, a devastação do património, pode à primeira vista parecer que o casario continua amotinado, recolhidos os sinos das igrejas, desertas as calçadas para que prevaleçam os sinais e a sentimentalidade de que, sendo outra a terra onde nascemos, nunca deixou de ser a que hoje se conhece. Anos andados, e porque tanto mudaram os tempos e as vontades, convirá pensar que esta terra foi a cidade predilecta de José de Sousa Bandeira (1789-1891), o jornalista, que, embora lisboeta, nela se radicou; e do arqueólogo Francisco Martins Morais Sarmento (1833-1899), que tanto saber legou à cultura do berço como à história do país.

Bandeira ficará, pois, como o anti-miguelista confesso – redactor do Azemel Vimaranense, jornal fundado, em 1822, e ao qual os ideais da história e a defesa da Carta Constitucional (1822) valeram a prisão, em São Julião da Barra; Martins Sarmento, poeta, e patrono da Sociedade e Museu a que deu nome –exemplo de cidadania, além de eminente homem público. Ditosos sejam dia e hora em que tão notáveis homens de cultura teriam sido orgulho dos Navarro de Andrade, dos Sampaio e dos Mota Prego de outras eras. Diferente caso, o de Raul Brandão (1868-1930) que, tendo feito carreira militar, se apaixonou por Guimarães, para da sua gente se tornar amado filho, ao fixar-se em Nespereira para escreviver o que de melhor pode ser lido, ainda, e sempre, na literatura portuguesa. Com Maria Angelina, na Casa do Alto cumpriu sua jura de amor: esplêndida vida, confessou nos livros de Memórias, passada entre artesãos e camponeses. Retomando o ensejo de vaguear, com tempo, pelas ruas da cidade antiga, suspenda, o passeante, a regra, e ceda à excepção, dirigindo--se ao porto de abrigo, que o Jardim do Toural sempre representou para os de fora, e a partir dali para a exploração da malha urbana, que a memória colectiva elegeu a favor de quem gosta de descobrir o que lhe deu memória. Com os autos e comédias do lavrante da célebre Custódia de Belém, voltemos a Camilo cuja predilecção por Gil Vicente (1460? 1536?) havia de o levar a pedir meças a William Shakespeare, o melhor é o visitante, que se proponha fazer parar o dia por umas horas, seguir a recomendação camiliana, e ir então, da Caldeiroa à Cruz da Pedra, no vale de Creixomil, tirando a limpo, porta a porta, se o burgo de que fala o Homem de Letras, em A Viúva do Enforcado, já gozava
foro de cidade. Seguidamente, e de preferência, embrenhar--se no emaranhado de ruelas e jornadear, do Largo do Trovador até ao centro do primeiro parque industrial, pela rua de Couros, ao fundo da qual o rio que lá corre, há muito, cedeu fama à desmemória. Ao que, por algum momento, achar que se perdeu nada mais recomendável que voltar atrás para ver
quanto por ver ficou. Já de regresso ao Toural, onde a luminosidade branca será sempre a que na fotografia de 1905 se propaga, e eterniza, coberta de neve aos olhos de quem vê, saiba, o perguntador, o que quer ouvir, dos taxistas, prontos a comentar, o que se dizia então pelas mesas do Nicolino, antes da Alameda se tornar Da Resistência ao Fascismo, ou no Milenário, onde já não aparece o Moranguinho, entregando em mão, com um sorriso, seu dobrado cartãozinho de visita. Folheando a história, por lá hão-de andar os esbirros do regime, a espiar os comentários à intenção de Salazar fazer seguir, em força, para as colónias os filhos da nação; porque, com Marcelo Caetano no Governo, a ordem era conspirar, na terra onde, as eleições de 1969 trouxeram a terreiro o grito de revolta, que viria a ser voz da Oposição. À Arochela, é então hora de almoço; entra-se pelo Largo João Franco – o controverso estadista de finais da Monarquia, a quem o primeiro rei, que nas mãos de Cutileiro se fez estátua, decidiu, como protesto, virar costas – e lá se fica, à mesa ou ao balcão; é que, na adega dos Caquinhos, palavra-vem-palavra-vai, depois de soar a trombeta – ninguém escapa! – mas há quem diga que ali se curte o mais genuíno manjar, cozinhado à minhota em casa de pasto ou taberna antiga. Vindo da Rua de Santo António ou da D. João I, é melhor não estugar passo, ainda que o afã de outras épocas não embarace o andarim, deixando-o sem saber para onde tomar rumo: se pelo Largo do Pão ou do Leite, hoje da Condessa do Juncal, com passagem pela rua Egas Moniz, dobrando à direita até ao Campo da Feira; se pela rua da Rainha, como quem não quer a coisa, pois, para o Terreiro do Carmo, só se engana quem quer. É que, à maneira do que acontece em toda a parte, o mercantilismo matou a tradição, encerrando lojas e balcões, deitando taipais nas livrarias, desfigurando fachadas e varandas, que o mesmo é dizer: calar cafés, tabacarias e bazares, e consumir ruas com vida nas praças das cidades. Quando se pergunta aonde fica a Travessa do Anjo, ninguém responde; do Milionário, segundo o veredicto dos mais velhos, que Milenário não era para gente de poucas letras.
É hora de tomar café, no abrasivo botequim, por cujas mesas ainda cheira a café de saco, e ali segura a Torre onde se lê que Portugal ali nasceu. E a rua da Tulha – onde é, onde é? – perguntará quem chega. E só o morador poderá então lembrar como sumiram as placas: o mais prático é indagar, lá para a rua Gil Vicente, que foi onde Brandão, ao tempo oficial do quadro dos velhos quartéis de Guimarães, deteve o preso que se escapara da Cadeia Velha, à época instalada no largo a que a vereação, por indulgência camarária, rebaptizou já com o nome de terreiro – da Misericórdia, desta vez. Não sei porquê, ninguém duvida que, anos depois, o jovem alferes teria feito vista grossa, e o condenado, fugido às algemas.
À Senhora da Oliveira, histórica praça em que se ergue o monumento à Batalha do Salado (que Afonso IV, sétimo rei de Portugal, ajudou a vencer contra a mourama no sul da Península), não ficará indiferente, o visitante, podendo ser altura para entrar n’A Medieval e tomar um chá de tília, um bem tirado café, ou sumo de laranja, servidos à maneira com uma clarinha, ou uma cestinha de doce regional, que a afamada torta e o toucinho-do-céu, de morrer e chorar por mais, só merecem honras de almoço. Olhando à volta, não faltaria espaço para erguer não, pois, um mausoléu que isso pouco agradaria ao condoído autor de O Pobre de Pedir – trasladado, em tempos, de Lisboa para o cemitério da Atouguia – mas uma simples estela funerária, como seria vontade de Maria Angelina, a amada companheira de uma vida, aquela a quem, um dia, como disse: se uniu pelo silêncio. Sem ser preciso procurar o que, da praça, vale a pena descobrir, eis franqueado o pórtico por onde logo a vista alcança o claustro do Museu que, de Alberto Sampaio (1841-1908), o douto historiador, de resto guarda o nome, e de Guimarães, os valiosos tesouros, doados à Senhora da Oliveira, por reis e romeiros de outras terras. Ao lado, suportando os arcos baixos da veneranda Domus Municipalis, abre-se a céu aberto um dos mais procurados recantos da cidade, a Praça de São Tiago, fechada a poente, pelas ruas Escura, dos Fornos e Lamelas; e, a nascente, pela rua de que se fica enamorado à primeira vista, a rua de Santa Maria, onde
veio a perder-se o eco dos últimos pregões, com que a vendeira espantava de alegria, ruela e calçadas a caminho do Convento de Santa Clara, sede do município. Fora de mão, contudo, hão-de ficar os lugares que no coração de Guimarães, como a Molarinho, o gravador, calaram fundo nas veias dos artesãos. Sem pressa nem destino, meta, o andante pela Trav. do Picoto que, para quem desce da pequenina capela da Senhora dos Aflitos, logo desembocará na rua de Francisco Agra, junto à Sociedade de Cultura e Recreio em cuja casa viveu, enquanto vimaranense ilustre; a Casa das Rótulas, à rua Val das Donas, emudecida como sentenciado ouvido em confissão; e, atravessando a Alameda em direcção a São Gualter, a Ilha do Sabão, sumido terreirinho de vetustas casas de varandins floridos, e donde, a certa hora da noite, se escuta perto o gorgolejar do rio; a rua de Camões, atribulada como a vida do poeta, com entrada pela travessa que, atrás da estátua de Abel Salazar (1889-1946), se escusa, então, a ser visitada, mas ainda assim pronta a levar o intrometido até meio da rua, onde foi edificada a bela ermidinha de São Sebastião, padroeiro da freguesia, onde nasceu o padre António José Ferreira Caldas (1843-1884), insígne orador que, em 1872, fundou, da Senhora da Penha, a venerável irmandade. Guimarães é a cidade. Guarda, entre muros, aquela ilusão que só a história tributa a cada nobre cidade: tornada sonho na luz do pintor Auguste Roquemont (1804-1849), que de amorosas cores, a encenou, trocando-a pela sua Genebra natal; dotada de alma por Silva Cardoso (1831-1893), que a retratou; popularizada por mestre Caçoila que, em primeiras de mão, assinou telas em que tantos rostos por outros se trocaram. Pudesse voltar atrás o tempo, não faltaria ensejo para reconhecer quão compensado foi o sonho do eng. Manuel d’Almeida Ribeiro, quando se propôs dar vida à planta urbana que, um dia, elaborou do centro histórico da antiga urbe onde tantas cousas juntas se acharam raramente. Apesar de extintos, os conventos e casas religiosas, que a Fazenda Nacional passou a incorporar, por ordem da Coroa, reinava então D. Maria II, de longe continuará a ouvir-se a secular toada de sinos dos con-
ventos do Carmo e dos Capuchos sobreposta ao estrondo das demolições, levadas a cabo pelos construtores do alargamento que, a partir do início do séc. XIX, um pouco por toda a Vila, de Guimarães termo e comarca, conforme decisão da Junta do Comércio. E já ninguém se recorda dos que viram alçar os pavilhões das fábricas de curtumes, cutelarias e moagens, chapéus e atoalhados, dos algodões e sedas, do papel – fontes de desenvolvimento que fariam do concelho um dos mais populosos do país e, das suas gentes, operários marcados pela morte de tantas vidas severinas, que a força do trabalho, lhes foi gravando no sangue até à morte. Hoje, porém, ao fim da tarde, é dia de Liga Europa, todas as ruas da cidade irão ter ao estádio do Primeiro Rei, erguido, há um bom par de anos, bem perto do pelado da Amorosa. Sagrado solo para o que der, porque até vale perder, se o Vitória cair de pé, onde um golo pode levar às lágrimas, e decidir finais, assim o queira São Jorge, como juram por estes dois os que, desde criança, vão à bola. Fechado o livro de honra, aproveite o amável flâneur para subir à Penha, no último teleférico; do Mosteiro de Santa Marinha da Costa aos pináculos do Paço Ducal, já o pôr-do-sol faz lembrar a talha de altar. Hoje, porém, é quinta-feira; há jogo da Liga no Estádio do Rei. Vista do céu, e enquanto se esquece a altura sobre vasto casario da cidade, estar em Guimarães é ser filho da terra, é escutar a voz de pedra que nos faz sentir que lá nascemos, e daqui somos, pois só nesta terra parece que não se é de parte alguma.