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A Minha Memória e a Cidade
from OsmusikéCadernos 2
by osmusike
José Pinheiro joseapinheiro@sapo.pt
O serviço militar e a guerra colonial eram a sina de um jovem de 20 anos. Decorria o mês de junho do ano de 1972, quando recebo a ordem de embarque para Angola. Não estava preparado para uma coisa destas, tinha vinte anos. Esgotadas as possibilidades de contrariar o meu destino, o tempo era de reflexão e de resignação. Ficou para trás a família, ficaram para trás os amigos e a cidade. Tudo quanto amava e que me iria fazer falta para suportar a ideia de uma guerra, que não sabia muito bem o que isso era. Tudo me era estranho: a terra, as gentes e o meu papel de militar num pais imenso, “catorze vezes maior que Portugal” – era assim que se falava de Angola, quando se falava de grandeza – “Angola é nossa! Angola é nossa!...”. Afinal não era nada nossa. Era dos angolanos. Via e sentia que era dos angolanos porque eu não era angolano, era português de Guimarães. Em conversa com os meus amigos angolanos, ninguém tinha ouvido falar em Guimarães, o “Berço da Nação”. Insistia, que foi nesta cidade de Guimarães que nasceu D. Afonso Henriques, o 1º Rei de Portugal; a primeira “Capital de Portugal”. Não! Ninguém conhecia a minha cidade, nem a história de Guimarães. Estava noutra cidade que não era a minha e noutro país que não era nosso. O Portugal pluricontinental, multirracial e a missão civilizadora de Salazar e Caetano estavam em decomposição e a esboroar-se… Quando deixei Guimarães, a cidade era à moda antiga, calma, serena, onde nada acontecia; durante o dia era a azáfama do trabalho, onde predominava a indústria têxtil, com um comércio e serviços insípidos e dependentes da sede do distrito. A cidade adormecia cedo. Prolongava a noite, até mais tarde um pouco, o largo do Toural e os cafés, estes frequentados só por homens. Era uma cidade de província é certo, mas carregada de história e pergaminhos que nos enchiam de orgulho. Foi esta a memória que levei comigo, o som e o silêncio da cidade. O som do dia e o silêncio da noite. Vivi o “25 de Abril” no norte de Angola, numa zona isolada e de difícil acesso. A notícia foi-me dada pelo radiotelegrafista em segredo… (Está a passar- se qualquer coisa em Portugal, dizia ele…). As notícias eram lentas e espaçadas… Regresso no final de 74, e logo me apercebo da agitação da cidade que fervilha de manifestações, greves e ações de rua de cariz político, mudando o ritmo, o tempo e a densidade da cidade. Os relógios adian-
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taram-se do tempo perdido e a pacatez da cidade desperta com deslumbramento para uma liberdade nunca experimentada, para uma realidade até aqui desconhecida e adormecida. Passado o tempo de chumbo da ditadura e da Guerra Colonial, ambas anacrónicas, estávamos em pleno PREC (Período Revolucionário em Curso), envolvendo-nos a todos, jovens homens e mulheres nas várias e diferentes frentes políticas e ideológicas da época, período escaldante que exigiu vigilância.
O rescaldo do tempo de brasa do “verão quente” deu lugar à apropriação do espaço público e assunção e emergência de movimentos de cidadania pelas causas sociais e políticas, pautados pela liberdade e democracia, dando à cidade uma consciência cultural e política, assente no direito de intervir, de exprimir e agir no espaço urbano. O tempo era de mudança e de construção. No panorama cultural da cidade, apesar de ser um concelho com boas tradições associativas, destacavam-se as associações urbanas como o CAR - Círculo de Arte e Recreio (1939), com intensa actividade cultural, recreativa e desportiva, designadamente o papel importantíssimo do “Teatro de Ensaio Raul Brandão”, dirigido por Santos Simões; o Cineclube (1958), na divulgação da cultura cinematográfica, com projecção de filmes e sessões em escolas, salões paroquiais, freguesias e associações culturais; e o Convívio Associação Cultural (1961), com palestras, conferências, exposições e o “Festival Internacional de Cinema Amador”. Associações criadas e dinamizadas por destacados democratas da cidade. As ideias fervilhavam com determinação e militância cultural e social, criando dinâmicas próprias das grandes cidades, fazendo emergir movimentos e grupos de cidadãos mobilizadores, envolvendo as pessoas em projetos sociais e culturais. Invoco sobretudo três experiências vividas: A primeira, é com o movimento de grande participação na fundação da “CERCIGUI” criada em 1977, com o objectivo de apoiar as famílias e as crianças com deficiência mental, abrangendo todo o concelho, na construção de uma instituição de educação, reabilitação e inclusão, acolhida por toda a população, sendo os grandes obreiros a comissão de pais, Santos Simões, Romeu Barroso, professores, psicólogos e outros cidadãos comprometidos com a emergência desta Escola de Educação Especial.
A segunda, a Cooperativa Editorial “O Povo de Guimarães”, jornal local que reuniu em torno deste projeto regionalista de comunicação social, homens e mulheres democratas da cidade, destacando-se Hélder Rocha, Salgado Lobo, Santos Simões, José Augusto da Silva, Jorge Peixoto entre muitos, firmado nos princípios e valores humanistas de informar e formar os concidadãos vimaranenses, nas diversas áreas e dimensões da vida social e cultural, política e económica do concelho de Guimarães.
E a terceira, o “CICP-Centro Infantil e Cultural Popular”, fundado em 1975, com base nas associações de moradores da rua D. João I, sendo o seu grande dinamizador e animador José Casimiro Ribeiro, (ex-
preso político em Caxias, libertado no dia 26 de Abril de 1974), figura carismática e revolucionária do projeto em construção, cujo objectivo foi responder às grandes carências sentidas pelas famílias, nomeadamente a criação de um infantário e creche, com secção de alfabetização e atividades pós-letivas, animação cultural, designadamente o “Grupo de Teatro Juventude em Palco” com o encenador Alberto Froufe, promovendo o Festival de Teatro Amador de Guimarães (FESTAG); o “Grupo de Intervenção do Canto Popular” que, apesar de ter vida curta, cumpriu o seu papel na agitação política de divulgação da música popular e de intervenção, sendo o seu maestro José Augusto da Silva. A “Circultura” foi o projeto mais arrojado do CICP, apesar de uma existência episódica, mas extraordinariamente positiva, numa cidade deserta de palcos e de ações de cultura, com a duração de dois meses com espectáculos, tendo como palco uma tenda de circo. Na época, foi um acontecimento relevante pela singularidade, gerando grande admiração e acolhimento por parte do público e da cidade, do ponto de vista cultural. Foi uma actividade de grande impacto na cidade, denunciando a falta de estruturas para as atividades culturais, nomeadamente auditórios, salas de espetáculos, centros de cultura, etc. Com as conquistas de Abril, nomeadamente o Poder Locar e a Lei das Autarquias e as consequentes eleições livres para as Câmaras Municipais (1976), mudaram radicalmente o perfil das cidades e o seu papel administrativo na gestão do seu património histórico e cultural, dos recursos naturais, económicos, industriais e comerciais, em benefício das populações. Com o Centro Cultural Vila Flor, o Centro Internacional das Artes José de Guimarães, Museu Alberto Sampaio, Sociedade Martins Sarmento, a Oficina-Centro de Artes, a Casa da Memória, o Laboratório da Paisagem, entre outros, a Câmara Municipal de Guimarães deu, com estes equipamentos de cultura e com a sua política cultural, outra escala à cidade, mais cosmopolita e mais urbana, fazendo designadamente parcerias com as iniciativas das associações, apoiando as suas propostas e projetos, nomeadamente os “Festivais de Teatro Gil Vicente” (CAR), trazendo à cidade grupos de teatro, projecção de cinema na cidade pelo Cineclube, a Associação Convívio com “Os Encontro da Primavera” com música erudita, o “Guimarães Jazz” o “Grupo Coral” dirigido pelos maestros José Augusto da Silva e Domingos Salvador, o Festival de Dança Contemporânea - “Guidance”, sendo estas algumas das atividades mais significativas que dão à cidade elevada urbanidade cultural. Culminando esta transformação rápida e acelerada da cidade e a sua exposição ao exterior, uma nova identidade emergiu na vida dos vimaranenses - a classificação da UNESCO que confere universalidade à cidade, através do seu património histórico singular, com estatuto internacional de cidade com Centro Histórico, elevado a Património Cultural da Humanidade, em 2001: é o emblema maior do espírito colectivo e
comunitário da população de Guimarães, hoje uma referência no modo de vida e de estar numa cidade com Centro Histórico, a “Ágora” dos tempos modernos onde todos se reúnem em celebração identitária. Guimarães é uma cidade que valoriza as suas raízes mas que soube modernizar-se, uma cidade de eleição e reconhecimento internacional: selecionada para receber o Campeonato Europeu de Futebol, em 2004; atributo de cidade Capital Europeia da Cultura (Guimarães 2012); e designada Cidade Europeia do Desporto - 2013, são dimensões que colocam hoje a cidade de Guimarães entre as melhores cidades para se viver e visitar.