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Memórias de Abril
from OsmusikéCadernos 2
by osmusike
Álvaro Nunes alvaromanunes@gmail.com
Safa! Já lá vão 47 anos!?
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Quem diria que a existência corresse tão rápida, nesta maratona da vida! Porém, no sótão das coisas de antanho, tudo continua vivo neste baú da memória impressiva! Recordo-me claramente: era o dia 25 de Abril de 1974 e estava no sul da Guiné-Bissau, nas margens do rio Cumbijã, próximo da fronteira da Guiné Conacri, conhecida pela floresta do Cantanhês e “estrada da morte”. E lembro-me nitidamente dessa manhã e de ouvir na rádio, em língua francesa, essa notícia: “Coup d’état au Portugal”. Um tanto ou quanto estupefacto e sobranceiramente, presumi que o 16 de Março só agora chegara (tardiamente) a África! No entanto, na messe já se festejava euforicamente. O furriel Pacheco gritava a plenos pulmões impropérios de vingança contra os fascistas que não tinham autorizado a instalação de matraquilhos na sua Tabacaria Açoriana, em Ponta Delgada! Mas, agora, tudo ia ser diferente … Então, o capitão Jorge Belo do MFA explicaria o que se estava a passar. E, ato contínuo, solicitaria a oficiais e sargentos a adesão ao Movimento das Forças Armadas, que o comandante do batalhão estaria a refutar cautelosamente. Porém, perante a resposta positiva e unânime, só restaria a detenção do tenente-coronel, comandante do batalhão, que se consumaria. Todavia, nesse mesmo dia, ainda ocorreriam intensos bombardeamentos aéreos e, por parte do “inimigo”, a resposta com morteiros, indicativo de que as cadeias de comando ainda não estavam perfeitamente alinhadas. Imagem 12 - Monumento de homenagem aos 13 falecidos Seguiu-se uma noite de alegres copos, não obstante a em combate comissão de serviço estar prestes do fim. Mas era o fim duma guerra do gato e do rato que nos havia cau-


sado 13 mortos e alguns inválidos, já muito próxima daquele tempo psicológico do final da comissão de serviço, gerador de maior “medo”. Dias depois seríamos transferidos para a capital para manter a ordem em Bissau, face a inúmeras pilhagens e outras situações delicadas. As rondas em Bissau seriam assim preenchidas entre missões e repastos mais reparadores, no Pelicano ou Grande Hotel (não tão grande quanto se supõe), bem como a segurança a instalações variadas. Recordo o bom dormir no aquartelamento da PIDE, com excelentes quartos de ar condicionado, sem mosquitos! Contudo, a melhor noite seria a da segurança na estação de rádio, que estava sob a alçada do Comando-Chefe das Forças Armadas. Que noite de música “revolucionária”! “Venham mais cinco” e “Traz outro amigo também “de Zeca Afonso, nessa noite, faziam-nos companhia bem como “Grândola, vila morena” e muitas outras cantigas de Abril ou “Cantigas de Maio”, até à “Madrugada dos Trapeiros” … Imagem 13 - Instalações da rádio, maio de 1974 Umas semanas depois chegaria o momento de “descanso” na área de Bafatá, onde permaneceríamos até fins de agosto. Coubeme o destacamento de Cambaju, na fronteira com o Senegal, controlado com um simples cancelo de arame farpado, protegido por fortes obuses, a cargo de um pelotão de artilharia. E aí, os primeiros contactos com o “inimigo”, à volta de uma gamela de arroz comido à mão, seguido dias depois, de um opíparo almoço de retribuição, na nossa messe, com frango no churrasco, e a presença de um oficial senegalês. Mas também futebol de descalços contra calçados (que os descalços venceram!) e luta livre entre africanos. Confraternização e colaboração que se estenderia à segurança noturna e mista (tropas portuguesas e do PAIGC) a duas simpáticas jornalistas de língua inglesa, que connosco pernoitaram, a caminho de Dacar, em serviço Imagem 14 - Encontro amistoso com militares do PAIGC, junho de reportagem sobre o outro lado da “guerra”. de 1974

Houve ainda tempo para missões solidárias de evacuação de elementos da população doente para o Hospital de Bafatá e para uma respeitosa cerimónia final de passagem de testemunho, ao som dos hinos nacionais e do arriamento e içar emotivo de ambas as bandeiras. Em Bafatá, esperar-me-ia ainda a destruição e rebentamento do paiol recheado, que duraria vários dias e que fez crescer na floresta uma imensa cratera artificial. Mas também o rebentamento da garrafeira bem recheada que não podíamos deixar para trás, bem como a gasolina! Era o início de uma descolonização que poderia ter sido atempada e exemplar, mas fora tardia e desastrosa. Apesar de tudo, cumpria-se Abril e o início do processo de descolonização … Livra!