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Recordações que marcaram

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Obrigado Francisca

Obrigado Francisca

José Fernando Rodrigues Alves Pinto7 alvespinto@corporateform.eu

Com permissão dos leitores, vou arrancar do baú das minhas recordações sete curtas passagens que vivenciei no período pós 25 de Abril, nas duas escolas que então me acolheram –Escola Preparatória João de Meira (no atual edifício da Câmara e não só) e Escola Industrial e Comercial de Guimarães (atual Escola Francisco de Holanda). Escola Preparatória do Professor João de Meira - 1 Na Escola Preparatória Professor João de Meira, após a saída da diretora, Maria Elvira, cavou-se uma profunda divisão, mais circunstancial do que ideológica, entre dois grupos: o dos «conservadores» e o dos «opositores». Os dois conjuntos não estavam consolidados, primavam pela heterogeneidade dos seus elementos, persistiam muitas dúvidas na cabeça da maioria dos professores, parte deles não sabia (ou não queria saber) a que fação se deveria encostar. A verdade é que a situação estava extremada, as relações pessoais tinham azedado, sobretudo entre os cabecilhas, e o ambiente tornava-se insuportável: se estávamos a falar com um, dois ou três olhavam de esguelha com ar reprovador, se passávamos a falar com outro, era o primeiro que mostrava um sorrisinho amarelo. Sinal dos tempos!... A verdade é que a situação chegou ao ponto de fazer apelo à intervenção de um graduado do MFA (um major, creio) que, cheio de pompa e circunstância, veio presidir a uma assembleia-geral de professores, realizada na sala 1 (a mais comprida), onde eu dava aulas de Matemática a turmas de 40 alunos, ao sábado, à tarde, até às 18:20 horas. No entretanto, realizaram-se reuniões em privado, mais ou menos secretas, com vários e distintos convidados. Até que, no meio de tão profunda baralhada, com as hostes cansadas e indiferentes, lá surgiu a primeira Comissão de Gestão (parece-me que era assim que se chamava), presidida pela Leonor Moreira e da qual faziam parte a distinta Emília Ribeiro de Abreu, eu próprio, o Rolando Guedes e o Horácio Pinto. Imaginem só! Que equipa! Que maçaricos! Que tremedeira não iria nas cabecinhas loucas daqueles cinco atiradiços!...

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7 Presidente da direção do Lar de Santa Estefânia; Presidente da direção da Liga dos Amigos do Hospital Senhora da Oliveira; Presidente da Assembleia-Geral da AF Braga; Membro do Conselho Vitoriano

Escola Preparatória do Professor João de Meira - 2

Vivíamos um ambiente verdadeiramente revolucionário. As manifestações surgiam espontaneamente, abruptamente, quando menos se esperava, de onde menos se suspeitava. Um fim de tarde, antes da primeira aula do turno da noite, pelas 19:00 horas, estava a escola em ambiente calmo quando um imenso e barulhento grupo de alunos mais velhos, já homenzinhos, veda o acesso à sala de professores e, gritando repetidamente, reclama: «abaixo o fascismo, rua com os impostores, abaixo os adjuntos da diretora». A sala de professores estava vazia. Os docentes que estavam na escola, na ocasião, dirigiam-se todos às suas salas de aula. Tinha tocado minutos antes. Enfim, ação frustrada. Os reivindicadores não encontraram o que pretendiam. Não houve nada. A verdade, contudo, é que o episódio ecoou no fundo de quantos assistiram à cena e colocou toda a gente em alvoroço e receosa em relação à estabilidade futura da instituição. Se a moda pegava, cuidado, iriamos assistir a muita trapalhada…

Escola Preparatória do Professor João de Meira - 3

Lembro-me de me ter calhado em sorte a turma das ex-regentes escolares, que davam aulas na Escola Primária e que, para continuarem no ativo, foram obrigadas a frequentar com aproveitamento o 1º ciclo. Quando fui informado da novidade, fiquei surpreendido, satisfeito pela preferência ter recaído na minha pessoa, mas receoso: «o que é que me vai sair na rifa?». Na primeira aula deparei-me com uma vintena de senhoras, todas aperaltadas, algumas já entradotas, que devem ter ficado perplexas quando foram confrontadas com um catraio de um professor que teria idade para ser filho de algumas delas. Não se riram. Olharam-se, levantaram-se e, em uníssono, dirigiramme um amistoso «Bom dia, senhor professor». Ao contrário do que poderia ter prognosticado, as senhoras regentes, provindas maioritariamente de escolas primárias das freguesias mais deprimidas do concelho, tinham uma formação geral muito razoável, eram profundamente educadas, e manifestavam uma humildade e um interesse em aprender que seria exemplo para a maioria dos estudantes mais novos. Foi um grande privilégio ter ajudado aquela gente a desembrulhar a complicação profissional que lhes foi imposta. Dar aulas a regentes escolares!... Que mais me irá acontecer?

Escola Preparatória João de Meira e Escola Secundária Francisco de Holanda – 4 A generalização do acesso à Escola a toda a população residente e em idade escolar, uma das mais

importantes conquistas de Abril, evidenciou a escassez de instalações existentes para acolher tamanha avalanche de crianças e jovens. Foi preciso muita imaginação, algum arrojo, uma grande dose de improviso e uma vontade enorme de servir e de responder a toda a procura, tudo para que ninguém ficasse de fora. Fizemos o possível e o inimaginável. A Escola João de Meira desdobrou-se pelos anexos de S. Francisco, da Escola de Santa Luzia e creio que chegou a utilizar o Seminário do Verbo Divino. A Escola Francisco de Holanda emagreceu as Oficinas de Mecânica, transformou casas de banho em salas de aula, chegou a colocar algumas aulas na biblioteca e no refeitório! O Marques é que não gostou nada da ideia: «Vêm para cá dar aulas com isto a cheirar a fanecas fritas!... Ao que nós chegamos!...» Foi por essa altura, perante os enormes constrangimentos que enfrentámos, que começou a forjar-se o desenho das futuras escolas EB 2/3, que hoje respondem cabalmente e em boas condições à totalidade da procura. Sobre a Escola Preparatória Professor João de Meira, daqueles tempos, fico por aqui… falta contar quase tudo… qualquer dia…

Escola Francisco de Holanda e para além dela – 5

Sem desprimor para todos os valiosíssimos colegas com quem tive a honra de me cruzar nesses tempos pós 25 de Abril, há três com quem compartilhei as direções de duas das mais acreditadas instituições de Guimarães, a Escola Secundária Francisco de Holanda e a Sociedade Martins Sarmento. Aqui e nesta oportunidade quero recordá-los. Refiro-me ao Álvaro Lereno Cohen, ao Joaquim António dos Santos Simões e ao Hélio dos Santos Alves. Porquê a referência a estas três ilustres personagens? Esclareçamos:

1.

Depois de uma eleição disputada acerrimamente entre listas encabeçadas pelo Álvaro Cohen e pelo João Sottomayor, ganha pela lista do Álvaro Cohen a que eu pertencia, um golpe de secretaria perpetrado nas estruturas centrais do Ministério da Educação haveria de considerar as eleições inválidas. Uma vergonha nada compaginável com os tempos que vivíamos. Na sequência de tal eleição, anulada, dando a mão à palmatória, o Ministério, já em pleno mês de outubro, haveria de indigitar o Álvaro Cohen para presidir ao Conselho Diretivo. Lembro-me que, quando saía da Escola, às 18:30 horas de um dia frio e chuvoso, o Cohen veio ter co-

migo, a correr, ofegante e atirou: - Sabes, entregaram-me agora esta carta, registada. O Ministério nomeia-me para presidir aos destinos da Escola…. Claro que conto contigo, ah?!... - Vamos à luta, chefe… Alguma dúvida? Ora, foi sob a batuta do Cohen que eu, o Silva Pereira, o Figueiredo e a Florentina, demos início a um processo imparável de refundação da Escola Francisco de Holanda. Com o tempo, paulatina, mas consistentemente, tornamo-la na Escola modelo do país!... Tudo começou com o Álvaro Cohen… registo o facto, para que não esqueça.

2.

O Santos Simões viveu momentos de enorme contestação na Escola Francisco de Holanda. Escolhiame como seu confidente e conselheiro, nas ocasiões mais complexas. Confessava-me a sua inquietação face aos desaforos que iria ter que engolir nos conselhos pedagógicos. Pedia-me colaboração na organização de eventos, na apreciação de diplomas e de trabalhos que elaborava. Vejam só, ele, Santos Simões, que era um referencial de cultura e de ação!... Foi o Santos Simões que me lançou para a liderança da Escola, num almoço, com uma vintena ou trintena de colegas de referência, no Restaurante Florêncio, a saborear bucho de porco e sardinhas assadas. Foi o Santos Simões que me escolheu para seu parceiro na direção na Sociedade Martins Sarmento. Pasmese: foi o Santos Simões uma das vozes mais influentes na decisão que tomei, em 1997, de ser candidato à presidência da Câmara Municipal de Guimarães, como independente, pelo Partido Social Democrata. Estes e muitos outros incentivos e apoios, recíprocos, que trocamos desinteressadamente ao longo de três décadas, cimentaram uma amizade e um apreço que perdurará para sempre, independentemente das circunstâncias. O Santos Simões era um homem polivalente, dono de uma cultura vasta e multifacetada e, para além disso, o que não é despiciendo, era um homem de ação. Sempre a criar, sempre a avançar, sempre a lutar. Um dia, estava o Santos Simões no gabinete da direção quando o Lima, aluno da noite, tolo, insatisfeito com o horário que lhe tocou em sorte, avançou corredor adiante e abrindo desabridamente a porta, sem pedir licença, vociferou: - Isto é horário que se apresente? Você não percebe nada disto... tome lá e guarde-o… fascista!... Fascista!... Fascista!... O Santos Simões, profundamente irritado, levantou-se, correu atrás do Lima, mas, uma vez chegado a

meio do corredor, parou, respirou fundo e desabafou: - Estou a ser tão bom como ele!… Regressou ao gabinete.

3.

O Hélio era uma personalidade discreta. Dono de uma inteligência aguda e de uma bagagem cultural profunda, era um homem reto, determinado, inflexível na defesa da justiça, da verdade e da frontalidade. Não deixava nada por dizer. Voltava as costas a tudo o que entendesse que era incorreto, desonesto, descabido. Foi meu professor e meu colega (ainda que fugaz) na Escola Francisco de Holanda, de onde transitou para a cátedra da Universidade do Minho. Partilhei com o Hélio alguns anos na direção da Sociedade Martins Sarmento. Tive o privilégio de, com ele, em reuniões diversas, algumas em sua casa, elaborar o livro «Vivências», em cuja introdução ele escreve: «É preciso que nos lembremos que esquecer é ter de repensar tudo aquilo que já foi solucionado por outros, mas que nós não sabemos porque não queremos, ou porque não nos deixam saber. Esquecer é ficar sujeito às repetições cíclicas dos erros estúpidos do passado que nos cairão de novo em cima porque estamos esquecidos deles e porque nos ensinaram (forçaram) a querer viver o dia-a-dia como quem vai morrer amanhã.» Aprendi com o Hélio a esboçar limericks, poemas populares ingleses difundidos a partir de 1846 por via da obra de Edward Lear «A Book Of Nonsence». De referir que o Hélio foi o introdutor dos limericks em Portugal, através da edição da obra «Pensar Sem Senso», em 2002. Grande homem foi o Hélio Alves!...

Escola Francisco de Holanda – 6

Eram tempos diferentes e a nossa Escola era também diferente pela irreverência e humanismo que prevaleciam na relação entre professores, alunos e pessoal não docente. A propósito, lembro-me de um dia, à tarde, ter recebido no gabinete da direção o Fernando Moreira (Engenheiro Têxtil), muito revoltado, porque lhe tinham roubado do recreio o seu estimado automóvel Fiat 125. - Imagine só ao que isto chegou!... Já têm a ousadia de roubar um carro dentro da Escola!... Acalmei o Fernando Moreira e propus-lhe que fossemos confirmar o sucedido. Caminhávamos escadas acima rumo ao recreio quando um grupo de jovens, liderado pelo aluno Esquível, se chegou ao Engenheiro Moreira e, envolvendo-o, absorveram-no por completo. - Ó nosso Engenheiro, venha daí, vamos dar-lhe uma ajudazinha, você merece – diz-lhe o Esquível.

Imaginem… foi mesmo isso. Os jovens, a braços, tinham levado o Fiat 125 do Fernando Moreira para as bandas do Refeitório (mais de 70 metros!). Volvidos alguns vinte minutos, o Engenheiro Moreira voltava a bater à porta do Gabinete: - Foram eles, aqueles safados… são da marca do diabo! - E agora? O que é que merecem? Diga lá, Engenheiro Moreira… - Olha que essa!... São bons moços… vou ter com eles e vamos tomar um cafezito…

Escola Francisco de Holanda – 7 – A autonomia conquista-se

Lembro-me do tempo em que todo o pavimento exterior da Escola estava completamente esburacado, sem remendo, a exigir uma intervenção urgente como prevenção para eventuais e indesejáveis acidentes.

Em presença do Sr. Diretor Regional que visitava a Escola, colocamos-lhe o problema: - É imperioso proceder ao arranjo imediato deste piso, Sr. Diretor. - Nem pensem… Não temos verba… E este ano vamos ter que cativar 10% do orçamento… Desarmados, sempre à espreita da primeira oportunidade, com as matrículas em curso e a sobrelotarem as nossas turmas, eis que nos informam que um empreiteiro de peso está na secretaria, a tentar matricular o filho numa das turmas mais concorridas do 10º ano. - Digam ao senhor que as turmas estão cheias e que a Escola dificilmente conseguirá receber o seu fi-

lho.

De seguida, chamamos o empreiteiro ao gabinete da direção, inteiramo-nos do que pretendia, prometemos uma ponderação cuidada do seu pedido e convidamo-lo a visitar a Escola. Uma vez chegados ao recreio, mostramos-lhe o estado lastimoso do pavimento. Sabíamos que a solução poderia estar ali. Categórico, declarou-nos: - Dentro de duas ou três semanas, as minhas máquinas vêm pavimentar a Avenida Alfredo Pimenta. Quando tal suceder, liguem-me que eu mando o pessoal passar por cá e colocar um tapetezito novo. Não foi um tapetezito, foi uma camada de 6 cm em toda a Escola. Uma obra que custaria ao Estado uma quantia muito avultada. Um benefício de que não usufruiríamos nos anos mais chegados. Resta acrescentar que o filho do empreiteiro acabou por entrar na turma pretendida. Foi admitido, sim senhor, na sua vez.

A concluir:

Termino com um até logo, com um até sempre. Vamos continuar a luta por uma sociedade mais justa,

mais humilde, mais solidária, mais humana. As revoluções abanam o esqueleto, mas não geram necessariamente um esqueleto limpo. Compete-nos continuar a tarefa.

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