NATALIDADES - JOÃO TODOS NÓS Bruna Lima
Hoje é 24 de dezembro. Amanhã é o dia que o filho de Deus nasceu. Hoje é o dia que antecede o meu. Para que minha vida fosse gerada, minha mãe teve a carne violada por três vezes: a primeira, foi na noite que um vulto cruzou seu caminho, a jogou num matagal e a violentou até seu corpo sangrar; a segunda, quando tentou encerrar o meu ciclo, e a grande piada da vadia de rua estuprada foi, novamente, arremessada no ventilador; a terceira, foi quando nasci numa dessas maternidades públicas onde quem tem algo na vida já é visto como ninguém, minha mãe que nem sobrenome tinha, nem existia. Foram três dias, nove refeições e estávamos na rua outra vez. Ela carregava o fruto de uma violência e eu, que mal sabia do mundo, já chorava de frio. Cresci. De viaduto em viaduto, senti na pele o que era ser preto e ter cheiro de crack nas roupas. “Era a vizinhança!” Gritava enquanto apanhava de cassetete novamente . Dizia isso, pois parecia a versão correta de uma vida digna. Uma vida que eu não tinha. Meus vizinhos eram homens que, vez ou outra, mexiam e olhavam a minha mãe como se fosse mercadoria. Uns traziam dinheiro, outros trocavam prazer por comida e eu, com 10 anos, tinha uma arma e coragem para usá-la. Mas a lâmina que me cortava dia após dia era o olhar de minha mãe. Ela dizia, com fúria, que protegê-la nunca seria o suficiente, pois ela morreu no dia que me viu nascer. Dizia ser o dia em que ela entendeu que tudo o que aconteceu foi real e ela era só um pedaço de carne vagando pela imundície das ruas. Anos depois, vi que minha proteção não foi capaz de livrá-la do abraço reconfortante do fim. Estava roubando algo para que pudéssemos comer, quando ela se envolveu numa briga com a mulher 50