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Desde que eu me lembre

DESDE QUE EU ME LEMBRE

Ágatha Keila de Jesus da Silva

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A verdade é que é assim desde que eu me lembre.

Apesar do belo dia que fazia, e do cheiro delicioso do café, não importava realmente. Enquanto eu encarava o nada, o olhar fixo em lugar nenhum, minha garganta fechou. Apesar do meu desejo de abri-la e derramar-me até inundar todo o cômodo.

Eu sempre ouvi que seres humanos não nascem moldados, tampouco destinados à coisa alguma. Diferente do que muitos pensam, porém, é assim desde que eu me lembre.

O amor é a chama da vida, não é? Que se consolida regado de respeito, confiança e companheirismo. Sim, é verdade. Contudo, que eu lembre, sempre foi assim. A humanidade é a raça abençoada e escolhida pelo Deus que talvez esteja no céu (é o que dizem), para habitar o paraíso, devido à sua capacidade única de sentir, eu acho. Sentir o amor, a ternura, a compaixão, a solidariedade, e o medo é claro, esse é muito importante.

Seres racionais, são chamados… isso porque usam a cabeça para propósitos muito maiores do que as primitivas necessidades da sobrevivência. É maior e mais esplendoroso do que qualquer outra espécie lutando para não ser uma refeição, ou para não perdê-la até o fim do dia… Ah, a humanidade. É realmente incrível! Com toda a sua inteligência somada ao emocional exclusivo. Afinal de contas, os bichos, eles não têm sentimentos, não é? Enfim, é impossível não se apaixonar por toda essa grandeza e qualidades que uma única raça detém. O engraçado é que sempre foi desse jeito, desde o que consigo lembrar.

Questiono-me, às vezes, ou sempre, o motivo de precisar fazê-lo, quer dizer, não deveria mesmo ser assim, e o problema é que sempre foi, mesmo quando eu não era eu ainda, muito antes disso. Então, se esse Deus que dizem habitar os céus é como escreveram naquele livro com frases estranhas e de entendimento questionável,

por que ele manchou a minha pele mesmo sabendo que a humanidade tão incrível por ele criada, na verdade, não é tão incrível assim, pelo que eu lembro? Ele não sabia que tantos sofreriam? Difícil.

Eu não tenho realmente um problema com isso. Acho bonita a forma como brilha sob o sol e se parece tanto com a cor do chocolate, que é a coisa mais gostosa já feita pela humanidade, convenhamos.

Mas eles têm, desde que eu me lembre, os olhares, as palavras, os tratamentos, sempre tão diferentes, que dá para sentir no ar uma atmosfera que te sufoca, quase como se tivesse mãos peçonhentas e perversas. E então, eu me pergunto, por que o suposto Bom Deus, mancharia minha pele e a de diversas outras pessoas? Sabendo que os que são “limpos”, sem a “sujeira” do chocolate, estão destinados à grandeza, desde que apenas “se esforcem”. E o amor nada mais é do que o interesse fútil, guiado fielmente pelos padrões diversos, status, glamour, sexo… enfim.

E por último, na expressão “isso é desumano”, a ação não devia ser considerada desprezível, uma vez que a humanidade é a coisa mais desprezível e podre que foi inventada por quem quer que seja, e essa palavra, sim, deveria ser uma ofensa.

Mas tudo bem, Deus que talvez esteja no céu. Eu o perdoo por isso, mesmo sem entendê-lo.

Tento todos os dias seguir os conceitos iniciais dessas coisas, sabe? Tento, porque acho muito bonito, mas sinceramente, é quase impossível ser uma rosa florescendo num jardim destruído por ervas daninhas. — Sonhando acordada? — João tocou meu ombro suavemente, com um pequeno sorriso — Eu já vou indo, foi bom te ver de novo. — Quando ele parou a um passo da porta, eu sabia que não estava hesitando, apesar de parecer. — Se cuida, tá? E pare de sonhar acordada! — Saiu meio aos risos, me dando pouco tempo para realmente assimilar tudo. Afinal de contas, era ele o motivo do meu devaneio inicial, que chegou até aqui, o fim.

João… ah, João!

Eu costumava vê-lo como meu Adão da Bíblia. Assim como Deus, supostamente, fez Eva para ser uma companheira fiel, eu se-

ria assim para ele. Afinal, compartilhamos a mesma pele manchada e todas as consequências de nascer assim, pintados de chocolate. Só que, diferente de Adão e Eva, eu estaria para os momentos ruins e não para os bons.

O paraíso não era pra mim.

Demorou um pouco até eu perceber que essa não era a única diferença entre os primórdios da criação e o presente.

João se parecia mais com Eva, se bandeando pro lado inimigo na primeira oportunidade e esquecendo dos ensinamentos tão preciosos, compartilhados por Deus. Este último mais parecido conosco, amém. Infelizmente, a serpente havia conseguido convencê-la de que essa história de pecado era coisa da cabeça de Deus, deu-lhe o fruto proibido e levou minha Eva. Mas eu permaneci debaixo das asas de Deus, e, às vezes, penso que se eu fosse o Adão, tudo seria diferente.

Eu fiquei sozinha, mais uma vez, com todos os meus pecados e impurezas que eu nunca havia cometido, de fato, eu fiquei sozinha, da mesma forma que era antes, ou sempre foi, porque a solidão… aí está um sentimento que sempre foi meu amigo. Sempre foi assim, desde que eu me lembre.

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