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Meninas, mulheres e tranças

MENINAS, MULHERES E TRANÇAS

Ana Lúcia Santos

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Os sábados eram sempre os melhores dias para Ana Clara. Parecia que a casa estava em constante festa, devido à enorme quantidade de mulheres que preenchiam o espaço. O salão de Rita, sua mãe, ficava pequeno e logo se viam aglomerar pessoas em cada canto da casa. Cabelos sendo lavados, cortados, pintados ou trançados. O espelho grande na parede refletindo novos rostos a cada hora. Vozes femininas se misturando entre gritos, conversas, gargalhadas e muita alegria. — Ô Rita, tu não esqueceu de mim não, né? — Mulher, tu não sabe o que aconteceu... — Ana Clara, traz água pras clientes!

Conversa vai, conversa vem, cabelo vai, cabelo vem e a pequena Ana Clara transitando entre as mulheres com sua maletinha lilás. — O que é isso? Um brinquedinho? – Perguntava alguém, puxando assunto com a menina, enquanto esperava sua vez de ser atendida. — São meus materiais de manicure. Posso fazer sua unha?

Riam-se, e por achar fofo, deixavam que ela tentasse fazer, mas logo viam que a garotinha levava jeito e a brincadeira se tornava séria. Rita é que sempre colocava freios quando via que estava ficando demais. Sabia que a filha tinha habilidade para o ofício e que para ela pintar unhas era quase que uma brincadeira, mas a garotinha só tinha onze anos e não precisava viver agora o cansaço do trabalho, por enquanto já bastava ela, a mãe. — Está bom, filha. Já fez duas... vá comer um lanchinho ou chamar Dudu para brincar.

Era a deixa perfeita, descia a ladeira correndo e ia logo para a vendinha da esquina gastar os trocados que havia ganhado. — Tem geladinho, dona Joana? — Tem, minha filha. Diga a sua mãe que mais tarde vou lá pra ela dar um jeito nesses meus fiapos de cabelo.

As duas se acabavam na risada e Ana ia encontrar Dudu, com dois geladinhos de coco na mão. Ficavam juntos um pouco, mas logo ela voltava para casa, pois embora a companhia do amigo fosse divertida, adorava participar daquela bagunça bonita que era o salão de sua mãe. Da porta já dava para ouvir a incomparável e inconfundível risada de Rita, alta e escandalosa, que tomava todo o ambiente e fazia todas as clientes sorrirem também. — Ô Ana, pega as toalhas que estão lá no fundo, por favor!– Dizia a mãe ao ver a filha por perto. E assim mais um sábado chegava ao fim. A mãe exausta de tanto arrumar cabelos e a filha ao seu lado, ansiosa com o momento em que suas tranças seriam refeitas e seu cabelo ganharia uma nova cor. Ana Clara achava mágico o que Rita fazia com os dedos em seu cabelo, entrelaçando seus fios à linha, dividindo as mechas em seu couro cabeludo como se fossem caminhos, como se fossem longas estradas coloridas que desciam pelos seus ombros e costas, fazendo com que ela se sentisse ainda mais bonita. A cor escolhida esse mês havia sido azul e ela não poderia estar mais feliz com o resultado. — Olha só, vó, como minhas tranças ficaram lindas! – Falava, rodopiando a linda senhora de pele escura e cabelos brancos, sentada no sofá da sala. — Ficou mesmo, minha netinha. Rita é ótima!

Sentavam as três gerações de mulheres juntinhas e assistiam a novela até os olhos começarem a fechar sozinhos. Coisa que não demorava muito, devido ao cansaço do dia tão trabalhoso e logo iam dormir. Ao acordar, Ana já ia direto para o espelho, e ali gastava sempre alguns minutos admirando a beleza das tranças feitas por sua mãe.

Um dia, Rita foi ao mercado fazer as compras do mês e quando chegou encontrou a garotinha em um canto do salão, com o rosto em cima dos joelhos, chorando e soluçando. Ao seu lado estava uma das tesouras de cortar cabelo, vários pedaços de linha azul espalhados pelo chão e a avó tentando, sem êxito, consolar a garotinha, que no lugar das tranças, tinha apenas o que restou dos cortes. Rita deixou as sacolas no chão e sentou ao lado da filha. — O que houve, minha menina? – Perguntou com a voz serena transmitindo todo amor do mundo.

Entre soluços e lágrimas, as palavras começaram a sair, evidenciando a dor das primeiras percepções da crueldade do mundo em que vivia. — As meninas da escola estavam todas juntas cochichando, quando cheguei perto começaram a zombar de mim. Disseram que eu usava as tranças pra disfarçar meu cabelo duro, e que por mais que eu usasse um cabelo falso, o meu nunca seria grande e liso como o delas.

Rita abraçou a filha como se pedisse desculpas por não estar presente em todos os momentos para defendê-la. Onze anos… Apenas onze anos tinha sua garotinha e já teria que aprender a lidar com as injustiças e as mazelas do racismo. Assim como ela teve anteriormente. — Meu amor, você é linda! – Conseguiu dizer abraçada com a menina que ainda chorava. Seu cabelo é lindo. Você fica linda com tranças e sem tranças. Olha para mim, não deixa ninguém te convencer do contrário. Amanhã mamãe vai no colégio conversar com a direção, tá bom?

A avó que observava tudo no cantinho, aproximou-se e abraçou as duas. Ficaram ali, compondo aquele elo de três cordas, entrelaçadas quase como uma trança, até que as lágrimas de Ana Clara cessaram. — Mãe, podemos refazer meu cabelo? – Perguntou a garota, mas já sabia qual seria a resposta. Dentro de algumas horas, novas tranças azuis adornavam a cabeça da criança, que mais uma vez satisfeita, observava e se admirava no espelho.

Adormeceu nos braços da avó e, quando acordou para ir à escola no dia seguinte, surpreendeu-se com a mãe usando as mesmas tranças que ela. Os caminhos desenhados em suas cabeças indicavam que a trajetória de Ana Clara teria eventualmente dor e tristeza, mas enquanto pudesse, Rita faria de tudo para minimizar tais sentimentos e guiar sua pequena princesa por um caminho de amor-próprio e empoderamento. Sorriram ao se olhar e desceram a ladeira de mãos dadas, a mulher, a menina e as tranças azuis.

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