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A Passarela

A PASSARELA

Annandra Lís

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“Faz o corre, corre!” Sobe e desce ladeira e fortalece as pernas do homem.

Correndo da chuva, Mariana pega a passarela, enquanto o homem já não corre mais, permitindo que as gotas grossas de chuva pesem em suas costas. Não se importa. Ele também precisa pegar a passarela e você sabe como ela é perigosa. Até porque Mariana poderia continuar correndo, atravessando o olhar, gritando que atrás dela um homem como ele corria. O homem já não corre mais. O tempo de dois corres pode ser consumido, não se importa. A passarela é perigosa para homens como ele.

A passarela também é perigosa para mulheres como Mariana que exibem suas grandes bolsas com livros, cartões de meia passagem e de crédito, dinheiro da mãe e, muito provavelmente, um celular de última geração. A passarela, para ela, apresenta o risco de ficar sem comunicação e sem dinheiro após às dez da noite, a certeza do choro, o transtorno de fazer um Boletim de Ocorrência e esperar na fila do SAC para tirar segunda via dos documentos. A passarela, para ela, não é sinônimo de desfile. É o passo apressado, olhar para os lados e desconfiar de homens como ele.

Ele segue taciturno, o peso do mundo nos ombros. Sente alívio por já ter conseguido a grana paro o almoço do dia seguinte, com direito a um refrigerante (latinha de alumínio, claro, para ajudar no corre). A essa hora, a passarela parece um deserto. Mariana segue e, olhando assim de longe, ela parece ter os cabelos tão macios... Ele pensa como gostaria de ter alguém para abraçar quando chegar em casa. Mas a noite para ele, apesar de já alta, ainda está longe de terminar.

Mariana sente o peso dos olhos, sente que precisa apressar o passo. A passarela apresenta perigo e um homem como ele pode-

ria imobilizá-la facilmente. Ela pensa em como gostaria de chegar em casa logo, deitar um pouco, encontrar seu namorado e... Pensar nisso talvez não seja o caso! Não agora, a essa hora, e com um homem como ele a fitando numa passarela tão perigosa.

O homem pensa em quantas voltas ainda precisará dar para terminar o dia, calcula que por volta de uma e meia da manhã consiga subir a passarela com o último lote. Ele olha para Mariana e imagina a vida que ela leva, o quão macios devem ser sua cama e seus sapatos, imagina a faculdade que frequenta... Realidades tão distintas. O homem sorri, pensa que se continuar trabalhando duro e fazendo um pé-de-meia pode conseguir manter seu filho longe do trabalho pesado. Filho esse que ainda nem tem. Nem filho, nem esposa, nem família. Ele imagina o lar para onde provavelmente Mariana está voltando. Comida, café, abraços. Laços que ele não tem, mas segue com um sorriso esperançoso. Mariana pela centésima quarta vez olha para trás, nota seu sorriso e o homem se culpa por invadir a vida dela, mesmo que por imaginação. Mariana esboça uma careta, procura ao redor qualquer situação que lhe passe segurança, avista dois policiais parados numa viatura na esquina em que a passarela termina. Balbucia qualquer coisa. Ele pressente. Sente medo.

Eles sentem medo.

A passarela pode ser muito perigosa para ambos.

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