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Alquimia

ALQUIMIA

João Luas

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Sinto minha pele queimar sob o sol, a água fria do mar está apenas a alguns passos do meu alcance, mas não movimento nenhum músculo do meu corpo. Quente e frio, extremos opostos que insistem em existir, conflituosamente, diante um do outro, como eu e você. Sinto-me como um náufrago, nadando contra as marés que não perdoam navegantes distraídos. A sua imagem não me sai da mente, os traços grossos do seu rosto me atormentam e afogam a paz que dominava o meu corpo inexperiente de suas mãos. Estou à deriva das promessas do seu amor, agarrei-me ao que pude e mais ainda ao que inventei de nós, criei cenários que não existem em nenhum outro lugar que não dentro do meu coração apertado. Quando dei por mim, encontrei-me em um universo inteiramente alternativo, meticulosamente pensado para servir como refúgio de um amor que mais tinha cara e gosto de fruta apodrecida. Houve um momento em que, farto do nosso embate coronário, decidi que me mudaria para esse universo inventado. Inverti noite e dia, apenas me sentia vivo quando, ao dormir, viajava para o nosso universo, ao qual dei o nome de Alquimia. As visitas se tornaram cada vez mais frequentes. Vrá! Lá estava eu mais uma vez.

Olho para o céu pintado com o mais bonito dos azuis, como uma delicada tela que levara décadas para ficar pronta. O chão que me deito é um jardim infindável. Possuidor de um vibrante verde, que me afaga os olhos, em contraste com a beleza de todas as flores nascidas nessa terra, regadas pelo genuíno amor que jorra de cada molécula presente nesse universo que criei, para que fôssemos felizes, eu e minha versão de você. O céu mudava gradativamente de cor, do azul para o tom de rosa mais lindo que eu já havia visto, o vento passeia calmo, como um acalanto pelo meu corpo, e o cheiro das rosas se misturando, como se assim fizessem tocar uma sinfonia. Era você quem chega-

va. Estava a te esperar, dizia, puxando-me pela mão e levando-me ao céu como dois deuses a voar, alheios de tudo que não fosse nós dois, tentando provar um ao outro que só amor transbordava de nossos corpos reluzentes. O tempo em Alquimia sempre esteve ao meu favor, se contado de acordo com a convenção social da Terra, posso dizer que anos se passavam em algumas horas. Vivemos todas as vidas que conjecturei viver com você aqui, no mundo de cá. Quando eu acordava aqui, era quando lá eu dormia, e a última lembrança sempre era o seu rosto apaixonado, fitando o meu ao me colocar para dormir. Assim foram todas as minhas idas ao seu encontro em Alquimia, não havia como acordar na melhor parte, pois cada segundo era absolutamente especial e único. Tudo era perfeito.

Gotas d’água estão eternamente fadadas a ir em um brusco encontro com a superfície rígida do solo nos dias em que chovem, assim eu caí por terra quando me percebi refém das idealizações da minha mente fértil e desesperada por afeto. Percebi, enfim, que o que me fazia manter você aqui na Terra era aquilo que existia nos meus transes fictícios em Alquimia. Essa versão fantasiosa só existia porque você existe aqui, e mágica nenhuma me permite trocar vocês dois de lugar.

O nosso adiado fim já me doeria o suficiente se só houvesse um de você, mas como eu tratei de duplicar sua existência, precisei lidar com outro término no meu universo, o qual foi bem mais fácil, como em um golpe ao trono. Agora quem rege todos os cantos de Alquimia sou eu e apenas eu. Apesar de que eu já não viajo até lá como antes, ainda me dói o corpo, e o seu rosto ainda me atormenta. As cicatrizes no meu coração se fecham com lentidão, o processo de cura de amar alguém nunca termina, ainda que digam que sim, mas agora sei como me curar, isso basta.

Amei você como um sol severo beija uma pele desprotegida, ainda arde até os dias de hoje. Sempre que me invade esse ardor involuntário, cambaleio meu corpo frágil em direção ao mar, o frio não me assusta mais, pois agora sou eu que detenho o calor do sol em meu corpo. Entre o céu e o mar eu me encontro, eu me reescrevo, mergulho em mim mesmo e assim eu me salvo.

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