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Soneto aos Urubus
SONETO AOS URUBUS
Ananias Serranegra
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Logo quando a noite amanhecia De mim toda aflita em sussurros Segredos escondidos pelos muros Perdi, quem da vida me valia.
Roguei prece em coro, Ave-Maria! Dedos que no terço rezam urros Pra ver se lá dentro desses mundos A mãe da vida escute a romaria.
Dos corpos que seguem essa via Pretas almas caminham no silêncio No vão dos passos da saudade.
Meu grito é choro que geme no cio Sem força para seguir a abasia De quem no peito sente a crueldade
Eu-mãe quantas vezes pedi à Trindade -Abençoe, Santo meu, a casa nossa Ali sentada na cadeira no meio da prosa -Proteja meu menino de toda maldade.
Mas é curral de preto na porta do céu É curral de gente gemendo no asfalto É pedido de justiça rangendo bem alto É procissão de cor seguindo ao léu.
É despedida sentida com gosto de fel É missa rezada sem corpo presente É coroa de flores na cor da lembrança
E o mal da partida que bateu na gente Parece carpir sem pressa nos véus Que guarda o retrato da minha criança.
E que a paz não bata em minha porta Que não ladre meu nome nas esquinas Que dobre ao me ver suas retinas Pois para ela minh’alma anda morta.
Não sou de declamar verdade torta Meu grito é de acender as lamparinas Pra ver se alumia de perto as chacinas Que tem cor nas cores de suas frotas
Os camburões sobem em linhas tortas Nesse morro de papel que me alucina Escrevo pelos becos em minhas favelas.
Em cada canto fiz prece, ascendi velas Mas a casa grande declarou a minha sina: Verter em lágrimas a dor que me abarrota.
Vivo agora sozinha, na aridez da carne fria O sangue tem por costume entupir a veia Minha fé é o mastruz que ainda bombeia Nas raízes do meu corpo o suor que guia.
É ventre de preta meu verso quilombo É senda tecida nas mamas das yayás Sou viço fecundo, gene das yabás Virgens feridas marcadas nos ombros.
Do tempo, tenho chagas nos lombos Cicatrizes no corpo de quem tanto luta Nos joelhos, remendos costurados à mão
Enruguecidas que se juntam em oração De dia estalo nas costas, escrava da labuta De noite os tiros nas portas, almas putas.
Eu canto o verso que invento E decidi não mais temer loucuras Se a rima é ponto de canduras Versejo só, meu próprio sofrimento.
Escrevo meus próprios mandamentos Nos versículos das minhas tessituras Despejo em folhas brancas as agruras Pra ver se do amor me reinvento.
Mas não há de ter qualquer lamento Meu poço secou antes da primavera Acostumara-se ser só, só de saudade.
Meus olhos não brilham na quimera Esse terreiro de chão é desterro de preto Que nesse quintal de cruz fez seu leito.
É carne para urubu esse meu peito É carniça que bate aqui dentro Está nas vitrines o meu sofrimento Mastigam nos botecos com trejeitos
Dou a esses meus últimos sonetos Erguido em solos de amarguras O grito é parte do que sei, urdiduras Outra parte recebi vindo dos ventos.
É carne para urubu esse meu peito É carniça que bate aqui dentro Não adianta flores ou embalsamento
Meu odor se espalha na cidade Entupindo as vísceras da hipocrisia Esse canto é meu, é de alforria.