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Apenas o mar... Arlete Gudolle Lopes
E
la nunca tinha visto o mar. Aprendeu a apreciá-lo através de cartões-postais desgastados não só pelo manuseio. O tempo de escondê-los na gaveta da memória descoloriu as imagens de
tanto ansiar por vê-lo ao vivo. Um dia, quem sabe nem tão distante, seria honrada com essa suave alegria. Esperava. O pensamento tem o poder de eliminar as fronteiras da distância e do dinheiro. Tudo pode. Redesenhar tudo o que lhe desagradava, estava sendo uma paciente e dolorosa lição de vida. Não descansaria até os olhos pousarem nas águas marinhas. Não lhe importaria o jeito ou a cor. Límpidas, barrentas ou verde e nem azul. O mar. Não o desejava nem uma flor, inconcebível se lhe parecesse igual a uma borboleta. Lembrou-se de uma frase retirada de um conto de Clarice Lispector: Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. Tal qual a personagem, a menina que tanto sonhava ler As Reinações de Narizinho, livro de Monteiro Lobato, pressentia que, para ela, a felicidade tendia a ser sempre clandestina. Sem que o percebesse, havia nela uma tendência masoquista de querer ser infeliz, de desejar o impalpável ou o que só lhe parecia sonho. O corpo miúdo, ceifado pela asma, transformara-a medrosa à parte da robusta memória, que a alimentava, compelia-a a jamais desistir da vida ou de sonhar. O coração foi sendo minado, pacienciosamente, pelo esforço de respirar. Ia desfrutando das coisas e do mundo em conta-gotas como se viver fosse apenas um privilégio não