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Luana Diello
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Aberta
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Luana Diello
Por anos o fato de ser filha de uma Maria e João Qualquer me fez ter vergonha do bairro que cresci. As desigualdades que enfrentei e o constante silêncio que, conversava com a vontade de ter mais um pedacinho de pão, também direito dos meus irmãos, nunca passamos fome, mas muita vontade...e o João Qualquer? Eu amo a centelha divina que habita nele, mas hoje não quero lhes contar sobre homens, quero falar de nós, de ventre, força, ancestralidade, curas e toda aquela conversa franca que nós necessitamos, de mulher para mulher. Os anos se passaram e aqui agora, adulta, divorciada e mãe, lembro de algumas perguntas que não fiz por medo de desrespeitar aquela que se fez portal para que eu pudesse conhecer esse mundo, lembro de uma tarde que cheguei mais cedo da escola, tinha bolinho de chuva sobre a mesa e café fresquinho, mas ninguém estava na cozinha, ouvi um choro bem baixinho e fui até seu quarto, ela estava de joelhos. Coloquei o prato com bolinhos na cama e fiquei de joelhos ao lado dela, sem entender o que estava acontecendo, ela me abraçou e em um tom de alívio desesperador, fungando disse:
- Obrigada Deus! - Não precisa chorar mãe, conta pra mim, ninguém vai saber, nem Deus.
Ela riu, deslizou a mão no meu rosto 5 vezes e me fez uma proposta e quanto passava-me batom vermelho, brincávamos sempre
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que eu era uma cigana que conhecia o mundo inteiro e pedia-me para que lhe contasse uma história de lugares por onde habitei, e no final de cada aventura, ela falava:
- Tu és a porta aberta que nenhum homem pode fechar, espalha tuas histórias.
Lembro que uma vez perguntei:
- Mãe, quando eu crescer como faço para as pessoas acreditarem nas histórias que se passam na minha cabeça? - Ah meu anjinho, as pessoas sempre acreditam quando vem do coração, escuta e depois fala o que ele te diz.
Era quase esquizofrênico entender como podia uma mulher me falar sobre seguir instintos e mesmo assim submeter-se a situações que...eu não tenho palavras para descrever o que ela aceitou.
Por anos a julguei, condenei suas escolhas, juntei lenha, ascendi a fogueira na perspectiva de que ela gritasse, urrasse, fosse vista, mas imóvel, calada e serena ela ficava.
Nunca brigamos, mas chegamos bem perto na vez em que todos os porquês vieram à tona, ela me ouviu, eu a fiz chorar e foi o dia mais horrível da minha vida. E lá naquela cozinha gigante, mesmo sem noções sobre psicologia, constelação familiar, ou ter o nome Maria Qualquer registrado em um pedaço de papel, ela me falou uma frase que me quebrou, e assim em pedaços me joguei nos seus braços que sempre estiveram abertos, mas hoje não mais quentinho. - Se tu realmente me amas, respeita minhas escolhas!
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Que atire a primeira rosa, quem nunca tentou mudar o destino de quem amamos porque achávamos que a pessoa não sabia escolher.
Que amor é esse? Que prende, controla, sufoca, sobrecarrega.
Que amor é esse? Que emudece, impaciente, obrigatório, de discurso e ações ensaiadas.
Que amor é esse? Que julga a forma que o outro ama!
Que amor é esse? Que mente, omite, engabela.
Que tipo de amor tu sentes por ti?
Ao não reagir, Maria Qualquer me ensinou lições valiosas e como, a maioria de nós precisei quebrar a cara e por muitas vezes cheguei no fundo do poço para relembrar o que no amor me foi ensinado. Demorei para entender sobre ser agradável, sutil, flexível, me amar e perdoar-me, libertando quem veio antes.
Demorei, para entender que colocar o rosto no pó, durante uma prece não é sinal de humilhação e sim de banimentos, pois a terra aterra. Demorei para me jogar no abismo, isso me custou relacionamentos, amizades, empregos, uma rePUTAção que a própria palavra oculta em todas as vezes que segui meus instintos, meus sonhos, minhas vontades.
Demorei para entender que o poder da poesia é mais potente do que imaginamos. E foi nessa ânsia de ser a protagonista da minha história que mudei o foco, teve vezes em que escrevi quase todos os dias, geralmente falando das mesmas coisas, hoje, aqui prefiro viver, sentir e quando dá tempo sincronizo com o teclado o som do meu batedouro.
Demorei para entender que nossa brincadeira, foi uma preparação para que eu tivesse coragem de sonhar e usar vermelho! Que a
147 cozinha é um lugar mágico, que tudo que falo volta em bênçãos ou tristeza, a escolha é minha.
E por fim, demorei para entender que, foi ela quem optou por exatamente tudo, e nessa aceitação submeteu-se à anulação de suas vontades para que pudesse me ensinar o que não tolerar, o que nunca fazer, o que nunca aceitar. Sacrifícios? Nós mulheres entendemos exatamente o que é isso.
Para quem tu escreves? O que tu modificas? Do que eles lembrarão?
Faço-me essa pergunta constantemente toda vez que vejo o cursor piscando aqui na tela, só quero que as pessoas tentem se amar quando lerem aquilo que escrevo, nem que seja por segundos.
Eu sei, dá vontade de chorar às vezes, largar tudo e sumir, nos fizeram crer que para ter sucesso precisamos sacrificar o tempo com nossos filhos, nossos ciclos, nossa fé. E o que ganhamos com isso?
Uma independência violenta, egoísta que toma nossa criatividade, nossa energia e vidas, e assim socamos nossas crianças em cursos, acumulamos livros, celulares, medalhas, caixas de Clonazepan e Sibutramina. Nenhuma conquista deve ser maior do que o teu amor, em ser mulher.
Perdi 2 anos, 3 meses e 5 dias da vida do meu filho, perdi as primeiras palavras, os primeiros passos, os primeiros dias das mães, era necessário que eu trabalhasse e desde cedo aprendi ter o meu dinheiro, toda mãe deseja dar para seus pequenos aquilo que não teve, mas nem sempre eu conseguia, então percebi que até o que me foi dado, esse eu também não estava oferecendo.
Culpa? Vergonha? Fracasso? Sim, eu senti. Pedi demissão, e logo após fui tachada de louca, agora eu te pergunto quantas vezes te
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chamaram disso? Ah, pois é! E quantas vezes tu chamaste de louca, burra ou tonta outra mulher que estava exausta?
Se eu colocasse uma caneta nas tuas mãos agora, que possivelmente está hidratada e com as unhas bem pintadas, afinal hoje uns dos atributos da eficiência é a fidelidade com a manicure, e tu tivesses que desenhar aonde fica a linha do sucesso e da escravidão, tu saberias?
Não tenho nada contra quem pinta as unhas ou não, mas estou farta de ter que ouvir histórias das Marias Canceladas, pela crença no Orixá, de pedalar ou pedir carona pra ir trabalhar, da sobrancelha torta, a cutícula grossa, o cabelo sem corte, da marmita quase vazia e fria, estou farta de ver as manas zombando de outra mana que não usa coletor menstrual, e como se não bastasse o auge do constrangimento é ter que detalhar o motivo contínuo do anticoncepcional, e se a pílula falhar? Quem é que vai ter que dar conta?
A falta de comunhão com nossa essência criou uma pseudoliberdade, onde para sermos endeusadas pelos outros, sacrificamos o divino que habita em nós.
Essa angústia que às vezes te tira o sono, é intencional! A lua, estrelas, vento, rio, mar, matas, fogo, pedras, terra e ar te chamam, sentem tua falta. Desperta para o divino para que tu possas dormir em paz.
Assustador é ficar enraizada no medo, eu sei, o vento assusta! Mas, o tempo de mudança é agora, então estufa o peito, te empresto um batom vermelho e por favor, conta ao mundo as maravilhas que existe aí na imensidão que tu és. Estejas aberta, sê a abertura,
149 tu és necessária, honre o amor, honre a luz que recebestes das tuas ancestrais.
Ah mulher, tu és a porta aberta que nenhum homem pode fechar! Coloca em prática o que tens e faze um legado.
Enquanto a mim, sigo por aí girando minha saia e possivelmente descalça, contado minhas histórias nesse mundão, queimando meus incensos, causando escândalo nos retrógrados com minha gargalhada. Se um dia conseguirmos nos encontrar, tenho certeza que em algum lugar no universo com uma voz antiga vais dizer:
- Obrigada Deus!