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Arlete Gudolle Lopes
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Apenas o mar...
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Arlete Gudolle Lopes
Ela nunca tinha visto o mar. Aprendeu a apreciá-lo através de cartões-postais desgastados não só pelo manuseio. O tempo de escondê-los na gaveta da memória descoloriu as imagens de tanto ansiar por vê-lo ao vivo. Um dia, quem sabe nem tão distante, seria honrada com essa suave alegria. Esperava. O pensamento tem o poder de eliminar as fronteiras da distância e do dinheiro.
Tudo pode. Redesenhar tudo o que lhe desagradava, estava sendo uma paciente e dolorosa lição de vida. Não descansaria até os olhos pousarem nas águas marinhas. Não lhe importaria o jeito ou a cor.
Límpidas, barrentas ou verde e nem azul. O mar. Não o desejava nem uma flor, inconcebível se lhe parecesse igual a uma borboleta.
Lembrou-se de uma frase retirada de um conto de Clarice Lispector:
Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. Tal qual a personagem, a menina que tanto sonhava ler As Reinações de Narizinho, livro de Monteiro Lobato, pressentia que, para ela, a felicidade tendia a ser sempre clandestina. Sem que o percebesse, havia nela uma tendência masoquista de querer ser infeliz, de desejar o impalpável ou o que só lhe parecia sonho. O corpo miúdo, ceifado pela asma, transformara-a medrosa à parte da robusta memória, que a alimentava, compelia-a a jamais desistir da vida ou de sonhar. O coração foi sendo minado, pacienciosamente, pelo esforço de respirar. Ia desfrutando das coisas e do mundo em conta-gotas como se viver fosse apenas um privilégio não
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seu, mas dos outros. Como a chama de uma vela assoprada pelo vento, tudo poderia terminar. Tentava encontrar forças suficientes para sobreviver. Cada pôr de sol, auroras que via surgirem, gotas de chuva ou míseras réstias de sol lhe eram talismãs ou loterias. O dia seguinte deixou de ser futuro para se transmutar em milagre e espera.
A felicidade lhe surgiu na voz de uma tia. Não a mais amada, daí o espanto. Às vezes, as mãos se estendem em braços inesperados. Eis um dos doces regalos da vida, pensou, mas não disse nada. Não articulou um ruído sequer de agradecimento. Não sorriu. Muito menos chorou. A emoção havia lhe ressecado as palavras. Não sabia o que dizer. Imaginava se essa inesperada generosidade poderia ter algum significado, se escondia um pressentimento ou uma fatal anunciação. Seus olhos, cheios de um mar que nunca viu, poderiam descolorir as imagens que formatou com tamanho cuidado e por incontáveis vezes. Deu-se conta de que a realidade tem duplo poder: o de sabotar o imaginado, ou o de emprestar ainda maior beleza e melhores contornos ao nunca visto. De tanto esperar, estava se sentindo quase feliz. Foi tomada de felicidade efêmera, repentina, que lhe emplumava o peito e favorecia-a com jeito bem melhor de respirar. Não ofegava. Respirava com cautela no início. Depois, de forma sequencial como nunca houvera respirado. Do nada, intuiu que o modo de respiração desenfreada poderia não ser dela.
Então, fez o inimaginável. Retirou, da mochila, um estojinho de plástico. Abriu-o. Pegou dele a escova descabelada pelo longo manuseio. Passou, com extremado capricho, a pasta. Abriu a boca. Sorriu para um azul sem fim que se esparramava diante dela. Escovou os dentes. Enfim, estava no mar. Quem sabe, naquela imensidão,
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finalmente, pescaria um coração novo para lhe bater no peito, cheio de vida. Lembrou-se da canção de Dorival Caymmi, que a mãe entoava para ela dormir. Começou a cantar: É doce morrer no mar/ Nas ondas verdes do mar. Emudeceu a cantiga. Estava emocionada. A tia continuou: Saveiro partiu de noite foi/ Madrugada não voltou/ O marinheiro bonito/ Sereia levou...
De repente, não queria mais ser ela, nem o marinheiro e muito menos a sereia. Queria ser o próprio mar.
Possui artigos publicados em Zero Hora e vários jornais do Brasil, é autora de “O inquietante perfume de cravos” e “Fugaz Eternidade”. Foi patrona da 17ª Feira do Livro de Santiago. Pertence à Academia Santiaguense de Letras.