Brasil, Brazil, Breazail: utopias antropofágicas de Rosa Magalhães

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

BRASIL, BRAZIL, BREAZAIL: UTOPIAS ANTROPOFÁGICAS DE ROSA MAGALHÃES

Leonardo Augusto Bora

Rio de Janeiro Maio de 2018


Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

BRASIL, BRAZIL, BREAZAIL: UTOPIAS ANTROPOFÁGICAS DE ROSA MAGALHÃES

Leonardo Augusto Bora

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária). Orientador: Prof. Dr. Frederico Augusto Liberalli de Góes. Co-Orientador: Prof. Dr. Luiz Felipe Ferreira – UERJ.

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Brasil, Brazil, Breazail: utopias antropofágicas de Rosa Magalhães Leonardo Augusto Bora Orientador: Professor Doutor Frederico Augusto Liberalli de Góes Co-Orientador: Professor Doutor Luiz Felipe Ferreira - UERJ Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária).

Examinada por: ______________________________________________ Presidente: Prof. Doutor Frederico Augusto Liberalli de Góes (Ciência da Literatura/UFRJ) _________________________________________________ Profª. Doutora Beatriz Vieira de Resende (Ciência da Literatura/UFRJ)

_________________________________________________ Profª. Doutora Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (Antropologia/IFICS - UFRJ)

_________________________________________________ Profª. Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira (Ciência da Literatura/UFRJ)

_________________________________________________ Prof. Doutor Samuel Sampaio Abrantes (Escola de Belas Artes/UFRJ)

_________________________________________________ Profª. Doutora Helenise Monteiro Guimarães (Escola de Belas Artes/UFRJ), Suplente

_________________________________________________ Profª. Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins (Ciência da Literatura/UFRJ), Suplente

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Sumário

I – Por mares nunca dantes navegados..........................................................................17 II – A receita do bom vermelho......................................................................................44 II. 1 – A dança de Goya e Bosch....................................................................................44 II. 2 – Dos mandarins chineses aos mineiros celtas........................................................58 II. 2. 1 – Vermelho chinês...............................................................................................58 II. 2. 2 – Uma ilha chamada Brasil?................................................................................67 II. 2. 3 – Breazail: metanarrativa metálica......................................................................74 II. 3 – Fortaleza e feitoria................................................................................................81 II. 3. 1 – Américo Vespúcio, o personagem da vez........................................................81 II. 3. 2 – Cabo Frio, o cenário do clímax........................................................................88 II. 3. 3 – Pau-Brasil.........................................................................................................98 II. 4 – O chão da Utopia................................................................................................109 II. 4. 1 – Thomas More e Antoni Gaudí........................................................................109 II. 4. 2 - Utopias e heterotopias: Michel Foucault, navegador......................................122 II. 4. 3 – O heterotópico Carnaval Carioca: invocando Mário de Andrade.................133 III – Utopias ao sol, heterotopias selvagens..................................................................145 III. 1 – Novos mundos, velhas utopias..........................................................................145 III. 2 – De luta, esperança, amor e paz........................................................................157 III. 3 – As distopias e o pop-nostalgia...........................................................................169 IV – “E la nave va...”: viagens reais e viagens simbólicas............................................182 IV. 1 – A bagagem.........................................................................................................182 IV. 2 - Diários de navegação.........................................................................................187 IV. 3 – O céu não é o limite...........................................................................................211 V – Os olhares estrangeiros: o eu e o outro...................................................................222 V. 1 – O Brasil muito longe daqui – ou a quiche e a mandioca....................................222 V.1. 1 – Os mitos que enlaçam antigas tradições.........................................................226 V.1.2 – Orientalismos....................................................................................................227 V.1.3 – Vive la France!.................................................................................................229 V.1.4 – Folias geladas ...................................................................................................235 V.1.5 – E foi da Áustria a escolhida..............................................................................238 V.1.6 – British Style ......................................................................................................238 V.1.7 – Nesse feitiço tem castanhola.............................................................................239 5


V.1.8 – Fado tropical.....................................................................................................241 V.1.9 – Nobreza holandesa............................................................................................242 V.1.10 – Tambor africano, solo feiticeiro.....................................................................243 V.1.11 – Toda a América Pré-Colombiana foi saqueada em suas riquezas.................246 V.1.12- Tutti-multinacional...........................................................................................247 VI – Meu Brasil brasileiro? Sobre o arraiá de cá..........................................................251 VI. 1 – A festança brasileira..........................................................................................251 VI.1.1- O sertão que não é só lamento e a mítica Bahia...............................................254 VI.1.2 – No balanço da expedição................................................................................259 VI.1.3 – No coração da floresta....................................................................................260 VI.1.4 – Pianópolis – Rua do Ouvidor..........................................................................261 VI.1.5 – O medievo de lá pra cá....................................................................................265 VI.1.6 – A folia de cocar...............................................................................................267 VI.1.7- O carnaval nosso de cada ano...........................................................................269 VI. 2 – O panelaço brasileiro.........................................................................................279 VI.2.1-Pirão de areia e sopa de vento...........................................................................281 VI.2.2-Pirataria S/A......................................................................................................283 VI.2.3 –A carne é fraca, é isso aí..................................................................................285 VI.2.4 – Onisuáquisólamento........................................................................................289 VII – Conclusão – Utopias antropofágicas...................................................................293 VIII – Referências bibliográficas..................................................................................324 IX – Anexos...................................................................................................................337

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Índice de enredos e desfiles analisados (por ano de apresentação)

1982 - Bum Bum Paticumbum Prugurundum, Império Serrano 1984 – Alô, Mamãe!, Imperatriz Leopoldinense 1987 – O ti-ti-ti do sapoti, Estácio de Sá 1988 – O boi dá bode, Estácio de Sá 1989 – Um, dois, feijão com arroz, Estácio de Sá 1990 – Sou amigo do Rei, Acadêmicos do Salgueiro 1991 – Me masso se não passo pela Rua do Ouvidor, Acadêmicos do Salgueiro 1992 – Não existe pecado abaixo do Equador, Imperatriz Leopoldinense 1993 – Marquês que é Marquês do Sassarico é Freguês, Imperatriz Leopoldinense 1994 – Catarina de Médicis na Corte dos Tupinambôs e Tabajeres, Imperatriz Leopoldinense 1995 – Mais vale um jegue que me carregue que um camelo que me derrube lá no Ceará, Imperatriz Leopoldinense 1996 – Imperatriz Leopoldinense honrosamente apresenta: Leopoldina, Imperatriz do Brasil, Imperatriz Leopoldinense 1997 – Eu sou da lira, não posso negar, Imperatriz Leopoldinense 1998 – Quase no ano 2000, Imperatriz Leopoldinense 1999 – Brasil, mostra a sua cara em... Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae, Imperatriz Leopoldinense 2000 – Quem descobriu o Brasil foi Seu Cabral, no dia 22 de abril, dois meses depois do carnaval, Imperatriz Leopoldinense 2001 – Cana-caiana, cana roxa, cana fita, cana preta, amarela, Pernambuco... quero vê descê o suco, na pancada do ganzá!, Imperatriz Leopoldinense 2002 – Goitacazes: Tupi or not Tupi, in a South American Way!, Imperatriz Leopoldinense 2003 – Nem todo pirata tem perna de pau, olho de vidro e cara de mau, Imperatriz Leopoldinense 2004 – Breazail, Imperatriz Leopoldinense 2005 – Uma delirante confusão fabulística, Imperatriz Leopoldinense 2006 – Um por todos e todos por um, Imperatriz Leopoldinense 2007 – Teresinhaaa, uhuhuuu!!! Vocês querem bacalhau?, Imperatriz Leopoldinense 2008 – João e Marias, Imperatriz Leopoldinense 2009 – Imperatriz... só quer mostrar que faz samba também!, Imperatriz Leopoldinense 2010 – Dom Quixote de La Mancha, o cavaleiro dos sonhos impossíveis, União da Ilha do Governador 7


2010 – João das Ruas do Rio, Impérion Serrano 2011 – Mitos e histórias entrelaçados pelos fios de cabelo, Unidos de Vila Isabel 2012 – Você semba lá... que eu sambo cá! O canto livre de Angola, Unidos de Vila Isabel 2013 – A Vila canta o Brasil celeiro do mundo – água no feijão que chegou mais um!, Unidos de Vila Isabel 2014 – A festança brasileira cai no samba da Mangueira, Estação Primeira de Mangueira 2015 – A incrível história do homem que só tinha medo da Matinta Pereira, da Tocandira e da Onça Pé-de-Boi, São Clemente 2016 – Mais de mil palhaços no salão, São Clemente 2017 – Onisuáquimalipanse – envergonhe-se quem pensar mal disso, São Clemente 2018 – De Repente de Lá Pra Cá e Dirrepente de Cá Pra Lá..., Portela

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Título Brasil, Brazil, Breazail: utopias antropofágicas de Rosa Magalhães Resumo Assumidamente experimental e transdisciplinar, a tese, espécie de diário de navegação, analisa a obra da carnavalesca Rosa Magalhães a partir de eixos temáticos extraídos da narrativa desenvolvida pela autora para o desfile de 2004 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, intitulada Breazail. O enredo (o texto escrito e a sua tradução em fantasias e alegorias, além do próprio samba de enredo) propõe reflexões sobre os usos simbólicos da cor vermelha e as origens do nome Brasil, enfocando a criação da primeira feitoria portuguesa nas Américas, fundada por Américo Vespúcio, entre 1503 e 1504, no território da atual Cabo Frio, litoral fluminense. Depois de carnavalizar tal episódio dos nossos “primeiros tempos”, a artista mergulha na prosa de Utopia, o livro-base de Thomas More, comparando a ilha dos utopianos ao cenário brasileiro. Trata-se de uma narrativa fundacional e utópica, que propõe diálogos interartísticos dos mais sofisticados (vide a presença de Bosch, Goya e Gaudí) e que viaja por diferentes localidades do globo (Europa continental, China, Irlanda, Brasil). Quando se estabelece um diálogo com as teorizações de Michel Foucault, graças à aproximação proposta por Alberto Pucheu ao analisar o poema Carnaval Carioca, de Mário de Andrade, é possível observar as dimensões heterotópicas e heterocrônicas do texto em questão. Do conceito de utopia desdobram-se os princípios das heterotopias, conforme o enunciado pelo filósofo francês. A fim de expandir a análise e compreender com maior profundidade o universo trabalhado pela autora, são extraídas de Breazail algumas chaves de leitura: os acordes utópicos (e distópicos) recorrentes; a presença de viagens e navios; o contraste entre os olhares estrangeiros e um senso de brasilidade (a tal “identidade nacional”) que se manifesta de diversos modos, das festas populares aos panelaços políticos; o sabor antropofágico, expansão e atualização das ideias defendidas na dissertação A Antropofagia de Rosa Magalhães, de 2014. Ao final, quando o último desfile por ela assinado recebe apontamentos críticos (sob as lentes do olhar dialético), defende-se que a carnavalesca pode ser considerada uma narradora do deslocamento, diaspórica, fronteiriça, cuja obra tenciona, direta ou indiretamente, a ampla temática dos estudos utópicos, redesenhando rotas e mapas no palco aberto da Marquês de Sapucaí; reprocessando e ressignificando, ano após ano, um universo simbólico dos mais inclusivos e interconectados. Palavras-chave Carnaval; Escola de Samba; Rosa Magalhães; Fantasias; Alegorias; Utopia; Heterotopia; Distopia; Antropofagia; Thomas More; Mário de Andrade; Oswald de Andrade; Michel Foucault; Olhar dialético; Diáspora; Ressignificação; Identidade nacional.

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Title Brasil, Brazil, Breazail: anthropophagic utopias of Rosa Magalhães Abstract The thesis, a kind of navigational diary, analyzes the work of the carnival designer Rosa Magalhães, based on thematic axes extracted from the narrative developed by the author for the 2004 parade of the Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, entitled Breazail. The plot (the written text and its translation in costumes and “carnival floats”, as well as the samba itself) proposes reflections on the symbolic uses of the red color and the origins of the name Brazil, focusing on the creation of the first Portuguese factory in the Americas, founded by Américo Vespuccio, between 1503 and 1504, in the territory of the current Cabo Frio, coastline of Rio de Janeiro. After carnavalizing this episode of brazilian "early times", the artist immerses herself in the prose of Utopia, Thomas More's basic book, comparing the island of the Utopians to the Brazilian scene. It is a foundational and utopian narrative, which proposes the most sophisticated dialogues (the presence of Bosch, Goya and Gaudí confirmes this) and who travels from different parts of the globe (continental Europe, China, Ireland, Brazil). When a dialogue is established with Michel Foucault's theorizations, thanks to the approach proposed by Alberto Pucheu in analyzing the poem Carnaval Carioca, by Mário de Andrade, it is possible to observe the heterotopic and heterocronic dimensions of the text in question. From the concept of utopia unfold the principles of heterotopias, as stated by the French philosopher. In order to expand the analysis and to understand in greater depth the universe worked by the author, some keys of reading are extracted from Breazail: the recurrent utopian (and distopian) chords; the presence of trips and ships; the contrast between the foreign glances and a sense of Brazilianness (the "national identity") that manifests itself in various ways, from popular festivals to political protests; the anthropophagic flavor, expansion and updating of the ideas defended in 2014 Rosa Magalhães's Anthropophagy. At the end, when the last parade she signs receives critical notes (under the lens of the dialectic view), it is defended that Rosa Magalhães can be considered a narrator of displacement; a traveling artist whose work intends, directly or indirectly, the broad theme of Utopian studies, redesigning routes and maps at the Marquês de Sapucaí Avenue, reprocessing and restating, year after year, a symbolic universe of the most inclusive and interconnected. Key-words Carnival; Samba school; Rosa Magalhães; Costumes; Carnival floats; Utopia; Heterotopia; Dystopia; Anthropophagy; Thomas More; Mário de Andrade; Oswald de Andrade; Michel Foucault; Dialectical view; Diaspora; Ressignification; National identity.

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Titre Brasil, Brazil, Breazail: utopies anthropophages de Rosa Magalhães Résumé Certes expérimental et transdisciplinaire, la thèse, une sorte de journal de bord, analyse l'ouvre de Rosa Magalhães et des thèmes extraits du récit développé par l'auteur pour 2004 défilé de L'École de Samba Imperatriz Leopoldinense, intitulé Breazail. L'intrigue (le texte écrit et sa traduction en costumes et les chars allegoriques, en plus de la "sambaintrigue" elle-même) propose des réflexions sur l'utilisation symbolique de la couleur rouge et les origines du nom du Brésil, en mettant l'accent sur la création de le premièr entrepôt commercial portugaise dans les Amériques, fondée par Amerigo Vespucci, entre 1503 et 1504, dans la plage de Cabo Frio, côte de Rio de Janeiro. Après la carnavalization de cet épisode de les “premiers jours” du Brésil, l'artiste plonge dans la prose de l'Utopie, le livre de Thomas More, comparant l'île de Utopians avec la scène brésilienne. Il est un récit fondateur et utopique, qui propose des dialogues interartistiques les plus sophistiqués (voir la présence de Bosch, Goya et Gaudí) et se rend à différents endroits du globe (l'Europe continentale, la Chine, l'Irlande, Brésil). Lors de l'établissement d'un dialogue avec les théories de Michel Foucault, grâce à l'approche proposée par Alberto Pucheu pour analyser le poème de Mário de Andrade Carnaval Carioca, vous pouvez voir les dimensions hétérotopiques et hétérocroniques du texte en question. Du concept d'utopie se dérouler les principes de les hétérotopies, comme la déclaration du philosophe français. Afin d'élargir l'analyse et à comprendre plus profondément l'univers travaillé par l'auteur, sont extraites de Breazail quelques clés de lecture: les accords utopiques (et dystopique); la présence de voyages et de navires; le contraste entre les yeux étrangers et un sens de Brazilianness (l '”identité nationale”) qui se manifeste de diverses manières, des festivals populaires et des protestations politiques; le goût cannibale, l'expansion et la modernisation des idées qui sont défendu dans la thèse L’Anthropophagie de Rosa Magalhães, en 2014. À la fin, lorsque le dernier défilé signé par elle obtient des notes critiques (à travers la lentille de regard dialectique), on soutient que l'artiste peut être considéré comme une narrateur diasporique, frontière; une artiste itinérant dont le travail port, directement ou indirectement, sur le thème général des études utopiques. L’artiste refonte des itinéraires et des cartes sur la scène ouverte de l'Avenue Marquês de Sapucaí, le retraitement et donner un nouveau sens à, année après année, un univers symbolique du plus inclusif et interconnecté. Mots-clés Carnaval; École de Samba; Rosa Magalhães; Costumes; Chars Allégoriques; Utopie; Hétérotopie; Dystopie; Anthropophagie; Thomas More; Mário de Andrade; Oswald de Andrade; Michel Foucault; Regard dialectique; Diaspora; Resignification; Identité nationale.

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Agradecimentos

Minha carne é de carnaval (...)

Novamente (e sempre), aos meus pais, Ana Maria e Sérgio Luiz, e ao meu irmão Luiz Fernando, Guga. Unidos do Rio Bonito, em Irati, Paraná, e na Passarela do Samba. Ao professor Fred Góes, motor de criatividade e alegria, visão sem a qual este trabalho perderia a cor: axé, evoé, saravá! Ao professor Felipe Ferreira, incentivador desmedido e interlocutor preciso: a crítica necessária ao pensar carnavalesco. À professora Béatrice Bonhomme e ao professor Jean-Pierre Triffaux, que gentilmente me receberam, na Université Nice Sophia Antipolis, e muito contribuíram com leituras e conselhos. À professora Vera Karam de Chueiri, amiga e (des)orientadora, nas veredas vivas; e aos professores Dirce Moreira Bastos, Deizi Link, Cátia Toledo, Marta Morais da Costa, Juarez Poletto e Marcelo Franz, influências e referências. Ao professor Alberto Pucheu, que me apresentou ao conceito de heterotopia. Ao curso de Produção Cultural (Procult) da UFF e às memórias do IACS, onde tive a felicidade de ser professor substituto, de 2015 a 2016; e a todos os estudantes que tanto me ensinaram (e presentearam com canecas). Às escolas de samba Mocidade Unida do Santa Marta, Acadêmicos do Sossego e Acadêmicos do Cubango, a minha trajetória e o chão do barracão. Ao Gabriel Haddad, companheiro de trabalho e de maluquices, com quem divido a criação artística e a busca pelas utopias; e à família Haddad Gomes Porto, que me abrigou em Niterói. Ao Thiago Hoshino, que apesar da distância permanece comigo – nas mandingas, nos afetos, nos carinhos acumulados. Modupé! Ao irmão Vinícius Natal, amigo de todas as horas, mistérios das madrugadas: sambas, dramas, cirandas, furadas. À Letícia Tostes e ao Felipe Ortega, em Nice, Mônaco, Yerevan: sem risos e retratos a vida não seria bela.

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À Indiara Liz, anfitriã oficial em Paris, cerejas à beira do Sena, luz na Rue Augereau; e às amigas Dandara Damas, Carol Iantas e Marina Lacerda, flores de Frida Kahlo, perfumes de alecrim. Ao Rafael Gonçalves, ao Rafael Bqueer e ao Vítor Saraiva, artistas brilhantes, vozes dissonantes, caldeirão fervente de sonhos e aprendizados – voilà! Ao Renan Rodrigues, Reisado, vizinhança tardiamente descoberta. Ao Douglas Soares e ao Felipe Herzog, amigos “não-óbvios”, olhares de alumbramentos – o meu feliz reencontro com o brilho cinematográfico. Ao Andy Malafaia, que me levou a Cannes (cantando sambas de enredo). Ao Fábio Fabato e ao Daniel Reis, Pura Soberba, história beirando a poesia. Ao Hugo de Oliveira, samba de Noel; ao Thiago Santos, madrugadas para a Cubango; ao Guilherme Estêvão, Rei Abacaxi; e ao João Gustavo Melo, grande enredista. Ao Mozart Pereira e à Pati Monteiro, que deram ao meu Rio de Janeiro, em 2016, o aconchego da Curitiba dos tempos de Maio-Nesse; e à Sabrina Rossi e ao Mariano Zamponi, tragos de Fernet, trilhas argentinas. Ao Evandro Vargas, com quem dividi apartamento por cinco anos, na Tijuca: energias confluentes, leoninos tranquilos. Ao Alan Diniz e ao Luiz Bianchi, dos jantares mais aguardados: inteligência que estra(e)la; e aos amigos Thiago Lacerda e Vini Gresilense – tudo em verde e branco, Ramos ou Padre Miguel. Às amigas Natália Guerellus e Érica Ignácio, a certeza das sincronicidades. À Ana Beatriz Genúncio, o carinho que extravasa e não cabe em categorias. À carnavalesca Maria Augusta Rodrigues, professora que me ensinou as muitas formas da cor; ao carnavalesco Alexandre Louzada, que me ensinou a manter a calma. Ao mestre Eduardo Gonçalves, folia em full color. Aos tantos, tantos amigos do samba – listar todos é impensável. Ao Wigder Frota, que atenciosamente me enviou preciosos registros fotográficos do desfile de 2004 da Imperatriz Leopoldinense. Aos companheiros de “turistese” Brena Moura, Eduardo Rosal e Tássia Nascimento, que me fazem redesenhar o mar da Côte d’Azur (Copacabana, esta semana, o mar sou eu!). Aos colegas, professores e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 13


Aos professores Beatriz Vieira de Resende, Helenise Monteiro Guimarães, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, Martha Alkimin de Araújo Vieira, Samuel Sampaio Abrantes e Vera Lúcia de Oliveira Lins, que aceitaram participar da banca e avaliar este trabalho. Ao Centro de Memória do Carnaval – LIESA, na figura de Fernando Araújo. Ao programa Erasmus +, pela concessão de bolsa de mobilidade acadêmica (Doutorado-sanduíche)

para

a

Université

Nice

Sophia

Antipolis.

Especiais

agradecimentos a Paulo Henrique Schau Guerra, Sara Sidaoui, Pauline Achard, Anita Briand, Odile Gannier, Filomena Iooss, Alexandra Jadin e Elise Naudinot. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Capes, pela bolsa concedida para a realização da pesquisa e das tantas viagens geográficas e bibliográficas.

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ao povo do samba, ao povo da rua 15


Eu índio diferente, mau selvagem, bom selvagem nascido para o humanismo, à lei da natureza me despindo com pilotos e epístolas, cabrais, navegações e viagens e ramúsios, santas-cruzes, vespúcios, paus-brasis.

(...)

Cravado de premissas e de olhares, de holofotes e cines, eis teu índio, grudado de tucanos e de araras, operário sem lei e sem Rousseau, incluído em dicionário filosófico; metáfora, gravura, ópera, símbolo.

(...) Quem vos mandou inventar índios… Morus, ilhas escritas, Morus, utopias, Morus, revoluções, Morus, ó Morus? Os índios se esconderam no homem branco, nos seus assombros, ele se invadindo de ocasionados índios, de outros índios. Jorge de Lima – Invenção de Orfeu (Canto I)

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I - Por mares nunca dantes navegados...

«Mas cá onde mais se alarga, ali tereis Parte também, co’o pau vermelho nota; De Santa Cruz o nome lhe poreis; Descobri-la-á a primeira vossa frota. Luís de Camões – Os Lusíadas (Canto X, 140)

* Nice, 2 de fevereiro de 2017. Dia da Rainha do Mar, Mãe de todos os peixes. Não há areia na praia, mas pedras. Noite fria, água congelante. Do outro lado do Mediterrâneo, a Argélia e a Tunísia, de onde partiram os dromedários para a primeira expedição científica brasileira – as minhas memórias de 1995, o jegue escondido na história. De falta de mandinga o carnaval não morre? É fato que inúmeras escolas de samba, inclusive das ditas “grandes”, do Grupo Especial do Rio de Janeiro, estão vendo as suas alas de Baianas (obrigatórias desde o regulamento de 1933, uma vez que sintetizam a matriz espiritual do samba, o legado de Ciata) esvaziadas progressivamente devido ao avanço das igrejas neopentecostais e da conversão que não tolera os terreiros (as origens das “quadras” de ensaios), demonizando os saberes afro-ameríndios que enredam o tecido cultural em que as agremiações sambistas se veem amarradas desde os míticos nascimentos, num tempo de chão de estrelas, cabrochas, barracões de zinco – idílios que alimento, porque não vivi. Apesar das ameaças, felizmente, os mais elaborados despachos oferecidos a Exus e Pombagiras continuam a disputar espaço, na encruzilhada entre as ruas Carlos Xavier e Henrique Braga, Oswaldo Cruz e Madureira, em frente à entrada do pavilhão onde mais de 30 escolas de samba dos grupos “menores”, que desfilam na Estrada Intendente Magalhães, muito longe da Sapucaí, constroem os seus carros alegóricos (que, via de regra, são feitos com sobras de carnavais passados, doações da Cidade do Samba – do lixo que se faz o “luxo”, à la Joãosinho Trinta). São tantas e tão fartas as oferendas, garrafas, taças, alguidares, que a visão da encruzilhada antecipa uma visão carnavalesca: carros alegóricos multicoloridos (com destaque para o vermelho) enfileirados na concentração (imagem 1). Admirador que também sou de Pedro Arcanjo, faço coro a Caetano Veloso e me entendo enquanto “ateu que vê milagres” – Jorge Amado, afinal, sabia das coisas. Acredito, e bem, nas mandingas das esquinas do mundo. Na cidade de João do Rio, Lima Barreto e Machado de Assis, a conexão com o carnaval 17


potencializou o meu sincretismo: ano após ano insiro novos elementos no panteão do meu altar (que, dependurado tortamente, não passa de uma caixa de frutas).

Imagem 1: Oferendas na encruzilhada entre as ruas Carlos Xavier e Henrique Braga, na semana que antecedeu o carnaval de 2016. Foto do autor.

Em meados de novembro de 2013, quando entrei na Sala Guimarães Rosa, na Faculdade de Letras da UFRJ, para a entrevista (arguição de memorial e anteprojeto) de seleção para o Doutorado em Ciência da Literatura, carregava em um dos bolsos da calça o colar de sementes de pau-brasil adquirido durante a Cúpula dos Povos, evento paralelo à Rio+20, realizado no Aterro do Flamengo, em junho de 2012. Apertei as sementes durante a entrevista e, depois, nada aliviado, devolvi o colar ao seu lugar de adoração: o torso nu da imagem de São Sebastião, o líder da milícia do altar-caixote, junto a um brilhoso Oxóssi confeccionado no barracão da Mocidade Independente de Padre Miguel pelo aderecista Diney Lima. Um manto vermelho-brasil para o santo que dá nome à cidade – cuja igreja, a poucos passos da casa em que eu morava, na Tijuca, guarda a pedra fundacional do Rio e os ossos de Estácio de Sá. O colar foi a minha mandinga e a minha mandinga vingou: ocorre que fui aprovado, e em primeiro lugar, para falar de Breazail e do braseiro que nos deu o nome (supostamente, porque tudo são suposições). O colar, uma infelicidade, foi corroído pelos bichos e não sobreviveu à mudança realizada dias antes da viagem para Nice, de onde escrevo tais ruminações, na condição de “doutorandoexilado”, intercambista, que se vê distante dos sambas, dos batuques, dos ensaios, das últimas confusões que antecedem os desfiles (e como é estranho e opaco trocar o verão 18


pelo inverno e acompanhar pela tela a catarse!). Ruínas, a matéria-prima. A cepa das melhores narrativas e das memórias mais sofisticadas. No campo específico dos estudos voltados para o universo das escolas de samba do Rio de Janeiro, não parece equivocada a afirmação de que Rosa Magalhães, Fernando Pinto e Joãosinho Trinta, cada um ao seu modo, são os artistas que mais rebuscadas narrativas de enredo levaram para as avenidas dos desfiles, pouco se curvando às facilidades do gênero, como biografias lineares e roteiros turísticos (os chamados “enredos CEP”, muito debatidos na contemporaneidade – tanto mais quando a contraditória figura do “patrocinador” entra em cena, alimentando espinhosas celeumas). Há, sobre as criações da carnavalesca, poucos artigos acadêmicos encontrados em revistas de faculdades de Artes (como “Rosa de Ouro nunca foi de brincadeira”: a presença da arte erudita no carnaval de Rosa Magalhães, de Gustavo Krelling e Dulce Osinski, e O imaginário barroco de Rosa Magalhães, de Mário de Carvalho, ambos publicados pela Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares – TECAP UERJ) e trechos de livros (como O Marquês e o Jegue – estudo da fantasia para escolas de samba, de Felipe Ferreira – atualização da dissertação de Mestrado em História da Arte defendida na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA – UFRJ), em 1996, sob o título O marquês, o jegue, a princesa e o corta-jaca: um estudo sobre a expressão plástica da cultura erudita nas fantasias de carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro). Há, ainda, a produção teórica da própria realizadora – em especial os dois livros dedicados ao processo de pesquisa e confecção de carnavais: Fazendo Carnaval, de 1997, e o recente O inverso das origens, de 2014, escrito em parceria com a historiadora Maria Luiza Newlands. Não há, porém, um estudo vertical que se proponha a analisar (melhor, no caso deste estudo, é dizer “mapear” ou “percorrer”) o conjunto de narrativas da autora sob a ótica (desfocada?) da literatura, algo análogo ao que Milton Reis Cunha Júnior fez com a volumosa produção de Joãosinho Trinta, nos cursos de Mestrado e Doutorado em Teoria Literária do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ1. Com os olhos voltados para tal esfinge e ciente das limitações de uma pesquisa que já pressupõe incorporado o espírito crítico mais lacunar e menos ortodoxo, mais envenenado de paixão e menos acorrentado aos cânones, tem início essa empreitada – que também é uma 1

Tratam-se dos trabalhos intitulados Paraísos e Infernos na poética do enredo escrito de Joãosinho Trinta (dissertação de Mestrado, defendida em 2006) e A rapsódia brasileira de Joãosinho Trinta: um grande leitor do Brasil! (tese de Doutorado, defendida em 2010), ambos orientados por Frederico Augusto Liberalli de Góes.

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viagem, um diário de navegação, um exercício de deslocamento e reprocessamento do meu próprio olhar, que, aqui, se vê na condição de imigrante, se vê refletido estrangeiro. * Viagem oficialmente iniciada em 2012, quando ingressei no curso de Mestrado em Ciência da Literatura, na área de concentração Teoria Literária, da referida UFRJ. Dois anos depois, em fevereiro de 2014, era defendida a dissertação A Antropofagia de Rosa Magalhães, texto em que levantei questionamentos sobre onze narrativas da professora aposentada da Escola de Belas Artes (e carnavalesca em plena atividade, o que torna a viagem um tanto imprevisível), justamente aquelas que abarcam o período de 1992 a 2002. O enredo de 2002, Goitacazes: Tupi or not Tupi, in a South American Way!, atuou como centro da investigação e guiou as discussões sobre as demais obras. Em resumo, a pesquisa por mim desenvolvida se ocupou de debater, com foco no desfile de 2002 (tomado como emblema de parte do universo simbólico da autora), três eixos temáticos observáveis nas narrativas dos enredos apresentados nos dez primeiros anos em que Rosa Magalhães esteve à frente do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense (GRESIL): o índio (tópico investigado no capítulo O índio é acima de tudo um forte), o senso de brasilidade (aspecto desenvolvido no capítulo Viva nós, os brasileiros!) e a própria antropofagia cultural (o tema que permeou as mais de 300 páginas da dissertação e que foi liquidificado na conclusão da pesquisa, intitulada O índio e o alaúde, Macunaíma com Flash Gordon). A autora concebeu uma série de enredos que tratam de um Brasil mestiço cujo símbolo maior, o índio (que aparece em oito das onze narrativas analisadas, sendo o personagem-central da obra apresentada em 2002), se desdobra, mito-Macunaíma, em diferentes facetas, predominando o selvagem romântico alencariano, a personificação de um “bom selvagem” imperial2 - o índio “cavaleiro”, de alma nobre, operístico, “topinambou”, na terminologia poética de Jorge de Lima, em 2

Havia, durante o Império, uma íntima relação entre as coroas e os cocares: o índio foi um símbolo bastante utilizado pelos Imperadores (especialmente Pedro II) a fim de solidificar o imaginário do “Império tropical”, uma nação “coesa e valorosa” (a despeito dos inúmeros – e sangrentos – conflitos internos) que redescobria as suas raízes míticas por meio do indianismo romântico (apesar do genocídio dos povos ameríndios de que falam autores como Manuela Carneiro da Cunha) representada pelo esplendor da natureza. Curiosa e sintomaticamente, a utilização de tal imaginário selvagem permanece viva quando se trata de representar/sintetizar o Brasil em determinadas esferas – a exemplo dos cartazes afixados nos editais da Faculdade de Letras da Université Nice Sophia-Antipolis, em Nice - França, em janeiro de 2017, quando teve início o meu Doutorado-sanduíche: convidando os estudantes para pesquisas de pós-graduação no Brasil, uma profusão de araras, papagaios, palmeiras e grafismos indígenas. Ver: SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador. D. Pedro II, um monarca nos Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil – História, Direitos e Cidadania. São Paulo: Editora Claro Enigma, 2012.

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Invenção de Orfeu. O selvagem diametralmente oposto aos famigerados “tapuias”3, em resumo. Além disso, dialogou com artistas “eruditos” e “populares”, fundindo referências provenientes de círculos culturais distintos4 (flertando, inclusive, com o que há de mais massivo e “mercantilizável”, como o cinema de Hollywood e os musicais da Broadway5 - e tal apropriação e posterior ressignificação com vistas à Passarela do Samba pode ser entendida como representante do caráter antropofágico da obra da carnavalesca e das escolas de samba enquanto entidades plurais e polifônicas, dinâmicas por natureza, em permanentes conflitos e negociações).6 Por fim, no recorte temporal interpretado há as peças para a montagem de uma determinada visão de Brasil que se apresenta condensada 3

O pesquisador Mário de Carvalho também atentou para a faceta indianista romântica da produção carnavalesca de Rosa Magalhães, afirmando: “O carnaval de RM, enquanto forma e tema, remete ao ‘tropicalismo’ iniciado pelos românticos do século XIX. Podemos encontrar em suas criações uma imagem do Brasil paradisíaco, representações do índio forte e belo, a exuberância da fauna e da flora; o índio descrito por Michel de Montaigne (1533-1592) e mais tarde por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) em sua teoria do bon sauvage. Para o iluminista Rousseau, o ameríndio tornara-se uma referência do bom selvagem, pronto para a ‘civilização’. Esse ‘bom selvagem’ foi o fruto do imaginário de todos os grandes leitores dos cadernos de viagens que se propagaram no século XVI; o ameríndio é, de certa maneira, um personagem híbrido, feito a partir de inúmeras descrições dos homens ‘primitivos’ vivendo na ‘idade de ouro’ natural. Deus é revelado pela natureza; por consequência, o ser natural é profundamente ‘bom’. Esta visão romântica dos ‘selvagens’ foi alimentada pelos exploradores e missionários que acreditavam encontrar o paraíso perdido. Paraíso apresentado em formas e cores nas concepções alegóricas da carnavalesca. No Brasil, a temática romântica nas artes plásticas foi influenciada pela literatura e pela história do país. As imagens produzidas por artistas, no século XIX, como Victor Meireles, Rodolfo Amoedo, Augusto Rodrigues Duarte e Pedro Américo evocam uma noção de ‘brasilidade’ que nascia nas obras literárias de autores românticos – José de Alencar, Iracema (1865), O Guarani (1857), Ubirajara (1874); Gonçalves Dias, I-Juca–Pirama (Últimos Cantos, 1851); Gonçalves de Magalhães, Confederação dos Tamoios (1856).” In: CARVALHO, Mário de. O Imaginário Barroco de Rosa Magalhães. In: Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares (TECAP – UERJ), Estudos de Carnaval, v.11, n. 02, 2014, p. 123/124. Disponível no sítio: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/tecap/article/view/16344/12167. Acesso em 15/11/2015. 4 Alfredo Bosi teoriza sobre a situação da cultura universitária brasileira, a cultura fora da universidade, a indústria cultural, a cultura popular e as relações entre as culturas brasileiras em seu texto Cultura brasileira e culturas brasileiras, parte constituinte do livro Dialética da Colonização. Ver BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 5 O exemplo mais recente desse diálogo é proveniente do desfile elaborado para a Unidos de Vila Isabel, em 2012, quando, para ilustrar o final do enredo Você semba lá... que eu sambo cá! O canto livre de Angola, a autora misturou referências ao artista anglo-nigeriano Yinka Shonibare, ao musical da Broadway O Rei Leão e ao artista plástico brasileiro Rubem Valentim. Tal episódio, discutido no artigo Hibridismo cultural em desfile: as cores da diáspora e os diálogos interartes no carnaval carioca, publicado nos anais do XII Enecult (2016), será melhor questionado no decorrer deste trabalho. 6 Felipe Ferreira explica que “as escolas de samba contemporâneas têm procurado encontrar caminhos que as permitam articular seus velhos sentidos nas novas formas de desfiles que se impõem. Conceitos importantes para a definição destes grupos, os discursos da tradição, da raiz e do pertencimento ao espaço da cultura popular vêm sendo questionados pelas novas formas assumidas pelos desfiles, reflexos por sua vez das negociações de interesses entre as próprias escolas, o poder público, o poder empresarial, a intelectualidade e, não menos importante, os participantes ou componentes. Se alguns desses poderes parecem ter voz mais ativa atualmente, é importante lembrar que as escolas existem como resultado do equilíbrio negociado de todos os atores e que o processo de hegemonia não se dá pela imposição de um conceito sobre o outro, mas pela negociação entre as partes.” In: FERREIRA, Felipe. Escolas de samba: uma organização possível. In: FERREIRA, F. Escritos carnavalescos. Coleção Circuitos da Cultura Popular – Vol. 07. Rio de Janeiro: Aeroplano editora, 2012, p. 179/180.

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e amadurecida (inclusive ironicamente refutada no trecho que trata do Manifesto oswaldiano7) na narrativa de 2002, segundo a qual o nosso país é um lugar onde os antagonismos se equilibram (a “harmonização dos contrários” associada à sobreposição de oposições do barroquismo, nos termos de Mário de Carvalho8), alegre, miscigenado e heróico - visão esta que aproxima Rosa Magalhães das teorizações sociológicas da primeira metade do século XX (vide a tônica de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, sintetizada no quinto carro alegórico do desfile gresilense de 2001, que representava um engenho colonial na narrativa sobre a cana-de-açúcar e a cachaça) e a afasta, consecutivamente, das visões contemporâneas desenvolvidas pelos teóricos do conflito, preocupadas em entender o Brasil enquanto nação multiplamente partida, permeada de preconceitos, segregada em guetos, classes e grupos étnicos (algo desenhado por Darcy Ribeiro em O povo brasileiro e colorido com vivas tintas no exaustivo ensaio Brasil: uma biografia, de Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Starling – prosa de fôlego que percorre um arco temporal que vai dos ditos “primeiros tempos” às manifestações contra o segundo mandato de Dilma Rousseff, em março de 20159). De antemão, é preciso deixar claro que as reflexões apresentadas em A Antropofagia de Rosa Magalhães certamente figuram enquanto sustentáculos da presente obra (a começar pela revisão teórica, quase academicista, das ideias de “enredo” e “carnavalesco” - que não serão revisitadas), o que não quer dizer que este trabalho é uma continuação (a despeito do fato de que, se pensarmos na imediata sucessão temporal de Mestrado e Doutorado, há, sim, uma continuidade) ou mesmo uma “expansão temática”. 7

No texto de apresentação do enredo, composto por fragmentos literários (o que revela a experimentação estética já na redação da história a ser contada), a carnavalesca adotou a voz de Oswald de Andrade e declarou guerra ao “índio tocheiro, afilhado de Catarina de Médicis”. Ironicamente, o enredo desenvolvido em 1994 tratava exatamente dos “tupinambôs e tabajeres” que encantaram a própria, a rainha francesa Catarina de Médicis. Tal “aparente paradoxo”, debatido na dissertação A Antropofagia de Rosa Magalhães, revela uma notável plasticidade autoral. 8 Ver CARVALHO, Mário de. Obra citada, p. 122. 9 Nos últimos parágrafos do livro, as autoras lançam provocações que, três anos depois, se mostram escancaradas: “São várias as questões que tornam este livro uma obra aberta. O Brasil consolidará a República e os valores firmados na Constituição de 1988? Conseguirá manter um crescimento sustentável sem dilapidar suas riquezas naturais? Que papel desempenhará no cenário internacional? Claro que não há por que transformar uma conclusão num ponto final, muito menos numa cartilha de uso imediato. Toda história é aberta, plural, e permite muitas interpretações. A que tentamos desenhar aqui mostrou o quanto vem sendo difícil a nossa construção cidadã. De toda forma, os desafios para que se altere o imperfeito republicanismo no Brasil são muitos: a sua persistente fragilidade institucional, a corrupção renitente, o bem público pensado como coisa privada. A grande utopia quem sabe ainda seja acolhermos os valores que têm como direção a construção do que é público, do que é comum. Talvez comece nesse desafio mais um capítulo na história do Brasil. Afinal, feita a opção democrática, também a República pode recomeçar.” In: SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa M. Brasil: uma Biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 507/508.

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Os eixos esmiuçados na dissertação atendiam ao viés investigativo concedido à análise específica das onze narrativas selecionadas (foi levado em conta, por exemplo, o fato de que todas as obras foram concebidas para uma única escola de samba, a Imperatriz Leopoldinense, do bairro de Ramos, havendo, sim, indícios de que a “identidade” da escola, tema debatido por Felipe Ferreira, Vinícius Natal e Alexandre Medeiros10, afetou a concepção dos enredos, obras que não são “autônomas”, mas produzidas para uma instituição – ou seja, amarradas à ideia de “tradição” e dependentes de um suporte administrativo e de um determinado corpo de desfilantes), o que não necessariamente se aplica ao conjunto integral das narrativas da autora – e aqui aparecem as primeiras pistas falsas, os primeiros dromedários cambaleando com patas quebradas, as primeiras ilhas disfarçadas de baleias. Se o último trecho dá a entender que o objetivo da pesquisa é “dar conta” da obra carnavalesca de Rosa Magalhães, classificando e “engavetando” teoricamente a integralidade das narrativas de enredo desenvolvidas pela autora em mais de trinta anos dedicados ao carnaval carioca (com passagens por escolas tão díspares como Portela, Império Serrano, Estácio de Sá, Acadêmicos do Salgueiro, Imperatriz Leopoldinense, União da Ilha do Governador, Unidos de Vila Isabel, Estação Primeira de Mangueira, São Clemente, entre outras11), isso não é verdade. A começar pelo fato de que tal perspectiva

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Ver: FERREIRA, Felipe. O Marquês e o Jegue. Estudo da fantasia para escolas de samba. Rio de Janeiro: Altos da Glória, 1999; MEDEIROS, Alexandre. A Heráldica do Império Leopoldinense. In: DINIZ, Alan.; FABATO, Fábio; MEDEIROS, Alexandre. As Três Irmãs. Como um trio de penetras “arrombou” a festa. Rio de Janeiro: Novaterra, 2012, p. 24/27; NATAL, Vinícius. Samba e Cultura – Práticas de Resistência do Departamento Cultural da Imperatriz Leopoldinense (1967-1973). In: Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares – Estudos de Carnaval. V. 9, n. 1. Rio de Janeiro: Faperj, 2012. 11 Antes da vitória do Império Serrano de 1982, a carnavalesca também teve passagens pela Beija-Flor de Nilópolis e pela Portela (escola para a qual retornaria, em 2017) – momentos nebulosos e até polêmicos (na Beija-Flor, a artista desenhou os figurinos da escola para o desfile de 1974, cujo enredo, Brasil ano 2000, se insere na condenada trilogia em homenagem à “política desenvolvimentista” pós-64; em outras palavras, uma trilogia pró-ditadura). Tanto na Beija-Flor quanto na Portela, porém, a autoria dos enredos não é de Rosa Magalhães (na escola de Nilópolis, Manuel Antônio Barroso; na escola de Oswaldo Cruz e Madureira, Hiram Araújo e Departamento Cultural) – fato defendido pela artista, em seus depoimentos, e comprovado nos registros da época (no caso da Beija-Flor, a realizadora é enfática ao alegar que sequer “criava” os figurinos, mas única e tão somente seguia as ordens do autor do enredo – tendo chegado à escola por indicações e aceitado o trabalho de modo descompromissado, “por ser mais uma incursão” em um contexto cuja estrutura era “muito incipiente”). Tais experiências carnavalescas não serão investigadas por este motivo, assim como não será enfatizada a passagem pela Comissão de Carnaval encabeçada por Maria Augusta Rodrigues e formada, na década de 1980, para desenvolver os primeiros desfiles da Tradição, escola dissidente da Portela). Expandindo a leitura, Rosa Magalhães também emprestou a sua arte para desfiles carnavalescos de São Paulo, tendo passagens pelas escolas Barroca da Zona Sul (2003), para a qual desenvolveu um enredo sobre o jogador de futebol Pelé (que automaticamente contrasta com a “linhagem enredística” construída no carnaval carioca) e Dragões da Real (2014), agremiação que desfilou o enredo Um museu de grandes novidades, sobre o “universo pop” das décadas de 1970 e 1980. Sobre o período dos enredos governistas da Beija-Flor, é importante a leitura de Os porões da contravenção, de Aloy Jupiara e

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totalizante (de acordes enciclopedistas) não é condizente com o caráter eminentemente fragmentário da ensaística e da crítica de arte. Ora, uma narrativa de enredo de escola de samba é um texto fraturado de origem, sendo insuficiente a classificação planificadora (que pode adquirir, inclusive, um teor necrófilo12). É óbvio que “planificar o terreno” é possível (há, inclusive, livros que se propõem exatamente a classificar enredos a partir de definições temáticas, taxonomia pura), mas, espoca o witz romântico, será isso o desejável? Mais: será isso o desejável em um trabalho oficialmente enraizado no campo da Teoria Literária, um pedaço da gigantesca seara das Artes, nos fronteiriços espaços dos Estudos Culturais? As rotulações (tão criticadas por Félix Guattari13) dão conta de uma tempestade de proporções shakespearianas? Assim como um roteiro cinematográfico, um libreto de ópera ou um texto teatral, uma “sinopse” de escola de samba é necessariamente incompleta, uma vez que o texto escrito centraliza apenas uma das três leituras que um desfile demanda: além da narrativa impressa em papel (apresentada ao público e ao corpo de jurados no Livro Abre-Alas, anualmente editado pela Liga Independente das Escolas de Samba (LIESA) e disponibilizado na Internet14), há o conjunto visual (a tradução da narrativa em fantasias e carros alegóricos) e o samba-enredo ou samba de enredo (a transformação do texto do artista-carnavalesco em letra e melodia, por obra de outros artistas, os compositores – às vezes, sob encomenda; às vezes, mediante concurso, evento que mobiliza inúmeras parcerias, demanda grande investimento financeiro e traz à baila agentes de outros territórios simbólicos, todos interdependentes, compondo um quadro-mosaico no mais das vezes conflituoso, propício para as investigações etnográficas). Nesse sentido, a avaliação do quesito enredo é seguramente complicada, posto que trabalha com diferentes níveis de leitura e interpretação, no intercâmbio (nem sempre claro) entre as linguagens Chico Otavio. No livro, os autores mencionam a passagem da carnavalesca pela escola de Nilópolis, afirmando o seguinte: “Para o carnaval de 1974, os desenhos foram feitos pelas jovens Rosa Magalhães – mais tarde, carnavalesca campeã no Império Serrano, na Imperatriz Leopoldinense e na Vila Isabel – e Lícia Lacerda, ex-alunas da Escola de Belas Artes da UFRJ. Em 1975, Augusto de Almeida foi o figurinista; o carnavalesco Júlio Matos, que passara pela Mangueira e pelo Paraíso do Tuiuti, criou as alegorias.” In: JUPIARA, Aloy; OTAVIO, Chico. Os porões da contravenção. Jogo do bicho e ditadura militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado. Rio de Janeiro: Record, 2015, p. 88. 12 Trata-se da adaptação de um termo utilizado por Paulo Freire, teórico preocupado com o caráter “necrófilo” (expressão que extrai das reflexões de Erich Fromm) das práticas educacionais nãoproblematizadoras, que tendem a matar e a dissecar o “objeto” de estudo, não dialogando com ele – e, consecutivamente, não compreendendo o contexto e o dissenso nem exercitando a criatividade. Ver FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2010. 13 Ver GUATTARI, Félix. Caosmose. Um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 2012. 14 O conjunto de Livros Abre-Alas está disponível para consulta (mediante agendamento prévio) no Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

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verbais, visuais, musicais, corporais, entre outras – estamos, sim, no pantanoso terreno dos sentidos e dos afetos, das impressões que se chocam com as pretensões racionalistas, das tensões inerentes à própria ideia de “carnaval” em sentido amplo15. O samba, afinal, é o dono do corpo.16 Aqui, é delineado um dos princípios regentes deste trabalho: ao se debruçar sobre as narrativas de enredo de Rosa Magalhães, não apenas os textos escritos (especificidade que no caso da dissertação de Milton Reis Cunha Júnior, que fala em “texto-mestre”, está bastante clara no título – um recorte metodológico possível e bem justificado pelo autor17) são considerados. Levam-se em conta, para além das textualidades escritas (sinopses, justificativas apresentadas aos jurados), os demais elementos audiovisuais que ajudam a compor um desfile, como o samba de enredo, as fantasias, os carros alegóricos, as coreografias das comissões de frente, etc., entendendo-se que o desfile em si é a obra de arte assinada pela realizadora, uma “obra de arte total”, conforme o defendido por autores como Isaac Caetano Montes18, na esteira do wagneriano conceito de gesamtkunstwerk (esgrimido por Silviano Santiago, para se pensar a Semana de Arte Moderna de 192219, um evento plural, polifônico, intersemiótico; e por Paulo Herkenhoff, para se Não se fala, aqui, do caso específico dos desfiles das escolas de samba, tampouco da ideia de “carnaval carioca” cujas raízes nos levam ao século XIX e a pontos nevrálgicos como o “Congresso das Sumidades Carnavalescas” de 1855, tudo brilhantemente investigado por Felipe Ferreira em Inventando carnavais: o surgimento do carnaval carioca no século XIX e outras questões carnavalescas. Fala-se do conceito amplo de “carnaval” enquanto festa popular de abrangência planetária associada, numa tradição mitificadora, aos ritos agrários (Saturnais, Lupercais, Bacanais) de Egito, Grécia e Roma, em oposição, no contexto medieval, ao período da Quaresma – os 40 dias de penitência que antecedem a Páscoa cristã. O tema não apenas nos remete aos estudos de Mikhail Bakhtin como guia os nossos olhos ao imaginário tão bem traduzido no quadro A luta entre o Carnaval e a Quaresma, de Pieter Bruegel, o Velho, e às narrativas utópicas, ponto que ainda será amplamente debatido. 16 Ver SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. 17 No mais recente evento dedicado ao pensar carnavalesco realizado na Faculdade de Letras da UFRJ, a reunião do “Observatório do Carnaval”, em 5 de abril de 2018, Milton Cunha declarou que jamais se proporia a analisar academicamente um desfile que não pelo enfoque da narrativa contida na sinopse (textomestre), uma vez que, para ele, quando o enredo escrito pelo carnavalesco se converte em samba e ganha a avenida dos desfiles, tudo se torna um “redemoinho”, uma “vertigem”, algo envolvido pelo “mistério”. O palestrante enfocou a ideia de mistério, creditando a forças sobrenaturais a “loucura” do carnaval. Este trabalho não se propõe a decifrar tal mistério, mas se aventura a bailar poeticamente com ele. 18 Importante é a leitura de A “obra de arte total” do carnaval: multiplicidade artística e hibridação nos desfiles contemporâneos das escolas de samba, dissertação defendida em 2014 no Programa de PósGraduação em Artes (PPGARTES) da UERJ. Disponível em: http://www.bdtd.uerj.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=7319. Acesso em 22/12/2015. Ver ainda: MONTES, Isaac Caetano. A “obra de arte total” das escolas de samba. Particularidades de um carnaval operístico. In: Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares (TECAP – UERJ), Estudos de Carnaval, v.13, n. 2, 2016. Disponível no sítio: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/tecap/article/view/19180/22162. Acesso em 25/10/2015. 19 Ver: ROUANET, Sergio Paulo. A vingança do Bispo Sardinha. In: ROUANET, Sergio Paulo. Mal-estar na Modernidade. Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 339. 15

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compreender a obra de Arthur Bispo do Rosário20). A utilização de fotografias e desenhos, bem como de frames das transmissões televisivas (responsáveis pela “filtragem” do espetáculo e transposição do cortejo pulsante para as limitações da tela, editando e ressignificando o objeto, traduzindo-o para linguagem diversa e projetando-o, sob embalagens pasteurizadas, para todo o globo), é outra estratégia investigativa a ser considerada (já amplamente utilizada em A Antropofagia de Rosa Magalhães). Evidentemente, a seleção dos dados acompanhará as necessidades do próprio andamento do trabalho, sendo que em nenhum momento será desconsiderado o fato de que a escrita em si (e de si) é parte do que se vai apreendendo. Em outras palavras: valendo-se do cabedal epistemológico dos estudos contemporâneos de cultura enquanto sistema dinâmico e mutante (e não um acúmulo de objetos e valores ou algo estanque e imutável, passível de ser guardado em um arquivo), o processo de escrita converte-se em experimento de fragrância antropológica, não havendo um método de análise fechado, albergado (ou asfixiado) pelo rigor das Ciências Exatas. Se há, pois sim, um longo processo prévio de coleta de materiais, seleção de corpus, prospecção bibliográfica, realização de entrevistas, entre tantos procedimentos hermenêuticos e dialógicos com fins didáticos, é fato que a escrita, a práxis reflexiva, não é menos imprevisível que o oceano a ser navegado; os mapas são desenhados e as rotas previamente traçadas, mas ainda não se pode saber dos percalços da viagem, do canto e do silêncio das sereias. O caráter ensaístico e o apreço pelas experimentações, portanto, são condicionantes da aventura intelectual ora iniciada, que, mais do que abraçar os canônicos pilares da “Ciência da Literatura” (nome de inegável força positivista), iça as velas com a intenção de desbravar territórios desconhecidos, para, a partir de tal movimento associado à loucura21, na contramão da lógica reinante, redesenhar os mapas do mundo, (de)formando em papel as visões trabalhadas por Rosa Magalhães. O diálogo com outras áreas do conhecimento é parte fundamental do processo: não se trata de um bloco Nas palavras do crítico de arte, “O conceito wagneriano de Gesamtekunstwerk, surgido em 1849 em Das Kunstwerk der Zukunft, apontava para uma arte total que incorporasse a contribuição unificada de todas as artes. Embora Bispo do Rosário não fizesse uma correlação entre as diversas linguagens artísticas, o conjunto da obra aproximaria a produção de alguns elementos que conformam a concepção contemporânea de Gesamtekunstwerk.” Ver: HERKENHOFF, Paulo. A Vontade de Arte e o Material Existente na Terra dos Homens. In: ARAUJO, Emanoel (et al.). Arthur Bispo do Rosário. Rio de Janeiro: Réptil, 2012, p. 163. 21 É o que explica Marta Dantas, ao analisar a obra de Arthur Bispo do Rosário: “O marinheiro é aquele ser transportado por uma obsessão telúrica: a busca de novas terras, de continentes virtualmente originais, de lugares não inventariados. Embarcar num navio pode ser uma viagem sem retorno ou uma reintegração à ordem cósmica.” In: DANTAS, Marta. Arthur Bispo do Rosário. A Poética do Delírio. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 28. 20

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(carnavalesco) unificado, mas de construção porosa, aberta às interpenetrações – e é válido esclarecer que tal perspectiva plural e transdisciplinar foi o importante “desafio” lançado quando da defesa de A Antropofagia de Rosa Magalhães. Da banca avaliadora composta pelos professores Frederico Augusto Liberalli de Góes (orientador), Luiz Felipe Ferreira (coorientador), Martha Alkimin de Araújo Vieira e Samuel Sampaio Abrantes (a mesma configuração da banca de qualificação deste trabalho, durante a qual o pedido de “liberdade criativa” se mostrou mais intenso e carregado de urgência) partiram provocações que, de pronto aceitas e lentamente regurgitadas, aqui se convertem em munição reflexiva: é possível teorizar sobre algo tão multifacetado quanto uma narrativa carnavalesca sem cair nas “armadilhas teóricas” que não dão conta de tamanha complexidade? Como aplicar conceitos elaborados em contextos diversos, distantes do calor dos “barracões” (os lugares – via de regra insalubres, à exceção da Cidade do Samba22 – em que são confeccionadas as fantasias e as alegorias apresentadas nos cortejos), a um estudo cujo “objeto”, além das dimensões inapreensíveis (é uma festa popular; é um evento realizado em cerca de oitenta minutos, sem repetição 23; é um espetáculo vivo, em movimento, uma procissão que impede qualquer tentativa de congelamento), é dinâmico e depende da interrelação com outros elementos (os foliões, o dinheiro, os demais profissionais das equipes de criação – ferreiros, carpinteiros, escultores, pintores de arte, costureiros, modelistas, coreógrafos, iluminadores, aderecistas, etc., os fornecedores de materiais, a diretoria, os compositores, a música, a dança, as esculturas, as vestimentas, o público, o corpo de jurados, a transmissão

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Mesmo a Cidade do Samba, o complexo de 14 barracões com 4 andares cada um, inaugurado em 2006, se revelou um lugar bastante problemático com relação à infraestrutura. Em 7 de fevereiro de 2011, um incêndio de grandes proporções consumiu um bloco de 4 barracões; os sistemas antichamas não funcionaram e os desfiles de Portela, União da Ilha e Acadêmicos do Grande Rio se viram bastante comprometidos (a última perdeu absolutamente tudo). Em 31 de agosto de 2017, um escultor da São Clemente morreu eletrocutado, no quarto andar do barracão da escola, reacendendo as discussões sobre segurança do trabalho e precarização das instalações elétrica e hidráulica. O acidente fatal levou a Justiça do Trabalho a intervir na Cidade do Samba, interditando as “fábricas” por semanas e submetendo as escolas a rigorosas vistorias. Diante desse cenário, não é preciso dizer das condições encontradas nos barracões das escolas dos grupos de acesso. Sobre a criação da Cidade do Samba, ver: BARBIERI, Ricardo José de Oliveira. Cidade do Samba: do barracão de escola às fábricas de carnaval. In: CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro; GONÇALVES, Renata (orgs.). Carnaval em múltiplos planos. Rio de Janeiro: FAPERJ/Aeroplano, 2009, p. 125/144. 23 É possível argumentar que os desfiles do sábado das campeãs, quando as 6 primeiras colocadas se reapresentam, na Marquês de Sapucaí, expressam uma “repetição”. É fato, no entanto, que tais desfiles, uma vez que não estão sujeitos à avaliação do júri, muitas vezes não se apresentam completos. Além disso, não há a surpresa do ineditismo, o susto, a expectativa, aspectos subjetivos que afetam, sim, a apreensão da obra.

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televisiva, as críticas jornalísticas, os patrocinadores e os contraventores, o Poder Público, etc.) para se materializar, mambembe, na avenida?24 São tantas variantes sobre o mesmo asfalto riscado que pode haver uma confusão entre a ideia fluida de enredo e a noção de espetáculo25 que os desfiles cada vez adquirem mais, termos que cintilam polêmicos em qualquer discussão sobre os rumos das escolas de samba e os cenários por elas historicamente disputados, ocupados, despejados. Clarificando a prosa, é fato que um estudo dedicado a levantar questões sobre a obra de uma artista como Rosa Magalhães não pode fazer vistas grossas ao fato de que um desfile de escola de samba também é pensado enquanto espetáculo audiovisual – um verdadeiro conglomerado de saberes e ofícios passível de ser atravessado pelos mais distintos olhares artísticos. Aqui, porém, entende-se que o quesito enredo é algo mais específico, apenas uma parte do espetáculo como um todo: uma narrativa que se vale do texto escrito, uma história a ser contada com o auxílio de outros elementos. Isso não quer dizer, é importante reforçar (e amarrar mais forte esse nó) ainda durante o embarque, que o trabalho enfocará apenas essa dimensão analítica (os textos escritos de Rosa Magalhães e a tradução deles em fantasias e carros alegóricos, por exemplo), uma vez que não se quer (entende-se que não se pode, sob o risco do esquartejamento de uma obra de arte) perder de vista o desfile como um todo. Dessa forma, é óbvio que a análise não raro deixará a materialidade das folhas de papel de lado e buscará voos menos concretos, trazendo para o “redemoinho” (a provocação de Milton Cunha) elementos, dados, agentes, vivências e até intuições que não cabem em palavras de tinta. É o risco da navegação em mar bravio. Questões enoveladas como as apresentadas acima adquirem coloração ainda mais intensa em se tratando das criações de Rosa Lúcia Benedetti Magalhães, a filha única de um casal de grande importância para a intelectualidade brasileira do século XX: a escritora Lúcia Benedetti (que inovou as narrativas teatrais infantis e escreveu, entre Tais pontos impulsionaram as mesas do I Seminário Sonhar não custa nada ou quase nada? – Horizontes dos Desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, ocorrido nos dias 24 e 25 de junho de 2015, no Auditório 113 da UERJ. Felipe Ferreira e Milton Reis Cunha Júnior destacaram o caráter transitório dos festejos e assinalaram a necessidade de se pensar a problemática a partir da perspectiva dos foliões – a razão de ser da festa, mas que, infelizmente, permanece à margem das instâncias decisórias e das investigações acadêmicas. 25 Com relação à ideia de “espetáculo”, fundamental para a redação dessa tese foi a participação no seminário Création Theatrale et Théorie du Spectacle, oferecido pelo professor Jean-Pierre Triffaux, de nome artístico Rabanel, no primeiro semestre de 2017, na Université Nice Sophia Antipolis. Triffaux, autor de Génie du Carnaval – Quand le savoir bascule, apresentou, aos estudantes, diferentes concepções sobre as contemporâneas noções de “espetacularização da vida”, com destaque para as festas de carnaval (o carnaval de Nice, em especial). Sobre o tema, ver: RABANEL. Génie du Carnaval – Quand le savoir bascule. Paris: L’Harmattan, 2016. 24

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inúmeros trabalhos, o libreto da ópera A Menina das Nuvens, com música de Heitor Villa Lobos26) e o jornalista (e imortal da ABL, além de membro do corpo de jurados do primeiro concurso oficial de escolas de samba, ocorrido em 1932, e um dos “pais” da figura do Rei Momo27) Raimundo Magalhães Júnior – também ele um autor teatral, cronista, biógrafo, pesquisador (são famosos os estudos sobre Machado de Assis) e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Tendo nascido em meio aos livros e convivido com a nata da música e das letras brasileiras do século passado (a artista revelou, em depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MISRJ), em 26 de novembro de 2014, que frequentavam a casa da família, em Copacabana, nomes como Jorge Amado, Raquel de Queiroz, Manuel Bandeira, Dias Gomes, Dorival Caymmi e o vizinho Villa Lobos, os quais considerava “amigos”, apesar das idades contrastantes), não é de estranhar o pendão artístico e o gosto pela vida acadêmica – é membro da Academy of Television Arts and Sciences e acumula diplomas de Pintura, Cenografia e Letras, sem falar nos incontáveis prêmios (entre eles, o Emmy Awards conquistado pela abertura dos Jogos Pan-Americanos de 2007). No carnaval do Rio de Janeiro, a bagagem familiar (o “baú de papai”, na terminologia da professora Beatriz Resende, ao discorrer com brevidade sobre o trabalho de Rosa Magalhães durante a conferência Este bloco é seu país, proferida pelo professor Fred Góes, na Faculdade de Letras da UFRJ, em 11 de junho de 201528) e o acúmulo de vivências (viagens, leituras, graduações) gestaram dezenas de enredos inusitados, marcados pelo rigor bibliográfico 26

A ópera foi pela primeira vez encenada em 1960 (a estreia ocorreu em 29 de novembro, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro), após o falecimento do compositor (Villa Lobos deixou a vida em 17 de novembro de 1959). Em 2015, o Municipal carioca apresentou uma nova montagem da ópera, com regência de Roberto Duarte, direção de cena de William Pereira e cenários e figurinos de Rosa Magalhães – um belo reencontro da filha com a obra da mãe. Lúcia Benedetti foi homenageada pela escola de samba Unidos de Lucas, no carnaval de 2014; na ocasião, o enredo Missicofe, Missicofe, Dari, Dari foi assinado por Rosa Magalhães e visualmente desenvolvido por Mauro Leite. 27 O narrador do fato é o cronista Jota Efegê: “De gestação rápida, momentânea, que ocorreu na própria sala da redação na praça Mauá, entre mesas e máquinas de escrever, um redator de Turfe, o volumoso Morais Cardoso, paramentado em real vestimenta (que o caricaturista Fritz dizia ter sido confeccionada por ‘modesta costureira de teatro’ e o imortal Magalhães Júnior afirma ter conseguido com o maestro Silvio Piergile no Teatro Municipal), empunhou o cetro e pôs na cabeça a coroa indicativa de sua soberania. Era ele o Rei Momo, o deus corporificado. E sob o tradicional vive le roi!, gritado pelo cronista carnavalesco Palamenta, em uníssono com repórteres e contínuos, rumou ao elevador para a consagração da cidade, que o recepcionou com serpentinas, com chuvas de confetes e jatos de lança-perfumes (que ainda eram permitidos). Desta brincadeira, nada mais que brincadeira, se originaria uma dinastia que aí está vigente, sucedendo-se na desistência ou morte das personagens reais, dos Momos que nos três dias que lhe são dedicados são vivados nos bailes, nas ruas, e presidem todos os acontecimentos relacionados com o carnaval.” In: EFEGÊ, Jota. Figuras e coisas do carnaval carioca. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1982, p. 158/159. 28 O texto da conferência está disponível em eBook no seguinte sítio: https://www.amazon.com.br/Estebloco-%C3%A9-seu-pa%C3%ADs-ebook/dp/B01FBBRNAM.

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(notável quando se pensa o cuidado com as fontes históricas), pelo não-comodismo e pela verve literária (evidente quando se observam o manuseio de romances como Dom Quixote e Os Três Mosqueteiros e a utilização deles não apenas para ilustrar o narrado, mas para estruturar o projeto – no caso, os enredos de 2010 e 2006, respectivamente). É do filósofo Michel Onfray a ideia de que “a viagem começa numa biblioteca. Ou numa livraria.”29 Isso, de saída, explica o espírito desbravador da artista. Sobre os diálogos literários dos enredos da carnavalesca, ponto que obviamente interessa a um trabalho desenvolvido em Teoria Literária, há nuances e gradações. Alguns dos enredos desfiados ao longo da trajetória de sucesso (a autora contabiliza sete campeonatos, sendo a “maior campeã da Era Sambódromo”, como se diz por costume) são integralmente literários, a exemplo de Uma delirante confusão fabulística, sobre a obra do dinamarquês Hans Christian Andersen, desenvolvido na Imperatriz Leopoldinense, em 2005, e Dom Quixote de La Mancha, o cavaleiro dos sonhos impossíveis, sobre o romance de Miguel de Cervantes, apresentado na União da Ilha do Governador, em 2010. Outros têm a Literatura como ponto de partida e fio condutor (em outras palavras, a Literatura estrutura e conduz enredos históricos), caso de Um por todos e todos por um, da Imperatriz Leopoldinense, em 2006, que partia de Alexandre Dumas e do romantismo francês para a saga de Giuseppe e Anita Garibaldi, no Brasil e na Itália. Um terceiro tipo tem a Literatura como fundamento e horizonte, caso de Catarina de Médicis na corte dos Tupinambôs e Tabajares, da Imperatriz Leopoldinense, que, no carnaval de 1994, recriou a festa brasileira realizada em Ruão, em 1550, e terminou com os ensaios de Michel de Montaigne e as elucubrações de Rousseau; em 2002, na mesma escola e seguindo linha semelhante, a artista materializou o enredo Goitacazes: Tupi or not Tupi, in a South American way!, conquistando um polêmico terceiro lugar. O enredo, patrocinado pela prefeitura de Campos dos Goytacazes (município do norte fluminense que entrou na Justiça após o desfile, na tentativa de reaver o dinheiro investido, cerca de 2 milhões de reais, sob a alegação de que as “coisas da cidade”, como as plataformas de petróleo, os canaviais e o doce típico chuvisco, não teriam sido apresentadas nas fantasias e alegorias), tratava, como esboçado anteriormente, da antropofagia: dos rituais indígenas descritos pelos viajantes europeus ao Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade e ao neoantropofagismo da Tropicália, passando por O Guarani, de José de Alencar, e

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ONFRAY, Michel. Teoria da viagem. Poética da geografia. Porto Alegre: L&PM Editores, 2015, p. 25.

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Macunaíma - o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade – para tudo terminar, carnavalescamente, na figura-síntese de Carmen Miranda (a tensão entre a Pequena Notável e a Brazilian Bombshell, “nem samba nem rumba”30). O rápido “passar de olhos” por parte do universo criativo da autora revela um desafio imediato: em existindo inúmeras portas, qual delas escolher para a entrada? Como dar os primeiros passos, entre tão espiraladas serpentinas? Qual a chave a ser utilizada para abrir as caixas reflexivas? Se no decênio enfocado no Mestrado saltavam aos olhos os eixos temáticos já apresentados, é fato que no restante da obra da artista há outras encruzilhadas. No caso dos enredos de Rosa Magalhães, as sinopses em si, independentemente do samba e do visual, apresentam profundos diálogos intertextuais e marcas ensaísticas, não ficando limitadas à meta de contar uma história. Mapear as estratégias narrativas e os eixos temáticos da autora não é um exercício fácil, mas a tarefa pode muito contribuir para os estudos sobre os limites da autoria, as fissuras das narrativas, as conflitantes e complementares visões de Brasil, o papel do carnaval carioca no contexto do que se entende por “cultura brasileira”, os procedimentos de tradução visual do texto escrito, a ressignificação de símbolos e conceitos, a circularidade da cultura, a figura do carnavalesco enquanto “artista anfíbio”, na terminologia de Néstor García Canclini31, ou “mediador cultural”, conforme propõem Mikhail Bakhtin e os antropólogos Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti e Nilton Santos32. Acima de tudo, pode contribuir para que os preconceitos acadêmicos que tendem a menosprezar pesquisas ligadas à cultura popular brasileira (em cujo círculo estão inseridos o carnaval carioca e as narrativas das escolas de samba) sejam minimizados, refutando a tendência

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Sobre a questão, ver SOUZA, Eneida Maria de. Nem samba nem rumba. In: Crítica Cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. 31 Ver CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da Modernidade. São Paulo: EDUSP, 1998, p. 361. 32 Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti discorre sobre a “temática da circularidade entre os diversos níveis de cultura indicada por Mikhail Bakhtin (1987), do permanente diálogo, visto não necessariamente como harmonioso entendimento, entre as chamadas cultura popular e de elite.” A autora observa que os barracões das escolas de samba são ambientes de circulação cultural (a ideia de que a cultura não é algo dado, estanque, parado, morto, mas construído socialmente, mutante e mutável, como apregoa a teoria cultural hodierna). Nesse patamar, o carnavalesco pode ser entendido enquanto “mediador cultural”, ponte entre diferentes universos de saberes. Ver CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: Editora UFRJ / MinC / Funarte, 1994, p. 30. Nilton Santos comunga desse entendimento e, valendo-se das teorizações de Leopoldo Waizbort, defende que a figura do carnavalesco é um exemplo das “’novas profissões’ de caráter fluido” contemporâneas; ele complementa a interpretação com a ideia de que “a presença e a influência marcantes do carnavalesco (...) atuando como mediador sociocultural, têm a ver com a predominância e consolidação do código letrado, formal também no contexto das escolas de samba.” In: SANTOS, Nilton. A arte do efêmero – Carnavalescos e mediação cultural no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Apicuri, 2009, p. 67-68.

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de automática desvalorização dos principais “produtos” do país (eles próprios constructos sócio-históricos, populares e/ou massivos, diversos e desiguais), como o samba e o carnaval, a MPB como um todo, os saberes das comunidades tradicionais, a literatura de cordel, as narrativas orais de matriz indígena ou africana, o futebol, as religiões afrobrasileiras, as telenovelas e adaptações literárias para o cinema e a televisão, etc.33 Mas, como ocorre em qualquer travessia, é preciso um ponto de partida e um norte mais ou menos definido, ainda que no meio do caminho o perder-se seja fundamental e o caminhante goze da liberdade de desbravar carreiros não previstos inicialmente, feito o poeta Mário de Andrade, espécie de guia espiritual deste périplo, no extasiante Carnaval Carioca. Se no Mestrado o desfile de 2002 foi transformado em matriz hermenêutica, a centelha capaz de incendiar o combustível teórico injetado na pesquisa de Doutorado é o enredo de 2004, de título simples (na contramão do que a autora, à época, fazia) e curioso: Breazail. Assim como ocorreu em 2002, trata-se de um enredo desenvolvido para a escola de samba Imperatriz Leopoldinense, patrocinado por um município do estado do Rio de Janeiro: em 2002, Campos do Goytacazes; em 2004, Cabo Frio. Também a exemplo de 2002, a autora não enveredou pelo viés turístico e deu um “drible” (expressão que ela refutou jocosamente no Seminário Joãosinho Trinta, o Rei-Mendigo do carnaval, ocorrido no Espaço Cultural Finep, em 7 de novembro de 201234) nos investidores,

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Alfredo Bosi discute a problemática do colonialismo intelectual em Dialética da Colonização, mostrando que há um fosso entre o saber universitário e a realidade social brasileira, predominando a crença de que apenas o conhecimento cultivado nas Academias é digno de análise, num ciclo de retroalimentação que impede o diálogo com “o mundo exterior”. Eduardo Guerreiro Brito Losso enfoca a questão da subserviência no artigo Niilismo e experiência dionisíaca em Mário de Andrade, mostrando que diversos teóricos tentaram definir a questão, conferindo a essa tendência de desvalorização diferentes nomes; para Roberto DaMatta, trata-se de uma “recorrente visão negativa de nós mesmos (...)”; Roberto Schwarz fala que almejamos uma vida cultural “inautêntica e postiça”, dada o apreço pelo estrangeiro e a aversão às coisas de cá; Antonio Candido e João Luiz Lafetá preferem a expressão “pré-consciência pessimista do subdesenvolvimento.” Mário de Andrade definira o fenômeno como “mania de inferioridade nacional.” Sucintamente, tem-se o “complexo de vira-latas” de Nelson Rodrigues. Na atualidade, sem dúvidas o “produto” que mais é vitimado pelo preconceito acadêmico é o funk carioca e o seu universo circundante, sobre o qual alguns pesquisadores, não sem enfrentar resistência, têm se debruçado. Ver: LOSSO, Eduardo Guerreiro Brito. Niilismo e experiência dionisíaca em Mário de Andrade. In: GUERREIRO, Eduardo; PUCHEU, Alberto (org.). O Carnaval Carioca de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Beco do Azougue Editorial, 2011, p. 63-99. Ainda sobre o debate, Néstor García Canclini chega a afirmar que “o poder universitário e profissional dos historiadores da arte e dos artistas costuma defender-se exaltando a singularidade do próprio campo e desmerecendo os produtos dos competidores (artesanato e meios massivos). Ao contrário, os especialistas nas culturas ‘ilegítimas’ – folcloristas, comunicadores massivos – tentam legitimar seus espaços atacando as posições elitistas dos que se ocupam da arte culta e do saber universitário. A fronteira entre esses campos se tornou mais flexível. Considera-se cada vez mais legítimo que os universitários reestruturem seu capital simbólico em espaços da cultura massiva e da popular, sobretudo se têm traços equivalentes aos do mundo intelectual.” In: CANCLINI, N. G. Obra citada, p. 359. 34 Na ocasião, o mediador Fábio Fabato, jornalista e autor de uma série de publicações não-acadêmicas sobre as escolas de samba, questionou a carnavalesca sobre o enredo patrocinado de 2002, classificando

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procurando algo relacionado ao lugar capaz de gestar uma pesquisa inovadora. Em 2002, encontrou os índios goitacá e a antropofagia; em 2004, o pau-brasil e a cor vermelha. Outra semelhança: ambos os desfiles não foram campeões e amargaram posições “ruins” se comparadas à média do período 1992 – 2004 (nesse lapso, foram conquistados cinco primeiros lugares e três vice-campeonatos; a pior colocação foi o sexto lugar de 199735, depois da qual aparece o quinto lugar de Breazail). Uma diferença para com o enredo de 2002 reside no fato de que o município de Cabo Frio não quis reaver o dinheiro investido e nenhuma polêmica de ordem judicial eclodiu fechados os portões da dispersão do Sambódromo, na rua Frei Caneca - ou seja: aparentemente, Cabo Frio aprovou o chapéu. Breazail é a obra escolhida enquanto chave por uma série de motivos. Rosa Magalhães partiu do fato de que a primeira feitoria portuguesa da América foi fundada pelo navegador Américo Vespúcio, entre 1503 e 1504, na localidade da atual Cabo Frio, para desenvolver uma narrativa sobre o pau-brasil, primeiro produto de exportação brasileiro, possível origem do nome do nosso país e, na visão dela, principal símbolo vegetal da natureza brasileira (em outras palavras: de imediato, parece claro que a autora mantém a linha de enredos que tratam da formação identitária do Brasil, das nossas origens enquanto nação e dos nossos símbolos “primitivos” – uma narrativa fundacional). A sinopse do enredo, a partir dessa premissa, passeia pela Europa das feiticeiras e dos alquimistas (dialogando visualmente com Francisco de Goya e Hieronymus Bosch ponto levantado por Gustavo Krelling e Dulce Osinski, que deve ser expandido), vai à China dos Mandarins e dos Guerreiros de Xian, desembarca na Fenícia dos comerciantes de tecidos, atravessa as minas de estanho celtas (donde se extrai uma das hipóteses para o nome Brasil) e, finalmente, cruza o Atlântico e aporta em Cabo Frio, na fortaleza de Américo Vespúcio. Não, o final não é este – trata-se de um “finalmente, quase”. O final e mais instigante ponto do enredo é o diálogo com Thomas More e a materialização alegórica da alegórica ilha Utopia (neologismo que se popularizaria imensamente, estimulando uma linha de narrativas utópicas36), em um setor de formas e cores inspiradas como “drible” a opção narrativa materializada pela artista; Rosa Magalhães, aos risos, disparou que não fez drible algum: “eu estudei muito!” O debate (do qual também participaram Fernando Pamplona, Maria Augusta Rodrigues, Milton Cunha, Aydano André Motta e Geraldo Carneiro) está disponível em vídeo no seguinte sítio: https://www.youtube.com/watch?v=oqnUW--7a-s. Acesso em 28/09/2015. 35 De 1992 a 2004, somente em 1997 a Imperatriz não desfilou no sábado das campeãs. A “Rainha de Ramos” ficou fora do pódio porque a segunda alegoria do desfile sobre a compositora Chiquinha Gonzaga, que representava um presépio, quebrou dentro da Passarela, prejudicando a apresentação. 36 Vide a obra Utopia – a história de uma ideia, de Gregory Claeys. Nela, o autor passeia pelos grandes modelos utópicos da história, dos jardins árabes às ilhas fantásticas de More e Swift, desembocando nos

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na arquitetura de Antoni Gaudí e nas criações de Gabriel Joaquim dos Santos, artista popular brasileiro. Seguindo o exemplo do que fez em 1994, quando encerrou o enredo com Dos canibais, de Michel de Montaigne, Rosa Magalhães optou por fechar a narrativa com um texto clássico, comparando a Utopia de More ao Brasil e subvertendo a geografia, provocando a desgeograficação macunaímica e a desterritorialização de que fala Canclini37. Indiscutivelmente, uma opção narrativa das mais expressivas – seja no plano visual, seja no plano da escrita. No que tange ao segundo plano, em especial, notase outro paralelo com a narrativa de 2002: assim como Goitacazes: Tupi or not Tupi, in a South American Way!, o enredo Breazail foi apresentado à imprensa, aos compositores e aos demais segmentos da escola Imperatriz Leopoldinense na forma de uma colagem de fragmentos, pedaços narrativos desgarrados (ou “degredados”) - uma continuidade estilística, portanto, que muito se difere do padrão “engessado” do gênero.38 Não bastasse, o enredo reúne uma lista de elementos que também são observáveis em inúmeras outras narrativas da autora, o que não necessariamente expressa uma “repetição” (algo semelhante ao que foi exposto, em A Antropofagia de Rosa Magalhães, com relação à recorrência da figura do índio – apesar de aparecer em oito das onze narrativas abordadas, nunca é o mesmo índio, havendo variações estéticas e temáticas, transformações e hibridações com diferentes objetivos). O primeiro e importante ponto é justamente a ideia de viagem, algo explorado à exaustão pela carnavalesca. O passeio por falanstérios socialistas e nas distopias literárias e cinematográficas. As proposições de Claeys serão analisadas no decorrer do trabalho. 37 Para Canclini, a combinação dos processos de descolecionamento e desterritorialização é uma estratégia para abrir os signos culturais e refutar a visão que tende a compartimentalizar a cultura em gavetas taxativas. Nas palavras dele, “a história da arte e da literatura formou-se com base nas coleções que os museus e as bibliotecas alojavam quando eram edifícios para guardar, exibir e consultar coleções.” Hoje, tais construções são revistas pelas teorias bibliotecológica e museológica, uma vez que bibliotecas e museus no formato “tradicional” parecem anacrônicos. Ver CANCLINI, N. G. Obra citada, p. 302/303. Diante disso, é válido pensar o papel de Rosa Magalhães enquanto artista que tantas vezes materializou na Passarela do Samba o apreço (inclusive as construções em si) por coleções museológicas e bibliotecas, a exemplo do que fez em 1999, quando exaltou a coleção de pinturas holandesas (que forma o Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae do título da narrativa) descoberta por acaso no interior da Biblioteca Jaguelônica, em Cracóvia, na Polônia. 38 Complementam tal ideia de “narrativa em pedaços” dois depoimentos da carnavalesca Rosa Magalhães. Ao pesquisador Felipe Ferreira, então mestrando em História da Arte pela EBA, a artista revelou, em entrevista publicada no Anexo 7 da dissertação defendida em 1996, que gosta de “juntar fragmentos e criar com os pedaços”: “às vezes eu vejo a roupa e digo: ‘Eu quero esta calça aqui com aquela manga dali.’” A entrevista completa está disponível em FERREIRA, F. O Marquês, o Jegue, a Princesa e o Corta-Jaca: um estudo sobre a expressão plástica da cultura popular e da cultura erudita nas fantasias de carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro, f. 202. Já em depoimento informal concedido a mim, em 4/10/2012, no barracão da Unidos de Vila Isabel, na Cidade do Samba, a artista deixou claro que “gosta dos pedaços” e de “misturar referências”, dos paradoxos e da ironia: “eu sou assim (irônica), aí vai para o enredo.” A análise de tais aspectos é aprofundada nos demais estudos acadêmicos que se debruçam sobre a obra da artista, textos que serão investigados ao longo das próximas páginas.

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diferentes continentes, culturas e paisagens naturais (que, no conjunto, gerou uma apresentação heterodoxa – a ponto de um dos assistentes da artista, o figurinista Mauro Leite, confidenciar, durante a apresentação dos protótipos das fantasias da escola de samba Portela, em 15 de setembro de 2014, que não gosta “daquilo, não; muito confuso”39) encontra em Breazail a expressão máxima, uma vez que, depois de percorrer Europa, Ásia, África e América, viaja, ao final, para o não-lugar por excelência, a Utopia. Curiosamente, apesar de abordar a travessia do Atlântico e a chegada dos colonizadores ao Brasil, a autora não utilizou qualquer representação imagética de navio, um símbolo basilar do sistema construído em mais de trinta narrativas – detalhe que merece investigação cuidadosa. Também as leituras do medievo europeu, do imaginário asiático e dos primeiros episódios da colonização brasileira (com destaque para as “metáforas vegetais”, nos termos de Eduardo Bueno40) são aspectos desdobráveis de forte apelo investigativo. A presença do ideário utópico é igualmente convidativa, guiando o leitor a uma tradição de narrativas instigantes, como A Nova Atlântida, de Francis Bacon, A Cidade do Sol, de Tommaso Campanella, O Paraíso Perdido, de John Milton, entre outras – todas ligadas à busca por lugares fantásticos que mantém algum vínculo com a realidade (ou, na definição de Michel Foucault, lugares que “mantém com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou inversa”41). Mais do que isso: uma tradição de

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O evento foi realizado em um restaurante da Urca e contou com a presença da carnavalesca Rosa Magalhães (que preparava o desfile de 2015 da escola de samba São Clemente) e do seu figurinista Mauro Leite. Ambos foram convidados porque o então carnavalesco da Portela, Alexandre Louzada, decidiu inovar e pediu um desenho de fantasia a cada um dos carnavalescos do Grupo Especial do Rio de Janeiro; tais fantasias, concebidas exclusivamente para a Portela, ilustrariam o último setor do enredo ImagináRIO – 450 janeiros de uma cidade surreal, sobre a recriação da paisagem carioca a partir dos olhos de Salvador Dalí (no caso, a recriação do carnaval das escolas de samba a partir dos olhos de outros artistas que atuam no mesmo contexto). Justamente o desenho assinado por Rosa Magalhães, um arlequim inspirado na girafa em chamas de Dalí, foi o escolhido para ser executado e exposto na festa de apresentação dos protótipos – ou seja: uma das fantasias da Portela, cujo projeto foi concebido por Alexandre Louzada, foi idealizada por Rosa Magalhães (aqui, as discussões sobre os limites da autoria cintilam feito paetês). A convite de Alexandre Louzada, eu pude me sentar na mesa em que estavam ele, Milton Cunha, Rosa Magalhães, Maria Augusta Rodrigues e Mauro Leite Teixeira. Curioso, não perdi a oportunidade de conversar com o figurinista sobre o desfile de 2004, Breazail, e tamanha foi a minha surpresa ao descobrir que ele não aprecia o visual da apresentação, considerando-o “confuso” e “misturado”: “aquilo é muito a cabeça da Rosa, eu não faria daquele jeito” – afirmou. Justamente tal “confusão”, mistura de referências, lugares e tempos, é um dos pontos que mais me fascinaram em 2004 e continuam a me fascinar tantos anos depois; a heterodoxia da apresentação, as arestas narrativas e o não-enquadramento nos padrões usuais, tudo isso é interessante do ponto de vista literário. 40 Ver BUENO, Eduardo (org.). Pau-Brasil. São Paulo: Axis Mundi Editora, 2002, p. 34 e 36. 41 FOUCAULT, Michel. Outros Espaços (Conferência no Círculo de Estudos Arquitetônicos. 14 de março de 1967). In: MOTTA, Manoel Barros da. (org). Estética: literatura e pintura, música e cinema. Coleção Ditos & Escritos III. Rio de Janeiro/São Paulo: Forense Editora, 2001, p. 414/415.

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narrativas que está pelas raízes amarrada ao conceito genérico de carnaval42, aspecto trabalhado por autores como Gregory Claeys, Christopher Kendrick e Felipe Ferreira, com fulcro nas páginas de Mikhail Bakhtin. O diálogo com Foucault, nesse ponto, é especialmente estimulante: o filósofo francês, no texto Outros espaços, apresenta e desenvolve em uma série de princípios o conceito de heterotopia, utilizado pelo ensaísta Alberto Pucheu enquanto ferramenta para se analisar o poema Carnaval Carioca, de Mário de Andrade. O exercício intelectual de Pucheu revela a possibilidade de se aplicar a “teoria” foucaultiana (que é mais poética que teórica em sentido estrito – Outros espaços figura entre os sensíveis e experimentais minuetos de Foucault, longe do rigor formal) a algo profundamente cambiante como as manifestações carnavalescas do Rio de Janeiro – o que, é evidente, não é o bastante, mas uma estratégia possível. Com a carta náutica (o enredo de 2004, Breazail) e a bússola (a reflexão de Foucault, em diálogo com autores das mais diferentes áreas) em mãos, podem-se traçar as primeiras rotas, sinuosas, com vistas aos destinos, portos e entrepostos, a serem alcançados. Realizada a análise da narrativa de 2004 (com especial atenção para os diálogos com Américo Vespúcio e Thomas More) e dos princípios foucaultianos, poderá ser desenhado, em um horizonte teórico não livre do fog das incertezas, um arcabouço mais ramificado do conceito estruturante de utopia (distopia e, principalmente, heterotopia). Depois, e atrelado ao eixo ou à rota anterior, deve-se desbravar o imaginário de viagem presente na obra da carnavalesca - que é, como já aventado, pontuada de travessias e deslocamentos reais e/ou simbólicos: voos e navegações entre continentes e novos mundos, inclusive em direção às fronteiras da galáxia (no caso do enredo de 1998, Quase no ano 2000, de fundo distópico e colorido inusitado). Os múltiplos e recorrentes navios, os embarques e os desembarques, as diásporas: da observação do ideário das viagens será possível extrair importantes perguntas (quiçá respostas) para se compreender a plasticidade das narrativas de enredo de Rosa Magalhães, dificilmente fincadas em um lugar único, flagrantes os limiares. Tais movimentos rumo a outros destinos (outros espaços, outras culturas e outros povos) se entrelaçam, estabelecidos os intercâmbios, com “olhares estrangeiros” que sobre o Brasil se projetam – e dessa questão por vezes Tais relações históricas entre as “utopias” e o carnaval em sentido amplo gerou uma rica discussão após as apresentações da mesa Music and Arts, ocorrida em 26 de outubro de 2014, durante o The Society for Utopian Studies 39th Annual Meeting, em Montréal, QC. Na ocasião, apresentei o trabalho The “utopia’s ground” in “Breazail”, contemporary carnival heterotopia, justamente sobre a presença da obra de Thomas More em um enredo carnavalesco levado à Marquês de Sapucaí. As discussões levantadas e as imbricações que a temática suscita servirão de espinha dorsal para os capítulos vindouros. 42

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espinhosa (afinal, atrelada a conceitos indóceis como etnocentrismo, exotismo, orientalismo, hibridismo, transculturalidade, entre outros também unidos sob o manto dos estudos pós-coloniais) brotam os últimos tópicos a serem desdobrados: por um lado, o outro (a Indonésia, a China, a Índia, o Egito, a Noruega, a Dinamarca, a Holanda, a Áustria, a França, a Espanha, a Argélia, o Caribe, os Estados Unidos, Portugal, Angola... a lista de carimbos é grande); pelo outro, o eu (os múltiplos Brasis existentes no “arraiá de cá”, figurando expressivas as metáforas vegetais, a presença do elemento indígena, a celebração festiva da mestiçagem, a crítica política embebida de galhofa e a devoção ao próprio carnaval). De quais Brasis, enfim, fala a intérprete Rosa Magalhães, autora que, sobre o asfalto da Sapucaí, expressa a sua arte e projeta os seus mapas, atlas particulares? Há um projeto intelectual delineado por debaixo dos lamês e dos bordados? O “movimento de retorno à origem”43, o que ele traz no bojo? Parafraseando Flora Süssekind, teórica bastante atenta às investigações identitárias e às construções das narrativas fundacionais, “a obsessão pela origem – entendida como começo histórico – o que pode trazer consigo?”44 Se Breazail pode ser compreendido enquanto “utopia regressiva”, é fato que também acena para o futuro, convertendo-se em “utopia prospectiva” – um complexo movimento de mão-dupla. Sem contar, é claro, que a obra da artista, ainda na esteira das teorizações de Süssekind, expressa como nenhuma outra, no cenário do carnaval carioca, o “olhar-de-fora”45 que sobre o Brasil se deposita há mais de 500 anos, conceito que oferece ao leitor um guia de referências escritas e imagéticas - dos primeiros cronistas (parte da matéria-prima intelectual de Goitacazes: Tupi or not Tupi, in a South American Way!) aos intérpretes do Brasil que permanecem a revolver o solo da História – dialogando com os textos fundacionais e reatualizando-os (ritualizando-os também). Muito se diz do caráter europeizante, notadamente francês, presente nas criações de Rosa Magalhães (ao menos dez narrativas de enredo assinadas pela autora dialogam explicitamente com a França, incluindo a de 2017, Onisuáquimalipanse, integralmente situada em paragens francesas – aspecto investigado durante o período de mobilidade acadêmica na Université Nice Sophia Antipolis, sob orientação de Béatrice Bonhomme e Jean-Pierre Triffaux); é possível mensurá-lo? Retornamos, pois, à primeira pergunta deste 43

SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui. O narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 15. 44 SÜSSEKIND, Flora. Obra citada, p. 15. 45 SÜSSEKIND, Flora. Obra citada, p. 21.

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bloco (de quais Brasis a artista fala?), cujo sumo é o mesmo da seguinte provocação de Süssekind:

E, se é problemática essa fundação de uma imagem original, singular, de Brasil, é igualmente difícil olhar para a paisagem brasileira real, que lá está de fato, quando o ponto de vista a ser adotado para fitá-la é pré-dado, quando o modo de vê-la se acha previamente determinado por toda uma série de crônicas, relatos, notícias, romances, por uma sucessão de miradas, estrangeiras ou não, que lhe demarcam os contornos, tonalidades, sombreados.46

É o objetivo central da tese, portanto, pensar a obra de Rosa Magalhães enquanto produto de uma intérprete de país importante para o questionamento da(s) nossa(s) singularidade(s). Ao fazer da Passarela do Samba o suporte das suas leituras, ao participar dos cortejos enquanto figurante (em 2009, 2014, 2015, 2016 e 2017 a carnavalesca tomou parte nos desfiles que assinou representando personagens dos enredos – uma espectadora/torcedora do próprio desfile, uma baiana da lavagem do Bonfim, uma foliã dos bailes do Theatro Municipal da década de 1950, uma camponesa medieval e uma pintora da corte de Louis XIV, respectivamente), ao sobrepor camadas estéticas e recortar tempos e espaços em mosaicos heterotópicos, converte-se em uma narradora do deslocamento (o movimento da viagem, em diálogo com o universo das utopias e das heterotopias), do entrechoque, dos olhares cruzados sobre o amplo conceito de Brasil e suas ramificações (identidade nacional, brasilidade, tradição, etc.). Tendo por núcleo reflexivo o enredo Breazail, narrativa fundacional das mais tortuosas e capilarizadas, deve-se expandir a visão para o conjunto de textos escritos e visuais confeccionados pela artista, para que, ao final, ganhe maior relevo a ideia pressuposta de que são os carnavalescos, profissionais de funções híbridas e contornos indefinidos, leitores e intérpretes do Brasil capazes de gestar projetos de notáveis envergaduras estéticas e teóricas. Mas tal movimento não será feito de modo linear, seguindo a cronologia exata da trajetória artística da autora; o que se objetiva é a tessitura de uma rede caleidoscópica, idas e vindas no tempo e no espaço, valorizando-se mais os pontos de contato inusitados e menos, muito menos, os rigores formalistas. Velas ao vento e âncoras levantadas, o oceano. Importante é grifar, diante dos necessários questionamentos que tem aparecido cada vez mais durante os eventos dedicados à discussão dos desfiles das escolas de samba, que este trabalho não se propõe 46

SÜSSEKIND, Flora. Obra citada, p. 32.

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a fazer um recorte a partir dos estudos de gênero. Penso que não cabe a mim a pretensão de redigir uma tese sobre as representatividades femininas no indiscutivelmente machista universo transitado. O que posso é expor o inevitável desconforto e denunciar a permanência das relações patriarcalistas - que se espraiam feito lesmas sobre vigas enferrujadas. Tenho a plena consciência de que, enquanto carnavalesco que também sou, ocupo um lugar contraditório, excludente e privilegiado. No quadro das 13 escolas de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro, em 2018, apenas 4 mulheres assinaram enredos: Rosa Magalhães, Annik Salmon (que dividiu a função, na Unidos da Tijuca, com Hélcio Paim e Marcus Paulo), Bianca Behrends (juntamente com Marcelo Misailidis, Laíla, Cid Carvalho, Victor Santos, Rodrigo Pacheco e Leo Mídia, na Beija-Flor de Nilópolis) e Márcia Lage (que dividiu a função com o marido Renato Lage, na Acadêmicos do Grande Rio). Nesse mesmo grupo, no total, leem-se os nomes de 19 homens – ou seja, uma proporção mais de quatro vezes maior. Lícia Lacerda, Maria Augusta Rodrigues e Lilian Rabello não mais assinam desfiles. No primeiro grupo de acesso, agora Série A, 16 carnavalescos foram anunciados para 2018 – nenhuma mulher. Somando-se os dois primeiros grupos (Especial e Série A), temos 35 homens e tão somente 4 mulheres. Acredito, diante desse panorama tremendamente desigual, que desenvolver uma sequência de dissertação e tese sobre a obra da carnavalesca mulher que mais duradoura carreira tem apresentado é, sim, um ato político por si só; não ousaria, e assumo inclusive as minhas limitações teóricas, esboçar maiores leituras através das lentes dos estudos feministas, sob o risco iminente da contradição performativa. Também é preciso grifar que o exercício de escrita será acompanhado, na linha da ousadia cobrada diante de A Antropofagia de Rosa Magalhães (cobrança reforçada em face da qualificação deste trabalho, conforme já foi elucidado), do experimento artístico de cartografar o sistema simbólico da narradora-carnavalesca a partir do meu olhar embriagado de realizador (carnavalesco) que bebe das mesmas fontes, ou seja: redigir uma espécie de diário de navegação (menos com o compasso geográfico e mais com o impulso poético – análogo ao observável no sensível texto em que Foucault desenha os princípios da heterotopia) a fim de ilustrar e reprocessar (antropofágica e autofagicamente) as rotas percorridas pela artista nos enredos concebidos e materializados ao longo da sua trajetória e as rotas percorridas por mim enquanto navegador cujas trajetórias artística e acadêmica também convergem para o entrelugar (Onfray fala em “entremeio”): o “estrangeiro” no carnaval carioca (fala, Mário de 39


Andrade!), o brasileiro pesquisador na França, durante o intercâmbio em Nice (que se viu obrigado a assistir aos desfiles através do televisor, como nos tempos anteriores a 2008), o escritor literário a disputar o mesmo espaço e o mesmo tempo com o narrador de enredos de escolas de samba, o pesquisador universitário ao lado do carnavalesco – que aceitou assinar, ao lado de Gabriel Haddad, o projeto artístico do desfile de 2018 da Acadêmicos do Cubango (cujo enredo de nossa autoria, O Rei que bordou o mundo, apresentaria, no sábado de carnaval de 2018, a vida e a obra de Arthur Bispo do Rosário sob um viés mitopoético, aparecendo, na abertura, a imagem-síntese da “Nau dos Insensatos”, Das Narrenschiff, retratada por Hieronymus Bosch e descrita por Michel Foucault em sua História da Loucura). Tal empreendimento, que objetiva extravasar o texto escrito (a arte, afinal, é um “movimento para fora” que permite à vida o respirar diante das claustrofobias cotidianas - a lição não-domesticadora de Nuno Ramos, para quem as migrações entre linguagens fazem girar as engrenagens artísticas47) e as amarras formais de uma tese convencional, poderá deslocar o olhar do leitor e auxiliar os navegantes a encontrar possíveis (e transitórias - migrantes) reinterpretações do universo investigado e das perguntas norteadoras da tarefa, além de transformar a empreitada em algo assumidamente pessoal, autobiográfico (também é de Ramos a ideia de que “o artista é um especialista de si”) pleno de um fazer poético único e inimitável. Penso com mais entusiasmo nas proposições de Michel Onfray, para quem “no centro da viagem não há outra referência senão o eu.”48 Diz o filósofo, invocando Montaigne, que “a viagem supõe uma experimentação em nós que tem a ver com exercícios costumeiros entre filósofos antigos: o que posso saber de mim? O que posso aprender e descobrir a meu respeito se mudo de lugares habituais e modifico minhas referências?”49 Tem vozes riobaldianas o trabalho iniciado, sujo de grafite, borracha, aquarela, nanquim e, por óbvio, sujo do tempo da escrita (também assumo que este é um trabalho datado, com esboços apagados ainda ferindo o papel – menos um quadro e mais uma prancha, na definição precisa de DidiHuberman50). Trata-se de um outro movimento dedicado a pensar as narrativas de Rosa

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Ver a entrevista com o artista plástico e filósofo no programa Diverso. Disponível no seguinte sítio: https://www.youtube.com/watch?v=fzlOAmvc4EA. Acesso em 10/09/2017. 48 ONFRAY, Michel. Obra citada, p. 78. 49 ONFRAY, Michel. Obra citada, p. 75. 50 Fala o autor: “O quadro é uma obra, um resultado em que tudo já foi trabalhado; a tábua (prancha), esta, é um dispositivo onde tudo poderá sempre ser trabalhado. Um quadro se pendura nos cimácios de um museu; uma tábua se reutiliza sem cessar para novas banquetas, novas configurações. (...) A tábua (prancha) se mostra inicialmente como um campo operatório do ‘dispars’ e do móvel, do heterogêneo e do aberto.” In: DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas do impossível – Warburg, Borges, Deleuze, Foucault. In:

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Magalhães e a acionar, ainda que refém de um certo romantismo, centelhas criativas e provocativas; disposto a reavivar, enfim, as reminiscências carnavalescas do autor, relampejantes - ao gosto de Murilo Mendes e de Walter Benjamin, conforme o ensinado na sexta tese sobre o conceito de história51; ao gosto de Friedrich Schiller e de João Guimarães Rosa; ao gosto de tão diversos artistas como Arthur Bispo do Rosário e, por que não?, a própria Rosa Magalhães. O trabalho em si, a tese também veste a fantasia, pouco disposta, Colombina dividida, a responder demais. Deve-se frisar, finalmente, que as páginas seguintes são provenientes de uma vivência que transborda as bibliotecas – e, novamente, explode em fogos a influência mariana.52 Vestir as fantasias enquanto folião, sentir a profusão de cheiros e sabores das “barraquinhas” dos arredores da Central do Brasil e do Balança-mas-não-cai (mistura de frituras, canjas, cerveja, cachaça), pisar o asfalto ou as pedras (da Passarela do Samba, da Avenida Rio Branco, da Estrada Intendente Magalhães, da Place Masséna e das pontes de Veneza) e os pisos encardidos das quadras após os ensaios (inclusive escorregar no lodo e cair sentado em plena quadra da Mangueira, quase fraturando o braço, no ensaio de 21 de janeiro de 2017, noite de calor intenso, o último de que participei, às portas de fechar as malas, cruzar o oceano e desembarcar sonolento em uma França abaixo de zero), ouvir os barulhos das máquinas de costura e das soldas forjando o ferro no interior dos barracões, dividir o trabalho de escrita e leitura com o ofício de riscar e colorir desenhos, transitar por espaços tão híbridos quanto podem ser um ateliê de fantasias que funciona em uma fábrica abandonada de nome alemão (Bhering) aos pés do Morro do Pinto, no Santo Cristo, ou num terreiro de Candomblé consagrado a Obaluaê, uma “quadra” de escola de samba que também o espaço ocupado (disputado) por uma feira de

ARTIÈRES, Philippe; BERT, Jean-François; GROS, Frédéric; REVEL, Judith (dir.). Michel Foucault. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 235. 51 Ver BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996, p. 224. 52 Mário de Andrade confessou ao amigo Carlos Drummond de Andrade, em carta enviada em 1924, que a experiência física, corporal, da tempestade em forma de carnaval carioca o fez perceber que um sorriso da folia podia valer uma biblioteca. Nas palavras do artista: “Eu conto no meu Carnaval Carioca um fato a que assisti em plena avenida Rio Branco. Uns negros dançando o samba. Mas havia uma negra moça que dançava melhor que os outros. Os jeitos eram os mesmos, mesma habilidade, mesma sensualidade, mas ela era melhor. Só porque os outros faziam aquilo um pouco decorado, maquinizado, olhando o povo em volta deles, um automóvel que passava. Ela, não. Dançava com religião. Não olhava pra lado nenhum. Vivia a dança. E era sublime. Este é um caso em que tenho pensado muitas vezes. Aquela negra me ensinou o que milhões, milhões é exagero, muitos livros não me ensinaram. Ela me ensinou a felicidade.” Disponível no sítio http://www.revistabula.com/1466-uma-carta-de-mario-de-andrade-para-carlos-drummond/. Acesso em 16/10/2015.

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hortifrutigranjeiros53, ou no galpão em que dúzias de escolas de samba cariocas, no coração de Madureira, constroem as suas alegorias e ouvem os sambas entoados pelos rádios misturados aos cânticos de louvor dos cultos evangélicos que ocorrem no mesmo espaço54, tudo isso abastece os porões de conflitos, afetos, paixões, queimaduras e manchas de cola – o que garante generosas doses de sensibilidade (e tensão, um trunfo) ao périplo iniciado. Negar tal importância acadêmica (que sequer é paralela, mas fundante) é amputar o trabalho de seu componente mais visceralmente poético; é higienizar e/ou aplainar um terreno expansivo, político, ambíguo, distante das soluções tranquilas e das conclusões numericamente elencáveis – se o farei, ao final, será imbuído de um espírito provocador, munido, os bolsos cheios, das leituras de Foucault e Benjamin. Sem falar em Guimarães Rosa – os prefácios de Tutaméia, a terra candente. Oswald, sempre, e Mário – cujas cartas me enternecem a cada leitura madrugueira. Injustificável seria assim não enxergar um processo que se propõe a questionar a obra de uma artista que não hesita ao afirmar que também extrai o seu material reflexivo das andanças e vivências realizadas ao redor do globo, como anteriormente pincelado; que esboçou, em suas narrativas, as memórias afetivas dos quitutes das “tias” baianas55, das aventuras em terras marroquinas56, do

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As peripécias dessa história (a confecção do desfile de 2015 da escola de samba niteroiense Acadêmicos do Sossego, cujo enredo se chamava Banananás) foram narradas no artigo Bananas e abacaxis nos “quintais” do carnaval carioca: impressões etnográficas sobre a produção de um desfile de escola de samba da Estrada Intendente Magalhães, disponível para leitura no seguinte sítio: http://www.pragmatizes.uff.br/revista/index.php/ojs/article/view/130. Acesso em 27/09/2017. 54 Ver: MOTTA, Aydano André. Olha a desigualdade aí, gente! Disponível no sítio: http://projetocolabora.com.br/inclusao-social/olha-a-desigualdade-ai-gente/. Acesso em 22/05/2016. 55 O seguinte trecho é de saboroso tempero literário: “Essas baianas têm o status de ‘tias’ e são em geral grandes cozinheiras. Deste modo, o canto da quadra reservado para elas é um convite à gula. Nos ensaios, cada uma chega com a sua sacolinha, de onde saem coxinhas de galinha, rissoles, empadinhas que se desmancham na boca e outras guloseimas, sem esquecer dos quindins, simplesmente divinos. Na Portela, havia a ‘tia’ Vicentina, encarregada da cozinha, que era imbatível na sopa de ervilha com costelinhas de porco salgadas, verdadeiro pitéu servido depois das três horas da manhã.” MAGALHÃES, Rosa. Fazendo Carnaval. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1997, p. 113. 56 O teor cronístico deste excerto sobre o enredo de 1995, Mais vale um jegue que me carregue que um camelo que me derrube, lá no Ceará, é evidente: “A cidade de Fez ainda conserva suas muralhas e as casas são muito juntas, para minorar o calorão. Foi visitando essa cidade, onde os automóveis são proibidos de circular, que completei o que ouso chamar de meu ciclo exploratório de transportes alternativos. A pequena vila é situada numa encosta, tendo no seu topo um hotel elegante onde os carros ficam estacionados. De manhã cedo, a temperatura estava amena e fui descendo ladeira abaixo, olhando tudo o que podia. Às onze e meia da manhã, o sol era de lascar, a temperatura já havia atingido os 40 graus. Meu guia havia me dito que ao meio-dia o calor já estaria na faixa de 46 graus e teríamos de ficar no hotel até as quatro da tarde, esperando refrescar. Quando me lembrei disso, olhei para o alto do morro e calculei a distância que já havia percorrido. Um estirão de tirar o fôlego, desanimei de voltar a pé. Neste exato momento, surgiu um menino tocando um burrico com uma varinha e gritando: ‘Táxi?’ Um pedaço de tecido de listras coloridas amarrado na barriga do animal à guisa de cela e nada mais. Rédeas, também não tinha. Depois dessa rápida análise

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entretom (auto)biográfico impresso em objetos aparentemente triviais, como um faqueiro da família57 - as reminiscências em potência inflamáveis, a areia do Saara nas solas dos sapatos e os sulcos cartografados na pele, de mochilas e patuás, baixo-relevos. Deslocar o olhar para tais sutilezas, algas marinhas na superfície da água, sargaços e fura-buchos, é parte indissolúvel dessa missão teórico-investigativa. O sambar dessa tese, talvez malandro, tem muito de um veneno sem nome, aquele que somente os amantes da folia conhecem e não é comercializável nas drogarias, um trago de coisa velha, maquiagem de camarim de teatro, misturado a vestido novo e a chuvas de água-de-cheiro. Para além da textura fria das páginas lisas dos livros, as rugosidades58 que desfiam dos lamês e dos rendões, nas saias que rodam e varrem serpentinas, os rasgos, as ranhuras, as cicatrizes nas mãos e nos pés é que podem contar histórias. A colcha de cetim verde, com flores coloridas bordadas, que a minha mãe retirava do armário apenas em dias de carnaval, para cobrir a cama – a “grande cama dos pais”, um oceano heterotópico: nessa colcha de retalhos eu deito e refaço os desenhos da infância. Volto aos meus sete anos, quando ousei fugir de Irati e migrei para o Rio de Janeiro: imitava Rosa e Renato, desfiava os meus enredos, olhava para além da serra e dos contornos do Morro da Santa. Que sopre o vento, e que seja bom de navegar!

da situação, respirei fundo e disse, cheia de certeza – ‘Táxi!’, chamando pelo garoto.” MAGALHÃES, Rosa; NEWLANDS, Maria Luiza. O inverso das origens. Rio de Janeiro: NovaTerra, 2014, p. 69. 57 Escreveu a carnavalesca, sobre Carmen Miranda: “Na minha infância, tinha convivido de certa forma com ela, através de objetos do cotidiano doméstico. Minha mãe, quando morou nos Estados Unidos, precisava mobiliar a casa de forma econômica. E a Carmen, que já era sua amiga, estava querendo mudar a decoração da casa dela. Minha mãe comprou várias coisas suas de segunda mão. Lembro do abajur de pé de marfim e dos talheres de metal prateado. Cada vez que minha mãe comentava que os talheres tinham sido de Carmen Miranda, sumia um, levado de suvenir. Hoje, só tenho uma colher para contar a história.” MAGALHÃES, Rosa; NEWLANDS, Maria Luiza. Obra citada, p. 168. 58 Importante é observar o conceito de rugosidade de Milton Santos, assim definido pelo geógrafo: “Chamemos de rugosidade ao que fica do passado como forma, espaço construído, paisagem, o que resta do processo de supressão, acumulação, superposição, com que as coisas se substituem e acumulam em todos os lugares.” In: SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção. 4. Ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012, p. 140.

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II - A receita do bom vermelho

A ship at sea: a tempestuous noise of thunder and lightming heard. Enter a SHIP-MASTER and a BOATSWAIN. SHIP-MASTER:Boatswain! BOATSWAIN: Here, master: what cheer? SHIP-MASTER: Good, speak to the mariners: fall to’t yarely, or we run ourselves a-ground: bestir, bestir.59 William Shakespeare – The Tempest (ACT I. SCENE I.).

II. 1 - A dança de Goya e Bosch Madri, 11 de julho de 2016. Museo Nacional del Prado. A visão d’O Jardim das Delícias me leva ao amanhecer da segunda-feira de carnaval de 1997, quando, sentado na beira da cama dos meus pais (ao lado da qual eu construía miniaturas de desfiles de escolas de samba – o escorredor de louça, os andaimes da criação do mundo, na imitação do abre-alas da Mocidade Independente do ano anterior, assinado por Renato Lage), na antiga casa de madeira, assisti à apresentação do Salgueiro sobre as relações entre arte e loucura – e a contemplação de corpos nus, tantos!, fez com que eu me sentisse um pouquinho mais adulto. A visão d’O Jardim das Delícias também me leva ao ano 2000, amanhecer de terça-feira gorda, quando, na pequena TV da sala da casa de Irati (em reforma - e ainda mais bagunçada devido aos restos da decoração de carnaval do Clube Polonês, animais e plantas da selva tropical), assisti ao desfile da Unidos do Viradouro. Em branco, prata e furta-cor, a tradução inusual de Bosch. A visão d’O Jardim das Delícias me desloca no tempo e no espaço – e não cabe num caderno, tampouco em uma tese. De relance ou de soslaio, rasgando memórias, escrevo. Acostumada a abrir os seus desfiles com comissões de frente sintéticas (no sentido de apresentar a escola e resumir visualmente o enredo a ser desenvolvido no restante do cortejo) e impactantes (munidas de peças da própria indumentária ou de elementossurpresa utilizados para arrebatar o público e os jurados do quesito: máscaras e longas capas negras, ao estilo veneziano, em 1993; leques bicolores, em 1994; sombrinhas giratórias, em 1995; asas de cores fluorescentes, em 1998; cavalinhos de madeira, em “Um navio no aceano. Ruídos estrondosos de tempestade, com trovões e relâmpagos. Entra o Capitão do navio e um Contramestre. CAPITÃO – Contramestre! / CONTRAMESTRE – Estou aqui, Capitão. Como está se sentindo, senhor? / CAPITÃO – Bem. Trata de falar com os marinheiros. Deixa cair a vela, rápido, senão vamos encalhar. Movimenta-te, anda!” In: SHAKESPEARE, William. A Tempestade. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2014, p. 7. 59

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2001, etc.), a carnavalesca Rosa Magalhães optou por iniciar a apresentação de 2004 sem novidades explosivas - aparentemente. O coreógrafo Fabio de Mello, experiente profissional da dança, deixou os braços e as pernas dos seus bailarinos livres para a execução de passadas intensas, marcadas por giros, rodopios, movimentos circulares – como se todos materializassem a efervescência de um caldeirão (em certo momento, simulavam despejar ingredientes na poção fervente; em outro, contrastante, formavam um triângulo equilátero, símbolo ancestral ligado ao ocultismo). Não era para menos: fantasiados de bruxas, com perucas brancas e máscaras de látex, os quinze componentes (descritos no Livro Abre-Alas daquele ano como “membros da comunidade leopoldinense”60 – ou seja: nenhum bailarino profissional), representavam a “mágica do vermelho”. A sensibilidade da artista se fazia notar nos figurinos: os vestidos rodados, drapeados, brilhavam em tonalidades de verde, uma das cores da escola. Os sapatos, as meias e as calçolas utilizadas pelas feiticeiras, porém, eram vermelhos – e exibidos enfaticamente em determinados momentos do desenho coreográfico (algo como um cancan bruxólico). Em outras palavras: o interior das fantasias era vermelho, enquanto o exterior verdejava. Pintava-se na avenida uma primeira interpretação cênica para o paubrasil, o tema que, analogamente ao que fora realizado com a antropofagia, em 2002, ganhou a centralidade da narrativa desfilada (imagens 2, 3, 4, 5, 6 e 7). A indumentária do primeiro contingente humano a pisar na Passarela do Samba definia o tema do enredo e sintetizava a proposta artística.

Imagem 2: Componentes da Comissão de Frente da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2004, fantasiados de Bruxas. Destaque para o contraste entre o verde dos vestidos e o vermelho de meias, sapatos e calçolas. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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Disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

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Imagem 3: Visão da abertura do desfile de 2004 da Imperatriz Leopoldinense. As bruxas da Comissão de Frente dançavam, simulando o ferver de um caldeirão. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

Imagem 4: Componentes da Comissão de Frente da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2004, fantasiados de Bruxas e realizando movimentos giratórios/circulares, que simulavam o ferver de um caldeirão. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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Imagem 5: Componentes da Comissão de Frente da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2004, fantasiados de Bruxas. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

Imagem 6: Componentes da Comissão de Frente da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2004, fantasiados de Bruxas. Destaque para o contraste entre o verde dos vestidos e o vermelho de meias, sapatos e calçolas. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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Imagem 7: Componentes da Comissão de Frente da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2004, fantasiados de Bruxas, com o carro Abre-Alas ao fundo. Destaque para o contraste entre o verde dos vestidos e o vermelho de meias, sapatos e calçolas – uma interpretação carnavalesca para a configuração vegetal do pau-brasil. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

A presença da cor vermelha em contraste com o verde imperial despertou o interesse dos pesquisadores Gustavo Krelling e Dulce Regina Baggio Osinski, que dedicaram uma seção do artigo “Rosa de Ouro nunca foi de brincadeira”: a presença da arte erudita no carnaval de Rosa Magalhães ao enredo de 2004. Sob o título Uma Rosa que fala: carnaval e arte erudita em “Breazail”, os autores afirmam: “A Imperatriz Leopoldinense tem como cores de sua bandeira o verde, o branco e o ouro. Em 2004, Rosa Magalhães ‘mudou’ as cores da escola e desenvolveu seu enredo através da cor vermelha, contando a história do pau-brasil de maneira inusitada.”61 A ideia de que a artista “mudou” as cores da escola, que parece um tanto exagerada, também foi apregoada durante a transmissão televisiva da Rede Globo62. De fato, apenas um dos setores (os KRELLING, Gustavo; OSINSKI, Dulce Regina Baggio. “Rosa de Ouro nunca foi de brincadeira”: a presença da arte erudita no carnaval de Rosa Magalhães. In: Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares (TECAP – UERJ), Estudos de Carnaval, v.08, n. 02, 2011, p. 172. Disponível no sítio: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/tecap/article/view/10428/8196. Acesso em 22/10/2015. 62 A transmissão enfatizou sobremaneira o uso da cor, sugerindo, para o efeito de polemizar e fomentar enquetes interativas, a ocorrência de uma “troca cromática” entre as escolas Imperatriz Leopoldinense (que se coloriu de vermelho, para falar do pau-brasil) e Acadêmicos do Salgueiro (que, a fim de ilustrar o enredo sobre a cana-de-açúcar e o álcool combustível, desenvolvido pelo casal Renato Lage e Márcia Lage, mesclou o tradicional vermelho e branco à cartela dos tons de verde). Ainda no início do desfile do 61

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“blocos temáticos” que representam visualmente os “capítulos” da narrativa de enredo, costumeiramente enquadrados no espaço entre uma alegoria e outra) apresentava o uso maciço das cores do pavilhão gresilense (o quinto setor, localizado entre as alegorias 5 e 6, dedicado ao esplendor natural do pau-brasil); no mais, predominavam variações do vermelho – um passeio cromático que percorria a ampla cartela que abarca do amarelo ao roxo, sobrando tonalidades de laranja, rosa e lilás. Nada foi dito, na transmissão, dos problemas que o “vermelho” causou para além da Passarela do Samba, informações que são relatadas “à boca miúda” pelos componentes que participaram do processo de feitura do carnaval de 2004. O principal, o temor de que a escola sofresse alguma represália por parte do Terceiro Comando, facção criminosa rival do Comando Vermelho. Encravados em uma região de favelas bastante conflitiva (os complexos do Alemão e da Maré, ainda, infelizmente, nos noticiários de violência), o bairro de Ramos e a quadra da agremiação (localizada em uma encruzilhada da Rua Professor Lacê) testemunhavam, em meados dos anos 2000, sequências de fogo cruzado63. A escolha da cor vermelha enquanto leitmotiv não deixou de ser, sob este ponto de vista, uma opção ousada (e até mesmo perigosa) da carnavalesca Rosa Magalhães. Apontado o ineditismo do uso do vermelho, Krelling e Osinski apresentam ao leitor uma visão panorâmica da sinopse de enredo assinada pela carnavalesca. Não passou despercebido aos pesquisadores o fato de o texto ser acompanhado de referências bibliográficas, algo incomum no gênero em questão – o que revela o cuidado da autora com o rigor metodológico. O que mais instiga o leitor, no entanto, é o caráter fragmentado da narrativa, dividida em 6 pedaços. O primeiro, intitulado Receita para fazer um bom vermelho, assim introduz o tema:

Salgueiro, no domingo de carnaval, a emissora apresentou aos internautas a seguinte – e generalista pergunta: “O Salgueiro é vermelho e branco, mas está todo verde na avenida; o que você acha disso?” Ironicamente, na imagem de fundo (que mostrava a entrada da escola, Comissão de Frente, carro AbreAlas e detalhes da alegoria 02) predominava a cor vermelha. Durante a apresentação da Imperatriz, na segunda-feira, a pergunta da emissora seguiu linha semelhante: “A verde e branca Imperatriz está fazendo um desfile vermelho. Você concorda com isso?” Em ambos os casos, coube aos apresentadores Cléber Machado e Maria Beltrão o ato de relativizar as ideias. 63 Os noticiários de 2002 e 2003 apontavam para isso, utilizando a área de lazer popularmente conhecida como Piscinão de Ramos enquanto exemplo. Segundo inúmeras reportagens, traficantes da favela Roquete Pinto (também chamada de “Parque Roquette Pinto”), área então dominada pelo Terceiro Comando, proibiam que os banhistas utilizassem roupas vermelhas. Em fevereiro de 2009, um fato violento levou a quadra da Imperatriz Leopoldinense às manchetes dos jornais: uma menina de 14 anos morreu vítima de “bala perdida” durante um ensaio da escola de samba – triste retrato dos conflitos que permanecem a ocorrer na cidade do Rio de Janeiro.

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Pique a madeira e coloque-a num caldeirão de água bem quente. Para cada libra de brasil, acrescente uma onça de feno-grego e meia onça de goma-arábica. Ferva durante três horas e deixe repousar por três dias. Retire do caldeirão, com cubos, a quantidade de tinta necessária para tingir. Prepare este líquido em outro caldeirão, no qual acrescentará o alume. Coloque a seda, que foi deixada num banho de alume durante uma noite, no segundo caldeirão, e passe-a por oito banhos quentes. Caso deseje um outro tom, numa tina de água fresca, dissolva um pouco de água-forte. Assim a cor carmesim se transformará em vermelhofogo, denominado scarlatin. Uma reação química hoje, uma mágica ontem. Os magos alquimistas, precursores dos químicos da era moderna, muito contribuíram para estas descobertas. Dedicavam-se sobretudo à busca de transmutar outras substâncias em ouro e prata. Se não encontraram estas fórmulas para os metais, descobriram outras, de valor, talvez, até maior.64

Levando-se em conta que uma sinopse carnavalesca é, via de regra, um texto com viés didático bem demarcado (a compreensão do enredo por parte dos segmentos da escola, especialmente a ala dos compositores, responsável pela posterior elaboração dos sambas que irão participar da disputa), parece evidente que Rosa Magalhães dá um passo além e complexifica a questão, conferindo ao gênero um teor diferenciado. Nesse sentido, é correta a afirmação de que as construções visuais da autora, alegorias e fantasias, apresentam um caráter polifônico também observável nos textos que desenham a escritura dos enredos – um emaranhado de marcas autorais que diferencia os trabalhos da artista daqueles assinados por outros realizadores (não é novidade a contratação de “pesquisadores e escritores de sinopses” por parte dos carnavalescos; na atualidade, a maioria dos “diretores artísticos” ou “designers” se vale dessa estratégia – que, no mais das vezes, contribui para a completa separação das narrativas visuais e escritas, o que, pois sim, compromete o resultado final). A fragmentação escrita da sinopse de Breazail antecipou a fragmentação visual (algo também observado em 2002) do cortejo realizado na Passarela do Samba, um todo coerente – comprovação inicial de que os textos escritos são parte fundante do processo criativo de Rosa Magalhães.65 O carro abre-alas, O caldeirão ferve produzindo o vermelho (imagem 8), e o primeiro setor do cortejo ilustravam a abertura da sinopse. Sucederam a alegoria (onde se viam teias, aranhas, dragões, sapos e uma enorme feiticeira a mexer um caldeirão 64

MAGALHÃES, Rosa. Breazail. Sinopse do enredo do carnaval de 2004 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA). 65 No corpo de narrativas analisadas, o único texto de enredo não assinado pela carnavalesca Rosa Magalhães é do de 2014, A festança brasileira cai no samba da Mangueira, redigido por Oswaldo Martins, veterano elaborador de sinopses para a escola de Cartola e Nelson Cavaquinho. Possíveis consequências dessa “não-autoria” inicial serão discutidas à frente, quando a passagem de Rosa Magalhães pela Verde-eRosa será debatida.

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borbulhante – cuja poção, é claro, era vermelha) seis grupos de fantasiados (além do primeiro casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira, Chiquinho e Maria Helena (imagem 9), com a fantasia A magia da cor vermelha) com vestes que expressavam o imaginário bruxólico do medievo.

Imagem 8: Detalhe do carro abre-alas da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2004. A alegoria, intitulada O caldeirão ferve produzindo o vermelho, sintetiza o que é defendido no primeiro recorte da sinopse de enredo, Receita para fazer um bom vermelho. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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Imagem 9: O bailado do primeiro casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira, Chiquinho e Maria Helena, com a fantasia A magia da cor vermelha – onde se veem asas de morcegos. Na parte inferior da foto, detalhes dos chapéus da ala O Sabá das bruxas. A coruja em preto e branco, na visão de Gustavo Krelling e Dulce Osinski, é exemplo do diálogo entre Rosa Magalhães e Francisco de Goya. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

Entre os signos utilizados pela carnavalesca, Krelling e Osinski enxergaram referências à “arte erudita” de Goya (imagem 10), conforme o defendido no seguinte excerto:

A primeira referência à arte erudita no desfile é implícita. Logo no início, quando o enredo apresenta as bruxas preparando o vermelho em seus caldeirões, aparece uma ala com o nome “Sabá das bruxas”, que tem corujas como elementos presentes nas fantasias. Essas corujas se assemelham, em sua forma, às representadas por Francisco de Goya em suas gravuras. De acordo com Hughes (2007), Goya realizou, no final do século XVIII, uma série de pinturas sobre bruxaria e satanismo, encomendadas pela duquesa de Osuna. Segundo o autor, a duquesa era uma pessoa culta, de pensamento iluminista, mas gostava do teatro popular e dos temas de feitiçaria que povoavam o imaginário do povo espanhol 52


de então. Entre os quadros encomendados pela duquesa está a obra Aquelarre – Sabbath das Bruxas, título igual ao nome da ala do desfile de Rosa Magalhães: “os habituais acessórios góticos do horror – morcegos e corujas – batem asas no céu, onde existe, naturalmente, uma lua crescente (HUGHES, 2007, p. 186). Hughes afirma que em toda a obra de Goya as corujas aparecem como referência à feitiçaria. Em sua série de gravuras de metal intitulada Los caprichos, aparecem as temáticas de bruxas, comédias sexuais, inquisição e o comportamento de monges e padres. A gravura mais famosa da série, El sueño de la razón produce monstruos, contém inúmeras corujas pairando sobre o indivíduo. Nessa obra o artista pretende criticar e combater a superstição do povo espanhol, ideal oposto ao iluminismo, corrente defendida por Goya. Em visita ao barracão da Imperatriz Leopoldinense no dia 28 de julho de 2010, em companhia do aderecista Sergio Farias, tentamos localizar o desenho da fantasia mencionada. Não o conseguimos, porém localizamos o desenho de uma fantasia do mesmo setor, que fazia parte do carro abre-alas. No chapéu da fantasia é possível observar a meia-lua, símbolo herege relacionado às bruxas e presente na obra de Goya, como indicado na citação anterior de Hughes e também presente na próxima citação visual erudita da carnavalesca no desfile, Hieronymus Bosch.66

Imagem 10: Detalhe de Las Brujas, óleo sobre tela de Francisco de Goya, inspiração para a criação de figurinos do carnaval gresilense de 2004. Fonte: https://br.pinterest.com/pin/515310382338434596/. Acesso em 20/02/2016.

Em 11 de julho de 2016, carregando os fragmentos de Breazail nos cadernos, fui à exposição El Bosco – la exposición del V centenario, no Museo del Prado, em Madri (imagem 11). Segundo o texto da curadora Pilar Silva Maroto, algo “irrepetível”: no aniversário de 500 anos da morte do pintor, a mais completa exibição de obras boschianas

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KRELLING, Gustavo; OSINSKI, Dulce Regina Baggio. Obra citada, p. 173/174. Disponível no sítio: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/tecap/article/view/10428/8196. Acesso em 20/02/2016.

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já realizada no mundo – inclusive uma tela do acervo do MASP, As Tentações de Santo Antão, uma obsessão adolescente (era o Bosch que eu podia ver!), atravessou o mar e reencontrou, lá, os seus pares fragmentados. O útil e o agradável, a fome e a vontade de comer: na mesma viagem pelo Velho Mundo, participar da 17th International Conference of the Utopian Studies Society / Europe, na Universidade Nova de Lisboa (evento em homenagem aos 500 anos de publicação do livro de Thomas More), e mergulhar nas criações de Bosch. Era preciso, adulando Didi-Huberman, ver com os meus próprios olhos (olhos de carnavalesco; olhos de pesquisador; olhos de espectador que descobriu o colorido de Bosch na pele dos corpos nus, nos sonhos de Joãosinho Trinta, nas aquarelas de Rosa Magalhães) as pinceladas do sujeito que levou o nome da cidade de nascimento, ’s-Hertogenbosch, para o próprio nome (a territorialidade na carne?); era preciso criar roteiros e conexões, a fim de vivenciar, efetiva e afetivamente, nas solas e nas dores nas costas, a tal experiência de viagem, o tal “olhar estrangeiro” – na época eu não sabia que faria um intercâmbio em Nice (durante o carnaval) e do quanto a experiência de que falo seria aprofundada.

Imagem 11: Exposição do tríptico O Jardim das Delícias no Museo del Prado, em Madri, parte da mostra El Bosco – la exposición del V centenário, julho de 2017. Foto do autor.

Bosch é um dos artistas mais invocados no carnaval do Rio de Janeiro – e não é de estranhar o porquê, afinal, as alegorias boschianas, marcadas por contrastes e imagens 54


que supostamente antecipam o surrealismo, muito dizem dos excessos momescos. O baixo-corporal, o grotesco, a violência, as deformidades, tudo nos remete às pantagruélicas folias medievais67, conforme apontou Bakhtin em sua obra canônica. Joãosinho Trinta explorou as criações visuais do pintor em enredos como o desenvolvido para a Unidos do Viradouro, no ano 2000 – Brasil: visões de paraísos e infernos. Mário Borrielo, defendendo o Acadêmicos do Salgueiro, em 1997, transformou o Jardim das Delícias na terceira alegoria do cortejo - homenagem ao trabalho desenvolvido pela psiquiatra Nise da Silveira, símbolo da luta antimanicomial. No desfile assinado por Rosa Magalhães, em 2004, Bosch teve algumas de suas criações adaptadas para o segundo carro alegórico, nomeado O laboratório dos alquimistas (imagem 12). Krelling e Osinski afirmam que no cenário desenhado pela carnavalesca se pode notar a mistura de elementos laboratoriais, como frascos e tubos de ensaio, com formas inspiradas nas construções do tríptico O Jardim das Delícias, orgânicas, de evidente teor sexual (comparam o “aparato laboratorial” às trompas uterinas). Algo apropriado ao contexto apresentado pelo enredo, revelando a prospecção bibliográfica da autora. Num volteio inusitado, eu viria a reencontrar Bosch em fevereiro de 2017, mais especificamente no dia 22 de fevereiro, durante o carnaval de Veneza. Em meio à neblina quase concreta e aos passeios dos mascarados (inclusive eu botei uma máscara – cabeça de leão) que me remetiam aos desfiles de 1992, 1997 e 2001, quando Rosa Magalhães transportou imagens venezianas para a Passarela do Samba carioca (nos enredos sobre os festejos da época do Marquês de Sapucaí, a vida e a obra de Chiquinha Gonzaga e o ciclo da cana-de-açúcar e a cachaça, respectivamente), deparei-me com o grande anúncio de uma exposição de obras do pintor em frente ao Palazzo Ducale, na Piazza San Marco (imagem 13). Poucas eram as obras boschianas expostas (a mostra se dedicava mais às influências do pintor sobre a arte realizada por artistas de Veneza), sendo que todas haviam participado da exposição em Madri. De qualquer forma, o reencontro foi interessante – tanto mais porque em uma das salas do museu, aquela cujas paredes reproduziam um mapa-múndi renascentista (encomendas megalomaníacas dos Doges poderosos), podia-se ler o nome oferecido às terras “recém-descobertas” da América, o destino de Breazail: Terra Incógnita da Antropofagia (imagem 14).

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Para uma visão panorâmica do assunto, ver RODRIGUES, José Carlos. O corpo na história. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1999.

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Imagem 12: Visão frontal da segunda alegoria do desfile de 2004 da Imperatriz Leopoldinense. Intitulado O laboratório dos alquimistas, o carro é claramente inspirado nas formas apresentadas no tríptico O Jardim das Delícias, provavelmente pintado entre 1500 e 1510 (o período histórico em que o enredo Breazail está situado). O diálogo entre Rosa Magalhães e Hieronymus Bosch é, segundo Gustavo Krelling e Dulce Osinski, algo representativo das interpenetrações entre as artes erudita e popular. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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Imagem 13: Anúncio de exposição de Hieronymus Bosch na fachada do Palazzo Ducale, em Veneza, em 22 de fevereiro de 2017. Foto do autor.

Imagem 14: Pintura em uma das paredes da sala real do Palazzo Ducale, em Veneza, retratando a “terra incógnita da antropofagia”. Foto do autor.

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II. 2 - Dos mandarins chineses aos mineiros celtas

II. 2. 1 - Vermelho chinês

Rio de Janeiro, 17 de maio de 2011, terça-feira. No auditório do Centro Cultural Banco do Brasil, CCBB, nos arredores da Candelária, tinha início o ciclo de debates Carnaval: que festa é essa?, promovido pelo jornalista Aydano André Motta. Os convidados do primeiro encontro, Rosa Magalhães e Renato Lage; mediação de Felipe Ferreira. Alguém perguntou, no decorrer do debate, se os artistas sentados no palco entendiam haver, grosso modo, uma “estética carnavalesca”. Rosa foi direta, em palavras algo assim: “existir existe, mas não sei exatamente como é. Sei que existe porque quando desenvolvo os figurinos de uma peça ou de um espetáculo de balé, basta colocar uma lantejoula para ouvir de alguém, pouco entusiasta do carnaval, que ‘é isso o que dá contratar uma figurinista que também é carnavalesca’.” Renato concordou, sinalizando positivamente: “é isso mesmo, existe o preconceito. Quem não é do carnaval fala mal da nossa estética.” No mesmo debate, Felipe Ferreira tomou a palavra e questionou os entrevistados sobre os rumos do figurino de baiana, fundamento de qualquer escola. Falou da ausência costumeira de torso, colares, pulseiras e pano da costa, além de criticar o peso excessivo que os figurinos adquiriram, dificultando a dança das senhoras mais idosas. Tanto Rosa quanto Renato defenderam o cuidado para com os elementos da indumentária tradicional: babados, badulaques, pano da costa, ainda, claro, que existam estilizações. Rápida e certeira, a carnavalesca cutucou o colega: “Mas Renato, a sua última baiana, no desfile do Salgueiro, não tinha nada disso que você está defendendo. Era uma espanhola, com leque e mantilha!”68. Renato não perdeu tempo e devolveu a provocação: “Mas representava um filme sobre o Rio de Janeiro, então era coerente; a sua era uma coisa chinesa!” O mediador, Felipe Ferreira, riu da troca de farpas e deu razão a Renato Lage: a baiana de Rosa Magalhães de brasileira não tinha nada. Em Mitos e histórias entrelaçadas pelos fios de cabelo, o enredo desenvolvido pela autora para o desfile da Unidos de Vila Isabel de 2011, as baianas representavam Lendas chinesas no universo da simbologia cósmica. Na justificativa apresentada aos 68

Rosa se referia às baianas que, inseridas na narrativa do enredo Salgueiro apresenta: O Rio no Cinema, sobre a presença da Cidade Maravilhosa em obras da Sétima Arte, representavam Carlota Joaquina, Princesa do Brazil, o emblemático filme de Carla Camurati, de 1995, com Marieta Severo no papel da protagonista. O filme é considerado o marco da chamada “Retomada”.

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jurados, a explicação disso: “no universo chinês, os cabelos ao redor da cabeça representam o sol. Também podem ser considerados como símbolos de sacrifício, como no caso de T´ang, o Vitorioso, que no momento em que se ofereceu como vítima de sacrifício pela felicidade do povo chinês, cortou os cabelos.”69 A artista complementa o exposto e informa aos leitores que, a fim de expressar plasticamente a “simbologia cósmica”, recorreu a um símbolo conhecido: “O Dragão Chinês do Ano Novo aparece como elemento decorativo na saia das baianas.” Não era a primeira vez, porém, que dragões chineses cruzavam (ou giravam, no caso das saias das baianas do bairro de Noel) a Marquês de Sapucaí, em desfile assinado por Rosa Magalhães. A abertura da apresentação da Estácio de Sá de 1989, em tons de vermelho, amarelo e laranja, incendiou a Passarela do Samba: junto ao leão, símbolo da escola, o carro abre-alas exibia dragões – criaturas lendárias também presentes, em dourado, no alto da segunda alegoria do cortejo, um grande pagode encimado por uma destaque fantasiada com leques. Não bastasse, dois compridos dragões de tecido (com cabeças de papier-mâché) protegiam o segundo casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira, devidamente paramentado com figurinos de nobres chineses.70 O enredo Um, dois, feijão com arroz tinha início na Cidade Proibida. Em Breazail, pode-se dizer que a temática foi revisitada e expandida: dragões desenharam sinuosas coreografias (imagem 15), também em tons explosivos de vermelho, sobre o asfalto cinza – molhado de uma chuva intermitente, que depois do desfile do Império Serrano, escola que sucedeu a passagem da coirmã de mesmas cores, resolveu cair aos raios e trovejões. Na sequência do texto do enredo de 2004, a autora desenvolveu o fragmento O poder simbólico do vermelho, cujo subtítulo é pinçado (para não dizer copiado) do artigo de Ana Roquero, Moda e Tecnologia, presente na coletânea Pau-Brasil, organizada por Eduardo Bueno. No trecho em questão, são abordados os usos rituais da tonalidade desde “o primórdio das civilizações”. A cor é associada ao sangue, ao fogo e às vitórias nos combates, algo esmiuçado na pesquisa de Roquero, para quem

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Justificativa presente no Livro Abre-Alas de 2011, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA. 70 A nobreza chinesa também foi transformada em fantasias e alegorias no desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2005, cujo enredo, homenagem a Hans Christian Andersen, dedicava um trecho à história O Rouxinol do Imperador. Às alas Vendedor de pássaros, Corte chinesa, Súditos da Corte, Conselheiros do Imperador e Dançarinos do Imperador seguia-se o mais comentado carro daquele desfile: um palácio chinês decorado com porcelanas. A carnavalesca criava, ali, uma China integralmente em tons de azul, preto e branco, algo bastante incomum (ao menos no contexto carnavalesco) e de beleza grandiosa.

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“a túnica rubra dos guerreiros de Esparta cumpria a dupla função de ocultar ao soldado ferido a visão do próprio sangue enquanto exaltava sua paixão bélica.”71 Ainda de acordo com a pesquisadora, sem grandes compromissos com o rigor da terminologia historiográfica, “o desfile de legionários romanos vitoriosos pelas ruas de sua capital imperial, fardados com o sagum cor de fogo, era uma visão que estimulava o ardor patriótico do povo. Não foi à toa que Marte, o planeta vermelho, acabou batizado com o nome do deus da guerra.”72 Na sinopse de Rosa Magalhães, o ardor e o espírito beligerante são exemplificados pelo “vermelho chinês”73, prova da importância da cor para os soldados e os mandarins do “extremo Oriente”. No artigo de Roquero, a China não se faz presente.

Imagem 15: Dragões/Leões chineses no desfile gresilense de 2004. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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ROQUERO, Ana. Moda e tecnologia. In: BUENO, Eduardo (org.). Obra citada, p. 187. ROQUERO, Ana. Obra citada, p. 187/188. 73 A justificativa da alegoria 03, presente no Livro Abre-Alas de 2004, afirma o seguinte: “O vermelho era uma cor nobre utilizada por muitos povos. Mas os chineses sempre tiveram uma aplicação toda especial para esta cor. Tanto que um de seus matizes é chamado de vermelho chinês.” 72

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Tal recorte temático ganhou, no desfile, dois setores – aqueles compreendidos antes da terceira e da quarta alegorias. O carro alegórico de número 3, O vermelho na corte chinesa – distraindo a Imperatriz, malabaristas, equilibristas, dançarinos (imagem 16), coroou o grupo de alas que exaltava a suntuosidade dos mandarins da China. As referências à Ópera de Pequim, às danças com leques e às lanternas chinesas também se fizeram notar (imagens 17, 18 e 19), contribuindo para um todo opulento.

Imagem 16: Visão frontal da ala Equilibristas e da terceira alegoria (O vermelho na corte chinesa – distraindo a Imperatriz, malabaristas, equilibristas, dançarinos) do desfile da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2004. A presença da cor vermelha salta aos olhos, ainda que o verde da agremiação de Ramos se faça presente nos mais preciosos detalhes. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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Imagem 17: Detalhe da terceira alegoria do desfile da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2004, intitulada O vermelho na corte chinesa – distraindo a Imperatriz, malabaristas, equilibristas, dançarinos. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

Imagem 18: Ala Equilibrista, do primeiro setor dedicado à China, no desfile gresilense de 2004. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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Imagem 19: Detalhes das alas Dançarino da Ópera de Pequim, Lanternas chinesas e Acrobata, todas compondo o primeiro setor dedicado à China no desfile da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2004. Apesar da presença da cor vermelha, nota-se o uso pontual do verde, cor da agremiação. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

No setor subsequente, as guerras: a quarta alegoria do cortejo, O vermelho incendeia as guerras, apresentou ao público os “Guerreiros de Xian”, esculturas de 63


terracota descobertas em 1974, que, segundo a justificativa da carnavalesca, “eram policromadas com aplicações em vermelho” (imagens 20, 21 e 22). O exército de estátuas, uma das mais expressivas descobertas arqueológicas da segunda metade do século XX, é, assim como os vasos e as máscaras egípcios, um exemplo de arte funerária: a finalidade, ao que tudo indica, era proteger o Imperador Qin Shi Huang, grande unificador que governou de 260 a.C. a 210 a.C., após a passagem dele para o mundo dos mortos. A bateria leopoldinense, de nome Swing da Leopoldina, desfilou no setor dedicado a esses guerreiros de terracota, com a fantasia Dragão do ano novo (imagem 23). Curioso é o fato de que a atenção generosa dada à cultura chinesa mais parece um “subtema” (ou mesmo uma espécie de “fuga ao tema”, dada a pouca conexão com os demais momentos) do que algo imprescindível para o desenvolvimento da trama principal - o que não deixa de ser uma comprovação da ideia de que o enredo de Rosa Magalhães é formado por retalhos narrativos, havendo digressões, saltos, desvios intencionais (por motivos puramente estéticos, no caso da supervalorização da China?). É somente após a passagem da segunda alegoria dedicada à presença da cor vermelha no “extremo Oriente” que o enredo mergulha nas discussões acerca dos povos fenícios e celtas, centrais para a compreensão do próprio título da narrativa, Breazail.

Imagem 20: Detalhe de esculturas da alegoria nº 4 (O vermelho incendeia as guerras) do desfile de 2004 da Imperatriz Leopoldinense. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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Imagem 21: Detalhe de escultura da alegoria nº 4 (O vermelho incendeia as guerras) do desfile de 2004 da Imperatriz Leopoldinense. Trata-se de adaptação carnavalesca das esculturas de terracota encontradas em Xi’an, na China, em 1974. As lanternas chinesas ajudavam a compor um cenário imponente. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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Imagem 22: Detalhe de esculturas da alegoria nº 4 (O vermelho incendeia as guerras) do desfile de 2004 da Imperatriz Leopoldinense. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

Imagem 23: Bateria da Imperatriz Leopoldinense durante o desfile de 2004, com a fantasia Dragão do ano novo. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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II. 2. 2 – Uma ilha chamada Brasil? Londres, 14 de maio de 2017. Penso que estou numa ilha – o que, inclusive, já rendeu duas homenagens do Grêmio Recreativo Escola de Samba União da Ilha do Governador: em 1992 (num enredo sobre as ilhas em geral, do Havaí a Madagascar) e em 2012 (sobre a cidade de Londres, especificamente, pegando o gancho dos Jogos Olímpicos daquele ano – a cidade passaria o bastão para o Rio de Janeiro). Releio Utopia, diante da Torre de Londres, num domingo de sol, o Tâmisa faiscante (imagem 24). À noite, o retorno para Nice: sair da ilha, atravessar o Canal da Mancha, ganhar o continente. Fui à quadra da União da Ilha, pouco antes da viagem a Nice – noite de 19 de janeiro, véspera de feriado de São Sebastião, quando a quadra em que eu morava, na Tijuca, se enchia de pessoas vestidas de vermelho, palmas, cheiro de milho cozido, alimento de Oxóssi. Homenagem a Maria Augusta: 40 anos de Domingo, enredo e desfile que em definitivo inseriram a crônica no carnaval das escolas de samba (espírito que parecia perdido, mas que, aos poucos, volta a ser cortejado).

Imagem 24: 14/05/2017. Ao fundo, a Torre de Londres, onde Thomas More foi decapitado. Foto do autor.

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Em 19 de janeiro de 2014, domingo, apresentamos os protótipos das fantasias da Mocidade Unida do Santa Marta para o carnaval que ocorreria em março, depois de uma longa madrugada acesos, “virados”, no ateliê contratado pela escola, na Pavuna. Pizzas gordurosas, clássicos do funk, cervejas de lata, um vai e vem de pessoas que não mais sabemos quem são. Rafael Bqueer, performer oriundo de Belém, fotografava tudo. Às 8 da manhã, quando Rafael Gonçalves e Gabriel Haddad dormiam um pouco, dividindo a cama da mãe do chefe do ateliê, Anderson Paiva, candomblecista de Xangô (que possuía dois cágados enormes, no quintal, que mordiam os nossos calcanhares), eu e Vitor Saraiva, com quem assisti aos desfiles de 2018, a calefação na temperatura máxima, em Nice, fizemos uma burrinha, elemento fundamental para a ala dos boiadeiros (o enredo, Na hora em que o sol se esconde, partia de algumas canções de Dorival Caymmi para falar do Brasil profundo, suas histórias e suas gentes). Uma visão de Brasil que eu não mais traduziria em desfile: de acento colonial, a narrativa se baseava em História pro Sinhozinho, tema que passeou pelas adaptações televisivas do Sítio do Picapau Amarelo e terminou por virar ponto de Umbanda, presença obrigatória em qualquer roda de pagode – desses casos em que a autoria praticamente se perde e se converte em domínio público. Uma visão de Brasil que nos remetia, é claro, à obra de Rosa Magalhães – as moendas e o mel da cana, em 2001; o enredo de 2005, Uma delirante confusão fabulística, que unia Hans Christian Andersen e Monteiro Lobato. Não poucas foram as vezes em que Rosa Magalhães se embrenhou pelo Brasil profundo, a fim de buscar as “raízes” da nossa gente. A narrativa de 2004, por sua vez, se restringe ao litoral brasileiro, à costa enfim mapeada, invadida e colonizada pelos europeus. Mas busca, mais do que nenhuma outra, as raízes da(s) nossa(s) identidade(s) – inclusive no sentido literal, as raízes das árvores tinteiras. A terceira subdivisão da narrativa assinada pela carnavalesca recebeu justamente o título do enredo, Breazail. No fragmento textual, lê-se:

Breves pinceladas sobre corantes e tinturas da Antiguidade são fundamentais para podermos entender e valorizar a grande aceitação da madeira tintorial brasil asiático e mais tarde do brasil no Novo Mundo. Os fenícios, grandes navegadores, comercializavam os tecidos tintos de vermelho - o próprio nome fenício, vindo de grego, significa púrpura. Eram os detentores do segredo da fabricação desta mística e suntuosa cor. O dióxido de estanho era um produto indispensável no processo secreto da fabricação da púrpura. Obtinham esse inestimável corante mineral de cor avermelhada com os celtas, povo mineiro que o extraía de minas 68


espalhadas desde a Irlanda até a Ibéria. Os celtas chamavam o estanho de breazail, ou vermelhão. Existem muitas teorias, mas acredita-se que o termo brasil tenha origem celta.74

É a partir dessa premissa que a autora muda o rumo da viagem e, embarcada em um navio fenício, aporta na costa irlandesa. A busca pelas raízes mais profundas da etimologia da palavra brasil adquire temperatura máxima no interior das minas de estanho celtas, o motivo da quinta alegoria do desfile (prateada, com detalhes em vermelho). A rota em direção à Irlanda conduz o leitor-marinheiro aos levantamentos de Sergio Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso, obra utilizada por Rosa Magalhães para a elaboração do enredo gresilense de 1992, Não existe pecado abaixo do Equador. Diz o historiador, ao fazer um inventário das ditas “ilhas afortunadas” associadas ao mito da existência de um paraíso terreal:

Em alguns casos transforma-se a Ilha de São Brandão em um arquipélago, que pode incluir, como sucede no mapa de André Benincasa, anconitano, datado de 1467, a do Brasil, ou Braçile, que no século anterior, em 1367, a carta de Pizzigano colocava, por sua vez, com o nome de Ysola de Braçir, entre as chamadas “Benaventuras”. Essa fantástica ilha do Brasil, tão estreitamente vinculada a toda mitologia de São Brandão, pertence, com esta, à antiga tradição céltica preservada até os dias de hoje, e que aparentemente nada tem a ver com a presença em certas ilhas atlânticas de plantas tais como a urzela ou o sangue de drago, que dão um produto tintorial semelhante, na cor purpurina, a outro que, pelo menos desde o século IX, era conhecido no comércio árabe e italiano sob os nomes de “brasil” e “verzino”. Segundo já o mostrou decisivamente Richard Hennig, aparenta-se o topônimo antes às vozes irlandesas Hy Bressail e O’Brazil, que significariam “ilha afortunada”. Essa, melhor do que outras razões, poderia explicar a forma alternativa de “O brasil” e “Obrasil” que aparece em vários mapas. Até em cartas portuguesas como a de Lázaro Luís, datada de 1563, vê-se essa designação “obrasil” atribuída à ilha mítica. Em outra, de Fernão Vaz Dourado, existente na biblioteca Huntington e composta, segundo parece, pelo ano de 1570, já se transfere, pela forma de “O Brasil”, encimando as armas de Portugal (assim como, mais ao sul, se vê o “r. da prata” sob o escudo castelhano) para a própria terra que descobriu Pedro Álvares Cabral. Aliás, antes de 1568, em mapa do mesmo autor, incluído no atlas Palmela, temos o nome “hobrasill”, juntamente com o do cabo de Santo Agostinho, aplicado a terras compreendidas no Brasil atual. Curioso que a nova naturalização americana do designativo não impeça que, no referido atlas, continue esse “obrasill” a indicar uma ilha misteriosa localizada a SW da Irlanda e representada por um pequeno círculo vermelho atravessado de uma raia branca. 75

Tais relações entre as origens do nome do nosso país e o imaginário mítico da Irlanda são exploradas em profundidade na obra Uma ilha chamada Brasil – O paraíso 74

MAGALHÃES, Rosa. Obra citada. HOLANDA, Sergio Buarque de. Visão do Paraíso. Os Motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 209. 75

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irlandês no passado brasileiro, de Geraldo Cantarino76. Segundo o autor, deve-se às pesquisas de Roger Casement a afirmação de que o nome do Brasil não é originário do pau-de-tinta, mas de “uma antiga crença irlandesa tão remota como a própria mente celta.”77 Em termos distintos, não haveria dúvidas, para Casement, de que “a palavra brasil só poderia ter chegado aos portugueses como uma derivação de um lendário nome celta, da mítica Hy Brasil, também conhecida como Terra Prometida, Ilha Abençoada e Terra do Sol Poente.”78 Ainda de acordo com os levantamentos de Cantarino, diferentes enciclopédias de mitologia mencionam a referida ilha, síntese de uma tradição de narrativas ficcionais que nos remetem à lendária Atlântida e a outras ilhas de fantástico apelo imaginativo. Isso fica evidente nos seguintes excertos:

(...) Há quem acredite que Hy Brasil existiu de verdade num passado distante. Para outros, a ilha faz parte de uma categoria de objetos e lugares indecifráveis, de existência duvidosa, permeando os limites entre o mundo real e o imaginário. Hy Brasil aparece, por exemplo, na Encyclopedia of Things that Never Were, como uma ilha do oceano Atlântico, “provavelmente na mesma latitude dos Açores, apesar de ter aparecido tanto ao norte quanto ao sul da Irlanda. Na Antiguidade, a ilha desfrutou de um próspero comércio de pau-de-tinta, como pau-campeche, usado para tingir tecidos dos fenícios, romanos e egípcios.” (...) Há os que dizem que a ilha não tem endereço fixo no mundo que conhecemos e nunca aparece duas vezes no mesmo lugar. Raramente é alcançada pela visão humana, com exceção apenas de crianças e sonhadores, que estão abertos para o mistério. Hoje perdida sob as ondas, no fundo do mar, e relegada ao domínio do mito – nos contam outros tantos – Hy Brasil foi um dia uma terra encantada, onde vivia tudo que era belo e misterioso, um reino de fadas e de cores que ficava além do arco-íris.79

As visões apresentadas por Cantarino dispensam comentários no que tange ao tempero carnavalesco. Evidentemente, o imaginário evocado pela mítica Hy Brasil reúne matéria das mais expressivas para a construção alegórica de um desfile de escola de samba. Tanto é assim que a crença em um paraíso terreal povoado de belezas naturais (uma profusão de frutos e flores carregados dos mais sofisticados perfumes), corpos esbeltos banhados de sol e encantamentos de toda sorte estimulou Joãosinho Trinta a 76

Nessa obra, em diálogo com o pesquisador Angus Mitchell, o autor mostra, inclusive, a presença de variantes da palavra brasil em nomes de família irlandeses: “Aproveitei que estava na Irlanda, resolvi consultar a lista telefônica e me surpreendi com o resultado. Numa rápida olhada, encontrei os seguintes sobrenomes: Brassil, Brassill, Brazier, Brazil, Brazill e Brazzill. Mitchell diz ainda que a palavra Brazil e suas muitas variações podem ser encontradas, facilmente, em antigos manuscritos irlandeses. Breasail, por exemplo, é o nome de um semideus pagão.” In: CANTARINO, Geraldo. Uma ilha chamada Brasil. O paraíso irlandês no passado brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2004, p. 33. 77 CANTARINO, Geraldo. Obra citada, p. 34. 78 CANTARINO, Geraldo. Obra citada, p. 32. 79 CANTARINO, Geraldo. Obra citada, p. 42/43.

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conceber a abertura do espetáculo que a Unidos do Viradouro apresentou no ano 2000 – uma leitura de Hy Brasil a partir da profusão de formas de Hieronymus Bosch. Nesse ponto, é fundamental compreender a síntese teórica realizada por Gustavo Barroso, base para a análise de Geraldo Cantarino. De acordo com Barroso, cristalizou-se no imaginário coletivo brasileiro uma “fácil explicação” para o nome do país: a “madeira de tinturaria – madeira em brasa – cujo comércio atraiu para o país muitos aventureiros, entre eles, portugueses, franceses e ingleses.”80 Entretanto, concluiu o pesquisador após percorrer centenas de mapas e documentos antigos, a origem do nome Brasil é mais antiga que a exploração da madeira, dizendo respeito à ilha celta associada a “boa sorte, felicidade, prosperidade, etimologia tão aceitável, de qualquer ponto de vista, senão mais, do que a outra, absolutamente materialista. Do ponto de vista poético, simbólico, mesmo histórico e sobretudo tradicional, não deve haver hesitação possível.”81 Ou seja: não apenas a hipótese mitológica parece mais verossímil, para Barroso, como mais importante sob o viés cultural em sentido amplo. Vislumbra-se, aqui, uma ponte para um passado pouco investigado, aquele que possibilita um agudo intercâmbio entre o Brasil e a Irlanda - algo estranhamente ainda não explorado no universo das escolas de samba cariocas; se já vimos homenagens a países como Alemanha, Suíça, Estados Unidos, Noruega, Dinamarca, Marrocos, África do Sul, Guiné Equatorial, Japão, Angola, Itália, Espanha, Índia, mesmo a Inglaterra (sem falar na onipresença de Portugal e França, inclusive na obra de Rosa Magalhães, como será debatido na segunda metade deste trabalho), é fato que a Irlanda, a despeito da sua importância para a compreensão etimológica do nome do Brasil, permanece desconhecida nos arredores da Marquês de Sapucaí.82 No livro O Brasil na lenda e na cartografia antiga, Barroso afirma:

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CANTARINO, Geraldo. Obra citada, p. 52. BARROSO, Gustavo. Segredos e revelações da história do Brasil. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1961. 82 Geraldo Cantarino atribui a pouca (ou quase nenhuma) atenção brasileira dedicada à Irlanda a um “desprezo cultural” de raízes de mais de um século, construído sobre escrivaninhas inglesas e norteamericanas: “Roger Casement cita alguns desses autores, como Alice Stopford Green e Mr. J. R. Kenny, que destacaram a importância da Irlanda no cenário internacional. No entanto, argumenta Casement, nada disso foi do conhecimento de historiadores considerados, na época (início do século XX), modernos – como Washington Irving, William Hickling Prescott, William Robertson, Robert Southey – que relataram as descobertas da América para o mundo de língua inglesa. De acordo com Casement, esses acadêmicos tinham uma visão deturpada e preconceituosa da história irlandesa (...)”. In: CANTARINO, Geraldo. Obra citada, p. 36. Tal “apagamento simbólico” pode explicar a ausência de aparições irlandesas em narrativas de carnaval cujo tema são as Grandes Navegações e o “descobrimento do Brasil”. 81

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Nada mais curioso e interessante, portanto, do que estudar detidamente, através da abundante documentação que existe, a vida dessa palavra BRASIL, anterior, como veremos circunstanciadamente, ao descobrimento da costa brasileira por Pedro Álvares Cabral e talvez provinda também de outra fonte que não só a madeira do miolo cor de brasa, a qual, de longa data, genoveses, venezianos, pisanos e amalfitanos traziam do Oriente com as especiarias e tinha, na indústria europeia de tecidos, o mesmo relevante papel das anilinas alemãs recentemente. Era a púrpura vegetal. Árabes e persas iam-na buscar, com as monções, em Java Maior e Java Menor, nas inúmeras ilhas do antigo e esplendoroso Império Sumatrense de Çrivijaya, destruído no século XIII, do qual as magníficas ruínas de Bali, envoltas nas enrediças de jángala, ainda agora atestam a fortuna e a grandeza.83

Se há, automaticamente, dois caminhos possíveis para a análise (o que leva à extração da madeira para fins comerciais ultramarinos, mais recente e “concreto”, e o que leva à mitologia celta, perdido no tempo, envolto em lendas e magias, bastante abstrato e poético), fato é que há uma mesma matriz etimológica, o que, segundo o pesquisador, originou o mar-sem-fim de dúvidas:

Brasil pode vir tanto de brasa como de Brasail ou Bresail ou Bressail, Terra Afortunada. A simples semelhança do vocábulo irlandês dado à ilha lendária do oceano Atlântico, com o do pau-brasil, berzil ou berzino talvez tenha trazido a confusão de que resultou pensar fosse do nome da madeira que tivesse nascido o nome do país. O nome do Brasil pode ser considerado um símbolo, vem da lenda antiquíssima duma terra feliz, em celta Bressail, Hy-Bressail, O Brasil, com a intercorrência da madeira vermelha – Berzino, Berzi, Brasil, e traz consigo uma longa tradição cartográfica.84

Rosa Magalhães, em 2004, embarcou menos na fantasia que a Ilha de São Brandão evoca (a reunião de seres encantados, como fadas, sereias e leprechauns, não deu o ar da graça no cortejo gresilense) e desenhou um cenário duro, seco, metálico (imagens 25 e 26). Isso, que num primeiro momento pode parecer estranho, é coerente com a ideia-base que a narrativa expressa: a hipótese de que o nome do “país do carnaval” também é derivado das entranhas das minas celtas, do ventre da terra, e não apenas do miolo das árvores tintoriais. O estranho justificado pelo estanho.

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BARROSO, Gustavo. O Brasil na lenda e na cartografia antiga. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1941, p. 20. 84 BARROSO, Gustavo. Segredos e revelações da história do Brasil. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1961.

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Imagem 25: Detalhe da quinta alegoria do desfile da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2004, intitulada Breazail – metal que produz o vermelho. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

Imagem 26: Detalhe da quinta alegoria do desfile da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2004, intitulada Breazail – metal que produz o vermelho. O carro representava uma mina de estanho celta. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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II. 2. 3 – Breazail – metanarrativa metálica Entre o mito insular e os troncos picados, a cor vermelha é a intersecção – o selo que une, cera derretida, as hipóteses divergentes. E a cor vermelha nos leva, necessariamente, ao passado fenício. O motivo é simples, ainda que nebuloso: eram os fenícios exímios conhecedores de técnicas de extração de pigmentos vegetais, animais e minerais, utilizados para a confecção de tecidos coloridos, em especial os encarnados. A busca pelos melhores pigmentos teria levado os fenícios à Irlanda e a outros destinos do mundo, atuando os navegadores enquanto excelentes intercambistas. Difundiam saberes e promoviam trocas simbólicas, unindo, quiçá, a ilha desconhecida (Hy Brasil) às terras onde aportou Cabral (Vera Cruz, Santa Cruz, Brasil). Vejamos o causo com mais cuidado, pelas lentes de Geraldo Cantarino. Consultando os alfarrábios do historiador J. M. Roberts, Cantarino conclui que “os fenícios dominavam uma sofisticada técnica de produção de corantes a partir do múrex e do púrpura, moluscos que fornecem uma tinta de cor púrpura e de grande valor comercial na Antiguidade.”85 Aos poucos, porém, a procura pelos animais marinhos se mostrou inviável (de acordo com Ana Roquero, o número de moluscos necessário para a produção do pigmento era absurdamente grande86) e cedeu espaço à exploração vegetal, o que teria estimulado longas viagens para além do Mediterrâneo: “em vez de moluscos, aventa-se a possibilidade de extração de corantes a partir de uma fonte vegetal, como os paus-de-tinta, em função da produção em grande escala. Isso abre margem para imaginar

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CANTARINO, Geraldo. Obra citada, p. 80/81. Nas palavras de Roquero: “A sedução exercida pela púrpura e o carmim nos tempos bíblicos nascia, em grande parte, do altíssimo valor econômico das matérias-primas a partir das quais essas cores míticas eram produzidas, bem como dos complexos processos necessários para sua extração e aplicação. A tintura púrpura, tal como inventada pelos fenícios, era obtida a partir de uma pequena quantidade do líquido viscoso contido na glândula existente sob as brânquias de alguns moluscos marinhos gastrópodes. Para obter uma pequena quantidade de tintura era preciso sacrificar milhares desses animais. Certas fontes chegam a afirmar, talvez com exagero, que dez mil conchas produziam um único grama do corante. Para a extração dessa glândula, as conchas de maior tamanho eram perfuradas, uma a uma, com facas especiais, enquanto as menores eram inteiramente amassadas. Segundo a descrição de certos textos latinos, particularmente os de Plínio, o Velho, a secreção obtida da glândula do molusco era misturada com natrão e deixada macerar por três dias. A mistura era então esquentada em recipientes de estanho (chamado de “chumbo branco” pelos antigos e provavelmente obtido em locais tão distantes quanto a Irlanda), adicionando-se a devida proporção de água. Como os caldeirões tinham de ser mantidos em uma temperatura regular e constante, tubos levavam até eles o calor produzido em fornos localizados a boa distância. Depois de uns dez dias de fervura faziam-se as primeiras provas de tingimento.” ROQUERO, Ana. Obra citada, p. 189. 86

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que os fenícios talvez tenham saído pelo mar em busca de terras com madeiras tintórias, como o pau-brasil.”87 Tal suposição é plausível, mas carece de consistência histórica. Fato inconteste é que as supostas peripécias fenícias vem estimulando, ao longo dos séculos, as crenças mais enigmáticas - como a de que a Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro, seria o túmulo de um rei fenício, contendo inscrições e símbolos ainda não decifrados. No universo das escolas de samba, tais narrativas embebidas de mistérios ganharam a mente de Joãosinho Trinta, que falou da presença fenícia no Brasil em enredos como O segredo das minas do Rei Salomão, com o qual conquistou o segundo campeonato consecutivo à frente do Acadêmicos do Salgueiro, em 197588, e, dez anos depois, em 1985, A Lapa de Adão e Eva, que deu um vice-campeonato para a Beija-Flor de Nilópolis (nesse desfile, a Pedra da Gávea era representada em uma alegoria branca). Nos termos de Milton Cunha, Joãosinho Trinta “parte da hipótese (muito contestada) de alguns historiadores que afirmam que os fenícios estiveram na América do Sul antes de Cristo. Símbolos e códigos pintados na pedra de alguns sítios arqueológicos brasileiros seriam testemunhas de que os fenícios aqui estiveram.”89 Um dos mais famosos historiadores mencionados por Cunha é Ludwig Schwennhagen, austríaco, que afirma, no livro Antiga História do Brasil – de 1100 a.C. a 1500 d.C., “que os fenícios chegaram ao litoral do Nordeste brasileiro em 1100 a.C. e que, em 1008 a.C., Hirão, rei de Tiro, e Davi, rei de Judá e Israel, fizeram aliança para explorar a Amazônia.”90 A mesma premissa controvertida gestou o enredo que o carnavalesco Max Lopes desenvolveu em 2001, na Estação Primeira de Mangueira (cujo desfile terminou na terceira colocação). A narrativa de A seiva da vida, redigida por Oswaldo Martins, atesta

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CANTARINO, Geraldo. Obra citada, p. 81. No enredo, o carnavalesco afirma que a única pessoa que sabia a localização exata das lendárias minas do Rei Salomão era o Rei Hiram, fenício, que navegava, uma vez por ano, em direção à Amazônia. Nas palavras do artista: “A verdade está escrita em pedras. Pedras pintadas chamadas de itacoatiaras. Em letras antigas está dito: as minas do Rei Salomão estavam nas selvas brasileiras, nas margens do Rio das Amazonas. Aquelas terras cheias de riquezas, flores, pássaros e animais eram as lendárias Terras de Ofir. Ali viviam as Amazonas, valentes mulheres guerreiras, guardiãs do tesouro. Os feiticeiros das outras tribos eram seus grandes inimigos. Elas lutavam e venciam sempre. Mas, uma vez por ano, elas transformavam seus gritos de guerra em gritos de alegria. Era com a chegada do Rei Hiram e dos navegadores fenícios. (...) No dia seguinte, elas extasiavam os fenícios. Mostravam suas minas de ouro e pedras preciosas e enchiam as embarcações com tesouros.” TRINTA, Joãosinho. O segredo das minas do Rei Salomão. Sinopse do enredo do carnaval de 1975 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA). 89 CUNHA Jr, Milton Reis. A Rapsódia brasileira de Joãosinho Trinta: um grande leitor do Brasil! Tese de Doutorado – Ciência da Literatura. Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2010, f. 43. 90 CANTARINO, Geraldo. Obra citada, p. 85. 88

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que os navegadores fenícios se embrenharam nas florestas tropicais brasileiras, em busca de madeiras para a construção de embarcações, e deixaram inscrições em pedras e grutas. Para o carnavalesco Alexandre Louzada, autor da sinopse do enredo que a Beija-Flor de Nilópolis apresentou em 2008 (também bicampeão, a exemplo do Salgueiro), intitulado Macapaba: equinócio solar, viagens fantásticas ao meio do mundo, os fenícios não só estiveram no Brasil como navegaram pelos afluentes do rio Amazonas e construíram monumentos na região do atual estado do Amapá – relíquias antigas tragadas pela selva: “traz à luz os seus segredos lendários, dos relatos de épocas distantes, que foste a terra do sol a pino, brilhante, que a Fenícia visitou, guardiã de tesouros escondidos, traços pela mata engolidos, mistério que o tempo apagou.”91 A presença fenícia na narrativa de Rosa Magalhães, portanto, não é algo inédito ou novo. O apreço dos carnavalescos pelos povos da Antiguidade é conhecido de longa data e remonta às extintas tradições dos Ranchos e das Grandes Sociedades, conforme se depreende das leituras de Jota Efegê, Eneida de Moraes, Felipe Ferreira, Maria Clementina Pereira Cunha e demais pesquisadores do carnaval carioca. O que é novo, no enredo da artista, é o tratamento estético concedido à temática e o próprio recorte apresentado, uma vez que o enredo não faz qualquer menção às possíveis visitas fenícias às matas brasileiras. Os fenícios de Breazail não navegavam em busca de madeiras, mas de metais donde também se poderiam extrair pigmentos para tingir tecidos de vermelho. Geraldo Cantarino discorre sobre o simbolismo da cor vermelha para a manutenção do poder real e para a diferenciação dos cargos religiosos: “tecidos de cor púrpura eram considerados luxuosos, símbolo de riqueza e de alta dignidade social. Eram utilizados para o vestuário de reis e, mais tarde, de lideranças eclesiásticas, como os cardeais.”92 Ideias praticamente idênticas foram lapidadas pelos compositores do samba de enredo que a Imperatriz Leopoldinense entoou em 2004, Jeferson, Veneza, Carlos de Olaria, Me Leva e Guga:

Pintou o manto dos reis e o encanto chinês

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LOUZADA, Alexandre. Macapaba: equinócio solar, viagens fantásticas ao meio do mundo. Sinopse do enredo do carnaval de 2008 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA). 92 CANTARINO, Geraldo. Obra citada, p. 81.

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o poder e a religião93

No setor de alas dedicadas ao subtema, sucediam-se as fantasias Tecidos fenícios, Mercador de tecidos, Guerreiro celta e Minerador do estanho. A alegoria, Breazail – metal que produz o vermelho. Urge explicar, agora, o porquê da referência ao estanho – o que também é discutido por Geraldo Cantarino. Fala o pesquisador:

Para esquentar o debate, o professor Cyrus Gordon traz em seu livro, Before Columbus, uma declaração que mexe ainda mais na raiz do problema. Autor da primeira gramática da língua ugarítica, Gordon defende uma posição, digamos, revolucionária: a origem fenícia para o nome Brasil. Seus estudos paleográficos indicam que a palavra estaria relacionada com o vocábulo “BRZL”, que em ugarítico e outras línguas semíticas significa ferro. “A palavra encontrou seu caminho até a comunidade atlântica, de tal maneira que, nos condados do centro da Inglaterra, brazil designa ‘piritas de ferro.’” (...) O autor faz lembrar ainda que as Ilhas Britânicas eram chamadas de Tin Isles, ou seja, Ilhas de Estanho, ou da Cassiterita. Para completar, o professor Gordon diz que a palavra para ferro na maioria das línguas semíticas, sem contar com o árabe, é barzel, como aparece, por exemplo, em hebraico. (...) Interessante observar, também, que o período de expansão dos fenícios coincidiu justamente com a passagem da Idade do Bronze para a Idade do Ferro. Essa contemporaneidade dos fatos leva Cyrus Gordon a supor que na Idade do Ferro possa ter existido “uma terra rica em ‘Brazil’ em algum lugar do Atlântico – talvez incluindo alguma parte do atual Brasil”, da mesma forma que existira antes uma terra do ouro, da prata, do cobre e do estanho. A Ilha do Ferro é também o significado de Hy Brasil, A Ilha do Brazil, conectada com BRZL, ferro, tão abundante no Novo Mundo, especialmente no Brasil.94

Ou seja: de acordo com as pesquisas filológicas e historiográficas de Cyrus Gordon, é possível afirmar que as ilhas da região do atual Reino Unido, outrora povoadas pelos celtas, eram conhecidas como “Ilhas de Estanho”. O professor Adelino José da Silva d’Azevedo, na obra Este nome: Brazil, publicada em 1967, comunga do mesmo entendimento e é mais do que enfático: “brazil é radicalmente o nome dum Brasil se grafava com z, termo de origem céltica que sintetizava o intercâmbio comercial com a Fenícia.95 Geraldo Cantarino destaca que a leitura de Adelino d’Azevedo contribuiu para

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A letra completa da obra está disponível para consulta no seguinte sítio: http://www.galeriadosamba.com.br/carnavais/imperatriz-leopoldinense/2004/6/. Acesso em 02/09/2017. 94 CANTARINO, Geraldo. Obra citada, p. 87, 89/90. 95 A vasta pesquisa de Adelino José da Silva d’Azevedo, conforme se depreende da leitura de Geraldo Cantarino, é mencionada no verbete Brasil da Enciclopédia Mirador Internacional: “Demonstra ele (D’Azevedo) que os fenícios, notáveis navegadores e comerciantes, mantinham intenso comércio de óxido de estanho, de corante vermelho mineral, com os celtas, povo metalúrgico e mineiro, que extraía esse produto desde a Ibéria até a Irlanda. Nesse intercâmbio, os fenícios foram seguidos pelos gregos, que designavam o óxido de estanho e o vermelhão dele obtido por kínnabar, kinnábari, (...) denominação

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o fortalecimento da teoria de que o nome do “país tropical” é proveniente de um corante mais antigo que o extraído do pau-e-tinta: “de acordo com o professor, esse corante vermelho seria de origem mineral e muito anterior à tintura avermelhada de origem vegetal. O termo brazil estaria, então, relacionado ao rubro óxido de estanho que, do latim cinnabar, acabou gerando a palavra cinábrio.”96 As relações (ou reações químicas) entre corantes minerais e vegetais também despertaram o interesse de Eduardo Bueno, autor referenciado por Rosa Magalhães na lista de obras consultadas para a escrita da narrativa do enredo Breazail. Conta o autor, depois de dialogar com as teorias de Adelino d’Azevedo, a seguinte passagem: Quando os fenícios deixaram de comerciar o “vermelhão” com os celtas, desaparecendo nas mesmas brumas do Atlântico de onde um dia haviam surgido, acabaram se tornando, na imaginação e na mitologia célticas, um povo mítico e afortunado, que jamais retornou à Irlanda simplesmente porque vivia na lendária e paradisíaca ilha de Hy Breazil, “a nação dos vermelhos” ou “o lugar onde vivem os descendentes do vermelho”. A Hy Breazil dos celtas acabou se transformando na O’Brazil dos monges irlandeses. A mutação ocorreu quando a ilha mitológica teve seu nome associado às peregrinações de São Brandão, o místico católico do século VI que, desiludido com as baixezas da humanidade, partiu com 14 monges, no ano de 565, rumo ao oeste inexplorado. Após uma navegação repleta de perigos e terríveis presságios, Brandão (cujo barco foi transportado nas costas de uma baleia) chegou a uma ilha fabulosa, que imediatamente reconheceu como sendo O’Brazil (...). A palavra passou por inúmeras transmutações semânticas. Uma delas assegura que, embora breazail provenha de “vermelhão”, brasil (com s) seria originário do celta bress, origem do inglês bless (abençoar), já que O’Brasil nada mais era do que a “ilha abençoada” ou “ilha da bem-aventurança”.97

Curiosamente, para além da extração do estanho nas minas escavadas pelos celtas (imagem 27) e da busca por madeiras de tinta em territórios d’além-mar (as “viagens fantásticas” ao interior da Amazônia, ausentes em Breazail), a “ilha fabulosa” ocupada pelos fenícios também é associada ao comércio do bacalhau, informação que muito dialoga com outro enredo desenvolvido pela carnavalesca Rosa Magalhães na Imperatriz Leopoldinense: o de 2007, patrocinado por empresários da Noruega e intitulado “Teresinhaaa, uhuhuuu!!! Vocês querem bacalhau?” Geraldo Cantarino investiga o ponto no subcapítulo Nas águas do bacalhau:

aplicada depois ao tom vermelho de qualquer matéria-prima.” In: CANTARINO, Geraldo. Obra citada, p. 99. 96 CANTARINO, Geraldo. Obra citada, p. 99. 97 BUENO, Eduardo (org.). Obra citada, p. 30.

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Essas viagens à Hy Brasil tinham também uma missão secreta: a busca por mais peixe. E não se tratava de um pescado qualquer, mas do velho bacalhau, cuja história, de tão curiosa, mereceu até uma biografia, compilada por Mark Kurlansky: Cod – A Biography of the Fish that Changed the World (...). Em tempos medievais, a deterioração bacteriológica do alimento era uma praga crônica que ameaçava a saúde e limitava o comércio de muitos produtos, principalmente do pescado. Numa época em que a mesa não era tão farta e a cozinha não tinha geladeira nem freezer, o bacalhau foi uma salvação. Como sabemos até hoje, depois de ressecado ele não estraga com facilidade e dura um bom tempo. Uma técnica, por sinal, muito antiga. Tudo indica que tenha sido inventada pelos vikings. Eles descobriram que abrindo o peixe ao meio e deixando-o secar aos ventos nórdicos, ele não apodrecia e preservava suas qualidades nutritivas. (...) Nessa biografia não faltam, também, os bascos, um povo um tanto quanto enigmático do norte da Espanha, com grande experiência na pesca da baleia, que adicionaram um tempero fundamental à história do bacalhau (...)”.98 (p. 209)

O tempero basco nada mais era que o sal – justamente o narrado por Rosa Magalhães no desfile apresentado em 200799. Os bascos, um passo à frente dos vikings, salgavam o peixe antes da secagem, o que dilatava o “prazo de validade” da carne e permitia viagens mais longas. O “segredo do negócio” era que, mais do que seco, o bacalhau deveria ser salgado e armazenado em recipientes adequados. Cantarino conta que a busca pelo peixe (alimento imprescindível para as travessias duradouras) nos leva à cidade de Bristol, na Inglaterra:

Em 1475, a poderosa liga comercial, Hanseatic, que controlava os negócios no norte da Alemanha, proibiu os mercadores de Bristol de comprar o bacalhau da Islândia, afetando a consequente e lucrativa distribuição do peixe para o Mediterrâneo. Como resultado desse conflito, que ficou também conhecido como a “guerra do bacalhau”, os negociantes britânicos se viram obrigados a descobrir novos mercados (...). O resultado dessa empreitada nós já conhecemos. É a expedição que partiu de Bristol em 1480 à procura da ilha como uma nova base de pesca para o bacalhau. E isso era muito importante. Afinal, toda a transação do bacalhau dependia de um lugar para a secagem do peixe. Segundo Kurlansky, a parceria Croft-Jay foi também responsável pelo embarque do Trinity e do George, os dois navios que zarparam de Bristol, em 1481, com o mesmo objetivo. Entretanto, nenhum registro dessas viagens, além do fato de que o

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CANTARINO, Geraldo. Obra citada, p. 209. Na sinopse do enredo, a carnavalesca informa: “Foram os bascos que, durante a Idade Média, descobriram as propriedades do sal para a preservação dos alimentos. O sal, até então pouco usado e desconhecido por muitos povos, tornou-se essencial na culinária e era muito apreciado, pois além de preservar os alimentos para estocagem ainda realçava seu sabor. Era uma mercadoria tão apreciada quanto os temperos. Nos banquetes, o saleiro dava a distinção aos convidados. Quanto mais próximo do saleiro, mais importante era o dignatário. Essa descoberta dos bascos propiciou aos povos do mar do Norte melhorar o sabor e a umidade dos peixes que pescavam em suas águas geladas.” MAGALHÃES, Rosa.“Teresinhaaa, uhuhuuu!!! Vocês querem bacalhau?” Sinopse do enredo do carnaval de 2007 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA). 99

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George estava com uma grande carga de sal, indicando o interesse pela pesca do bacalhau, sobreviveu para contar a história.100

Fato é que os navios retornaram abarrotados de peixe e causaram um grande burburinho, uma vez que os navegadores não revelavam o lugar onde haviam encontrado tão fartos cardumes. Relata Kurlansky que a ideia de que Croft e Jay haviam descoberto a ilha Hy Brasil começou a correr terra, aguçando os planos de uma legião de navegadores ingleses. Nesse sentido, Hy Brasil também seria uma ilha próspera em bacalhau – um dado extraordinário para se pensar os enovelamentos temáticos, ainda que não intencionais, na obra de Rosa Magalhães (a constatação importante de que mesmo um enredo de temática nórdica, como será investigado mais à frente, não deixa de tratar das narrativas fundacionais brasileiras). Finalizando o mistério, Cantarino informa ao leitor que os navegadores pescavam o bacalhau nos Grandes Bancos, região da Terra Nova canadense. Lá, encontraram “um ecossistema específico de fitoplâncton e zooplâncton que cria um ambiente propício para uma efusiva criação de bacalhau. É o verdadeiro milagre dos peixes.”101 Entre milagres e fantasias, o barco de Breazail avançou pelo Atlântico. Chegou, então, ao Brasil.

Imagem 27: Detalhe da quinta alegoria do desfile da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2004, intitulada Breazail – metal que produz o vermelho. As composições do carro representavam os mineiros celtas, em terras irlandesas. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA. 100 101

CANTARINO, Geraldo. Obra citada, p. 210/211. CANTARINO, Geraldo. Obra citada, p. 212.

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II. 3 – Fortaleza e feitoria II. 3. 1 – Américo Vespúcio, o personagem da vez

Frankfurt, 12 de julho de 2016. Na esteira para o embarque, em um dos mais movimentados aeroportos da Europa, depois de um dia passeando pela cidade de Goethe ao lado de um programador chinês, Miao, que eu havia conhecido naquela mesma manhã, na estação de trem do aeroporto, observou-me uma derradeira mochila – que continha, em bordado azul-intempestivo, o selo de uma caravela e o nome Amerigo Vespucci (imagem 28). Entendi que o trabalho realizado na Universidade Nova de Lisboa, onde falei de Breazail para um público interessado (inclusive os professores Fátima Vieira, editora dos cadernos especiais, comemorativos dos 500 anos da publicação de Thomas More, do Utopian Studies, o jornal da sociedade para estudos utópicos sediada na América do Norte; e Gregory Claeys, cuja contribuição para os estudos utópicos dispensa apresentações) havia sido recompensado – lógica meritocrática, talvez, mas que ali se convertia em um acaso de poesia, uma sincronicidade, um pequeno fragmento de olhar que me fez gargalhar talvez indecente – tanto que não fui poupado dos exames antidrogas, numa sala ao lado, enquanto ouvia comentários sobre Dante, Willian, Neymar. As troças dos não-lugares, a solidão ante os nomes rasgados e os bilhetes guardados nos bolsos, o passaporte apertado tantas vezes que o gesto se tornava um cacoete. O prólogo de Marc Augé102 e a prosa de Elvira Vigna, que eu lia, Por Escrito, livro em que a protagonista, certa feita, diz como quem não quer nada: “eu tive a minha (estratégia de sobrevivência) nesses não lugares que foram, são ainda, meus lugares. Estou sem saber, agora, se quero continuar. Não só a estratégia, como a sobrevivência. Posso entender.”103 Narradora que se tranquiliza, ao pousar no Brasil, porque sente “o cheiro azedo de pão de queijo” – algo único, algo nosso: “todos os aeroportos, no mundo inteiro, tem carros, louras e babacas de terno. Pão de queijo, só os nossos.” 104 “Misticismos breazaílicos”, eu escrevi nas redes sociais, ao publicar a foto da mala cinzenta, cujo dono eu desconheço – marinheiro que se foi, sem rosto e sem palavras. Horas depois, eu retornaria ao Brasil (e ao cheiro de pão

102

Ver AUGÉ, Marc. Não Lugares. Introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo: Papirus, 2014. 103 VIGNA, Elvira. Por Escrito. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 65. 104 VIGNA, Elvira. Obra citada, p. 145.

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de queijo), em um voo da Lufthansa entupido de jornalistas – chegavam as Olimpíadas, a pira ainda apagada.

Imagem 28: Na mochila derradeira, em uma esteira do aeroporto de Frankfurt, em 12/07/2016, o bordado Amerigo Vespucci. Foto do autor.

Não é possível mapear o penúltimo setor do desfile gresilense de 2004 (na sinopse do enredo, dividido em dois fragmentos: O brasil asiático e o brasil do Novo Mundo e A primeira feitoria e forte em Cabo Frio) sem direcionar um olhar cuidadoso para a figura de Américo Vespúcio, o personagem que conduz a narrativa de Rosa Magalhães às matas do litoral brasileiro. Assim como o observado no enredo de 2002 (quando as cartas de cronistas estrangeiros como Hans Staden, André Thevet e Jean de Léry fundamentaram parte do argumento apresentado em fantasias e carros alegóricos), a autora se baseou nos relatos de um viajante europeu, Vespúcio, para construir aquele que, a rigor, é o único pedaço do desfile que explicitamente menciona a cidade patrocinadora. Tudo começa com uma explicação da importância do pau-brasil para o estabelecimento de entrepostos comerciais da coroa portuguesa:

O brasil asiático (Caesalpina sappan) vegetal tinturial, era vendido em toda a Europa (desde o século XIII), originário do longínquo oriente. O preço do sappan era mais baixo 82


que de materiais silvestres ou animais. Por ser de fácil aplicação e grande rendimento, tornou-se muito popular. Colombo, ao chegar à América, escreveu aos reis que esta região possuía madeira tintorial em grande quantidade. Mais tarde descobriu-se que era uma variedade diferente da asiática e foi chamada de Caesalpina echinata, o nome científico para o pau-brasil. Quando foi informado de que a única riqueza aparentemente disponível na terra recém descoberta por Cabral era o pau-e-tinta, D. Manuel tratou de declarar a árvore monopólio da Coroa, optando, em seguida, por arrendar sua exploração para a iniciativa privada. Primeiro ciclo extrativista, primeira matéria-prima de exportação, primeiro produto contrabandeado, o pioneirismo do pau-brasil não para por aí. O chamado lenho tintural se transformaria no primeiro monopólio estatal, primeira privatização, primeiro produto tributado e objeto do primeiro cartel nos trópicos, e também se tornaria a primeira espécie ameaçada de extinção.105

O segundo parágrafo do trecho em questão é uma síntese das ideias apresentadas por Eduardo Bueno no texto Nova viagem à Terra do Brasil, que explica, com brevidade, o primeiro ciclo extrativista brasileiro. O mesmo autor organizou a obra Novo Mundo – As cartas que batizaram a América, com foco nas narrativas de Américo Vespúcio, marinheiro italiano que, ironia do destino, “emprestaria” o nome para o batismo do continente recém-desbravado – a despeito do fato de que a “descoberta”, com todas as restrições que se podem fazer a tal terminologia empoeirada e eurocêntrica, do atual território americano, a rigor, se deu por Cristóvão Colombo, em 1492 (e aqui vale o registro de que a viagem de Colombo estimulou outro enredo da carnavalesca Rosa Magalhães, o já mencionado Não existe pecado abaixo do Equador, de 1992, ano em que se comemoravam os 500 anos da chegada das caravelas de Colombo às ilhas da América Central; tal apresentação marcou a estreia da artista à frente da Imperatriz Leopoldinense). Vespúcio é uma figura envolta em nebulosidades, a começar pelo fato de que a autoria dos textos a ele atribuídos continua a gerar debates entre os historiadores. Não mais se discute a importância que as linhas do florentino adquiriram entre o público leitor da Europa, chegando às escrivaninhas de nomes de peso, como Michel de Montaigne, Erasmus de Rotterdam, Thomas More, François Rabelais e Nicolau Maquiavel. Bueno chega a afirmar que os pintores Leonardo Da Vinci e Alessandro Botticelli também leram as cartas do viajante, inspirando-se nelas para a composição de algumas telas – e tal penetração teria sido possível, em grande parte, devido às estreitas relações que Vespúcio tinha com Lorenzo de Médici, “O Magnífico”, mecenas de Leonardo106. Mais do que isso: 105

MAGALHÃES, Rosa. Obra citada. Eduardo Bueno chega a insinuar que Vespúcio era uma espécie de “agente duplo”, circulando entre as cortes portuguesas e italianas, Lisboa e Florença, repassando informações de D. Manuel para Lorenzo de Médici e vice-versa. É o que se depreende do seguinte trecho: “Embora agora trabalhasse para o rei D. 106

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as cartas se tornaram um “fenômeno editorial”107 entre as camadas populares, menos letradas, ganhando “as ruas e as feiras, as praças e as tabernas na forma de pequenos panfletos ilustrados, de apenas 13 por 11 centímetros.”108 Do conjunto de cartas publicadas, produto de três viagens comprovadas historicamente, com direção ao território americano, das quais o navegador participou (travessias iniciadas em 1499, 1501 e 1503; há uma quarta viagem em debate, iniciada em 1497), a mais famosa é a Mundus Novus, de 1504, classificada entre as “cartas apócrifas”, junto a Quatro Navegações. Segundo Bueno, “o que se sabe com certeza é que a Mundus Novus se baseia na Carta de Lisboa (de 1502), tida como autêntica (...). A Mundus Novus seria, portanto, uma fraude. Fraude que se tornou mais real que o documento autêntico (...)”.109 Fraude ou não, são desenhados, na Mundus Novus, cenários dos mais extraordinários e rituais dos mais “exóticos e assustadores” – os festins antropofágicos, depois popularizados (descritos com mais detalhes e litros de sangue) pela pena de Hans Staden. As matas do litoral brasileiro ganham as cores do paraíso terreal, sobrando aromas deliciosos e visões feéricas:

Ali todas as árvores são odoríficas e cada uma emite de si goma, óleo ou algum líquido cujas propriedades, se fossem por nós conhecidas, não duvido que seriam saudáveis aos corpos humanos. Certamente, se o paraíso terrestre estiver em alguma parte da terra, creio não estar longe daquelas regiões, cuja localização, como disse, é para o meridiano, em tão temperado ar que ali nunca há invernos gelados nem verões férvidos.110

Manuel, Vespúcio se mantinha extremamente leal ao seu patrão original, Lorenzo de Médici. E nada interessava mais aos Médici e a Florença do que o comércio de pimenta e canela – cujo monopólio estava nas mãos de Veneza, eterna rival e única república europeia que podia negociar diretamente com os turcos de Constantinopla (obtendo, assim, lucros extraordinários com a distribuição das especiarias para o resto da Europa). Fora justamente este o motivo que levara os banqueiros florentinos e genoveses a financiar as expedições ultramarinas de portugueses, cujo objetivo era atingir a Índia por mar e furar o bloqueio estabelecido pela aliança entre turcos e venezianos. Vespúcio obteve informações preciosas não da boca dos portugueses, mas através de um dos mais intrigantes personagens da história dos descobrimentos: um certo Gaspar da Gama, também chamado de Gaspar da Índia”. O fato de a história de Gaspar da Gama ainda não ter originado um enredo de carnaval é algo que merece destaque. In: BUENO, Eduardo. Náufragos, traficantes e degredados. As primeiras expedições ao Brasil. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, p. 38. 107 De acordo com o autor, “a trajetória do documento é tão fantástica quanto a das ideias que gerou. Mundus Novus é um panfleto, um folhetim, um cordel. Foi vendido em praças e feiras. Foi lido por nobres e plebeus. Tinha a brevidade de uma novela e a urgência de um anúncio. Era simultaneamente simples e sofisticado. Misturava sexo e sangue, selvageria e ciência, investigação filosófica e ação rocambolesca, visões do paraíso e dantescas cenas de antropofagia. Era ligeiro sem deixar de ser profundo, analítico sem ser tedioso. Só podia ser um sucesso.” In: BUENO, Eduardo. Novo Mundo. As cartas que batizaram a América. São Paulo: Editora Planeta, 2003, p. 29. 108 BUENO, Eduardo. Obra citada, p. 10. 109 BUENO, Eduardo. Obra citada, p. 31. 110 VESPÚCIO, Américo. Mundus Novus. In: BUENO, Eduardo. Obra citada, p. 47.

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A viagem ao “paraíso” que mais dialoga com a narrativa proposta pela carnavalesca Rosa Magalhães para o desfile gresilense de 2004 é a terceira entre aquelas historicamente comprovadas – ou seja, a viagem iniciada em 10 de maio de 1503, a serviço do rei de Portugal. Nos relatos de Vespúcio, porém, tal viagem é chamada de Quarta Navegação, uma vez que o navegador morreu afirmando que havia participado da expedição de 1497 (segundo Bueno, uma ficção em busca de ainda maior fama, uma vez que não existem registros históricos consistentes da participação dele em tal empreitada111). A viagem é narrada na também apócrifa Carta das ilhas recémdescobertas, depois renomeada As Quatro Navegações, publicada entre 1505 e 1506. São tantas as passagens impactantes que inevitavelmente a obra foi comparada ao Livro das Maravilhas do veneziano Marco Polo. Ao falar Do Percurso da Quarta Navegação, o narrador informa a saída de Lisboa (a expedição de reconhecimento, com o objetivo de chegar à ilha de Malaca, “famosa pelas muitas riquezas”112, era composta por seis embarcações, sob a liderança de Gonçalo Coelho; Vespúcio comandava a “nau de conserva”, ou seja, o navio de abastecimento da frota – um posto imprescindível, porém menos prestigiado), em 1503, e a chegada às ilhas de Cabo Verde, onde permaneceram os marinheiros por doze ou treze dias. Depois, seguiram em direção a Serra Leoa, na África, não conseguindo aportar devido a complicações climáticas. O mar revolto alterou a rota e guiou os navios a um arquipélago “desconhecido” (embora existam descrições anteriores), de formas altas e belas. Diante daquele cenário, um episódio trágico: na noite de 10 de agosto, o navio de Gonçalo Coelho se chocou contra os arrecifes e rochedos e naufragou, sem vítimas fatais. Segundo Vespúcio, mais uma imprudência do exibido capitão, “pessoa presunçosa e cabeçuda”113. Devido ao acontecimento, o arquipélago foi batizado de São Lourenço, o santo do dia do naufrágio. Atualmente, Fernando de Noronha – tema do enredo que a Estação Primeira de Mangueira apresentou no carnaval de 1995, A Esmeralda do Atlântico, com assinatura de Ilvamar Magalhães. No desfile, o naufrágio mereceu um carro alegórico.

Nas palavras do autor: “Está provado que Vespúcio só participou de três expedições ao Novo Mundo. Sua ‘primeira navegação’, supostamente realizada de 18 de maio de 1497 a outubro de 1498 (que, se tivesse ocorrido, o transformaria no descobridor do novo continente, já que até então Colombo visitara apenas as ilhas do Caribe), não aconteceu. Documentos encontrados pelo barão Humboldt comprovam que, entre abril de 1497 e maio de 1498, Vespúcio andava na Andaluzia, no sul da Espanha. Por ironia, ajudava a preparar a terceira das quatro viagens de Colombo.” In: BUENO, Eduardo. Obra citada, p. 60. 112 VESPÚCIO, Américo. As Quatro Navegações. In: BUENO, Eduardo. Obra citada, p. 113. 113 VESPÚCIO, Américo. Obra citada, p. 114. 111

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O episódio ocorrido na atual Noronha é analisado com minúcia por Riccardo Fontana, em O Brasil de Américo Vespúcio. Para o pesquisador, a partir dos relatos do próprio Vespúcio, é fato que o piloto da “nau de conserva”, que muito criticava as posturas de Gonçalo Coelho (o que gerava animosidades), auxiliou no resgate dos náufragos e, uma vez que a frota não mais possuía a Nau Capitânia, passou a gozar de maior autonomia, no restante da viagem. Pode-se dizer, de certa maneira, que o naufrágio é peça importante para uma sequência de acontecimentos que culminaria em Cabo Frio – o centro da narrativa Breazail. A caravela de Vespúcio passou a abrigar alguns dos marinheiros (24, mais precisamente) atirados ao mar e, cumprindo as ordens de Coelho, atracou em Noronha, onde permaneceu por oito dias, na companhia de serpentes, ratos e “lagartos de cauda bifurcada”114. Uma vez que o navio estava reabastecido e reorganizado, diante da divisão da frota e da ausência de notícias do capitão e dos outros barcos, o navegador florentino optou por abandonar a ilha paradisíaca115 (ainda que também habitada por “monstros”, répteis ou roedores, expressão de uma antinomia própria da mentalidade de então116) e partiu para o sul, acompanhado de um navio mercante (que não fazia parte da frota de Coelho), chegando, pouco mais de duas semanas depois, à Baía de Todos os Santos. Sem notícias do restante da frota, decorridos dois meses e quatro dias de longa espera, Vespúcio, sentindo-se abandonado (ou convencido de que assim deveria agir estratégica e politicamente, a fim de conquistar mais prestígio

114

VESPÚCIO, Américo. Obra citada, p. 116. Riccardo Fontana explica que são inúmeros os diários de navegação que tratam da paisagem de Noronha, o que torna crível o relato de Américo Vespúcio. Segundo o pesquisador, “quase sem exceção, as narrativas de viagem que fizeram escala em Fernando de Noronha mantém essa mesma descrição que hoje se tornou um dos motivos da grande atração turística do arquipélago.” Ainda segundo o autor, “no que concerne à espécie de iguanas de duas caudas, a única referência sobre a sua presença, além da citação vespuciana, encontra-se em Apontamentos sobre a fauna das ilhas de Fernando de Noronha, de John Branner (1901).” In: FONTANA, Riccardo. O Brasil de Américo Vespúcio. Brasília: Editora UNB, 1995, p. 102. 116 Sobre tal imaginário bestial, transformado em esculturas carnavalescas nos desfiles da Imperatriz Leopoldinense de 1992 e 2002, escreveu a historiadora Mary Del Priore: “Tais monstros e criaturas demoníacas constituíam a pedra de toque da autêntica experiência de viagem ou de estada no Novo Mundo. O encontro com a ‘coisa’ inesperada era, na realidade, esperado, pois vinha precedido da tradição oral ou escrita. Não havia regras para o encontro com o demônio ou os monstros. Bastava encontrar um testemunho digno de fé que anunciasse como fato seguro a sua existência. E eles não faltaram. De padres a viajantes estrangeiros, de piratas a colonos, tantos viram e tantos contaram histórias à noite, ao pé do fogo. (...) Vale lembrar que a descoberta do Novo Mundo representou o primeiro contato da Europa com um universo exótico e cheio de promessas. Durante os anos ao longo dos quais se desenvolveu a exploração das terras americanas, aventureiros e conquistadores estavam convencidos de ter achado o jardim onde Adão e Eva foram criados e de onde foram expulsos. (...) Embalados por sonhos e mitos, perseguiam os caminhos que os levassem para o País da Canela, o Eldorado ou o reino misterioso das Amazonas. Eles as conheciam, pois a tradição medieval retomara muito dos mitos antigos.” In: DEL PRIORE, Mary. Histórias da gente brasileira. Volume 1 – Colônia. São Paulo: Leya, 2016, p. 44/45. 115

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nas altas rodas da corte portuguesa), seguiu navegando ao sul e, finalmente, aportou em Cabo Frio. É justamente a presença de Vespúcio em Cabo Frio o núcleo do penúltimo setor do desfile apresentado por Rosa Magalhães. Sobre tudo isso, escreveu a carnavalesca:

Américo Vespúcio é um personagem complexo e contraditório. Vespúcio forjou em torno de si um mar revolto de celeuma e controvérsia. De suas quatro supostas viagens ao Novo Mundo, duas o trouxeram ao Brasil. Após a primeira, ele teria informado ao rei que a única riqueza explorável naquele novo território era "uma infinidade de árvores de paubrasil." Na segunda, teria se tornado o responsável pela fundação da primeira feitoria portuguesa na América. Vespúcio concluiu que a terra visitada era pobre em perspectivas econômicas e as oportunidades comerciais se limitavam ao pau-brasil. Seu relatório parece ter selado o destino do Brasil por quase meio século. O primeiro entreposto para o comércio do paubrasil foi construído em Cabo Frio.117

Na imediata sequência do texto de apresentação do enredo, a narradora cita as palavras de Vespúcio, que relatou o seguinte:

Percorridas 260 léguas, chegamos a outro porto em que decidimos erguer um castelo, o que logo fizemos, e deixamos ali 24 cristãos que estavam conosco, recolhidos da perdida nau do comandante. Construindo o castelo, carregando nossas naus de pau-brasil, ali permanecemos cinco meses porque a escassez de marinheiros e de muitos outros recursos não nos permitia ir mais longe. Concluídas essas atividades, concordamos em voltar a Portugal, o que era necessário fazer com vento grego e tramontano. Foram deixados, pois, no referido castelo, os 24 cristãos, e com eles 12 bombardas, muitas outras armas, mais provisão suficiente para seis meses, e conosco foi apaziguada a gente daquela terra, de que faço pequeníssima menção, embora inúmeros ali tenhamos visto, com os quais tratamos, pois com 30 habitantes penetramos quase 40 léguas na ilha. Ali, entrementes, vimos muitas coisas, que ora calo, reservando-as para meu livrinho sobre as Quatro Navegações.118

Nas “muitas coisas” vistas por Vespúcio, no decorrer da sua aventura florestas do Brasil adentro, estão a provável origem da Utopia, de Thomas More, conforme será visto adiante. O importante, agora, é esmiuçar o papel de Cabo Frio na narrativa concebida por Rosa Magalhães.

117 118

MAGALHÃES, Rosa. Obra citada. VESPÚCIO, Américo. Obra citada, p. 117.

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II. 3. 2 – Cabo Frio, o cenário do clímax

26 de março de 2017, um domingo ensolarado em Paris. Descansava no Musée Rodin, depois de caminhar pelas redondezas. O jornalista Renan Rodrigues apresenta, no jornal O Globo, a notícia de que fui contratado, juntamente com Gabriel Haddad, para o desenvolvimento do desfile de 2018 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Cubango, da Série A do carnaval carioca. A matéria, intitulada Cubango aposta em novos carnavalescos, também informava aos leitores que o “enredo” da agremiação niteroiense já estava definido: o bicentenário de Nova Friburgo, cidade da região serrana do estado do Rio de Janeiro. Nas palavras de Renan Rodrigues:

Na última quinta-feira, a escola anunciou que o enredo será o bicentenário do município de Nova Friburgo. Pelé (o então presidente da escola119) divulgou o tema após uma reunião com representantes da prefeitura. A sinopse, entretanto, ainda não foi divulgada. Segundo Bora, a pesquisa ainda está sendo desenvolvida e, por isso, não pode dar pistas sobre a narrativa que será adotada: -É possível desenvolver uma narrativa interessante, que saia do roteiro tão discutido no universo carnavalesco. É a primeira vez que desenvolveremos um enredo a partir de um tema previamente acertado pela diretoria da escola. Ainda não podemos revelar por quais caminhos seguiremos nessa viagem, mas certamente haverá surpresas.120

Fato é que ambos, Gabriel e eu, aceitamos, naquela ocasião, o desafio de desenvolver um enredo a partir de um tema patrocinado (ao menos havia a promessa de patrocínio) – os 200 anos da fundação de Nova Friburgo. E fato é que permanentemente, quando discutíamos, via internet (eu participava do intercâmbio em Nice e acompanhava o processo à distância), os rumos da narrativa, invocávamos as trilhas de Rosa Magalhães. De antemão, informamos à diretoria da escola que não nos interessava o desenvolvimento linear de um “enredo CEP”, a convencional sequência “índios-colonizadores-escravospontos turísticos-comidas típicas-comemoração da data festiva”, com poucas variações 119

Não se sabia, até então, que, depois de mais de uma década de eleições por aclamação, a escola passaria por um pleito presidencial com chapas concorrentes (situação, encabeçada por Olivier Pelé, e oposição, encabeçada por Rogério Belisário). A chapa de oposição, “Resgata Cubango”, sagrou-se vencedora, em 7 de maio de 2017, pondo fim ao período de 16 anos da administração Pelé – o presidente que nos havia contratado e que havia alinhavado a parceria com o município de Nova Friburgo. A mudança administrativa ocasionou a mudança do enredo: os carnavalescos, mantidos no posto, puderam apresentar uma “narrativa autoral”, livre do incerto patrocínio oferecido por empresários da cidade serrana. Optamos, então, por Arthur Bispo do Rosário. 120 RODRIGUES, Renan. Cubango aposta em novos carnavalescos. Gabriel Haddad e Leonardo Bora farão estreia na Sapucaí em 2018. Jornal O GLOBO: 26/03/2017. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/bairros/cubango-aposta-em-novos-carnavalescos-21112505. Acesso em 25/08/2017.

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(às vezes, com direito a bolo de aniversário e arabescos de glacê). Desejávamos, na linha dos enredos de Rosa Magalhães, encontrar um “fio condutor” (expressão que vem sendo debatida à exaustão, diga-se121) inusual – algo que descolasse o olhar do leitor já na leitura da sinopse. Em uma das vitrines parisienses, na Avenue de la Bourdonnais, vislumbrei uma imagem-síntese para as ideias que se firmavam (imagem 29). O caminho encontrado, sob o título Sonhos de uma corte de verão (imagem 30), promovia o diálogo entre Machado de Assis e William Shakespeare, união emoldurada por diversas manifestações carnavalescas (das máscaras de Veneza às batalhas de flores de Nice, ou seja: a utilização das minhas pesquisas e vivências, durante o Sanduíche). Descobrimos, em nossas pesquisas, que Nova Friburgo, ainda na primeira metade do século XIX, era um dos mais disputados polos carnavalescos da elite fluminense, devido às condições climáticas mais próximas dos termômetros europeus e ao fato de que a corte desejava um destino fixo, com infraestrutura urbana adequada, para as temporadas de veraneio. Na cidade serrana foram organizados bailes venezianos e cortejos de gôndolas, batalhas de flores e desfiles de corsos iluminados – tentativas suntuosas de reproduzir, em solo brasileiro, os festejos d’além-mar. Terminaríamos o enredo (basicamente uma leitura da história do carnaval de Nova Friburgo) celebrando o triunfo das manifestações populares sobre as importações elitistas: os “homens selvagens” (brincantes que se vestem com folhas e galhos coletados nas matas, tradição entre os moradores de Rio Observa-se, nos últimos anos, o uso da expressão “fio condutor” para simplesmente maquiar “enredos CEP” convencionais. Por exemplo: a utilização de um personagem famoso (músico, escritor, artista plástico, esportista, etc.) para justificar o desenvolvimento de um determinado tema patrocinado por estados, municípios ou países, sendo que, via de regra, tal personagem apenas aparece no início e no final da apresentação, quando muito, não desempenhando qualquer função narrativa que não a de “mestre de cerimônia”. Um caso recente, bem resolvido plasticamente e bem avaliado pelo júri da LIESA (4ª colocada), foi o da Unidos da Tijuca, no carnaval de 2015. A agremiação do Morro do Borel, sob a batuta dos carnavalescos Annik Salmon, Carlos Carvalho, Hélcio Paim, Marcus Paulo e Mauro Quintaes, cantou o enredo Um conto marcado no tempo – o olhar suíço de Clóvis Bornay, sobre a Suíça, com patrocínio da companhia aérea SWISS. No desfile, lendas e contos medievais, celebrações de inverno, relógios, canivetes, chocolates, um grande passeio pelo país europeu, em suma. Na comissão de frente e na última alegoria, porém, homenagens a Clóvis Bornay, importante carnavalesco da história da folia carioca (uma referência pertinente, organicamente ligada ao contexto da Sapucaí, portanto), cujo pai era suíço. Trata-se de uma abordagem bastante diferente daquela desenvolvida por Rosa Magalhães no carnaval da Imperatriz Leopoldinense de 2006, por exemplo, quando, para falar da história de Santa Catarina, a artista narrou as aventuras de Giuseppe e Anita Garibaldi sob o olhar do escritor Alexandre Dumas. Garibaldi, no enredo gresilense, era um “fio condutor” que costurava toda a narrativa, da comissão de frente (vencedora do prêmio Estandarte de Ouro daquele ano) à última alegoria – e não apenas na comissão de frente e na última alegoria. É possível dizer, a partir de tais breves apontamentos, que existe uma gama de possibilidades muito grande (ou melhor é dizer elástica?) quando o assunto é a utilização de um “fio condutor” diferenciado para a narrativa de um enredo patrocinado por alguma localidade. Quase tudo é possível – o fato da cantora Maysa possuir uma casa de praia em Maricá, no litoral do Rio de Janeiro, foi o bastante para que a artista “conduzisse” o enredo da Acadêmicos do Grande Rio de 2014, patrocinado por aquele município e assinado por Fábio Ricardo. 121

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Bonito do Lumiar), inspirados nas manifestações carnavalescas dos camponeses da Friburgo suíça, continuam a brincar o carnaval pelas trilhas da cidade; gondoleiros e folias niçoises, diferentemente, desapareceram na neblina da história, restando os relatos e as fotos.

Imagem 29: Em uma vitrine da Avenue de la Bourdonnais, uma imagem-síntese. Foto do autor.

Os papéis de Machado e Shakespeare, em tal contexto? Também descobrimos que o Bruxo passou o carnaval de 1879 em meio aos festejos serranos, uma vez que lá ele estava hospedado para tratamento médico (a cidade tinha fama de “taumaturga”, com águas e ares milagrosos; Machado, extremamente abatido e cansado dos afazeres burocráticos, seguiu prescrição médica e subiu a serra, realizando aquela que talvez tenha sido a primeira viagem da sua vida). Pesquisas registram que foi em Nova Friburgo que o escritor deu início ao romance que representa uma virada estética na sua obra: Memórias Póstumas de Brás Cubas. Escrito com a “tinta da galhofa”, a história, que narra as 90


peripécias de um inescrupuloso “malandro” da época a partir do olhar do além-túmulo, é um exemplo de inversão carnavalesca. No enredo que apresentamos à diretoria do GRES Acadêmicos do Cubango, Machado de Assis lia, em Nova Friburgo, durante os festejos de Momo, trechos do Bardo inglês, celebrando, ao final, a eterna capacidade criativa do povo brasileiro – por mais que importemos tendências, nada supera a brotação de “gênios da raça”, o caso de Joaquim Maria (a ruptura tão debatida com o modelo do romance romântico francês). Antropofagia antes de 1928: Tupy or not Tupy, that is the question. Mas a prosa dessa tese é sobre outros bailes e outros piparotes...

Imagem 30: Cartaz do enredo que então desenvolvíamos, Gabriel Haddad e eu, para a Acadêmicos do Cubango.

Conforme o explicado na Introdução deste trabalho, o enredo desenvolvido pela carnavalesca Rosa Magalhães para o desfile gresilense de 2004, Breazail, carrega algumas similaridades com aquele apresentado em 2002, Goitacazes: tupi or not tupi, in a South American Way! Além do caráter de “narrativa fundacional”, voltada para os primórdios da colonização brasileira, ambos os enredos foram desenvolvidos a partir da 91


assinatura de contratos de patrocínio oferecidos por municípios do estado do Rio de Janeiro: Campos dos Goytacazes, em 2002, e Cabo Frio, em 2004. Apenas no período de 1992 a 2009, quando Rosa Magalhães esteve à frente da Imperatriz Leopoldinense, 10 dos enredos apresentados na Passarela do Samba foram materializados mediante algum suporte financeiro: às vezes, de países (Áustria, Holanda, Dinamarca, Noruega); às vezes, de cidades ou estados brasileiros (Ceará, Santa Catarina, Campos, Cabo Frio); às vezes, ainda, de empresas (açúcar União, em 2001) ou da própria municipalidade do Rio - caso do enredo de 2008, João e Marias, sobre os 200 anos da chegada da família real portuguesa, em 1808. Na ocasião, as escolas de samba dos grupos Especial e de Acesso que falassem do bicentenário da vinda de D. João VI ao Rio de Janeiro ganhariam subvenção maior da prefeitura da cidade, que objetivava festejar a data em pleno carnaval. Escolas como Lins Imperial, Império da Tijuca, Renascer de Jacarepaguá, São Clemente e Mocidade Independente de Padre Miguel conseguiram desenvolver a efeméride sob os mais criativos recortes (a escola do Morro da Formiga, no Grupo de Acesso A, enfocou a criação do Jardim Botânico; a escola da Vila Vintém, no Grupo Especial, desfiou o sebastianismo e a ligação do mito lusitano com a figura de D. João VI122). A concepção de narrativas carnavalescas a partir das assinaturas de contratos de patrocínio não é algo raro ou esporádico, portanto, na trajetória da carnavalesca. Após o longo “casamento” com a Imperatriz Leopoldinense e uma rápida passagem pela União da Ilha do Governador, Rosa Magalhães precisou desenvolver, na sequência, três narrativas patrocinadas para a Unidos de Vila Isabel: Mitos e histórias entrelaçados pelos fios de cabelo, em 2011, com patrocínio da empresa de cosméticos capilares Pantene; Você semba lá... que eu sambo cá! O canto livre de Angola, em 2012, com auxílio financeiro do país africano (que, segundo os relatos da própria carnavalesca, não se concretizou conforme o acordado – algo semelhante ao ocorrido em 1999, quando o dinheiro holandês que financiaria o enredo Brasil, mostra a sua cara em... Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae não saiu da palavra e gerou complicações de logística); e A Vila canta o Brasil celeiro do mundo – água no feijão que chegou mais um!, com patrocínio da empresa química BASF, conhecida pela fabricação de fertilizantes e pesticidas. Em resumo: o enredo de 2004, tema deste passeio, pode ser inserido em uma 122

Sobre tal enredo, assinado pelo carnavalesco Cid Carvalho, ver: SILVA, Claudicélio Rodrigues da. Um turista aprendiz na terra do carnaval ou Sobre um colecionador de imaginários. In: GUERREIRO, Eduardo; PUCHEU, Alberto (org.). O Carnaval Carioca de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Beco do Azougue Editorial, 2011, p. 135-155.

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teia ampla e não se trata, em absoluto, de uma exceção. Explicado isso, deve-se frisar que a pesquisa não se estenderá aos desdobramentos tantos (jurídicos e políticos, inclusive) da relação pouco pacífica entre artistas e patrocinadores. Tais aspectos ganharam visibilidade em A Antropofagia de Rosa Magalhães por uma questão óbvia: após o desfile gresilense de 2002, a entidade patrocinadora, a prefeitura de Campos, quis reaver judicialmente o dinheiro concedido à escola, alegando o não-cumprimento do contrato. Uma vez que tais conflitos não ocorreram em 2004, discussões mais acaloradas não ganharão o cortejo.123 Cabo Frio decidiu patrocinar o desfile da Imperatriz Leopoldinense para divulgar nacionalmente o “aniversário de 400 anos do município”, onde, em 1503, havia sido instalado o primeiro assentamento colonial da América – a feitoria (ou “fortim”, nas palavras de Alberto Leal124) construída a mando de Américo Vespúcio. A edificação está diretamente ligada, é claro, ao ciclo extrativista do pau-brasil, conforme explica o pesquisador Riccardo Fontana:

Foi o historiador brasileiro Francisco Adolpho de Varnhagen que, em 1865, encontrou o manuscrito inédito sobre a viagem da nau Bretoa no ano de 1511 e concluiu que era um instrumento de prova convincente para supor que a fortaleza de Vespúcio podia ser realmente localizada em Cabo Frio. A Feitoria da Nau Bretoa já operava havia alguns anos, tendo como objetivo o tráfico de pau-brasil e de índios, e se encontrava numa ilha perto do “porto de Cabo Frio”. E ainda: um dos armadores da nau era Fernão de Loronha, que se tinha associado a outros mercadores para a exploração da “Terra de Santa Cruz”, em 1502, com a

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Para a compreensão das dimensões culturais e econômicas do assunto, é fundamental a leitura do artigo Bumba meu Fusca, de Felipe Ferreira, originalmente publicado n’O Pasquim e presente na coletânea Escritos carnavalescos. No texto, o pesquisador destaca que mais do que nas assinaturas dos contratos de patrocínio, o possível problema da prática reside no dirigismo, ou seja, na obrigatoriedade de que o artistacarnavalesco faça marketing na Passarela do Samba. É por isso que o autor lança o seguinte questionamento: “Não seria mais digno e simples se a veiculação de anúncios nas escolas de samba fosse permitida e regulamentada? Por que não se fazer como nos teatros, onde o patrocínio de uma peça não implica elogio do patrocinador durante o espetáculo?” In: FERREIRA, Felipe. Bumba meu Fusca. In: Escritos carnavalescos, p. 194. 124 Leal é autor do livro Cabo Frio, 1503, que se propõe a apresentar ao leitor (sem mergulhos históricos aprofundados e com direito a algumas distorções flagrantes) uma visão panorâmica da história da cidade litorânea, dos “primeiros tempos” à contemporaneidade. Sobre os rituais antropofágicos, por exemplo, o autor parece analisar acriticamente os relatos dos cronistas, o que se observa no trecho em que explica que a ingestão da carne humana “provocava repulsa natural entre os civilizados” (p. 71), sem qualquer problematização de ares etnográficos. Ainda sobre os tupinambá, afirma: “embora hospitaleiros com visitantes, os índios eram extremamente inconvenientes, apoderando-se sem cerimônia de quaisquer objetos interessantes, que passavam de mão em mão entre os familiares e amigos para serem admirados e, algumas vezes, surrupiados dos donos” (p. 67). O festival de visões simplistas e anacrônicas (inclusive sem referências, o que dificulta a compreensão dos dados apresentados e confere ao texto um aspecto puramente factual) faz com que a obra não seja utilizada enquanto leitura basilar para este trabalho. Ver: LEAL, Alberto. Cabo Frio, 1503. Rio de Janeiro: Editora Batel, 2012, p. 67 e 71.

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obrigação de construir uma fortaleza para a instalação e defesa do tráfico de pau-brasil e de índios daquele litoral, por um período de três anos. Uma outra publicação de Varnhagen (1865) trouxe à luz outro manuscrito inédito sobre a questão, que reforçou a sua intuição anterior. Trata-se do Islario general de todas las islas del mundo, escrito por Alonso de Santa Cruz, por volta de meados do século XVI.125

De acordo com os relatos de Santa Cruz, coletados por Varnhagen e apresentados por Riccardo Fontana, Américo Vespúcio fundou, na baía junto ao cabo chamado Frio e a um “rio muito grande”, uma “casa”, onde deixou vinte e quatro marinheiros munidos com armas e artilharia pesada (canhões). Além disso, informa Santa Cruz, Vespúcio teria abastecido a construção com mantimentos para seis meses (donde se deduz que havia uma ideia de permanência ou retorno). O destino dos marinheiros, porém, não teria sido dos melhores: mortos (devorados?) pelos índios, praticamente nada se sabe sobre eles. André Thevet, figura carimbada no enredo gresilense de 2002, escreveu sobre o caso:

... Esta região maravilhosa (Cabo Frio) foi descoberta e povoada por portugueses. Deramlhe estes o seu nome atual... e construíram ali um forte, pretendendo fixar residência no local, em virtude da amenidade do clima. Mas, pouco tempo depois, por razões que ignoro, os selvagens que viviam nos arredores mataram e devoraram os portugueses, como costumavam fazer com seus inimigos. (...) Cabo Frio, que fica a umas quarenta léguas aquém do rio onde morávamos (Guanabara) e onde antes tinham morado também os portugueses, é o lugar onde eles foram tão maltratados pelos tupinambás, selvagens da região; não houve nenhum que não fosse morto, massacrado e comido, numa manhã, durante a qual essas infelizes pessoas estavam despreocupadas; esses vieram para roubar e apoderar-se das poucas mercadorias que possuíam em sua pequena fortaleza, sem respeitar senhores, servidores, mulheres e crianças.126

As linhas de Thevet, conforme o analisado em A Antropofagia de Rosa Magalhães, carregam nas tintas “sensacionalistas”, oferecendo ao leitor uma narrativa pulsante (não é difícil entender o porquê de tais relatos terem se popularizado entre as camadas médias da população letrada da Europa de então). O cronista francês adiciona aos dados a presença de mulheres e crianças no interior da “fortaleza”, algo que historicamente soa pouco provável. Que a região, apesar de bela, não oferecia a “hospitalidade” ideal, isso não se discute. Tanto era assim que os historiadores Sérgio Buarque de Holanda e Olga Pantaleão discorreram sobre o “triste fim” das tentativas de fixação francesas. De acordo 125

FONTANA, Riccardo. Obra citada, p. 103/105. THEVET, André. Les singularités de la France Antarctique e La cosmographie universelle. In: FONTANA, Riccardo. Obra citada, p. 106. 126

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com os levantamentos deles, os franceses, no que tange à construção de fortes, tiveram a mesma sorte dos lusitanos (ou seja: o fracasso):

Ainda quando (os franceses) deixassem de construir feitorias permanentes, à maneira dos portugueses, preferindo negociar diretamente com os naturais, nem por isso era menos de temer a ameaça por eles representada. O próprio fato de estenderem-no sobre o imenso litoral, onde lhe fora dado reconhecer os bons abrigos, os sítios mais cômodos e produtivos, as tribos mais dóceis ao seu cobiçoso afã, longe de o desservir, resguardava melhor seu trato com os indígenas. Contudo, a fundação de estabelecimentos fixos deveria, no correr do tempo, representar um paradeiro e uma consequência naturais para aquelas atividades. No Cabo Frio, onde as matas de brasil não são menos notáveis do que no Nordeste, e onde, por volta de 1548, constava que vinham a resgatar sete ou oito naus francesas cada ano, tentariam construir um fortim, que todavia não estava destinado a durar muito.127

Eduardo Bueno, para quem a “fortaleza” não deveria passar de uma paliçada miserável128, é mais direto em sua leitura e diz que os marinheiros de Vespúcio foram “trucidados”:

O sucesso das cartas de Vespúcio foi instantâneo e duradouro. Uma década depois, elas inspiraram o inglês Thomas Morus a escrever o clássico A Utopia. Lançado em 1516, o livro se baseava em fatos narrados na carta em que Vespúcio descreve sua segunda viagem ao Brasil, em 1503, quando deixou 24 homens numa feitoria em Cabo Frio. Morus transportou a ação para uma ilha (talvez Fernando de Noronha) e imaginou que os exilados dariam início a uma sociedade perfeita. Na vida real, os homens de Vespúcio foram trucidados pelos índios.129

Na visão poética do enredo de Rosa Magalhães, porém, os marinheiros (representados na sexta alegoria do desfile, com vestes em preto e branco) não só sobreviveram às adversidades do Brasil de 1504 como exploraram o território tupiniquim,

HOLANDA, Sérgio Buarque de; PANTALEÃO, Olga. Livro Quarto – A ameaça externa. Capítulo I – Franceses, holandeses e ingleses no Brasil Quinhentista. I. Franceses e Holandeses. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (direção). História Geral da Civilização Brasileira. Tomo I – A Época Colonial. Volume 1 – Do descobrimento à expansão territorial. 16ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008, p. 166. 128 Nas palavras do autor: “Apesar de Vespúcio ter usado o termo ‘fortaleza’, tratava-se apenas de uma feitoria: simples paliçada erguida em torno de um casebre e de algumas roças. Foi o primeiro estabelecimento lusitano no Brasil – um posto avançado da civilização europeia em meio à floresta tropical. (...) Em 1986 os historiadores Márcio Werneck da Cunha e Penha da Silva Leite encontraram a base de uma muralha de pedra em Cabo Frio, que julgaram ser vestígios da feitoria de Vespúcio, que teria, assim, pelo menos os alicerces feitos de rocha. Ainda não está comprovado que se trata das ruínas do mais antigo estabelecimento europeu fundado no Brasil, mas, de qualquer modo, Werneck e Silva Leite conseguiram que o local fosse registrado junto à Divisão de Proteção Legal do Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC).” In: BUENO, Eduardo. Náufragos, traficantes e degredados. As primeiras expedições ao Brasil. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, p. 49. 129 BUENO, Eduardo. Brasil, uma história. Cinco séculos de um país em construção. São Paulo: Leya, 2013, p. 38. 127

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chegando, finalmente, à ilha da Utopia. A letra do samba de enredo entoado pelos desfilantes assim descreve a “aventura”:

Viagem ao Novo Mundo Deu a Vespúcio a primazia De erguer em Cabo Frio Fortaleza e feitoria Depois partiu com nosso pau-brasil Deixando aos marinheiros poesia Visão do infinito, lugar mais bonito Era o chão da Utopia...

Nas justificativas apresentadas ao júri, a artista redigiu o seguinte:

No Brasil, (o pau-brasil) existia em abundância. E embora sendo outro tipo da mesma árvore, era muito mais barato. Bastava extrair e levar. Foi com esse intuito que Vespúcio veio a Cabo Frio, a serviço do Rei de Portugal. Levou 5.000 toras de pau-brasil e deixou aqui 24 marinheiros cuja embarcação havia naufragado.130

As toras de pau-brasil apareciam na alegoria, juntamente com fantasias de composições que procuravam criar um ambiente selvagem, numa profusão de folhas e cipós em tons de verde. As flores e as sementes do pau-brasil, nas cores amarela e vermelha, respectivamente, também se faziam notar, bem como o brasão de Américo Vespúcio, bordado em um estandarte. Na saia frontal do carro alegórico, um emaranhado de raízes e troncos cortados, exibindo os interiores cor de brasa (imagens 31 e 32). Ali, em forma de espuma, isopor, arame, tinta e purpurina, a síntese de um sem-fim de discussões identitárias – a começar pela ideia de “metáfora vegetal”.

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Trecho retirado do Livro Abre-Alas do carnaval de 2004, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

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Imagem 31: Detalhe da sexta alegoria do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2004, leitura carnavalizada da “fortaleza” construída por Américo Vespúcio em Cabo Frio. Os miolos vermelhos dos troncos de paubrasil merecem destaque. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

Imagem 32: Sexta alegoria da Imperatriz Leopoldinense, no desfile de 2004, intitulada O forte em Cabo Frio construído por Vespúcio. Na frente do carro, viam-se inúmeros troncos de pau-brasil cortados (os miolos cor de brasa), com raízes à mostra – imagem bastante interessante para se pensar a verticalidade do mergulho empreendido pela carnavalesca Rosa Magalhães, que, por meio do enredo Breazail, buscou as mais profundas raízes de nossa “brasilidade” – a começar pelos questionamentos sobre o nome Brasil. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

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II. 3. 3 – Pau-Brasil Rio de Janeiro, 18 de outubro de 2017. Na semana passada, os protótipos (o primeiro modelo de cada fantasia de ala a ser apresentada no desfile vindouro) da Acadêmicos do Cubango foram oficialmente finalizados e fotografados para divulgação. Não houve qualquer descanso, porém, para o autor-carnavalesco (ou seria um “carnavalesco-autor”?): já pensando nos adereços do carro abre-alas, um grande veleiro, caminhava, 31 graus na cuca, pelos arredores da Uruguaiana, centro em convulsão do Rio, carregando, ao lado de minha mãe, sacolas com organzas, filós e tules - material para fazer mar. Eis que me deparo, na esquina com a rua Buenos Aires, com uma gigantesca pintura a colorir a lateral de um prédio (imagem 33). Inúmeros troncos cortados, vazando, os interiores vermelhos de uma floresta a sangrar. Talvez Amazônia, talvez pau-brasil. Não sei da autoria como não sei do dono da mala, preciso voltar. Registrei a foto para o andar da tese:

Imagem 33: No centro fervente do Rio, em 18/10/2017, os troncos escorrem vermelhos. Foto do autor.

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Uma verdejante floresta de pau-brasil: assim a carnavalesca Rosa Magalhães definiu o setor de fantasias que antecedia a alegoria 5 do desfile gresilense de 2004 (imagens 34, 35 e 36). A sucessão de figurinos (nomeados, em ordem crescente, Floresta de pau-brasil, Cisalpina echinata, Flor do pau-brasil, O verde da mata e Sementes vermelhas do pau-brasil) conduzia o olhar do espectador à imponente “fortaleza” de Américo Vespúcio (sobre o chassi do carro alegórico, uma construção de pedra, com torres de vigia e canhões, tudo na cor branca – o que fazia com que ela “saltasse” em meio à profusão de verdes). Tamanho destaque dado à árvore do pau-brasil se justifica, uma vez que, segundo a explicação da própria carnavalesca, com base nas leituras de Eduardo Bueno, trata-se do primeiro monopólio, da primeira privatização, do primeiro produto tributado e da primeira espécie ameaçada de extinção da história do Brasil. O pau-brasil, no enredo de Rosa Magalhães, é um tronco de cuja casca escorrem pioneirismos, todos significativos para a compreensão das nossas mazelas. Sérgio Buarque de Holanda vai ainda mais longe e associa o corte do pau-brasil ao início do tráfico negreiro e à comercialização ultramarina de espécimes animais:

Foi o pau-brasil, também, um dos atrativos dos comerciantes franceses que percorreram, já a esse tempo, o nosso litoral, e uma das causas das fricções que se suscitaram aqui entre eles e os portugueses. Pouco se sabe do trato de pau de tinta que então se desenvolveu. Contudo, a julgar pelo resultado de estudos recentes, divergiriam muito os métodos utilizados pelos dois povos. Ao passo que os marinheiros lusitanos recebiam-no por intermédio das suas feitorias costeiras, o que deveria dificultar o contato com os naturais da terra, dado que os toros se acumulavam nas mesmas feitorias antes e depois da arribada dos navios, os tripulantes das embarcações francesas, ao contrário, tratavam diretamente com as tribos indígenas, procurando familiarizar-se com seus hábitos. Algum tráfico de escravos africanos também se deu, certamente, nos primeiros tempos da exploração do nosso litoral. As grandes araras de cores vistosas, que nele se achavam em abundância e parecem ter impressionado vivamente os europeus da época, também chegaram a tornar-se objeto de comércio: desse fato deriva um dos nomes com que o Brasil aparece mencionado em certos mapas e em outros documentos contemporâneos. Uma embarcação armada por Loronha e alguns sócios, que saiu de Lisboa em fevereiro de 1511, a Nau Bretoa, levou de regresso uma carga composta de pau-brasil, escravos, tuins, gatos, saguis e papagaios. Era quase tudo o que daria a terra por aqueles tempos.131

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Livro Terceiro – O advento do homem branco. Capítulo I – As primeiras expedições. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (direção). História Geral da Civilização Brasileira. Tomo I – A Época Colonial. Volume 1 – Do descobrimento à expansão territorial. 16ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008, p. 104/105. 131

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Imagem 34: Fantasia de baianinha, no desfile gresilense de 2004. Intitulada Floresta de Pau-Brasil, a ala expressava, nas cores dos tecidos utilizados pela carnavalesca Rosa Magalhães, o esplendor da Mata Atlântica brasileira, nos idos de 1500. Detalhe para o amarelo da flor do pau-brasil. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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Imagem 35: Segundo casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira da Imperatriz Leopoldinense, em 2004, com fantasia intitulada Pau-Brasil. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

Imagem 36: Visão de conjunto da ala das Baianinhas da Imperatriz Leopoldinense, em 2004 – profusão de folhas e flores para expressar uma floresta de pau-brasil. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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Sérgio Buarque direciona as suas lentes analíticas para o caráter predatório da exploração do pau-brasil, produto cujo ciclo extrativista oficializa o domínio português, colonial e violento, em terras brasileiras. A historiadora Mary Del Priore desenvolve entendimento semelhante, apresentando um importante “resumo” sobre o corte do pau-etinta:

Para os recém-chegados, a atividade possível vinha da exploração do pau-brasil, bela árvore que tem entre 10 e 15 metros de altura que se espalhava nas matas, do Rio Grande do Norte ao Rio de Janeiro. E a extração da Caesalpnia echinata, com suas perfumadas flores de pétalas amarelas e vermelhas, se fazia junto com os índios. Primeiro eles ensinavam e depois ajudavam a abater, cortar e transportar até as praias e naus a preciosa madeira em troca de espelhos, quinquilharias e pequenas facas. Do ibirapitanga132, seu nome original, se extraía um pigmento capaz de colorir tecidos e ser usado como tinta para pintura de telas e papel, além de permitir a fabricação de móveis. O pau-brasil, assim chamado pela cor de brasa em seu miolo, foi trazido da Índia pelos árabes desde o século XI, através do Mar Vermelho e do Egito, espalhandose pelos centros manufatureiros da Europa. Notícias do século XII indicam sua presença na Itália, na França e em Flandres. No século XIII, passava, olímpico, às alfândegas de Gênova, Ferrara e Módena. A Espanha passou a importá-lo e em Portugal, desde o reinado de d. Duarte e d. Afonso V, já era empregado. Seu valor no mercado europeu justificava o interesse em arrancá-lo de nossas matas. Segundo Gaspar Correia, em seu Lendas da Índia, Pedro Álvares Cabral já teria levado consigo um primeiro carregamento. Do nascer ao pôr do sol, grupos que incluíam estrangeiros – franceses ou ingleses – se atarefavam na atividade que, quando se fazia como contrabando, era realizada às escondidas, numa pequena baía ou praia abrigada. Afinal, o pau-brasil era monopólio da Coroa e sobre sua extração pesavam impostos dos quais se tentava escapar. Datam de 1505 as primeiras contas da Feitoria de Antuérpia, encarregada da distribuição oficial de pau-brasil: cerca de 20 mil quintais por ano. Carregada em Cabo Frio, a preciosa madeira seguia junto com papagaios, periquitos, macacos e, sempre, índios. O escambo era realizado nas dependências de feitorias, galpões elevados e cercados de estacas para prevenir ataques inimigos. Ao norte, na longa costa, seguia, porém, o contrabando com outros parceiros: franceses e espanhóis.133

Não se pode deslocar o comércio do pau-brasil, portanto, do início do longo processo de apresamento de índios, roda de mortandade que hoje, nos termos de Darcy 132

É necessário registrar que a Imperatriz Leopoldinense apresentou, no carnaval de 1977, o enredo Viagem Fantástica às Terras de Ibirapitanga, desenvolvido por Max Lopes, cuja sinopse, assinada pela “comissão carnavalesca”, diz o seguinte: “Viagem Fantástica às Terras de Ibirapitanga é o enredo que a Imperatriz Leopoldinense apresenta para o carnaval de 1977. Este enredo vem como continuação do carnaval de 1976, quando apresentou Por mares nunca dantes navegados. O carnaval passado tratou da descoberta do Brasil, da saída dos navegadores de Portugal, que, através de heroísmo e fé, partem por mares nunca dantes navegados em busca de outras terras. Suas naus cortando a branca espuma chegam, afinal, à grande ilha, onde tornam um sonho em realidade. Já no carnaval de 1977, a comissão carnavalesca procura dar seguimento a este trabalho. Viagem Fantástica às Terras de Ibirapitanga é o desbravamento pelo sertão misterioso e enfeitiçado. A preciosa terra do pau-e-tinta desponta como uma região tão sonhada das minas fabulosas e de tesouros embriagantes.” Disponível para consulta no seguinte sítio: http://www.galeriadosamba.com.br/carnavais/imperatriz-leopoldinense/1977/6/. Acesso em 18/03/2018. 133 DEL PRIORE, Mary. Obra citada, p. 27/28.

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Ribeiro e Manuela Carneiro da Cunha, deve ser considerado um genocídio. Tal dimensão violenta, porém, não aparece em Breazail, algo nos moldes do observado em outras narrativas da carnavalesca em estudo, conforme o apontado em A Antropofagia de Rosa Magalhães (e que será aprofundado nos próximos capítulos). O pau-brasil, no enredo da artista, é um símbolo de brasilidade cuja celebração evoca a esperança. É isso o que ela sugere na justificativa oferecida aos jurados: “Este foi o tema escolhido pela Imperatriz para festejar o carnaval e esperar que o Brasil se torne de novo a terra do pau-brasil”134. Não parece descabida a afirmação de que a leitura desenvolvida por Rosa Magalhães mais se aproxima daquela desfiada por Oswald de Andrade no Manifesto da Poesia Pau-Brasil, originalmente publicado no Correio da Manhã de 18 de março de 1924. O poeta, homenageado pela artista no desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2002 (tanto o Manifesto Antropófago quanto a peça O Rei da Vela mereceram destaque, naquela apresentação), redigiu um manifesto de notório teor nacionalista, exaltando as “coisas nossas”, como o carnaval, por meio de uma “poesia de exportação”. O final do texto é particularmente instigante:

Bárbaros crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil.135

Observa-se, no trecho destacado, a aglutinação de uma série de elementos que, juntos, evocam um sentido de brasilidade fincado na harmonia entre contrários. Os “bárbaros meigos” trazem os plumeiros dos “índios de Catarina de Médicis”, depois refutados no Manifesto Antropófago. Já o excerto “A floresta e a escola” evoca as infindáveis discussões sobre a oposição entre natureza e cultura, basilares para a moderna antropologia. Ao juntar em uma mesma sentença os termos “cozinha”, “minério” e “dança”, o poeta utiliza saberes tradicionais (a culinária e os bailados, construções socioculturais que ajudam a construir a identidade de um povo) para “cercar” um elemento em estado bruto, “o minério”, termo que abre ao leitor uma gama de reflexões sobre a ideia de extrativismo primário. Ao final, “a vegetação”: a fauna brasileira

134

Trecho retirado do Livro Abre-Alas do carnaval de 2004, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval - LIESA. 135 ANDRADE, Oswald de. Manifesto da Poesia Pau-Brasil. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro. Apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 8ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 1985, p. 331.

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enquanto imagem-síntese, elemento poderoso para a compreensão do que é ser brasileiro, matéria-prima da proposição poética. Muito antes do manifesto oswaldiano, porém, o pau-brasil já tingia páginas e despertava discussões. A celeuma mais famosa foi levantada pelo Frei Vicente do Salvador e estudada com brilhantismo por Eneida Leal Cunha. No artigo Pau-brasil, bárbaro e nosso, a autora explica que o nome do Brasil gerava debates hermenêuticos já nos idos de 1600. Segundo a pesquisadora da UFMG, o Frei Vicente de Salvador contrapunha a madeira do pau-brasil à madeira das cruzes católicas, alegando que a excessiva valorização do econômico, nos primeiros tempos de colonização (o “culto” à madeira tinteira, portanto), gerava o enfraquecimento da madeira da cruz de Cristo e condenava a terra recém ocupada pelos portugueses ao fracasso espiritual. Do paraíso ao inferno, graças ao pau-e-tinta:

O sentido da queda, a marca originária decorrente da transgressão e da perturbação da hierarquia, é exposto pelo autor no confronto dos dois símbolos: a cruz, a verdade legitimadora e única capaz de garantir a estabilidade; e o pau-brasil, o ilegítimo, pragmático e precário. O contraste entre o que “deu tinta e virtude a todos os sacramentos da Igreja” e o que “tinge panos” é um contraste entre extremos, e, se a convivência harmônica entre esses extremos, entre o divino e o mais prosaicamente humano, era possível e produtiva quando ordenados e submetidos à hierarquia imaginária, a inversão aqui ocorrida interdita um destino venturoso e estável para a colônia. A partir daí, o texto se desdobra, evidenciando um elenco de outros e análogos pares de alternativas e escolhas desastrosas, porque decorrentes também de análogas falsificações do princípio.136

O pensamento do religioso franciscano ajuda a compreender a dimensão simbólica que o pau-brasil adquiriu enquanto produto-síntese das terras “recém-descobertas”, oscilando entre os mitos edênicos e as tentações dos demônios137 (a adaptação da ideia de “queda”, a expulsão de Adão e Eva dos jardins do Paraíso, para a “Terra dos Papagaios”138). Mary Del Priore chega a dizer que Vicente do Salvador, o “Heródoto brasileiro”, foi o nosso primeiro “historiador pessimista”: 136

CUNHA, Eneida Leal. Pau-Brasil, bárbaro e nosso. In: CUNHA, Eneida Leal. Estampas do Imaginário. Literatura, história e identidade cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p. 26/27. 137 Não curiosamente, o mesmo imaginário povoado por demônios que tentavam selvagens e colonizadores aparece no enredo desenvolvido por Rosa Magalhães em 2002, Goitacazes: Tupi or not Tupi, in a South American Way! No segundo carro alegórico do desfile patrocinado por Campos, viam-se esculturas de tais criaturas demoníacas, reproduções carnavalescas das ilustrações feitas por Theodore De Bry para os escritos de Jean de Léry, viajante calvinista francês. Tais associações comprovam que entre os enredos de 2002 e 2004 existem inúmeras conexões e recorrências simbólicas – daí a possibilidade de se afirmar que a obra de Rosa Magalhães constitui um sistema fechado. 138 Eneida Leal Cunha afirma que “a questão flagrada e central para Frei Vicente do Salvador no nível simbólico, na forma de nomear a terra, constitui uma desordem, uma perturbação relevante na continuidade

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Não faltou quem comparasse a nossa natureza “farta e dadivosa” ao paraíso terreal. A região litorânea aparecia na imaginação de nossos primeiros cronistas como uma extensa planície regada por cursos d’água, a brilhar sob sol permanente. E essa idílica paisagem foi sendo lentamente modificada pela presença da agricultura. Expulsos ou chacinados seus habitantes nativos, as bordas das densas matas começaram a dar espaço aos campos ondulantes do primeiro produto trazido do exterior: a cana. Vindas da Ilha da Madeira, chegavam, então, as primeiras mudas. Mas, contra os otimistas, havia os pessimistas. Nosso primeiro historiador, frei Vicente de Salvador, foi um deles. Para ele, essa “porção imatura da terra” se identificava às regiões infernais. Pois, se antes era a abençoada Terra de Santa Cruz que, só graças ao nome, santificaria seus habitantes, doravante seria Brazil. E Brazil vinha de brasa, de fogo, do vermelho de Satã e do inferno. Lúcifer levara a melhor ao ver assim denominado o novo território.139

A escolha equivocada (movida por interesses distanciados dos princípios religiosos cristãos, alicerçados na caridade e no desprendimento material) do nome do território colonizado seria, segundo a verborragia de Vicente do Salvador, simplesmente fatal. O destino do Brasil, a partir de então, estaria condenado, manchado pela tinta vermelha da cobiça e da exploração desnaturada dos recursos originais oferecidos pelo Novo Mundo, lugar de tentações infinitas e de ritos aterrorizantes. Eneida Leal Cunha fala que o religioso encarava o comércio do pau-brasil enquanto materialização do bíblico “pecado original”, gênese da “instabilidade” do presente e do futuro da colônia. Dos miolos dos troncos não escorria apenas o pigmento cor de sangue, mas “inversões de valores republicanos”, como “a sobreposição do que é particular ao que é público”140, e relações de mestiçagem e compadrio.141 A autora também elenca dois aspectos implícitos da obra de Vicente de Salvador:

e na hierarquia desejáveis por esse imaginário, ao dar existência histórica e historiográfica à nova terra.” In: CUNHA, Eneida Leal. Obra citada, p. 26. 139 DEL PRIORE, Mary. Obra citada, p. 37/38. 140 CUNHA, Eneida Leal. Obra citada, p. 27. 141 Sobre isso, Mary Del Priore apresenta uma leitura certeira, destacando que “na tradição tribal, a única forma de se relacionar pacificamente com estranhos era integrando-os numa relação de parentesco” (p. 28), ou seja: casamentos entre mulheres índias e homens portugueses se tornavam corriqueiros nas terras recéminvadidas, o que garantia, simbólica e faticamente, o controle lusitano sobre o produto a ser explorado. Entre os galhos, os troncos e as raízes das árvores de pau-brasil, enredavam-se, portanto, relações sociais das mais complexas e significativas para a “formação do povo brasileiro” (expressão cara a Darcy Ribeiro). A “estratégia matrimonial”, para Del Priore, não teria sido uma imposição europeia, mas um acordo mútuo que “funcionou como um modo de organizar a transição da produção coletiva para a de excedentes regulares – o pau-brasil, sendo o principal interesse do lado europeu – ou a prestação de serviços, como o reparo de naus em troca de instrumentos de ferro e quinquilharias” (p. 28). É da mesma autora a seguinte afirmação sintética: o pau-brasil “promoveu a mestiçagem” (p. 36). In: DEL PRIORE, Mary. Obra citada, p. 28 e 36.

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Em primeiro lugar, a indesejada relevância do pau-brasil sobre a santa cruz comporta, além do conflito entre o sagrado e o profano, a diferença e a hierarquia entre o que é europeu e o que não o é, e a heresia está não só em submeter o divino ao interesse humano e mundano, mas também, e talvez fundamentalmente, em subverter o imaginário cristão europeu e o seu símbolo pela adesão ao que lhe é exterior e natural da nova terra. Em segundo, a constatação de que o nome, que designa exclusivamente o espaço físico, é um símbolo que institui a nova existência geográfica sem designar uma coletividade; nomeiase o lugar, o espaço, a partir daquilo que nele justifica a sua existência para terceiros, como se fosse a terra desprovida de população nativa. E nomeia-se, a contragosto do historiador, a partir do valor de troca da natureza.142

Ou seja: o pensamento de Vicente de Salvador expressa, ainda, centelhas do eurocentrismo que permanece a opor civilização e barbárie, pureza e mistura, cidade e selva, cozido e cru, cristianismo e religiões de matriz afro-ameríndia, inúmeros pares binomiais

que

contribuem

para

o

fortalecimento

dos

neocolonialismos

contemporâneos143 - fagulhas perigosas que, séculos depois, ainda são capazes de causar incêndios. Na terminologia de Silviano Santiago, ao “destruir” os conceitos de “unidade” e “pureza”, a formação das sociedades latino-americanas questiona os códigos socioculturais do colonizador, que, paulatinamente, “se deixam enriquecer por novas aquisições, por miúdas metamorfoses, por estranhas corrupções, que transformam a integridade do Livro Santo e do Dicionário e da Gramática europeus. O elemento híbrido reina.”144 O que o enredo de 2004 sugere, nas entrelinhas serpentinadas, é que tamanho manancial de contradições e questionamentos identitários pode ser condensado na imagem do pau-brasil – daí a pertinência da expressão “estampas do imaginário”, cunhada por Leal Cunha. Apesar de não retratar alegoricamente tais visões “desencantadas” dirigidas ao pau-brasil, não se pode dizer que o enredo de Rosa Magalhães é unilateral na sua leitura. Ao contrário: conforme já foi exposto, nos fragmentos anteriores, a autora explica que o nome dado às terras então colonizadas pode, apenas pode, ser proveniente da árvore de madeira tintorial, havendo outras e mais antigas hipóteses (a linha de investigações que

142

CUNHA, Eneida Leal. Obra citada, p. 27/28. A respeito disso, é interessante observar a reflexão de Silviano Santiago: “O neocolonialismo, a nova máscara que aterroriza os países do Terceiro Mundo em pleno século XX, é o estabelecimento gradual num outro país de valores rejeitados pela metrópole, é a exportação de objetos fora de moda na sociedade neocolonialista, transformada hoje no centro da sociedade de consumo. Hoje, quando a palavra de ordem é dada pelos tecnocratas, o desequilíbrio é científico, pré-fabricado; a inferioridade é controlada pelas mãos que manipulam a generosidade e o poder, o poder e o preconceito.” In: SANTIAGO, Silviano. O entrelugar do discurso latino-americano. In: Uma literatura nos trópicos. Ensaios sobre dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 15. 144 SANTIAGO, Silviano. Obra citada, p. 16. 143

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nos leva às minas de estanho celtas e às embarcações dos reis fenícios). Por outro lado, é evidente que a artista, ao menos no setor aqui analisado, mitifica a árvore de flores amarelas, convertendo-a em “metáfora vegetal” e símbolo absoluto de “brasilidade” – tronco espinhoso, sob as lentes de Antonio Cicero. As definições de Brasil a partir da natureza tropical (comuns durante o romantismo indianista de autores como José de Alencar, que assumia ser um apaixonado leitor de James Fenimore Cooper145) têm sido sistematicamente refutadas por alguns ensaístas brasileiros contemporâneos, caso de Silviano Santiago e do recém-eleito imortal Antonio Cicero, para quem é preciso “rejeitar o clichê que faz do homem tropical um escravo da natureza, das circunstâncias ou das paixões que sofre.”146 Segundo o autor, o Brasil não quer ser descrito pelas metáforas orgânicas e, sobretudo, vegetais, cujo protótipo é o famoso cedro de Herder, de raízes fincadas no solo ancestral. Originalmente uma elipse, a expressão “Brasil” funcionava como metonímia do país que continha pau-brasil. Mas de maneira nenhuma deve o pau-brasil ser tomado como metáfora do Brasil. Quando comparamos uma nação a uma árvore, estamos enfatizando os aspectos concluídos e herdados da sua vida cultural. (...) Antes de tudo, “Brasil” remete a “brasa”. É evidente que não devemos nem podemos prescindir da linguagem figurada, já que o seu emprego faz parte da ars inveniendi e trata-se, aqui, da descoberta do Brasil, isto é, da inventio Brasilis. Preferimos, contudo, um célebre tropo americano (americano ma non troppo, feito tudo americano, pois foi Tocqueville, se não me engano, quem primeiro o empregou) e dizemos que o Brasil é o verdadeiro melting pot, o crisol, que os Estados Unidos não chegaram a ser, em que se dão tanto a promiscuidade quanto a miscigenação das mais diversas culturas e raças -- americanas, europeias, africanas, asiáticas -- que modificam, relativizam, instrumentalizam e fecundam umas as outras. O crisol, ao contrário da árvore, consiste no âmbito da mudança, no lugar de fusão e separação, expansão e contração, composição e decomposição, condensação e rarefação, onde nada jamais permanece o mesmo. Obviamente, mesmo a metáfora do crisol não é inteiramente adequada, pois, neste, diferentes metais se fundem em uma única liga enquanto, no Brasil, o intercurso das diversas raças e culturas resulta na multiplicação combinatória de códigos genéticos e culturais. Talvez devêssemos, por isso, ter preferido a imagem de um laboratório.147

Em outras palavras, o teórico refuta a visão retrospectiva presenta na metáfora do pau-Brasil e defende a visão prospectiva representada pelo crisol. O ensaio é citado por Alberto Pucheu nas notas que complementam o artigo O “Carnaval Carioca (1923)”, de

A temática foi amplamente debatida no capítulo Peri beijou Ceci, ao som d’O Guarani – um gesto de brasilidade, da dissertação A antropofagia de Rosa Magalhães. 146 CICERO, Antonio. Brasil feito brasa. Artigo originalmente proferido na Literaturhaus de Frankfurt, em outubro de 1994, por ocasião da Feira Internacional do Livro. Disponível em http://www.geocities.ws/fusaoracial/FusaoRacial_A_Cicero.htm. Acesso em 22/07/2017. 147 CICERO, Antonio. Obra citada. 145

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Mário de Andrade, que abre a coletânea de mesmo nome, e se apresenta enquanto contraponto à faceta mais conhecida de Rosa Magalhães, amante das comparações com a natureza exuberante. No desfile de 1999, campeão, havia um setor inteiro dedicado às plantas brasileiras, representando o volume Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae Icone Vegetalium da coleção de pinturas elaboradas por Albert Echkout a pedido de Maurício de Nassau, durante o Brasil-holandês do século XVII. O esplendor vegetal também aparece, com notável expressividade, nas narrativas de 1994, 1996, 2002 e 2006 (nos últimos dois casos, diretamente ligadas ao “ideal romântico” dos autores José de Alencar e Alexandre Dumas, respectivamente). No enredo de 2004, a contradição é interna, estruturada nas alegorias: se ao final ocorre a glorificação do pau-brasil, no decorrer do desfile há um laboratório (a segunda alegoria, inspirada no inferno de Bosch) e um caldeirão fervente (o abre-alas, onde a feiticeira mexia um caldeirão), que não deixa de ser uma variação do crisol. Não se pode esquecer, ainda, do conteúdo do Instinto de Nacionalidade, o ensaio em que Machado de Assis, em 1873, de certa forma antecipa o núcleo das discussões agora colocadas na mesa (ou no caldeirão borbulhante, ao gosto da feiticeira). Saiu da pena machadiana o famoso trecho em que a “identidade cultural” de Shakespeare é posta em causa: “e perguntarei mais se o Hamlet, o Otelo, o Júlio César, a Julieta e Romeu têm alguma coisa com a história inglesa nem com o território britânico, e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um gênio universal, um poeta essencialmente inglês.”148 A conversa entre o Bruxo e o Bardo me remete ao enredo (abortado) sobre Nova Friburgo, cidade mencionada por Silviano Santiago em O entre-lugar do discurso latino-americano (o autor cita “New England, Nueva España, Nova Friburgo, Nouvelle France, etc.”149 a fim de ilustrar a tentativa da empreitada colonialista de fazer da América um simulacro, uma cópia do modelo europeizante, em detrimento das identidades locais, subjugadas a ferro e fogo). Nos galhos do pau-brasil, incontáveis são os novelos – e as sincronicidades que me levam navegando.

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ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Instinto de Nacionalidade. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/355080/mod_resource/content/1/machado.%20instinto%20de%2 0nacionalidade.pdf. Acesso em 11/09/2017. 149 SANTIAGO, Silviano. Obra citada, p. 15.

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II. 4 – O chão da Utopia II. 4. 1 – Thomas More e Antoni Gaudí

Montreal, 26 de outubro de 2014. Foram muitas as gargalhadas do público presente em uma pequena e confortável sala de conferências, no Delta Palace Hotel, numa gélida manhã de domingo (a data do segundo turno da eleição presidencial brasileira daquele ano, quando Dilma Rousseff, que empresta depoimento ao documentário Utopia e Barbárie, de Silvio Tendler, foi reeleita, com 51,64% dos votos válidos), quando, na mesa Music and Arts, ao lado do professor Thomas Horan, da The Citadel (The Military College of South Carolina), eu disse que Michel de Montaigne e Américo Vespúcio já haviam dançado em plena Avenida Marquês de Sapucaí, o Sambódromo carioca. Disse e provei o dito, exibindo trechos dos desfiles gresilenses de 1994 150 e 2004 – e aí as gargalhadas aumentaram, e muito pode ser debatido a respeito de tal reação coletiva. A mesa encerrava o trigésimo nono encontro anual da The Society for Utopian Studies, ocorrido de 23 a 26 de outubro, no Canadá. Eu soube da existência de tal Sociedade e dos encontros anuais dedicados exclusivamente às discussões sobre os conceitos desdobráveis de utopia graças às pesquisas então iniciadas com a sinopse de Breazail nas mãos, enredo que termina com a Utopia, de Thomas More, visualmente traduzida em formas inspiradas em Gaudí. Nas paragens canadenses, onde Croft e Jay pescaram bacalhau como nunca dantes imaginado (e estimulado o mito da terreal Hy Bressail), apresentei, pela primeira vez, as ideias que agora verdebrilham nessa tese – e giram, feito Baiana e Porta-Bandeira. Mas o meu encontro com a Utopia se deu mesmo em 2006, pouco mais de dois anos depois do desfile Breazail, quando, no segundo ano da Licenciatura em Letras e no primeiro ano do Bacharelado em Direito, após um período de flerte com o cinema, decidi cursar a disciplina “Utopias e Distopias” no curso de História da Universidade Federal do Paraná - graduação que eu havia trancado após concluir o segundo semestre e optar pelo Direito. Oferecido pela professora Ana Paula Vosne Martins, o curso se propunha a analisar algumas obras fundantes do imaginário utópico – do livro de Thomas More à

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Naquela ocasião, quem interpretou Michel de Montaigne, na última alegoria do desfile campeão da Imperatriz Leopoldinense, foi o figurinista e professor da Escola de Belas Artes Samuel Abrantes.

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ficção científica do século XX, distópica151 (os mundos pós-apocalípticos de Metropolis, Mad Max, Matrix, Blade Runner). Durante o curso eu li, pela primeira vez, as páginas de More, tarefa depois revisitada em diferentes momentos e contextos. Talvez, e é preciso considerar tal possibilidade afetiva, o término do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2004 com a ilha da Utopia seja antes um motivo que literalmente um final, uma consequência, uma obrigatoriedade de visita. More redigiu Utopia no começo da segunda década do século XVI. Em 2016, foram comemorados, ao redor do mundo, os 500 anos da publicação da obra, considerada, não soa exagerado, um dos mais importantes livros da história da humanidade.152 Muito se fala do impacto político que as páginas do autor tiveram no contexto da Inglaterra de então, tão turbulento quanto o observado nos demais cenários da Europa – o “Velho Mundo” ganhava os mares e um “Novo Mundo” se descortinava, trazendo à tona, em redes, cordas, sargaços, questionamentos dos mais diversos, da existência de Deus às tentações dos demônios, passando, é claro, pelos modelos políticos remanescentes do Alto Medievo, tramas de hierarquias, derramamentos de sangue e jogos políticos enferrujados que contrastavam com a visão inicial das sociedades indígenas (oscilantes entre a “barbárie” da antropofagia e o “desapego aos bens materiais”, discussões tão cândidas quanto bravas). Steven Roger Fischer chega a afirmar que a ilha de More é uma “versão turbinada” da República de Platão, a elaboração de “uma sociedade insular que desconhece a propriedade privada, advogados, desigualdade de gêneros, porém prospera como um Estado provido de benefícios como educação e assistência médica gratuitas (...).”153 Um equívoco comum, porém, é supor que a Utopia de More é um espaço livre

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Sobre tal instigante desdobramento do imaginário utópico é importante a leitura de Utopia e Ficção Científica, artigo de Raymond Williams presente na coletânea Cultura e Materialismo. No texto, o pensador britânico articula os conceitos de ficção científica e ficção utópica, classificando quatro tipos de “ficções utópicas” (paraíso, mundo alterado externamente, transformação almejada e transformação tecnológica) e “ficções científicas distópicas” (inferno, mundo alterado externamente, transformação almejada e transformação tecnológica). O universo visitado pelo autor será contemplado no decorrer da tese, quando aspectos do enredo gresilense de 1998 forem melhor analisados. Ver: WILLIAMS, Raymond. Utopia e Ficção Científica. In: Cultura e Materialismo. São Paulo: Editora UNESP, 2011. 152 Duas grandes conferências internacionais ocorreram em virtude de tais comemorações: em Lisboa, Portugal (o país de origem de Rafael Hitlodeu), de 5 a 9 de julho, organizado pela Utopian Studies Society / Europe; e em São Petersburgo, na Flórida – Estados Unidos, de 26 a 30 de outubro, organizado pela Society for Utopian Studies. 153 O mesmo autor valoriza o fato de que os utopianos possuíam alimentação igualitária, direito ao divórcio e sacerdócio com permissão para casar. Segundo Fischer, não sem exageros, “trata-se do mais puro socialismo, sem dúvida, e foi escrito sob a regência do mais voraz dos monarcas, Henrique VIII. Enquanto a sátira velada se mantinha como sonho humanista, seu veículo alegórico incentivou outros a alçar voos literários ainda mais altos.” In: FISCHER, Steven Roger. Ilhas. De Atlântida a Zanzibar. São Paulo: Editora UNESP, 2014, p. 274.

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de qualquer tensão ou mesmo mazela – o que é desmentido por George Logan e Robert Adams: “A sociedade em que More vivia era rigidamente hierarquizada e plena de regras, de modo que Utopia talvez não lhe tenha parecido tão repressiva quanto parece a nós.”154 Antes de compreender a complexidade enigmática de tal sociedade e a leitura que Rosa Magalhães fez disso, em 2004, é importante varrer, ainda que brevemente, alguns aspectos da vida e da obra de More, dada a centralidade da Utopia em qualquer biblioteca do planeta. Nascido em Londres e com passagem por Oxford, More oscilava entre o Direito e a Literatura, deixando-se influenciar “por um grupo de homens versados nas letras, personagens principais da tradição do humanismo renascentista na Inglaterra, que então surgia.”155 Cada vez mais afastado dos estudos de jurisprudência e abraçado à filosofia, chegou a dialogar, em 1499, com Erasmo de Roterdã, o grande humanista viajante, influenciador de uma geração de pensadores. Erasmo fazia a sua primeira visita à Inglaterra – e tal passagem certamente influenciou Thomas More a afastar determinadas ideias (como a de se ordenar sacerdote) e a segurar outras com ainda mais firmeza (a de se embrenhar pelos estudos filosóficos, em especial). Chegou a trabalhar com a advocacia e assumiu cargos públicos, ganhando certa notoriedade entre os círculos britânicos. O real contexto em que a Utopia foi materializada em páginas, no entanto, permanece envolto em neblina. Adams e Logan explicam o seguinte: Utopia foi concebido no verão de 1515. Em maio desse ano, More partiu da Inglaterra para Flandres, como membro de uma comissão real de comércio. As negociações entre essa comissão e sua equivalente flamenga, realizada em Bruges, foram suspensas em 21 de julho, mas More só voltou à Inglaterra em 25 de outubro. Nos três meses que decorreram de fins de julho a fins de outubro, ele pode dispor de um raro período de ócio, e foi durante esse período que Utopia começou a ganhar forma. A certa altura desse verão, More viajou para Antuérpia, onde se encontrou com Peter Giles, a quem Erasmo o havia recomendado. Giles era pessoa ao gosto de More. Era um erudito de formação clássica e tinha intimidade com Erasmo e seu círculo; também era homem de atividades práticas, funcionário do município de Antuérpia e, como tal, profundamente envolvido com os negócios desse centro portuário e comercial cosmopolita. O Livro I de Utopia começa com uma breve referência à missão comercial, e esta leva a um relato das relações entre More e Giles. A essa altura, o livro começa a passar gradualmente dos fatos para a ficção.

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ADAMS, Robert; LOGAN, George. Introdução. In: MORE, Thomas. Utopia. George M. Logan e Robert M. Adams (orgs.). Edição Revista e Ampliada. São Paulo: Martins Fontes, 2009, f. XVII. 155 ADAMS, Robert; LOGAN, George. Obra citada, f. XIX.

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More conta que, certo dia, depois de ter encontrado Giles após a missa, foi apresentado por ele a Rafael Hitlodeu, com quem tiveram a conversa registrada em Utopia.156

Entra em cena, aqui, o personagem-central dessa história: Rafael Hitlodeu, nome pleno de significação. Se a palavra utopia é produto da fusão do advérbio grego ou – “não” – ao substantivo topos – “lugar” (ou seja: não-lugar, ideia também passível de debate157), Hitlodeu, também de origem grega, significa, nos termos de Adams e Logan, “mercador de disparates”158 – e mais do que evidente se torna a percepção da ironia e da polissemia do texto de More159. Um dos maiores teóricos da utopia ainda vivos, Gregory Claeys160, apresenta definição um pouco diferente: A narrativa (de Utopia) assume a forma de uma conversa tripla entre o próprio More, seu amigo Peter Giles e um viajante, Rafael Hitlodeu (o nome, em grego, significa um “relato do absurdo”). Hitlodeu havia retornado recentemente de viagens ao novo mundo, acompanhando o explorador italiano Américo Vespúcio, tendo passado cinco anos na ilha de Utopia. Ele parece defender ideais de bondade humana natural, racionalidade e a possibilidade de planejar uma sociedade boa. Mas More e o narrador introduzem elementos de dúvida, ceticismo e sátira nesses argumentos. As intenções “reais” de More, assim, são duvidosas, e muitos leitores terminam a leitura sem saber o que foi uma recomendação e o que foi uma sátira.161

More descreve o encontro com Hitlodeu com as tintas da surpresa e do acaso, o que, de antemão, aguça a curiosidade do leitor. Na saída de uma missa na catedral de

ADAMS, Robert; LOGAN, George. Obra citada, f. XXIV – XXV. É o que sugere Umberto Eco: “Utopia significa etimologicamente não lugar – embora alguns prefiram entender o U inicial como um eu grego e, portanto, leiam bom ou ótimo lugar; outros ainda consideram que, ao cunhar este neologismo, Thomas More (em seu Libellus vere aureus, nec minus salutares quam festivus de optimo rei publicae statu, deque nova insula Utopia, de 1516, onde descreve um Estado ideal) queria justamente jogar com essa ambiguidade, dado que toma como modelo positivo um país inexistente.” In: ECO, Umberto. História das terras e lugares lendários. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2013, p. 305. 158 ADAMS, Robert; LOGAN, George. Obra citada, f. XVI. 159 Jerzy Szachi, historiador e filósofo polonês, apresenta uma provocação pertinente: “Mas a palavra utopia – de acordo com a sua etimologia grega – significa lugar não existente, país que não se encontra em lugar algum. More empresta à narração de Hythlodaeus uma aparência de veracidade, mas ao mesmo tempo deixa perceber ao leitor que se trata de uma ficção. O que foi então a Utopia? Brincadeira de um humanista erudito, como quiseram alguns? Com certeza ela foi também uma brincadeira. Antes de tudo, porém, foi uma crítica aguda da Inglaterra do tempo, aliada ao sonho de uma ordem social melhor.” In: SZACHI, Jerzy. As Utopias ou a Felicidade Imaginada. Tradução de Rubem César Fernandes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972, p. 02. 160 Claeys proferiu uma interessante palestra durante a 17ª Conferência da Utopian Studies Society / Europe, na Universidade Nova de Lisboa, em 06 de julho de 2016. Intitulada Monstrosity and Dystopia: An Overview, a fala tratou dos bestiários medievais e da ideia de “monstro” na literatura e na sociedade contemporâneas – tema que, a partir da figura do “monstro” criado pelo Dr. Victor Frankenstein, personagens de Mary Shelley, serviu de fio-condutor para a escola de samba Beija-Flor de Nilópolis, no carnaval de 2018, com enredo intitulado Monstro é aquele que não sabe amar: os filhos abandonados da Pátria que os pariu, sagrado campeão. 161 CLAEYS, Gregory. Utopia. A história de uma ideia. São Paulo: Edições SESC-SP, 2013, p. 59/60. 156 157

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Notre-Dame, “a igreja mais bela e mais frequentada da Antuérpia”162, encontra Peter Giles “conversando com um ancião, um estrangeiro de rosto queimado pelo sol, longas barbas e uma capa displicentemente lançada sobre um dos ombros. A julgar por sua pele e seus trajes, imaginei tratar-se do capitão de um navio.”163 Na sequência, depois de apresentado ao misterioso personagem, o autor explica que Rafael Hitlodeu não era um simples marinheiro, mas alguém comparável a Ulisses ou a Platão, tamanha a sua sabedoria. Alguém de espírito errante e coragem admirável: “queria conhecer o mundo, e então deixou para os irmãos suas propriedades em Portugal, seu país de origem164, e juntou-se a Américo Vespúcio.”165 Rosa Magalhães, em Breazail, não deixa dúvidas sobre a passagem de Hitlodeu pelo território brasileiro, afirmando que os marinheiros de Vespúcio foram deixados em Cabo Frio – e não em um lugar incerto, conforme sugerem outros pesquisadores: Imagino que sejam de vosso conhecimento as Quatro viagens, pois a obra, escrita por esse navegador (Vespúcio), tem um grande número de admiradores entre nós. Bem, Rafael o acompanhou nas três últimas viagens, mas, na última delas, não voltou para a Europa com ele. Em vez disso, praticamente o forçou a deixa-lo junto com os vinte e quatro homens que permaneceram estacionados no ponto mais extremo a que se chegara. E ele ali ficou, entregue aos prazeres das viagens que sempre foram sua principal razão de viver. Pouco lhe importava onde viesse a morrer, pois eram dois os seus provérbios favoritos: “Os mortos insepultos têm o Céu por mortalha”, e “De onde quer que se parta uma só é a distância para o Céu” – uma atitude que, não fosse a graça divina, podia terlhe criado sérios problemas. Seja como for, depois da partida de Vespúcio, Rafael e outros cinco membros da guarnição fizeram inúmeras explorações. Por fim, um extraordinário golpe de sorte fez com que chegassem ao Ceilão. Daí, Rafael seguiu para Calicute, onde oportunamente encontrou alguns navios portugueses que o levaram de regresso ao seu país.166

Pode-se dizer, a partir do cotejo entre as letras de More e o defendido por Rosa Magalhães, que o escritor britânico alterou, no Livro I da Utopia, o fatídico final dos 162

MORE, Thomas. Utopia. George M. Logan e Robert M. Adams (orgs.). Edição Revista e Ampliada. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 17. 163 MORE, Thomas. Obra citada, p. 17. 164 O fato de Hitlodeu ser lusitano e expressar a pujança do Império Português é analisado por Fátima Vieira, da Universidade do Porto, em diálogo com a pesquisa do historiador português Luís de Matos. Segundo Vieira, “according to Matos, it is just natural that More met a Portuguese sailor in Antwerp. Maritime commerce between Portugal and Flanders was intense, and it is no wonder that More wanted to know more about faraway places visited by the Portuguese. Already in his 1966 A “Utopia” de Thomas More e a Expansão Portuguesa (Thomas More’s Utopia and the Portuguese expansion), Matos maintains that the journey described in Book I actually replicates the one that Diogo Lopes de Sequeira undertook in 1508: Brazil-Ceylon-Calicut-Lisbon.” In: VIEIRA, Fátima. Portuguese Translations of Thomas More’s Utopia. In: Utopian Studies. The Journal of the Society for Utopian Studies. Vol. 27, n. 03. The Pennsylvania State University Press, 2016, p. 547. 165 MORE, Thomas. Obra citada, p. 18/19. 166 MORE, Thomas. Obra citada, p. 19/20.

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marinheiros “abandonados” por Vespúcio na “fortaleza” de Cabo Frio. Explorando o território selvagem, Hitlodeu e os cinco companheiros passaram por diversos lugares, culminando a aventura na descoberta da “civilização utopiana”, cujos moradores “só tiveram contato com os ultra-equatoriais (que é o modo como a nós se referem) quando um de nossos navios se perdeu no oceano, há mil e duzentos anos, e foi encalhar em sua ilha.”167 As tantas peculiaridades da ilha Utopia é o mote do Livro II, que se inicia com uma descrição geográfica do não-lugar:

a ilha dos utopianos é mais larga no meio, onde mede cerca de trezentos e vinte quilômetros. Nunca se estreita muito mais do que isso, a não ser nas extremidades (...). Portanto, podeis imaginar a ilha como uma espécie de crescente cujas extremidades são divididas por um estreito de quase dezoito quilômetros de largura. O mar por aí entra, quando então se espalha e forma uma larga baía – ainda que, na verdade, mais se assemelhe a uma vasta piscina de águas serenas (...). Graças a tal desenho, praticamente todo o interior da ilha pode ser usado como porto, e, para grande vantagem de todos os seus habitantes, os barcos fluem sem obstáculos por todas as direções.168

Originalmente chamada Abraxa (palavra que, para Erasmo de Roterdã, significa “fantasia extravagante”), a ilha de tantos portos, similar a um coração pulsante, foi conquistada pelo rei Utopos, aquele que a rebatizou. Com cinquenta e quatro cidades (todas “grandes e magníficas”169), Utopia se apresenta enquanto território bastante organizado: as distâncias entre as cidades nunca são exageradamente grandes, uma mesma língua é falada por todos os moradores, o conjunto de leis e instituições é seguido à risca por todos os cidadãos. Há uma noção de coletividade e totalidade pairando sobre cada sujeito. As questões mais importantes para o país eram anualmente discutidas em uma assembleia de sábios anciãos na cidade de Amaurot170, considerada a capital do país pela posição central (“umbigo da ilha”171, expressão que reforça o caráter orgânico do território). Em oposição à sujeira das ruas londrinas, às carnificinas das guerras e aos escândalos políticos ambientados entre mármores e tapeçarias, em Utopia jardins verdejavam e flores exalavam os mais delicados odores, a tirania era odiosa e os métodos de eleição dos governantes pareciam mais justos, baseados na qualificação para o cargo,

167

MORE, Thomas. Obra citada, p. 77. MORE, Thomas. Obra citada, p. 79/80. 169 MORE, Thomas. Obra citada, p. 82. 170 Não curiosamente, a descrição geográfica de Amaurot muito se assemelha à geografia urbana de Londres: ambas as cidades são cortadas por grandes rios (Anidro e Tâmisa), tendo as margens unidas por uma “magnífica ponte em arcos de pedra” (London Bridge, a primeira ponte de Londres). 171 MORE, Thomas. Obra citada, p. 83. 168

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e não em linhas sucessórias presas ao sangue. Sobre os modos de vida, alguns pontos são bastante curiosos:

Além da agricultura, que é, como digo, um dever ao qual ninguém foge, todo cidadão é iniciado num determinado ofício. Uns aprendem a tecer a lã ou o linho, outros se tornam pedreiros, ferreiros ou carpinteiros. São essas as únicas profissões que empregam um número razoável de mão-de-obra. Não existem alfaiates ou costureiros, já que todos os habitantes da ilha usam o mesmo tipo de roupa, que só deixa de ser invariável no caso de pequenos detalhes que distinguem homens e mulheres, solteiros e casados. Nunca são introduzidas novas modas.172

Tais singulares características173 não escaparam aos olhos de Rosa Magalhães, que assim descreveu o último setor do desfile gresilense de 2004 na sinopse apresentada ao público e aos jurados:

Um desses 24 marinheiros que ficaram em Cabo Frio se torna o personagem chamado Rafael Hitlodeu, narrador de uma história que se tornaria um marco da filosofia. Ao invés de morrerem na feitoria, saíram da lá e logo adiante encontraram um país inigualável chamado de Utopia, habitado por pessoas singulares no seu modo de vida: os utopianos. Vivem em perfeita harmonia, nada lhes falta, há comida em abundância, mas não comem exageradamente. Todos trabalham, mas também se divertem. Não dão valor ao que outros povos normalmente prezam muito. Para mostrar seu desprezo, o ouro e a prata não são usados como adornos. As jóias são para as crianças se enfeitarem e brincarem, os adultos não se interessam por elas.174 Neste país imaginário, os trajes são simples e elegantes, os tecidos são naturais e claros, sem tingimentos. Em Utopia, o pau-brasil com certeza ainda existe, dando sombra e oferecendo um raro espetáculo com suas belas flores amarelas. Nossa esperança é transformar nosso chão numa utopia, a Mata Atlântica preservada e abundante em pau-brasil...175

172

MORE, Thomas. Obra citada, p. 93. É justamente sobre os aspectos elencados acima que Raymond Williams discorre na seguinte passagem: “O humanismo de More está profundamente qualificado: a sua indignação é dirigida tanto contra os artesãos e trabalhadores importunos e pródigos quanto os proprietários de terras exploradores e monopolizadores – sua identificação social é com os pequenos proprietários; as suas leis regulam e protegem, mas também impelem ao trabalho. Seu humanismo também é qualificado por ser estático: uma regulamentação sábia e entrincheirada pelos anciãos. Trata-se, então, da projeção social de uma classe em declínio, generalizada para um equilíbrio relativamente humano, mas permanente.” In: WILLIAMS, Raymond. Obra citada, p. 273. 174 Nas palavras de More: “Existem pérolas ao longo de toda a costa de Utopia, diamantes e outros tipos de pedras preciosas em certos tipos de rocha, mas ninguém jamais se dá ao trabalho de procura-las. No entanto, se por acaso encontram uma delas, mandam lapidá-las e as dão de presente aos filhos pequenos. De início, as crianças ficam extremamente orgulhosas de usar essas jóias, mas, ao crescerem, percebem que elas só tem valor para as criancinhas. Então, sem que seus pais precisem intervir na sua decisão, mas por simples vergonha, livram-se delas do mesmo modo que as nossas crianças se livram de suas bonecas, de seus jogos e de seus brinquedos em geral.” In: MORE, Thomas. Obra citada, p. 116/117. 175 MAGALHÃES, Rosa. Obra citada. 173

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Rosa descreve um lugar de harmonia, de trabalho e lazer equilibrados, de uma certa igualdade social historicamente desejada, enfim. Contraponto claro à Inglaterra da época de More (e aqui é preciso lembrar que o filósofo recusou-se a jurar fidelidade ao Ato de Sucessão176 e, acusado traidor da Coroa, foi condenado à morte pelo Rei Henrique VIII, sendo decapitado em 6 de julho de 1535, na Torre de Londres177), a Utopia atravessou os séculos como sinônimo de temperança. No enredo de Rosa Magalhães, ganha cores de esperança e expressa a mesma mensagem apresentada no final da narrativa (distópica178) de 1998: a necessidade de se preservar a natureza. O enredo adquire, portanto, um colorido ecológico. A tradução do texto de Utopia em fantasias e adereços de carnaval não parece das tarefas mais fáceis. Quando pensamos em um desfile de escola de samba, grosso modo, visualizamos uma cartela de estereótipos e signos consagrados no imaginário popular: brilhos, tecidos exuberantes, leques de plumas, excessos de formas e cores. Para expressar a crueza franciscana dos utopianos sem perder a expressividade plástica, a carnavalesca Rosa Magalhães utilizou de uma primeira estratégia: a neutralização das roupas por meio do uso da cor branca. Todas as fantasias do setor (intituladas, na sequência, Dama Utopiana, Crianças brincam com jóias, Cidadão livre de Utopia, Jardins Utópicos e Folia Utopiana) apresentavam uma base de tecidos brancos. Sobre o branco, o colorido de pequenas flores. O melhor exemplo dessa experiência estética bem-sucedida, a ala Jardins Utópicos – justamente as Baianas da Leopoldina (imagens 37, 38 e 39). Coroando a sequência de cinco alas, a última alegoria do desfile se mostrava imponente: A Utopia – Lugar ideal onde certamente o pau-brasil floresce em abundância. A principal referência estética utilizada pela carnavalesca foi bastante festejada pelos comentaristas da TV Globo, durante a transmissão do desfile. É o que destacam Dulce Osinski e Gustavo Krelling:

A última referência visual de arte erudita compreendida por este trabalho também pode ser relacionada com a organicidade e o aspecto onírico de Bosch. A referência está no último carro alegórico da escola e é assim apresentada por Cléber Machado na 176

O ato alterou a Linha Sucessória ao Trono da Inglaterra, considerando a princesa Isabel (Elizabeth I), filha de Henrique VIII com a segunda esposa, Ana Bolena, a “verdadeira” herdeira da Coroa – afastando do Trono, portanto, a filha de Henrique VIII com Catarina de Aragão, Maria I. 177 Curiosa e ironicamente, como muitas vezes ocorre em se tratando de assuntos eclesiásticos, Sir Thomas More foi canonizado em 1935. 178 Aqui, novamente espocam as faíscas de Raymond Williams, que divide os termos utopia e distopia em categorias e estabelece relações entre os paraísos e os infernos, as transformações almejadas e as transformações tecnológicas. Ver: WILLIAMS, Raymond. Obra citada, p. 267/290.

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transmissão do desfile: “Atrás do carro vocês vão ter a oportunidade de ver uma reprodução do Parque Guell, que é um parque do Gaudí que tem lá em Barcelona, na Espanha, onde viveu o Gaudí, um grande artista!” A comentarista Maria Augusta complementa a fala de Machado: “Olha! A Rosa mais uma vez foi muito feliz nesse final de Imperatriz. Essa inspiração no Gaudí, que foi um arquiteto espanhol fantástico! Diferente de tudo que já houve. Ele é um arquiteto próximo ao Surrealismo, há divergências. Mas esse detalhamento! Carro de cerâmica! Carro de azulejo! Coloridos! Isso é típico da arquitetura de Gaudí. E essas curvas – não há retas na arquitetura – sempre uma coisa muito orgânica, muito gordinha! Essa coisa do latino. Formas latinas, formas orgânicas – da natureza – que ele levava para as suas obras em Barcelona, obras inesquecíveis!” (...) Percebe-se que Rosa Magalhães não se limita a citar apenas uma obra do arquiteto. Ela utiliza, além do Parque Guell, elementos presentes nas chaminés da Casa Battló e nas torres da Igreja da Sagrada Família, ambas as construções localizadas em Barcelona. Nos projetos da carnavalesca percebemos o realce da cor. Os mosaicos feitos para o desfile ganham tonalidade cítrica, se comparados com as construções do arquiteto catalão, sofrendo processo de carnavalização por meio da cor. O comentarista da Rede Globo Haroldo Costa compara as obras de Gaudí com a do artista popular brasileiro Gabriel Joaquim dos Santos, que fez a construção da Casa da Flor também utilizando o mosaico e as formas orgânicas em São Pedro da Aldeia (RJ). De acordo com Costa, esse artista popular nunca teve contato com as obras de Gaudí. Aí percebemos um diálogo entre o erudito e o popular que minimiza as polarizações, pois algo parecido foi feito em universos distintos.179

A leitura apresentada pelos pesquisadores se preocupa em mostrar o quanto os conceitos de “erudito” e “popular” são porosos e intercambiáveis – em outras palavras, apresentam marcas de ferrugem teórica, merecendo, sempre, a revisão crítica preocupada com a inclusão, e não com os ideais hierarquizantes. Ao utilizar as formas de Gaudí para traduzir visualmente os ideais da Utopia de Thomas More (imagens 40, 41 e 42), Rosa Magalhães apresentava, em um espaço dedicado à cultura popular, um todo complexo dos mais notáveis – mostrando que os diálogos interartes são verdadeiramente ilimitados. Também destacam, os autores, que tais diálogos podem não ser decodificados por todos os agentes e leitores da festa:

A inserção de elementos da arte erudita na festa popular é uma das características mais marcantes do trabalho da carnavalesca. O folião, que desfila em um cortejo desenvolvido pela artista, pode carregar referências de Francisco de Goya em sua indumentária. Esteja ele consciente desse diálogo ou não, há uma releitura presente, mesmo que de forma implícita. Esse mesmo folião é inserido ainda em um cenário inspirado em Hieronymus Bosch. Há aí a integração de dois universos que talvez não possuíssem integração. De um lado temos o sambista popular, o desfilante, que pode ou não compreender o outro lado, o das referências visuais eruditas. O mesmo acontece com o público que assiste aos desfiles, seja no Sambódromo, seja em casa, em suas televisões.

179

KRELLING, Gustavo; OSINSKI, Dulce Regina Baggio. Obra citada, p. 175-177. Disponível no sítio: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/tecap/article/view/10428/8196. Acesso em 18/10/2017.

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Por meio do caso Rosa Magalhães, observamos a materialização do conceito de circularidade tratado por Ginzburg (1987). Em festa popular, um desfile de escola de samba do Rio de Janeiro, emergem referências e diálogos possíveis com a arte erudita e com o público que é entendedor e conhecedor de arte. O erudito e o popular acabam integrando-se, mas essa integração só ocorre com a proposição da artista, que “expõe” esses artistas fora do espaço dos museus.180

Ainda que a linha argumentativa utilizada após a citação de Carlo Ginzburg181 resvale em uma quase oposição que tende a colocar o “artista” em um pedestal desnecessário, indiscutível é a ideia de que o desfile Breazail é um exemplo de circularidade cultural nos moldes do que já foi amplamente debatido por autores como Néstor Canclini, no contexto latino-americano, e Felipe Ferreira, Maria Laura Cavalcanti e Nilton Santos, no contexto específico dos desfiles das escolas de samba do carnaval do Rio de Janeiro. Círculos e redemoinhos – que levam o barco, Parafuso de Lagarto, para águas mais longínquas.

Imagem 37: Baianas do desfile gresilense de 2004, Jardins utópicos. Sobre as saias brancas, uma profusão de flores multicoloridas. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

180

KRELLING, Gustavo; OSINSKI, Dulce Regina Baggio. Obra citada, p. 179-180. Disponível no sítio: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/tecap/article/view/10428/8196. Acesso em 18/10/2017. 181 Para o autor, que se debruçou sobre a (micro) história do moleiro Domenico Scandella, Menocchio, a circularidade cultural, ideia também presente em Mikhail Bakhtin, é proveniente de um "influxo recíproco entre cultura subalterna e cultura hegemônica, particularmente intenso na primeira metade do século XVI”. In: GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 15.

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Imagem 38: Baianas do desfile gresilense de 2004, Jardins utópicos. Sobre as saias brancas, uma profusão de flores multicoloridas. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

Imagem 39: Baianas da Imperatriz Leopoldinense, em 2004, Jardins utópicos. Os leques utilizados pelas desfilantes dialogavam com as tradições espanholas, personificadas na arquitetura de Antoni Gaudí. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

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Imagem 40: Detalhe da sétima e última alegoria da Imperatriz Leopoldinense, no desfile de 2004: A Utopia – lugar ideal onde certamente o pau-brasil ainda floresce em abundância. Na decoração das flores, observa-se o diálogo com a estética do arquiteto catalão Antoni Gaudí – exemplo dos diálogos interartísticos da carnavalesca Rosa Magalhães. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

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Imagem 41: Composições da última alegoria da Imperatriz Leopoldinense, no desfile de 2004: A Utopia – lugar ideal onde certamente o pau-brasil ainda floresce em abundância. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

Imagem 42: Composições da última alegoria da Imperatriz Leopoldinense, no desfile de 2004: A Utopia – lugar ideal onde certamente o pau-brasil ainda floresce em abundância. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

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II. 4. 2 – Utopias e heterotopias: Michel Foucault, navegador Após a publicação de Utopia, em 1516, passou-se a falar em um novo “gênero literário” (conceito utilizado com a sabedoria do anacronismo): a literatura utópica. Gregory Claeys explica tal movimento com extrema clareza, na obra Utopia – A história de uma ideia. Para ele, “o estudo da utopia foca três domínios: o pensamento utópico, a limitada literatura utópica e as tentativas práticas de encontrar comunidades melhoradas.”182 Nesse campo tão amplo, alerta o autor, é difícil trabalhar com apenas uma definição de “utopia” (o risco permanente do reducionismo). Tem-se um conjunto de variantes tão grande quanto o mar aberto: “ideais positivos de sociedades muito melhoradas; seus opostos satíricos negativos; às vezes chamados de antiutopias ou distopias; vários mitos de paraíso, eras de ouro e ‘ilhas dos abençoados’; e retratos de pessoas primitivas vivendo em um estado natural (...)”183. Quando fala em “pessoas primitivas vivendo em um estado natural”, automaticamente me vem à cabeça um trecho do samba de enredo que a Imperatriz Leopoldinense, sob a batuta de Rosa Magalhães, cantou em 1999, samba este que foi entoado pela quadra da escola na noite de 16 de outubro de 2017, segunda-feira, durante a escolha do samba de enredo para o carnaval de 2018 (que tratou do bicentenário do Museu Nacional – ecos do Manifesto da Poesia Pau-Brasil no enredo desenvolvido pelo carnavalesco Cahê Rodrigues). Em 1999, quando levou para a Marquês de Sapucaí o enredo Brasil, mostra a sua cara em... Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae, o samba da escola de Ramos, de autoria de César Som Livre, Waltinho Honorato, João Estevam e Eduardo Medrado, cantava: “Homens felizes vivendo nas matas / imagens do meu país”. Começa, aqui, um questionamento mais amplo – expansão interpretativa da obra Breazail. Até que ponto o conceito fluido e incomensurável de utopia pode ser aplicado à obra de Rosa Magalhães? Diz Gregory Claeys que “a utopia explora o espaço entre o possível e o impossível.”184 Jerzy Szachi, por sua vez, destaca que é praticamente impossível definir o número de obras artísticas (e literárias em sentido estrito) que podem ser enquadradas

182

CLAEYS, Gregory. Obra citada, p. 11. CLAEYS, Gregory. Obra citada, p. 12. 184 CLAEYS, Gregory. Obra citada, p. 15. 183

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no gênero utópico185. Para ele, “não só o exemplo de Thomas More estimulou imitadores, como o rótulo de utopia passou a ser aplicado a escritos de autores antigos, como por exemplo à República de Platão.”186 A mesma ideia é defendida por Umberto Eco, para quem a obra de Thomas More não deve ser compreendida de forma autorreferente. Nos termos do escritor italiano, “é com More que surge a descrição deste não lugar: da ilha, de suas cidades e edifícios. E outros lugares utópicos serão descritos, por exemplo em A Cidade do Sol, de Tommaso Campanella (1602), ou na Nova Atlântida, de Francis Bacon (1627)”.187 Se pensarmos nas narrativas de matriz oral, a tradição de “lugares ideais” onde reinam a harmonia social e a felicidade nos convida a escavar, ainda mais, o terreno do passado. Felipe Ferreira fala sobre isso, ao associar tais narrativas fantásticas às origens medievais do carnaval. Destaca o autor, analisando pinturas de Pieter Bruegel, a importância da crença no “País da Cocanha”188:

Uma outra história muito difundida na Europa medieval, a chamada lenda do país da Cocanha, também faz parte do imaginário carnavalesco daquela época. Neste lugar de sonho a vida seria perfeita, pois nada faltaria aos seus habitantes. Ninguém sabia ao certo onde se encontrava essa região maravilhosa, mas todos sabiam de cor as coisas fabulosas que existiam por lá: doces cresciam em árvores, frangos assados voavam prontos para serem comidos, o vinho jorrava das fontes, bolos caíam do céu. O próprio palácio real era feito de açúcar, as ruas eram pavimentadas com massa de torta e, nas lojas, as comidas eram distribuídas de graça. Os habitantes desse país abençoado eram praticamente imortais, pois lá não havia guerra e, assim que alguém atingisse 50 anos, voltava imediatamente a ter 10 anos de idade. Essa ideia de abundância e de barriga cheia estava diretamente associada ao que as pessoas pensavam do tempo carnavalesco medieval. Os dias festivos anteriores à Quaresma eram como se, por algum tempo, o Reino da Cocanha existisse de verdade. Brincar o carnaval era, desse modo, similar a deixar-se levar por todo tipo de prazeres ou exageros, num mundo que representava o exato contrário da dureza e da penúria da vida cotidiana de então.189

185

A despeito da dificuldade da missão, ela foi abraçada pelo professor Lyman Tower Sargent, da University of Missouri – St. Louis. Durante o primeiro dia da 17th International Conference of the Utopian Studies Society / Europe, na Universidade Nova de Lisboa, Tower Sargent apresentou o trabalho de banco de dados que vem desenvolvendo, a fim de catalogar obras de todo o mundo que tratam do tema utopia. 186 SZACHI, Jerzy. Obra citada, p. 2. 187 ECO, Umberto. Obra citada, p. 307. 188 A Cocanha foi transformada em carro alegórico durante o desfile de 2012 do Império da Tijuca, escola do Morro da Formiga. Na ocasião, o carnavalesco Severo Luzardo Filho desenvolvia o enredo Utopias, viagens aos confins da imaginação, cujo título é mais do que elucidativo. Na sinopse apresentada aos compositores e à imprensa, o autor situa a Cocanha na mesma linha de lugares fantásticos em que podem ser vistos Foxville, Calonack, Avalon, Kradac, Cantahar e Benzalém. 189 FERREIRA, Felipe. O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 34/35.

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Umberto Eco e Gregory Claeys também discorrem sobre a Cocanha, inserindo-a na linha das utopias e dos lugares lendários. De acordo com o segundo, complementando o exposto por Felipe Ferreira, “em Cuccagna, a versão italiana dessa fantasia de glutonia e saciedade, existem pontes feitas de salame, rios de leite e vinho e montanhas cobertas de requeijão.”190 Eco, por sua vez, informa que há uma série de poemas medievais que se referem a este Paraíso terrestre em “forma totalmente materialista”191. Interessante é o fato de que pairava a ideia de que para se chegar à Cocanha era preciso realizar uma longa viagem: “28 meses por terra e mar”192. A associação com o carnaval não passa despercebida: “a liberdade de que se goza em Cocanha é tal que, como no carnaval, as coisas podem ser viradas de ponta-cabeça e um aldeão pode zombar de um bispo.”193 Muito ainda poderia ser dito das obras acima mencionadas e dos aspectos carnavalizantes que elas possuem, mas mais importante, agora, é guiar a embarcação por outras correntes marítimas, a fim de verticalizar a reflexão sobre a obra de Rosa Magalhães. Afinal, como bem provocou Michel Foucault (e aqui tal personagem, finalmente, entra em cena), vivemos uma época de supervalorização do espaço em que mais do que problematizar as utopias é preciso lançar olhos para as heterotopias, que, na terminologia por ele cunhada, nada mais são que lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da sociedade, e que são espécies de contra-posicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e investidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis.194

Com uma notável inclinação poética (o autor fala no caráter heterotópico de lugares como o “fundo do jardim” e a grande cama dos pais195), Foucault desenvolve uma

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CLAEYS, Gregory. Obra citada, p. 116. ECO, Umberto. Obra citada, p. 289. 192 ECO, Umberto. Obra citada, p. 290. 193 ECO, Umberto. Obra citada, p. 291. 194 FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 415. 195 Nas palavras do autor: “As crianças conhecem perfeitamente esses contra-espaços, essas utopias localizadas. É o fundo do jardim, com certeza, é com certeza o celeiro, ou melhor ainda, a tenda de índios erguida no meio do celeiro, ou é então – na quinta-feira à tarde – a grande cama dos pais. É nessa grande cama que se descobre o oceano, pois nela de pode nadar entre as cobertas; depois, essa grande cama é também o céu, pois se pode saltar sobre as molas; é a floresta, pois pode-se nela esconder-se; é a noite, pois pode-se ali virar fantasma entre os lençóis; é, enfim, o prazer, pois no retorno dos pais, se será punido.” In: FOUCAULT, Michel. O Corpo Utópico, As Heterotopias. Posfácio de Daniel Defert. São Paulo: Institut Français / N-1 Edições, 2013, p. 20. 191

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série de princípios a fim de explicar o conceito de heterotopia196. Mais precisamente, o filósofo alicerça cinco pilares interpretativos, dentre os quais o terceiro e o quarto197 saltam aos olhos e merecem uma cuidadosa leitura, posto que muito contribuem para o entendimento que se quer sustentar. Diz o terceiro princípio, sem rodeios: “em geral, a heterotopia tem como regra justapor em um lugar real vários espaços que, normalmente, seriam ou deveriam ser incompatíveis.”198 A fim de ilustrar o postulado, o autor menciona o teatro, em cujo palco transitam as mais exóticas cenografias (“uma série de lugares estranhos”), e o cinema, em cuja tela é projetado “um novo espaço de três dimensões”. Também é mencionado por Foucault aquele que talvez seja o mais antigo exemplo de heterotopia: o jardim, “criação milenar que tinha certamente no Oriente uma significação mágica”199. É bela a explicação de que os antigos tapetes persas reproduziam, nos seus desenhos entretecidos de saberes dos mais notáveis, jardins de inverno que reuniam, em um mesmo espaço, os quatro elementos naturais, as quatro estações do ano e os quatro cantos do mundo. Diz o filósofo que a compreensão disso é fundamental para a percepção poética da simbologia dos tapetes voadores – “tapetes que percorriam o mundo”200. A sequência do texto é igualmente preciosa: O jardim é um tapete onde o mundo inteiro vem consumar sua perfeição simbólica e o tapete é um jardim móvel através do espaço. Era parque ou tapete aquele jardim descrito pelo narrador das Mil e Uma Noites? Vê-se que todas as belezas do mundo acabam por se juntar nesse espelho. O jardim, desde os recônditos da Antiguidade, é um lugar de utopia. Temos a impressão talvez de que os romanos se situam facilmente em jardins: é fato que os romanos nasceram, sem dúvida, da própria instituição dos jardins. A atividade romanesca é uma atividade jardineira.201

Do excerto de Foucault, quatro pontuações me ocorrem – ouso, aqui, tecer um pequeno tapete com fragmentos de memórias.

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Aqui, é válido destacar que também é interessante a análise do conceito de heterotopia conforme a visão de Henri Lefebvre, que faz diferenciações para com as ideias de utopia e isotopia. Ver: LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. 197 O primeiro princípio das heterotopias diz respeito ao fato de que elas expressam uma certa universalidade humana, ou seja: provavelmente, não há qualquer sociedade livre de construções heterotópicas; já o segundo princípio desenvolve a ideia de que as heterotopias são produtos sócio-históricos e dinâmicos, podendo haver apagamentos, alterações, interrupções e retomadas. 198 FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 24. 199 FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 24. 200 FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 24. 201 FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 24.

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1997: na Casa Velha, a casa da minha infância, no final do bairro de Rio Bonito, em Irati, havia um jardim de margaridas, um roseiral202 e um quintal tão imenso que eu perdia as tardes entre os pessegueiros, as macieiras, as pitangueiras, as laranjeiras, as barbas dos parreirais. Nos fundos desse quintal, e não me lembro ao certo como, se exibia um cacho de orquídeas - que eu julgava (e ainda julgo?) a mais bela imagem do mundo. Na companhia dessas orquídeas, brancas de miolos roxos, eu construía narrativas – viajava continentes e planetas (inclusive comi um crisântemo, contemplando o HaleBopp). Desfiava enredos, livros, compunha sambas. Rabiscava ideias, algumas eu apagava. Preferia os carnavais nos jardins às funções no interior da casa. Havia um tapete persa, na sala principal – imitação, fabricado no Brasil. Os desenhos eram árabes, daí o termo “arabescos”. Sobre o imenso tapete, nas tardes de verão, eu e o meu irmão Luiz Fernando construíamos escolas de samba. Miniaturas de desfiles, com bonecos de superheróis, utensílios de cozinha, as louças das cristaleiras (que a minha Nonna polia), brinquedos em geral. Algodão que virava plumas, luzes de Natal para a iluminação. Cavalos nunca faltaram: sobre o imenso tapete, o tapete imitado, eu imitava Rosa Magalhães. Mimesis. 1999: no desfile da Imperatriz Leopoldinense assinado por Rosa Magalhães, Brasil, mostra a sua cara em... Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae, além da profusão de animais e vegetais (inclusive orquídeas, também presentes em 1998 e em 2004, os desfiles mais citados neste trabalho), havia tapeçarias – os tapetes Gobelins, encomendados por Louis XIV, que reproduziam retratos da Pernambuco colonial pintados por Albert Eckhout. Maurício de Nassau havia presenteado o Rei francês, em 1678, com ilustrações que retratavam os tipos humanos, os animais e os vegetais observados no Brasil Holandês. Segundo a sinopse de enredo redigida pela carnavalesca, as tapeçarias “foram produzidos entre 1687 – 1730, com o título de Petites e Grandes Indes.”203 Alguns desses tapetes estão em exposição no Museu de Arte de São Paulo (MASP) e no Instituto Ricardo Brennand, no Recife.

Não é por acaso, afinal, a paixão por Alice’s adventures in Wonderland, de Lewis Carroll, obra que analisei, em diálogo com Luis Alberto Warat e Joãosinho Trinta, na monografia de Direito defendida em 2010, sob orientação de Vera Karam de Chueiri. Ver: BORA, Leonardo Augusto. O Direito pego pelo rabo. Aliceando Themis. Monografia (Bacharelado em Direito) – Graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, 2010. 203 MAGALHÃES, Rosa. Brasil, mostra a sua cara em... Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae. Sinopse do enredo do carnaval de 1999 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA). 202

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2017: a mais comentada imagem do desastroso carnaval de 2017 (marcado pela simbólica negação da entrega das chaves da cidade a Momo, pelo prefeito recémempossado Marcelo Crivella, bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus; por acidentes de variadas ordens e gravidades – um deles, infelizmente, culminando na morte da jornalista Liza Carioca; e por confusões envolvendo notas e justificativas – brigas que renderam infindáveis discussões sobre os critérios a serem utilizados para o julgamento do quesito Enredo) foi a de um tapete voador “pilotado” por Aladdin, o clímax da apresentação da Mocidade Independente de Padre Miguel – sagrada campeã, juntamente com a Portela, em reunião extraordinária realizada pela LIESA na noite de 5 de abril, após a confirmação de um erro objetivo no caderno de julgamento (o jurado Valmir Aleixo, ao atribuir conceito à escola da Zona Oeste, descontou 1 décimo do quesito Enredo, observando a ausência de uma musa em frente à alegoria 4; tal musa, na verdade, havia sido promovida a Rainha de Bateria, Camila Silva, o que havia sido previamente esclarecido no caderno de erratas enviado à Liga, cuja leitura foi desconsiderada pelo julgador). O “tapete mágico das Mil e Uma Noites” (um drone pilotado por controle remoto) foi exaustivamente fotografado e comentado na imprensa, considerado, por analistas como Milton Cunha, a mais inventiva solução cênica do ano – uma “sacada” dos coreógrafos Jorge Teixeira e Saulo Finelon, em parceria com o carnavalesco Alexandre Louzada. 2017: no mesmo ano em que um tapete sobrevoou a Marquês de Sapucaí, Rosa Magalhães revisitou o imaginário cortesão de Louis XIV, no desfile imediatamente anterior ao da Mocidade Independente. À frente da única agremiação da Zona Sul carioca a figurar no Grupo Especial, a preta e amarela São Clemente, do bairro de Botafogo, a artista desfiou o enredo Onisuáquimalipanse – envergonhe-se quem pensar mal disso, sobre as relações do Rei Sol com o seu Ministro das Finanças, Nicolas Fouquet, que havia construído, com dinheiro público, o suntuoso Château de Vaux-le-Vicomte, inspiração para a futura construção do Palácio de Versalhes (o que custou a prisão do Ministro, acusado de “desvio de verbas”). No desfile, a terceira alegoria retratava os jardins do palácio construído por Fouquet (imagem 43) – uma profusão de verdes proveniente da utilização de materiais baratos: filó de armação e TNT. A descrição apresentada pela carnavalesca no Livro Abre-Alas afirma o seguinte: Os Jardins de Le Nôtre - No jardim de Vaux-le-Vicomte, Le Notre usa com maestria os recursos da perspectiva na composição paisagística. Aproveitando seus conhecimentos 127


sobre plantas, Le Notre criou espaços rigorosamente desenhados com vegetação e flores. A Arte da Topiaria foi exaustivamente utilizada na confecção destes espaços externos.204

Imagem 43: Alegoria Os Jardins de Le Nôtre, no desfile de 2017 da São Clemente. Foto: Cris Gomes e A. Pinto. Fonte: http://revistacarnaval.com.br/2017/03/01/especial-galeria-de-fotos-do-desfile-da-saoclemente/. Acesso em 10/03/2018.

Costurados tais retalhos, começa-se a perceber que os símbolos utilizados por Michel Foucault para a explicação do terceiro princípio das heterotopias compõem um universo discursivo que dialoga diretamente com os desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro e com a obra de Rosa Magalhães, em específico205. Partamos, pois, para o quarto princípio. Esclarece o autor: Ocorre que as heterotopias são frequentemente ligadas a recortes singulares do tempo. São parentes, se quisermos, das heterocronias. Sem dúvida, o cemitério é o lugar de um tempo que não escoa mais. De modo geral, em uma sociedade como a nossa, pode-se dizer que há heterotopias que são heterotopias de tempo quando ele se acumula ao infinito: os museus e as bibliotecas, por exemplo. Nos séculos XVII e XVIII, os museus e as bibliotecas eram instituições singulares; eram a expressão do gosto de cada um. Em contrapartida, a ideia de tudo acumular, a ideia de, em certo sentido, parar o tempo, ou antes, deixa-lo depositar-se ao infinito em certo espaço privilegiado, a ideia de constituir 204

Livro Abre-Alas de 2017, Volume 2 - Segunda-feira, disponível para consulta no seguinte sítio: http://liesa.globo.com/material/carnaval17/abrealas/Abre-Alas%20-%20Segunda-feira%20%20Carnaval%202017%20-%20Atual.pdf. Acesso em 12/11/2017. 205 Uma curiosidade preciosa é o fato de que, na linguagem carnavalesca, dá-se o nome de “tapete” para a visão panorâmica da sequência de alas desfilando em uma escola. O bom uso da cor em cada segmento de desfilantes garante um “belo tapete”; do contrário, diz-se que “o tapete da escola não funcionou”.

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o arquivo geral de uma cultura, a vontade de encerrar todos os tempos em um lugar, todas as épocas, todas as formas e todos os gostos, a ideia de constituir um espaço de todos os tempos, como se este próprio espaço pudesse estar definitivamente fora do tempo, essa é uma ideia totalmente moderna: o museu e a biblioteca são heterotopias próprias à nossa cultura.206

Foucault começa a desenvolver a noção de heterocronia, ou seja, a sobreposição de tempos em um mesmo espaço – a capacidade de justaposição de épocas distintas em um mesmo lugar real. Ao falar sobre as pretensões “arquivologistas” dos museus e das bibliotecas, impossível é não pensar nas elucubrações de Néstor Canclini, para quem os modernos museus de História Natural nada mais fazem do que apresentar uma “visão monumentalizadora”, linear e profundamente agarrada a ideais opostos (como civilização e barbárie, natureza e cultura, binarismos já apontados neste trabalho), para com a história de uma determinada nação. O início com a “pré-história”, a passagem pelos “povos primitivos”, a marcação dos momentos-chave da história nacional, o fechamento com a noção de totalidade (e homogeneidade, e planificação) de um povo. Escrevi, em A Antropofagia de Rosa Magalhães:

Néstor Canclini, ao questionar a teoria museológica que insiste em exposições evolucionistas e guiadas/roteirizadas, mostra que isso tende a enfraquecer o componente artístico do museu como espaço de vivência – e a expansão desse apontamento ao espaço da Passarela do Samba é possível e necessária.207

Mas Foucault não se restringe a observar tais espaços facilmente associados à “cultura erudita”, capazes de albergar diferentes tempos a um só tempo. O filósofo expande a leitura do quarto princípio e afirma ao leitor que, “em contrapartida, há heterotopias que são ligadas ao tempo, não ao modo da eternidade, mas ao modo da festa: heterotopias não eternitárias, mas crônicas.”208 Tais “heterotopias não eternitárias”, diferentemente do observado nos museus e nas bibliotecas, espaços via de regra fechados (e à mercê da poeira), ganham vivamente os espaços de cultura popular209 – o que é 206

FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 25. BORA, Leonardo Augusto. A Antropofagia de Rosa Magalhães. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura – Teoria Literária) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014, f. 311. 208 FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 25. 209 Deve-se bordar com paetês a ideia de que ao falar em “cultura popular” tal trabalho não pretende se restringir a uma ou outra definição terminológica (o que é possível, a começar pelas “categorias residuais” – o “popular” enquanto resto de “outras culturas”, algo “menor”). Ao contrário, valoriza-se a plurivocidade de sentidos da expressão, na linha proposta por teóricos como John Storey. É dele a seguinte passagem: “hoje, William Shakespeare é visto como o epítome da alta cultura, embora no século XIX sua obra fosse considerada como parte do teatro popular. O mesmo se pode dizer da obra de Charles Dickens, e, por 207

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exemplificado, pelo autor, a partir da observação das feiras, “estes maravilhosos sítios vazios à margem das cidades, por vezes mesmo no centro delas, e que se povoam uma ou duas vezes por ano com barracas, exposições, objetos heteróclitos, lutadores, mulheresserpentes e profetisas da boa fortuna.”210 Não parece descabida uma expansão de tais ideias para o espaço da Marquês de Sapucaí, no coração do Rio de Janeiro, onde não apenas desfilam dezenas de escolas de samba, em fevereiro ou março, mas diversos outros eventos (inclusive maratonas de pregações evangélicas e festivais de música eletrônica) ocorrem no decorrer de um ano; para o Bumbódromo de Parintins, na Ilha Tupinambarana, onde os bois Caprichoso (azul) e Garantido (vermelho) duelam anualmente, cantando lendas e personagens amazônicos; para o Parque do Povo, em Campina Grande, onde bailam as atividades do “maior São João do mundo”; ou para a “Cidade do Rock”, construída de dois em dois anos, desde 2011, na Barra da Tijuca, para sediar o megaevento Rock in Rio.211 Depois de discorrer sobre o quinto princípio das heterotopias (segundo o qual elas possuem um sistema de aberturas e fechamentos212 para com o mundo exterior, podendo existir, em alguns casos, a necessidade de ritos de passagem ou movimentos iniciáticos/de purificação), Foucault apresenta a essencialidade do conceito:

Elas são a contestação de todos os outros espaços, uma contestação que pode ser exercida de duas maneiras: ou como nas casas de tolerância de que Aragon falava, criando uma ilusão que denuncia todo o resto da realidade como ilusão, ou, ao contrário, criando outro espaço real tão perfeito, tão meticuloso, tão bem disposto quanto o nosso é desordenado, mal posto e desarranjado; é como este último que funcionaram, ao menos no projeto dos homens, durante algum tempo – principalmente no século XVIII – as colônias. Seguramente, as colônias tinham uma grande utilidade econômica, mas existiam valores imaginários que lhes eram agregados e, sem dúvida, estes valores eram devidos ao semelhança, que o filme noir cruzou a suposta fronteira entre cultura popular e alta cultura: em outras palavras, o que surgiu como cinema popular é hoje salvaguardado por acadêmicos e clubes de cinéfilos.” In: STOREY, John. Teoria Cultural e Cultura Popular. Uma introdução. São Paulo: Edições SESC, 2015, p. 22. 210 FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 25. 211 Também é interessante pensar o festival de música eletrônica Tomorrowland, tema da pesquisa de Cássio Lopes da Cruz Novo. Ver: NOVO, Cássio Lopes da Cruz. Tomorrowland, o “lugar do amanhã” compreendido hoje: espaço, cultura e lugares míticos e simbólicos. In: Anais do XI Encontro Nacional da ANPEGE. A diversidade da geografia brasileira: escalas e dimensões da análise de ação. Disponível em: http://www.enanpege.ggf.br/2015/anais/arquivos/6/185.pdf. Acesso em 17/03/2018. 212 Para o autor, tal sistema se divide em três: isolamento (heterotopias fechadas, nas quais só se entra obrigado – caso das colônias penais), abertura (heterotopias abertas a todos os membros de uma determinada sociedade, caso dos shoppings, resorts e parques temáticos – ainda que exista, é claro, a mediação financeira e os impeditivos derivados dela) e abertura aparente (heterotopias que exigem rituais iniciáticos: aparentemente, convidam a todos para o seu interior; na prática, porém, somente os iniciados tem completo acesso a elas – caso das igrejas, dos terreiros, mesmo de uma agremiação carnavalesca – vide a noção de “comunidade” e a polêmica exigência de carteirinhas).

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prestígio próprio das heterotopias. Foi assim que, nos séculos XVII e XVIII, as sociedades puritanas inglesas tentaram fundar na América sociedades absolutamente perfeitas (...).213

Eis que se torna ainda mais evidente a percepção de que a teoria de Michel Foucault contribui para o entendimento do universo simbólico desenhado, no contexto do carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro, por Rosa Magalhães. A narrativa de Breazail, o núcleo interpretativo deste trabalho, retrata em cores vivas o desejo português de fundar uma colônia no território d’além-mar (projeto que, diferentemente das colônias inglesas mencionadas pelo filósofo e mesmo das colônias espanholas, nos demais territórios do continente americano, abandonou qualquer grande pretensão urbanista ou educacional e descambou para a exploração desmedida dos recursos naturais - do paubrasil às minas de ouro e diamantes - e da monocultura da cana-de-açúcar, moenda para a construção de uma sociedade eminentemente agrária, patriarcal, escravocrata e híbrida, nos termos de Gilberto Freyre214). Na “fortaleza” de Vespúcio, de qualquer maneira, havia, para além das pedras e da vegetação, um projeto heterotópico: demarcar o “território selvagem” e transferir para cá, nos brasões dos estandartes (imagem 44) e na guarnição dos marinheiros, os ideais expansionistas do Império lusitano – os “sonhos de conquista” de D. Manuel. Mas intrinsecamente unida à noção de “colônia” está a de “metrópole” – e a ponte entre tais opostos era feita, simbólica e materialmente, na madeira das embarcações. Tal percepção não escapa aos olhos de Foucault, para quem “o navio é a heterotopia por excelência”215. Ainda segundo o autor, um barco é “a nossa maior reserva de imaginação”216 e “um pedaço de espaço flutuante, lugar sem lugar, com vida própria, fechado em si, livre em certo sentido, mas fatalmente ligado ao infinito do mar (...)”217. Parafraseando um dos mais famosos sambas de enredo da história do Salgueiro, Peguei um Ita no Norte, entoado em 1993 e rebatizado “Explode Coração”, “em cada porto que passa”, um tripulante de um navio “vê e retrata em fantasias” a multiculturalidade de um povo218. Ao final de sua viagem ensaística, Foucault decreta; “civilizações sem barcos são como crianças cujos pais não tivessem uma grande cama na qual pudessem brincar; 213

FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 28. Ver: FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. São Paulo: Global Editora, 2011, p. 65. 215 FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 30. 216 FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 30. 217 FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 30. 218 Samba composto por Demá Chagas, Arizão, Celso Trindade, Bala, Guaracy e Quinho. 214

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seus sonhos então se desvanecem, a espionagem substitui a aventura, e a truculência dos policiais, a beleza ensolarada dos corsários.”219 Piratas e corsários, aliás, que nunca faltaram no imaginário carnavalesco de Rosa Magalhães.

Imagem 44: Composição da sexta alegoria do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2004, O forte em Cabo Frio construído por Vespúcio, representando, justamente, o navegador Américo Vespúcio fincando o brasão do Império Português nas terras de Cabo Frio – a encenação carnavalesca de um marco fundacional, a personificação da metrópole dominando a colônia. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

219

FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 30.

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II. 4. 3 – O heterotópico Carnaval Carioca: invocando Mário de Andrade

Rio de Janeiro, 2 de fevereiro de 2008, sábado de carnaval. Dia da Rainha do Mar, Mãe de todos os peixes. Desembarquei no Galeão e caí na loucura do Centro, depois de observar, pela primeira vez, os contornos da Igreja da Penha, o Pão de Açúcar, o Cristo Redentor de costas, a Barreira do Vasco. O destino do táxi (e o taxista reclamava muito, aos palavrões, de certa maneira me acusando e culpando por tê-lo feito “pegar um rabo de foguete” – depois viria a entender que taxistas reclamões não são uma raridade, no Rio de Janeiro), o Hotel Belas Artes (imagem 45), na Rua Visconde do Rio Branco (hoje, um ponto de referência: a rua de trás do “Babado da Folia”, a principal loja de materiais carnavalescos da cidade, administrada pelo lendário Chiquinho Pastel220). O Campo de Santana, as cotias, o relógio da Central do Brasil. Estava, enfim, no Rio de Janeiro! As modinhas de Vidinha, os buscapés – as Memórias de um Sargento de Milícias, a metade materna do meu nome de batismo (a minha mãe não sabia que o futuro sogro, que ela não viria a conhecer, se chamara Leonardo Bora; antes de conhecer o meu pai, já havia decidido o nome do primeiro filho, leitora risonha das aventuras do memorando). Eu carregava três livros: Memórias, pelo destino, A encantadora alma das ruas, de João do Rio, e Discurso de primavera e algumas sombras, de Carlos Drummond de Andrade. O livro que alberga Alegria, entre cinzas. No quarto daquele hotel barato (em relação aos demais pacotes turísticos para os dias regidos por Momo), a parede de chapiscos e o ar condicionado barulhento, a roupa de cama levemente puída e o banheiro sem “amenidades”, eu tive uma crise de choro. Era medo. Não era a “emoção de conhecer a Cidade Maravilhosa”, uma coisa adocicada. Estranhamento, sim. Mas, principalmente, medo. Era um misto de medo do mundo e pavor de gostar demais – porque depois, na Personagem importante para a história da Mocidade Independente de Padre Miguel, na “era” Castor de Andrade. Chiquinho Pastel ou Chiquinho do Babado (como é atualmente conhecido) é mencionado pelas autoras Bárbara Pereira e Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, em seus livros sobre a escola da Zona Oeste. Segundo Pereira, ao falar das criações do carnavalesco Fernando Pinto, coube a Chiquinho a tarefa de colocar na avenida o primeiro carro acoplado da história dos desfiles das escolas de samba: “O carro ‘Nave-Mãe’ era formado por três composições, o primeiro carro alegórico acoplado da história do carnaval. O responsável por fazer a empreitada dar certo era Chiquinho, admirador confesso das loucuras de Fernando Pinto.” In: PEREIRA, Bárbara. Estrela que me faz sonhar. Histórias da Mocidade. Coleção Cadernos de Samba. Rio de Janeiro: Verso Brasil, 2013, p. 76. Já Maria Laura Cavalcanti narra uma cena que teria acontecido no barracão da Mocidade (do qual Chiquinho era diretor), durante os preparativos para o carnaval de 1992: “O carro ‘Infinita noite dos sonhos’, o Abre-Alas da escola, tinha como elemento central uma grande estrela recortada em madeira, decorada com luz neon e espelhos. Esse carro estava pronto e suas luzes e movimento já haviam sido testados. Ficara tão lindo que, como me contou um dos encarregados do almoxarifado, Chiquinho se emocionara a ponto de sair dando tiros para o alto.” In: CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Obra citada, p. 158. 220

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terça-feira, eu precisaria voltar (e Curitiba não era mais, havia sido). Logo chegaram, carregando fantasias, Rafael Mikaiá e alguns amigos de São Paulo, com quem eu desfilaria na Lins Imperial, escola de samba do Grupo de Acesso (cujo enredo, de autoria de Eduardo Gonçalves, narrava a chegada da Família Real portuguesa, em 1808, sob a ótica de Pedro I, uma criança embarcada em um navio). Seríamos jornaleiros, de chapéus e de sandálias. Ninguém eu conhecia pessoalmente: Orkut, MSN, mídias virtuais. Depois, pegamos fantasias do Império da Tijuca, na casa de um certo Thiago Lacerda, gresilense, nos arredores do Maracanã – hoje, um bom amigo de sambas e conversas. Curiosamente, eu viria a morar, de 2012 a 2017, na mesma rua em que ele morava (e ainda mora): Campos Sales, Tijuca, a rua da sede do América (hoje abandonada). Vejo tudo entrelaçado: o meu tapete Gobelin. Chovia. Quando chegamos na Sapucaí, a entrada subterrânea para o Setor 3 tumultuada, a multidão começou a cantar É Hoje!, clássico da União da Ilha do Governador que seria reeditado no desfile insulano daquela noite, assinado por Jack Vasconcelos221. Os fogos explodiam e anunciavam a Estácio de Sá. O primeiro desfile de escola de samba que eu vi, no Rio de Janeiro, foi A história do futuro, concebido por Cid Carvalho. Mistura de signos do zodíaco, ciganos, Nostradamus, bruxarias. A Lins Imperial foi a quarta escola a se apresentar, depois de Estácio, Ilha e Cubango. Não vi, por conta disso, o desfile da Cubango – homenagem à primeira bailarina negra do Theatro Municipal, Mercedes Baptista. Muitos problemas e a agremiação de Niterói terminaria rebaixada. Também seria rebaixada para o Grupo de Acesso B (que naquela época desfilava na mesma Marquês de Sapucaí, na terça-feira gorda) a Lins Imperial, devido à quebra de uma alegoria (que estava imediatamente à frente da ala em que eu desfilava – estreei correndo para evitar um buraco, portanto) e ao estouro do tempo regulamentar. Veio, então, uma chuva torrencial. Que depois intermitente, chata. Que no desfile da última escola, o Império Serrano, que homenageava Carmen Miranda (pela segunda vez222) sob a pena de Márcia Lage, decidiu trovejar de vez: choveu de afogar as canelas.

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Originalmente, enredo desenvolvido por Max Lopes, em 1982, a partir do livro homônimo escrito em parceria pelo jornalista e historiador Haroldo Costa e pelo cartunista Lan. 222 A escola já havia homenageado a Pequena Notável no carnaval de 1972, quando o carnavalesco Fernando Pinto desfiou o enredo Alô, Alô! Taí Carmen Miranda! Naquele ano, a escola foi campeã – e levou diferentes artistas para interpretar a “rainha das bananas”, como Marília Pêra e Leila Diniz. O samba, de autoria de Wilson Diabo, Heitor Rocha e Maneco, interpretado a plenos pulmões pela cantora Marlene, virou um hit da escola da Serrinha: “Cai, cai, cai, cai... quem mandou escorregar? Cai, cai, cai, cai... é melhor se levantar!”

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O samba, gostoso, bradava: “Luz, divina luz, eu quero ouvir o seu cantar!”223 Para mim, arrebatador. Um triunfo! Ruy Castro, biógrafo da “portuguesinha que virou Rainha”, depois escreveu: “Os garotos saíram cantando o samba como se estivessem indo para uma batalha em que o único resultado possível era vencer ou vencer. Ao observá-los, eu não sabia se o que escorria de seus olhos eram lágrimas ou chuva. Empolgado, fui atrás.”224 Também fui – e acho que não mais voltei.

Imagem 45: Hotel Belas Artes, no Centro do Rio, o endereço da primeira viagem. Foto do autor.

223

Composição de autoria de Marcão, Marcelo, Vando, Chupeta, Henrique, William, Celso e Zé Paulo. Artigo Com Império Serrano na Avenida, originalmente publicado na Folha de S. Paulo e, no ano seguinte, na Revista de Carnaval do Império – que ascendeu ao Grupo Especial. Disponível para consulta no seguinte sítio: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0502200811.htm. Acesso em 13/11/2017. 224

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Rio de Janeiro, 10 de fevereiro de 1923, sábado de carnaval. Mário de Andrade chegava à então capital da República, oriundo de São Paulo. Não sei quais livros carregava na mochila. Desembarcou no Rio de Janeiro com intuito triplo: conhecer o carnaval da cidade (especialmente os “famigerados cordões”225); visitar, em Petrópolis, o amigo Manuel Bandeira; e retornar a Sebastianópolis para rever parentes que moravam em Botafogo. Tudo isso o escritor narrou, posteriormente, em carta endereçada a Bandeira, conforme descreve Alberto Pucheu em O “Carnaval Carioca (1923)”, de Mário de Andrade. Carta que pedido de desculpas: o choque vivenciado naquele sábado foi tão intenso, contraditório e revelador que Mário desistiu de subir a serra e tampouco lembrou dos parentes que viviam na Dona Mariana. Entregou-se à folia das ruas, gozando, feito um folião qualquer, de todos os prazeres do frenesi momesco. O resultado literário de experiência tão ardente foi o longo poema Carnaval Carioca (1923), que se tornou um importante retrato poético do carnaval do Rio de Janeiro do início da década de 1920 – quando, no alto do Corcovado, ainda não existia o Cristo Redentor, inaugurado em 1931, coroando o Art Déco. Escreve Pucheu sobre o fato:

Chegando às 13:00 do sábado de carnaval na avenida Rio Branco, o poeta acabou deixando amigos e familiares de lado, caindo no samba dos cordões durante os quatro dias de carnaval. A respectiva carta, de grande importância para o poema, é a desculpa pedida por Mário a Manuel pela ausência e sua justificativa desta. O poema é uma condensação criadora e, portanto, poeticamente transfigurada do que ocorreu nesses 4 dias e não apenas na virada da terça para quarta-feira de cinzas, tempo em que se passa o “Carnaval Carioca”.226

O que se observa, no poema dedicado a Bandeira, é uma sucessão de fragmentos: sensações, cheiros, movimentos, gracejos, canções, tudo se mistura em uma espécie de

Nas palavras de Mário de Andrade: “Foi assim. Desde que cheguei ao Rio disse aos amigos: Dois dias de carnaval serão meus. Quero estar livre e só. Para gozar e para observar. Na segunda-feira, passarei o dia com Manuel, em Petrópolis. Voltarei à noite para ver os afamados cordões. Meu Manuel... Carnaval!... Perdi o trem, perdi a vergonha, perdi a energia... Perdi tudo. Menos minha faculdade de gozar, de delirar... Fui ordinaríssimo. Além do mais: uma aventura curiosíssima. Desculpa contar-te toda esta pornografia. Mas... Que delícia, Manuel, o Carnaval do Rio! Que delícia, principalmente, meu Carnaval! Se estivesses aqui, a meu lado, vendo-me o sorriso camarada, meio envergonhado, meio safado com que te escrevo: ririas. Ririas cheio de amizade e de perdão.” In: MORAES, Marcos Antonio de (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: EdUSP / IEB, 2001, p. 84. 226 PUCHEU, Alberto. O “Carnaval Carioca (1923)”, de Mário de Andrade. In: GUERREIRO, Eduardo; PUCHEU, Alberto (org.). Obra citada, p. 27. 225

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redemunho – o que evoca, é claro, a embriaguez carnavalesca. As exclamações iniciais dão o tom do êxtase:

A fornalha estrala em mascarados cheiros silvos Bulhas de cor bruta aos trambolhões Setins sedas cassas fundidas no riso febril... Brasil! Rio de Janeiro! Queimadas de verão! E ao longe, do tição do Corcovado a fumarada das nuvens pelo céu227 Na sequência, o poeta expressa em texto a sua “desconstrução intelectual”228 - o carnaval carioca, que o puxava pelos pés para o calor das pedras das ruas, desafiava convicções até então inabaláveis:

Carnaval... Minha frieza de paulista Policiamentos interiores, Temores da exceção... E o excesso goitacá pardo selvagem! Cafrarias desabaladas Ruínas de linhas puras Um negro, dois brancos, três mulatos, despudores...

227

ANDRADE, Mário de. Carnaval Carioca (1923). In: GUERREIRO, Eduardo; PUCHEU, Alberto (org.). Obra citada, p. 6. 228 Na carta enviada a Manuel Bandeira, Mário de Andrade narra tal “desconstrução” de modo explícito: “Sabes: fiquei enojado. Foi um choque terrível. Tanta vulgaridade. Tanta gritaria. Tanto, tantíssimo ridículo. Acreditei não suportar um dia a funçanata chula, bunda e tupinambá. Cafraria vilíssima, dissaborida. Última análise: “Estupidez”! Assim julguei depois de dez minutos que não ficaria meia hora na cidade. Mas, por isso talvez que tanto tenho sofrido dos julgamentos levianos, jurei para mim olhar sempre as coisas com amor e procurar compreendê-las antes de as julgar. Comecei a observar. Comecei a compreender. Uma conversa iluminava-me agora sobre uma ridícula baiana eu há pouco vira. A pobreza de uns explicava-me a brincadeira de outros. Admirei repentinamente o legítimo carnavalesco, o carnavalesco carioca, o que é só carnavalesco, pula e canta e dança quatro dias sem parar. Vi que era um puro! Isso me aconteceu e me extasiou. O carnavalesco legítimo, Manuel, é um puro. Nem lascivo, nem sensual. Nada disso. Canta e dança. Segui um deles uma hora, talvez. Um samba num café. Entrei. Outra hora de gastou. Manuel: sem comprar um lança-perfume, uma rodela de confete, um rolo de serpentina, diverti-me 4 noites inteiras e o que dos dias me sobrou do sono merecido. E aí está porque não fui visitarte. Estou perdoado.” In: MORAES, Marcos Antonio de (Org.). Obra citada, p. 84/85.

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O animal desembesta aos botes pinotes desengonços No heroísmo do prazer sem máscaras supremo natural.

Tremi de frio nos meus preconceitos eruditos Ante o sangue ardendo do povo chiba frêmito e clangor Risadas e danças Batuques maxixes Jeitos de micos piricicas Ditos pesados, graça popular... Ris? Todos riem...229 Ao que parece, a “descoberta” do riso despudorado fez com que Mário se atirasse à folia feito as “serpentinas que saltam dos autos em monóculos curiosos”. Os “olhos novos” do brincante de primeira viagem contemplaram, no caldeirão fervente do Rio de Janeiro, cenários comparáveis àqueles dos textos clássicos, sagas e epopeias que se avolumavam nas bibliotecas. Combinando referências ao sabor dos batuques e dos temperos das “baianas faceiras”, canta:

Onde que andou minha missão de poeta, Carnaval? Puxou-me a ventania, Segundo Círculo do Inferno, Rajadas de confetes Hálitos diabólicos perfumes Fazendo relar pelo corpo da gente Semíramis Marília Helena Cleópatra e Francesca. Milhares de Julietas! Domitilas fantasiadas de cow-girls, Isoldas de pijamas bem franceses, Alsacianas portuguesas holandesas... Geografia! Êh liberdade! Pagodeira grossa! É bom gozar!230 229 230

ANDRADE, Mário de. Obra citada, p. 6. ANDRADE, Mário de. Obra citada, p. 9.

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O sentimento de gozo, extravasamento, perpassa cada linha do poema, que termina, exatamente como um fim de carnaval, com o cansaço e o sono, o corpo largado no espaço, a cama, as pernas que não mais aguentam, a vida voltando à rotina:

O poeta se debruça no parapeito de granito. A rodelinha de confeti cai do chapéu dele, Vai saracotear ainda no samba mole das ondas.

Então o poeta vai deitar.

Lentamente se acalma no país das lembranças A invasão furiosa das sensações. O poeta sente-se mais seu. E puro pelo contato de si mesmo Descansa o rosto sobre a mão que escreverá.

Lhe embala o sono A barulhada matinal de Guanabara... Sinos buzinas clácsons campainhas Apitos de oficinas Motores bondes pregões no ar, Carroças de rua, transatlânticos no mar... É a cantiga-de-berço. E o poeta dorme. O poeta dorme sem necessidade de sonhar.231

Diante da sobreposição de tempos e espaços em um mesmo poema (e em um mesmo acontecimento transformado em poema, o carnaval da cidade do Rio de Janeiro),

231

ANDRADE, Mário de. Obra citada, p. 17.

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Alberto Pucheu aciona Michel Foucault e enxerga nas teorizações das heterotopias um possível caminho de análise. A explicação de Pucheu é longa e merece cuidadosa leitura:

O vínculo da nossa cidade com outros tempos e espaços justapostos, que seriam, a priori, incompatíveis com ela e entre si, também é apresentado ao longo do poema, estabelecendo, pela fenda de uma atopia e de um anacronismo inerentes ao carnavalesco e à própria cidade, uma heterotopia e uma heterocronia. Na segunda parte do poema, em uma criança fantasiada que se agarra à mãe por medo dos desejos que sente, o deus amoroso grego Eros ou o latino Cupido se encontra com o mundo indígena na concretude da língua portuguesa (“Amor curumim abre as asas de ruim papelão. / Amor abandonou as setas sem prestígio”). Enquanto isso, na terceira, Roma se materializa na Avenida Rio Branco, “Roma imperial se escarrapacha no anfiteatro da Avenida”. O anfiteatro romano se torna carioca. A avenida se torna romana. Um outro espaço é criado. Havendo no poema uma exclamação por uma “Geografia!”, extremamente peculiar, na medida em que tal verso de uma só palavra seguida da exclamação vem imediatamente após a menção do segundo círculo do Inferno dantesco, que, além do mais, acata mulheres das mais diversas regiões e tempos, e outras espalhadas pelo mundo, como “Alsacianas portuguesas holandesas”, há nele o que, futuramente, nos prefácios a Macunaíma, Mário conceitualizará como “desgeograficação”, um processo pelo qual “a gente não escuta as proibições da ciência ou da realidade”, um procedimento pelo qual se “desrespeita a geografia” em nome de uma “embrulhada geográfica proposital”. Se tanto a “desgeograficação” e a consequente descronificação quanto a heterotopia e a consequente heterocronia cosmopolitas abertas pelo carnaval lidam com o espaço e o tempo da percepção sensível misturados aos imaginativos, às nossas resistências e primeiras inclinações, é para que sua dimensão exterior, suspendendo o que diz respeito à interioridade individual para então reconfigurá-la, nos arraste, como diz Foucault, “para fora de nós mesmos, em cujo espaço decorre precisamente a erosão de nossa vida, de nosso tempo, de nossa história, esse espaço que nos corrói e nos sulca é também um espaço heterogêneo”. Juntando o real e o mítico no ponto de partida da Avenida Rio Branco, instaurando uma ruptura decisiva com o espaço e o tempo convencionais, infringindo tanto a lógica, em nome de uma “alogica sistematica” (como dirá num dos prefácios a Macunaíma), quanto o excesso naturalizante da literatura brasileira, o carnaval carioca é um acontecimento heterotópico e heterocrônico por excelência que se dá na heteroglossia do poema.232

Pucheu entende que, assim como os jardins botânicos, os tapetes persas, os teatros e os cinemas, as avenidas por onde desfilam as manifestações carnavalescas do Rio de Janeiro podem ser entendidas enquanto heterotopias: lugares reais capazes de concentrar uma série de tempos e espaços (reais, irreais, míticos, ficcionais, enfim) em um mesmo feixe de intensas conexões. Que o carnaval carioca, desde o século XIX, convida os foliões às viagens mais delirantes, isso não é novidade. Muito já foi escrito e debatido sobre a capacidade criativa dos agentes envolvidos na construção da festa momesca – algo que pode nos levar a

232

PUCHEU, Alberto. Obra citada, p. 33/34.

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tradições mais antigas, a exemplo da impactante visão do Triunfo da Arquiduquesa Isabella, ocorrido em Bruxelas, em 31 de maio de 1615, desfile circular que contou com inúmeros carros alegóricos (inclusive um navio puxado por cavalos marinhos e seguido por elefantes aquáticos), cáfilas de camelos e esculturas articuladas de unicórnios e hipogrifos233. Os temas mitológicos nos Ranchos, as campanhas heróicas nas Grandes Sociedades, os “Homens Selvagens” na agressividade dos Cordões234, os corpos indóceis, enfim, e as tramas narrativas cintilantes de lamês. Pucheu sublinha as referências à Comédia de Dante235 e fala que um anfiteatro romano “se torna carioca”, assim como “a avenida se torna romana”. Curiosamente, em crônica de fevereiro de 1949, intitulada Os Romanos, Rubem Braga exalta o potencial criativo do fazer carnavalesco ao narrar a passagem de um grupo bastante humilde de foliões, negros, fantasiados de personagens da Roma Antiga:

Foi no Leblon, no domingo de sol, e não era escola de samba nem rancho direito, era apenas uma tentativa de rancho, sem mulheres, sem música própria. Eram quase todos negros e mulatos, quase todos muito fortes e vestidos da maneira mais imaginosa, com saiotes e escudos e capacetes com muitos dourados e prateados, e de espada na mão. Cantavam o samba estranho Maior é Deus do Céu e no estandarte estava escrito assim: “Henredo o Império Romano.” Todos achamos graça nesse H que dava ao enredo, que afinal não era enredo nenhum, uma súbita solenidade, sugerindo graves palavras históricas e heroicas, hostes de hunos, hierofantes, hieróglifos e hierarquias. E era muito guerreira a marcação da bateria – e Júlio César, com seu capacete de papel prateado de dois palmos de altura acima do pixaim, e brandindo com o enorme braço negro uma espada de ouro, nunca esteve tão soberbo na sua glória. (...) Bem-aventurados os que fazem o carnaval, os que não fogem nem se recolhem, mas enfrentam as noites bárbaras e acesas, bem-aventurados os gladiadores e Césares e 233

A pintura de Denys van Alsloot, de 1616, pode ser vista no Victoria and Albert Museum, em Londres. Leitura obrigatória é Cordões, crônica de João do Rio presente em A alma encantadora das ruas. No texto, o autor se despe, evocando passagens de Dorian Gray: “Um cheiro estranho, misto de perfume barato, fartum, poeira, álcool, aquecia ainda mais o baixo instinto da promiscuidade. A rua personalizava-se, tornava-se uma e parecia, toda ela policromada de serpentinas e confetti, arlequinar o pincho da loucura e do deboche. Nós íamos indo, eu e o meu amigo, nesse pandemônio. (...) O cordão vinha assustador. À frente, um grupo desenfreado de quatro ou cinco caboclos adolescentes com os sapatos desfeitos e grandes arcos pontudos corria abrindo as bocas em berros roucos. Depois um negralhão todo de penas, com a face lustrosa como piche, a gotejar suor, estendia o braço musculoso e nu sustentando o tacape de ferro.” In: RIO, João do. Cordões. In: A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008, p. 141/142. 235 A Divina Comédia já foi traduzida em diferentes enredos, nos desfiles de Rio e São Paulo. Em 2006, a Renascer de Jacarepaguá, escola de samba do Grupo de Acesso carioca, cantou A Divina Comédia Brasileira, enredo pontuado de críticas sociais, desenvolvido pelo carnavalesco Lane Santana; em 2017, no Grupo Especial, foi a vez do Acadêmicos do Salgueiro levar Dante, Virgílio e Beatriz para a Marquês de Sapucaí – o enredo, A Divina Comédia do Carnaval, assinado por Renato Lage, Márcia Lage e Diretoria Cultural, dialogava com João do Rio e comparava os círculos de Inferno, Purgatório e Paraíso às manifestações carnavalescas da cidade. Em São Paulo, no ano de 1999, a Rosas de Ouro desfilou A Divina Comédia de um Folião, sob a pena de Raul Diniz. 234

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Chiquitas e baianas, e que a vida depois lhes seja leve na volta do sonho em que se esbaldam!236

Também Drummond, em Alegria, entre cinzas, poema que li, no Hotel Belas Artes, fala da sobreposição de tempos e espaços, no turbilhão de Momo – em outra época, quando o Cristo Redentor já se mostrava encarapitado. Diz o poeta:

Mas a última célula da memória registra ainda o ranger de babilônias em rouco marulhar de som e selva: cataratas humanas de Iguaçu, pavões, califas de Bagdá e Realengo desfilam entre rainhas gaditanas com torres de marfim no cocuruto, pescadores portam jacarés personalizados como cheques, homens de Neandertal voltam à origem e, emergindo do mar de plástico e sarrafos, Iemanjá Dandalunda Janaína crioula cor de prata rabeia com tiques de sereia perto do cartorial Palácio da Justiça.237

Curioso é que, assim como Mário de Andrade, Drummond revela ao leitor o ano em que o poema foi escrito, 1974, uma vez que utiliza fragmentos poéticos dos desfiles ocorridos na Avenida Presidente Antônio Carlos enquanto demarcadores de tempo. O poeta explicitamente menciona os carnavais apresentados pela escola de samba campeã naquele ano, Acadêmicos do Salgueiro (que, sob a batuta de Joãosinho Trinta, cantou O Rei de França na Ilha da Assombração238), pela vice-campeã Portela (que levou ao 236

BRAGA, Rubem. Os Romanos. In: 200 Crônicas Escolhidas. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 172/173. DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Discurso de primavera e algumas sombras. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 109/110. 238 Trata-se do primeiro campeonato conquistado pelo carnavalesco maranhense, aprendiz de Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues. O enredo é uma heterotopia pronta e para muitos pesquisadores (como Milton Cunha e João Gustavo Melo) insere o surrealismo nas narrativas das escolas de samba do Rio de Janeiro: aos olhos do “Rei-menino”, as palmeiras da ilha de São Luís do Maranhão se tornavam 237

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público os belíssimos samba e enredo O mundo melhor de Pixinguinha) e pela terceira colocada Império Serrano (cujo enredo Dona Santa, Rainha do Maracatu foi desenvolvido por Fernando Pinto):

Pequeno Luís Rei de França do Salgueiro despe a magnificência, pede a bênção ao pai, bombeiro hidráulico, na oficina. Meio-dia. Clóvis Bornay bate o ponto no Museu. Volta ao circo o elefante imperial que transportava Dona Santa do Maracatu. (...) Lamê enlameado na sarjeta. Strass. Stress. Liza Minelli passou entre passistas? Frank Sinatra não veio, como sempre. O mundo-melhor de Pixinguinha e o mundo-melhor dos utopistas dissolvem-se na mesma inconclusão.239 A menção aos “utopistas” não é aleatória. O poeta, observador atento das múltiplas facetas do carnaval carioca (do esplendor forjado nos barracões aos lamês agora enlameados na sarjeta, a efemeridade e a fragilidade de uma festa popular), dialoga com a tradição utópica e aponta para o aspecto mais doloroso da folia: fatalmente, ela termina. A “utopia carnavalesca”, heterocronia, vê nas cinzas um ponto final. Ainda que haja, sempre, “uma promessa de alegria.”240 E não sai das minhas retinas, ao pensar em tais

candelabros, os papagaios amarelos voavam enquanto anjos, os azulejos compunham palacianas galerias envoltas por mistérios: o Touro Negro coroado (Dom Sebastião, cujo reino jazia submerso, na Praia dos Lençóis); a carruagem da cruel Nhá Jança; a “serpente de prata que rodeia a ilha”, como escreveram os compositores Zé Di e Malandro. A construção de tal desfile é narrada, com uma romantização compreensível, no longa-metragem Trinta (2014), do diretor Paulo Machline, com Matheus Nachtergaele no papel principal. 239 DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Obra citada, p. 108 e 110. 240 DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Obra citada, p. 111.

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passagens, a imagem em relampejo de uma praça no Valqueire, talvez fosse no Campinho, eu juro não sei o nome, no amanhecer da quarta-feira de cinzas do carnaval de 2015, quando eu estava tonto e sequer guiava os meus passos: os postes, as casas, os muros, tudo estava decorado com os estandartes que havíamos confeccionado para o abrealas da Mocidade Unida do Santa Marta do ano anterior, na homenagem a Caymmi. Diante do emaranhado de raízes poéticas, o questionamento que brota, tão verde quanto a visão de Rosa Magalhães para a floresta de pau-brasil, não poderia ser outro: pode-se considerar a Passarela do Samba Professor Darcy Ribeiro, Marquês de Sapucaí, um espaço heterotópico e heterocrônico? Mais: pode-se considerar a narrativa gresilense de 2004 uma expressão carnavalesca passível de análise a partir dos princípios de Foucault (teórico francês que, seguramente, encontraria no carnaval carioca êxtase semelhante ao vivenciado por Mário, em 1923)? As respostas, é evidente, são positivas. Sim, o Sambódromo do Rio, palco aberto em linha reta projetado por Niemeyer, recebe, ano após ano, festivais de lugares e tempos e histórias e estórias e viagens extraordinárias. Sim, o enredo desenvolvido por Rosa Magalhães, em 2004, subverte tempo e espaço e propõe uma “desgeograficação” radical. Mas não, a dispersão não começa aqui. Ao contrário. Feito a Estação Primeira de Mangueira, em 1984, Supercampeã do ano de inauguração do Sambódromo, com enredo sobre Braguinha costurado por Max Lopes, é hora de fazer a curva, sob o arco da Apoteose, e retornar ao rio de asfalto, do avesso, de lá pra cá, a contrapelo, expandindo os apontamentos pintados de vermelho a outras narrativas da autora de Breazail.

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III. Utopias ao sol, heterotopias selvagens

As mãos têm hélice, tempestade e bússola. Os pés guardam navios. Aparelham para o Oriente O olho tem peixes, A boca, recifes de coral; Os ouvidos têm noites polos e lamento de ondas. A vida é muito marítima. Murilo Mendes – O Homem e a Água.

III. 1 – Novos mundos, velhas utopias

Rio de Janeiro, 11 de fevereiro de 2016, manhã de quinta-feira. Bandeiras da Mangueira eram exibidas, orgulhosas, nas janelas do Balança-Mas-Não-Cai, edifíciobase para a geografia carnavalesca do centro da cidade. No dia anterior, a Verde-e-Rosa de Cartola, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho, Neuma e Zica sagrara-se campeã com o enredo Maria Bethânia – a menina dos olhos de Oyá, do carnavalesco (estreante no Grupo Especial) Leandro Vieira. No Terreirão do Samba, espaço dedicado a shows, ao lado do Setor 01 da Marquês de Sapucaí, ocorria a apuração das notas concedidas às agremiações que desfilaram na Intendente Magalhães, blocos e escolas de samba, além do concurso de coretos, ainda resistente. Eu, Gabriel Haddad, Thiago Lepletier e Vinícius Natal acompanhávamos a leitura dos conceitos atribuídos à escola que havíamos defendido, na terça-feira (a rigor, madrugada de quarta): Acadêmicos do Sossego, do Largo da Batalha, Niterói, com enredo intitulado O Circo do Menino Passarinho, sobre imagens poéticas de Manoel de Barros. Totalizando 269,5 pontos, ao final da apuração, a Sossego foi anunciada campeã e ascendeu ao outrora chamado Grupo de Acesso, agora Série A. No dia seguinte, 12 de fevereiro, a edição do jornal O São Gonçalo estampava a manchete: “Sossego é campeã da Série B”. O texto, assinado pela jornalista Marcela Freitas, dizia o seguinte: “Repetir, repetir – até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo.” A frase retirada do poema “A didática da invenção”, do poeta Manuel Bandeira, foi levada à risca por componentes da Acadêmicos do Sossego, que fez uma homenagem ao poeta e com ela

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conseguiu levar a escola do Largo da Batalha, em Niterói, à tão sonhada Série A do Carnaval Carioca, conquistando 269,5 pontos dos jurados.”241

O Globo, Extra, O Fluminense, nenhuma reportagem desses jornais me causou maior encantamento que a lida em O São Gonçalo (imagem 46). Por descuido, desleixo, acaso, por algum motivo imperdoável do ponto de vista da apuração jornalística dos fatos, a homenagem que prestamos, no desfile da Sossego, mudou de destinatário: Manoel de Barros virou Manuel Bandeira, uma metamorfose improvável. Ri sozinho (e ainda rio) ao imaginar como teria sido um desfile em homenagem a Bandeira, algo jamais pensado por mim, tampouco por Gabriel. Para Mário e Drummond, há enredos na gaveta – algum dia, quem sabe... Para Bandeira, não. Se algum pesquisador futuro, porém, tomar apenas a edição d’O São Gonçalo como fonte, a verdade histórica será a de que já assinamos um carnaval em homenagem àquele que recebeu, em forma de pedido de desculpas, o poema Carnaval Carioca, no frescor montanhês de Petrópolis.

Imagem 46: Tortamente, um fragmento da matéria que trocou Manoel de Barros por Manuel Bandeira. Foto do autor.

Procurar pontos de contato e construir mapas afetivos e rotas de navegação, a partir da leitura crítica da obra de Rosa Magalhães, talvez seja o mais saboroso intento deste trabalho. A leitura de Foucault, diante disso, é, sim, de grande valia, uma vez que

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FREITAS, Marcela. Sossego é campeã da série B. Mais uma escola de Niterói vai disputar o Carnaval carioca na Marquês de Sapucaí, em 2017. Jornal O São Gonçalo, 12 de fevereiro de 2016, p. 6.

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nos faz pensar o tempo e o espaço em que estão enredados os desfiles das escolas de samba através de um olhar prenhe de curiosidade e encantamento. Como bem sintetiza Renato Amado Peixoto, “pensar o espaço não é apenas entender sua representação, considerar sua inscrição, perscrutar sua construção; é também necessário buscar suas conexões.”242 Nesse sentido, a obra da carnavalesca 7 vezes campeã do Grupo Especial do Rio de Janeiro é um universo em expansão, sistema simbólico coeso e inclusivo, com uma cartografia bastante própria e interconectada. Um mundo cujos oceanos ainda são disputados por piratas, o tema do enredo desenvolvido para a Imperatriz Leopoldinense, em 2003, Nem todo pirata tem perna de pau, olho de vidro e cara de mau. Edson Passetti, sobre os piratas mencionados em Outros espaços, diz o seguinte:

Os piratas surpreendiam mares e oceanos, abalavam os itinerários dos comerciantes, inventavam percursos para cada navio e possíveis encontros em espaços estranhos e ao mesmo tempo paradisíacos como o Caribe. No imaginário europeu, o exotismo, a liberdade, o calor, o suor, os corpos semidespidos e a transparência das águas, o sexo livre, ouro, prata, pérolas e jóias eram transformados em adornos circunstanciais sobre corpos marcados pelo sol. Os piratas eram espertos, mesmo quando faltavam-lhes partes do corpo. Eram estrategistas: abalavam fragatas e caravelas, e por vezes outros corsários. (...) Considerados desaparecidos dos espaços marítimos, segundo as autoridades navais, devido à eficácia da regular vigilância policial, reapareceram recentemente, no século XX, no interior do trânsito livre e surpreendente gerador de outros espaços navegáveis propiciados pela história atual de constituição da sociedade de controle. Diante da disseminação da prática da economia em fluxos eletrônicos do final do século XX, imediatamente, reapareceram os piratas.243

Passetti resume, ainda que sem saber, a tônica do enredo de Rosa Magalhães – que evoca todo o imaginário exótico de piratas e corsários, desbravadores por natureza, desembarcando nas piratarias contemporâneas – inclusive a cyberpirataria dos hackers. Com os pulmões inflados desse espírito desbravador e aventureiro é possível extrair as raízes de Breazail e observar, no solo revolvido do sistema simbólico da autora (como não lembrar dos familiares, nas fazendas da infância, extraindo mandiocas, em competições de força que volta e meia terminavam em “rendiduras”?), um oceano de referências e sincronicidades. Observam-se, em Breazail, estratégias narrativas, símbolos e imaginários também observáveis em outros enredos assinados pela autora, o que, a partir

242

PEIXOTO, Renato Amado. Espaços imaginários. A linguagem artaudiana cartografada por Foucault. In: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de; SOUZA FILHO, Alípio de; VEIGA-NETO, Alfredo (Orgs.). Cartografias de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 355. 243 PASSETTI, Edson. Heterotopia, anarquismo e pirataria. In: RAGO, Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo (Orgs.). Figuras de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 112.

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desse momento, merece uma cuia e um trago. O primeiro “eixo temático” não poderia ser outro: a ideia genérica de utopia associada aos “descobrimentos” – o que necessariamente nos leva às narrativas fundacionais tencionadas por Süssekind. Vejamos: de 1982, quando Rosa Magalhães e Lícia Lacerda ganharam o carnaval à frente do Império Serrano, a 2017, ano do último desfile de Rosa Magalhães analisado antes da finalização deste trabalho (o enredo de 2018 merecerá algumas laudas, mais à frente, coroando a inconclusão), não faltam visões utópicas, no sentido mais amplo que a expressão pode adquirir. Conforme explicado por Gregory Claeys, não se deve confundir a ideia de “utopia” com a noção de “sociedade perfeita”, algo bastante comum – e reducionista. O “impulso utópico” das sociedades modernas, na visão do escritor britânico, tanto mais depois da Revolução de 1789, está incrustado no conceito de igualdade: um modelo de “sociedade utópica” seria aquele em que as diferenças sociais se mostram menos agressivas que aquelas observáveis na sociedade de onde se está falando (e não se pode negar, aqui, a imensa contribuição do dito “socialismo utópico” para o amadurecimento das reflexões). É por isso que o autor afirma que todo movimento social voltado para a redução das desigualdades pode ser considerado utópico – visão que, em definitivo, retira a ideia de utopia do domínio do irreal e a planta no cotidiano, na materialidade dos nossos dias. “A utopia, portanto, não é o domínio do impossível”244, afirma em certo momento. Ao contrário: o ideal utópico serve de força motriz para as mudanças sociais almejadas – “sem ele, a humanidade nunca teria se esforçado para melhorar. É uma estrela polar, um guia, um ponto de referência do mapa comum de uma eterna busca pela melhora da condição humana.”245 Tomando emprestada tal interpretação de Claeys, é possível encontrar em inúmeras narrativas assinadas por Rosa Magalhães um “invólucro utópico” – especialmente naquelas que tratam de narrativas fundacionais, a exemplo de Breazail. Um breve passeio por algumas dessas obras (e ressalte-se que não há o compromisso com a linearidade cronológica nem com a apreensão da totalidade, o que resultaria em uma análise superficial) ajuda a compreender a questão. Em 1992, ao tratar dos 500 anos do “descobrimento da América” (narrativa fundacional por excelência), o enredo Não existe pecado abaixo do Equador se baseava nos relatos de Cristóvão Colombo e na Visão do Paraíso de Sérgio Buarque de Holanda. 244 245

CLAEYS, Gregory. Obra citada, p. 15. CLAEYS, Gregory. Obra citada. P. 15.

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A carnavalesca apresentou, na heterotópica Marquês de Sapucaí, adaptações de signos edênicos para a natureza tropical, conforme o observado em A Antropofagia de Rosa Magalhães (o Adão de Michelangelo, no teto da Capela Sistina, foi transformado em um Adão indígena, aos pés de uma árvore de maracujá; a Eva tupiniquim também dialogava com o mestre renascentista: ressignificação da Aurora do túmulo de Lorenzo de Médici). Em O inverso das origens, narra: “criei fantasias que eram uma mistura de traje europeu com traje de índio. Uns componentes usavam chapéu de descobridor com tanga de penas; outros, cocar de penas com golas engomadas feitas de organza e renda; alguns, calções com tangas por cima ou decoração de contas e penas.”246 A harmonização dos opostos em uma mesma fantasia, algo trabalhado por Felipe Ferreira em O Marquês e o Jegue247, revela um ideário de integração e equilíbrio. Na sinopse do enredo, porém, há uma mensagem de alerta – o que acende ainda mais o viés utópico da narrativa:

O paraíso existe, como provam os seus descobridores, mas está maltratado e esquecido. Precisamos nos lembrar de que tal sítio não pode se acabar. Se somos inoperantes, precisamos de ajuda. Que venham em nosso auxílio os caiporas, os sacis, os boitatás, as sereias e a mãe d' água. Eles, que já guardavam o paraíso, que continuem a nos proteger.248

Ainda na esteira dos “descobrimentos” ultramarinos, o enredo do ano 2000 revisitou um tema explorado à exaustão no carnaval carioca: a chegada de esquadra de Cabral, em 22 de abril de 1500, e os primeiros contatos dos portugueses com os índios. A narrativa de Rosa Magalhães começava com os sonhos de D. Manuel, o Venturoso, apresentando, no carro abre-alas, uma caravela carregada por uma sereia, no interior de um globo terrestre estilizado, em frente a um frontão renascentista adornado com flores e frutos (imagem 47).

246

MAGALHÃES, Rosa; NEWLANDS, Maria Luiza. Obra citada, p. 26. O autor elenca uma série de “oposições complementares” que bem expressam a lógica inclusiva do sistema simbólico de Rosa Magalhães: O desbravador e o folclore, em 1992; O Marquês e o saçarico, em 1993; A Rainha e o índio, em 1994; O jegue e o camelo, em 1995; A princesa e o povo, em 1996; e O palácio e o corta-jaca, em 1997. Ferreira analisa, na sequência, quatorze fantasias concebidas pela carnavalesca, observando nas roupas a presença de tais contrastes – fusões de universos distintos. Ver: FERREIRA, Felipe. O Marquês e o Jegue. Estudo da fantasia para escolas de samba. Rio de Janeiro: Altos da Glória, 1999. 248 MAGALHÃES, Rosa. Não existe pecado abaixo do Equador. Sinopse do enredo do carnaval de 1992 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA). 247

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Imagem 47: Abre-Alas da Imperatriz Leopoldinense, no desfile do ano 2000, em comemoração aos 500 anos do “descobrimento” do Brasil. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

Dois imensos rinocerontes dourados representavam, segundo o narrado pelos jornalistas Pedro Bial e Glória Maria, na transmissão televisiva da Rede Globo, o estranhamento dos portugueses diante dos Novos Mundos. Reprodução carnavalesca do rinoceronte de Albrecht Dürer, tratava-se de Ganda, presente enviado por D. Manuel ao Papa Leão X. O curioso episódio é narrado, de forma romanceada, no best-seller Conquistadores – como Portugal forjou o primeiro império global, de Roger Crowley249. A melhor narração do fato, porém, encontrei no menu de um restaurante de Lisboa, chamado Mensagem, onde comi um risotto de lima, coentros e camarão de frente para o Tejo e o Pavilhão dos Descobrimentos. Dizia o menu da “cafetaria” (e pode haver fonte mais saborosa que esta?):

249

Narra o escritor, depois de discorrer sobre o destino de Hanno, um elefante albino que percorreu Roma com um castelo de prata nas costas e, tamanho o encantamento que despertou em Leão X, virou afresco no Vaticano e terminou enterrado com honras: “Ainda menos sorte teve o presente seguinte de Manuel, o rinoceronte, despachado de Lisboa com um colar de veludo verde. O navio naufragou próximo da costa de Gênova em 1515. O animal se afogou e seu corpo apareceu na praia. Seu couro foi recuperado, devolvido a Lisboa e empalhado. Albrecht Dürer viu uma carta que descrevia a criatura, e possivelmente um esboço. Ele produziu sua famosa gravura sem jamais ter posto os olhos no animal.” In: CROWLEY, Roger. Conquistadores – como Portugal forjou o primeiro império global. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2016, p. 341/342.

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Quando o Rei D. Manuel I enviou ao Papa Leão X mais um magnífico presente, esse rinoceronte a que chamavam Ganda simbolizava bem mais do que os mundos exóticos onde os portugueses tinham chegado. O rinoceronte, embarcado em Lisboa com destino a Roma, servia como uma espécie de mensagem para a cristandade sobre as intenções pacificadoras do mundo inteiro que seriam levadas a cabo pela mão do Rei português. Na atribulada viagem até ao seu destino, muitos foram aqueles que o quiseram admirar, tendo o Rei Francisco I de França feito atrasar a saída do animal do porto de Marselha só para ver o tão famoso bicho, que os antigos romanos já haviam descrito. Albrecht Dürer, o mais importante pintor e humanista alemão, pediu um desenho dele a um amigo português e em 1515 fez uma gravura que tornou o Ganda ainda mais célebre (imagens 48 e 49).

Imagens 48 e 49: Menu da Cafetaria Mensagem, em Belém, Lisboa, 04/07/2016. Fotos do autor.

Serpentes e monstros marinhos completavam a cenografia do carro, espécie de síntese do poderio lusitano diante dos mares a serem desbravados. Em O inverso das origens, assim a autora descreve: “Os monstros marinhos são muito encontrados nos mapas antigos e por isso também povoaram o carro abre-alas, decorado com elementos de arquitetura renascentista. O rinoceronte, animal encontrado anteriormente na África, dava uma ideia das estranhezas que estavam por vir.”250 Depois de passar pelo esplendor das Índias e pelas riquezas do continente africano, a narrativa chegava às terras de Pindorama: na alegoria 6 (imagem 50), Primeiro desembarque na terra indígena, Rosa expressava a fusão entre brancos, índios e negros, conforme explica na sinopse do enredo: 250

MAGALHÃES, Rosa; NEWLANDS, Maria Luiza. Obra citada, p. 134.

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“em 23 de abril, num pequeno barco, desembarcaram alguns tripulantes: um intérprete que falava hindu e árabe, um grumete da Guiné e um escravo da Angola, além de vários portugueses. Havia homens de três continentes conhecidos.”251 A autora completa: “E no encontro desses homens, o branco, o negro e o índio, esboçava-se a origem do povo brasileiro. Aí, Peri beijou Ceci... e mais tarde chegaram outros povos (...).”252 No diálogo com José de Alencar e Lamartine Babo, estava “inventado” o Brasil, “flor amorosa de três raças”.253 Novamente, observa-se o apreço pela harmonização: os conflitos são neutralizados, as desigualdades deixadas de lado. Quatorze anos depois, à frente da Estação

Primeira

de

Mangueira,

Rosa

Magalhães

voltaria

a

desenvolver

carnavalescamente este primeiro encontro, num desfile marcado por incidentes. Alegorias inacabadas e com problemas de proporção (a gigantesca escultura de um pajé de Parintins se chocou contra a antiga torre de TV, então situada junto ao segundo recuo de bateria, e chegou à Apoteose decapitada) sinalizavam uma autora não tão à vontade – ao menos no que se refere ao tratamento concedido aos carros alegóricos. O enredo desenvolvido, A festança brasileira cai no samba da Mangueira, tem início com um idealizado encontro entre índios e portugueses, seguindo a história narrada na sinopse: “Como diz Pero Caminha, em sua carta inaugural (...), o que se viu foi uma festa – a primeira, neste solo tropical. Ao som de um tamboril, precursor da bateria, um pouco de Brasil despertou naquele dia.”254 O estilo da escrita revela uma discrepância, ponto fora da curva, desvio de rota marítima: a assinatura do texto de enredo não é de Rosa Magalhães, mas de

251

MAGALHÃES, Rosa. Quem descobriu o Brasil foi Seu Cabral, no dia 22 de abril, dois meses depois do carnaval. Sinopse do enredo do carnaval de 2000 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA). 252 MAGALHÃES, Rosa. Obra citada. 253 Brasil, flor amorosa de três raças foi o enredo apresentado pela Imperatriz Leopoldinense em 1969, de autoria do Departamento Cultural e de Carnaval. A letra do samba de enredo, composta por Carlinhos Sideral e Mathias de Freitas, é uma verdadeira celebração de um Brasil pacificado e miscigenado: “Ó meu Brasil, berço de uma nova era / Quando o pescador espera / Proteção de Iemanjá, Rainha do Mar / E na cadência febril das moendas / Batuque que vem das fazendas / Eis a lição / Dos garimpos aos canaviais / Somos todos sempre iguais / Nesta miscigenação / Ó, meu Brasil / Flor amorosa de três raças / és tão sublime quando passas / Na mais perfeita integração”. Em A Antropofagia de Rosa Magalhães, aventou-se a hipótese de que a “identidade” (termo espinhoso, de fato, em constante construção/mobilidade) da Imperatriz Leopoldinense pode ter contribuído para os caminhos narrativos trilhados por Rosa Magalhães, no período de 1992 a 2002. 254 MARTINS, Oswaldo. A festança brasileira cai no samba da Mangueira. Sinopse do enredo do carnaval de 2014 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, presente no Livro AbreAlas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA).

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Oswaldo Martins, autor de outras narrativas para a Estação Primeira de Mangueira (entre elas, a do ano 2000, Dom Obá II, Rei dos Esfarrapados, Príncipe do Povo, desenvolvida por Alexandre Louzada). Ainda que não tenha assinado a sinopse da Verde-e-Rosa (e inúmeras suposições podem ser tensionadas sobre isso), a carnavalesca materializou plasticamente, na abertura do desfile, um mito fundacional de Brasil (imagem 51) – dialogando, na parte traseira do carro abre-alas, com a obra de Glauco Rodrigues (imagem 52). Na visão utópica (e heterotópica) do desfile, o Brasil nasceu de uma batucada festeira em que índios e portugueses se viram irmanados – todos iguais, harmoniosos, debaixo de um mesmo sol – mas diante da cruz de um único Deus. Também podem ser entendidas enquanto narrativas fundacionais aquelas apresentadas nos enredos de 1996, 1999 e 2009, todos desenvolvidos para a Imperatriz Leopoldinense. O primeiro, que trata da vida de Carolina Josefa Leopoldina, esposa de Pedro I e Imperatriz do Brasil, termina com a Proclamação da Independência, em 07 de setembro de 1822, episódio que, no desfile de Rosa Magalhães, adquire vulto carnavalesco. A Imperatriz de origem austríaca é alçada ao posto de “mãe dos brasileiros” e o célebre (e mítico) grito do Ipiranga adquire status de marco fundacional ou mito de origem: ali, com tintas heroicas, nascia um país unido e valoroso, um Brasil de natureza exuberante e gentes que viviam na mais completa harmonia. O segundo enredo mencionado, Brasil, mostra a sua cara em... Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae, fala da fundação da “Holanda tropical”, em Pernambuco, pintando as ambições do príncipe Maurício de Nassau com as tintas de Frans Post e Albert Eckhout. Novamente, observase uma sociedade harmoniosa, sem mazelas. O terceiro enredo, apresentado em 2009, contou na Marquês de Sapucaí a história da fundação da própria escola de samba255, Imperatriz Leopoldinense, dissidência do Bloco Recreio de Ramos (imagem 53). A sociabilidade do bairro de Ramos, na primeira metade do século XX, foi transformada em carros alegóricos: saraus, banhos de mar a fantasia, rodas de samba, nada foi esquecido. Com a fundação da Imperatriz Leopoldinense, a “Rainha de Ramos”, fundavase também uma determinada visão de Brasil e uma comunidade mítica, unida, briosa, disposta a eternamente defender uma bandeira: “Ramos brilha no carnaval com sua escola de samba, com seu bloco mais famoso, o Cacique de Ramos, e com o grupo mais

255

Sobre a importância dos mitos fundacionais para as narrativas identitárias das escolas de samba é imprescindível a leitura de NATAL, Vinícius. Memórias e culturas nas escolas de samba do Rio de Janeiro: dramas e esquecimentos. Rio de Janeiro: NovaTerra, 2016.

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conhecido, o Fundo de Quintal. Pois que viva a Imperatriz, por seu aniversário, e que Viva Ramos, celeiro de bambas!”256 E quem vai dizer que não se trata de um novo mundo?

Imagem 50: Visão frontal da alegoria 6, Primeiro desembarque na terra indígena, do desfile do ano 2000 da Imperatriz Leopoldinense. Na visão alegórica da cena descrita por Pero Vaz de Caminha em sua carta a D. Manuel, Rosa Magalhães abusou das cores quentes e valorizou a arte plumária e as esculturas indígenas. O momento é entendido pela autora como a primordial fusão entre brancos, índios e negros em território brasileiro – o carro, portanto, expressa um marco fundacional do nosso país. Fonte: Revista Manchete n. 2499. Rio de Janeiro: Editora Bloch, 11 de março de 2000, p. 13. 256

MAGALHÃES, Rosa. Imperatriz... só quer mostrar que faz samba também! Sinopse do enredo do carnaval de 2009 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA).

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Imagem 51: Abre-alas da Mangueira, em 2014: visão festiva do “descobrimento” do Brasil. Fonte: http://wp.clicrbs.com.br/gauchanocarnaval/destaquinho/mangueira-reencontra-bons-carnavais-e-fazdesfile-empolgado/attachment/mangueira-5/?topo=35%2C1%2C1%2C%2C%2C35. Acesso em 20/11/2017.

Imagem 52: Detalhe de Primeira Missa no Brasil, óleo sobre tela de 1971, de Glauco Rodrigues. Rosa Magalhães dialogou com tal obra na parte traseira da primeira alegoria (abre-alas) do desfile de 2014 da Mangueira – que pode ser considerada uma alegoria sobre um mito fundacional. Fonte: http://arteseanp.blogspot.com.br/2014/01/glauco-rodrigues.html. Acesso em 22/11/2017.

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Imagem 53: Quarto carro alegórico da Imperatriz Leopoldinense, no barracão da Cidade do Samba, durante os preparativos para o carnaval de 2009. O enredo Imperatriz... só quer mostrar que faz samba também! pode ser entendido enquanto narrativa fundacional, uma vez que a autora, seguindo uma linha poética, se propôs a contar a história da fundação da agremiação do bairro de Ramos, no subúrbio do Rio de Janeiro. Foto: G. Gurgel. Fonte:https://escolasdesambadoriodejaneiro.blogspot.com.br/2016/12/imperatrizleopoldinense-2009.html. Acesso em 14/03/2018.

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III. 2 – De luta, esperança, amor e paz Lisboa, 4 de julho de 2016. Belém. Antes de começar a escrever o meu “diário de navegação” no caderno com capa de couro, marrom, cor de canela (que exibe o baixorelevo de uma caravela), adquirido para este fim em uma loja de coisas antigas da Old Montreal, em 2014, durante o congresso sobre utopias, ele me escapou das mãos e caiu nas águas do Tejo – uma poça, é fato, mas uma poça das águas do Tejo. Encarei o acontecimento como algo de grande e inesperada poeticidade: espécie de batismo secular, mergulho simbólico nas memórias de Portugal e nas travessias transatlânticas. Ali, na Torre de Belém (imagem 54), parei para observar a movimentação de barcos, turistas, aviões, imaginando a sobreposição de tempos que se avoluma desde 1500, data fechada. Reli Fernando Pessoa, alguns trechos de Mensagem, obra que conheci no interior de O Eu profundo e os outros Eus, edição de 1984, com La Mémoire, de René Magritte, na capa – um dos livros preferidos de minha mãe, que afanei, pirata, da biblioteca dela:

Triste de quem vive em casa, Contente com o seu lar, Sem que um sonho, no erguer de asa, Faça até mais rubra a brasa Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz! Vive porque a vida dura. Nada na alma lhe diz Mas que a lição da raiz – Ter por vida a sepultura.

Eras sobre eras se somem No tempo que em eras vem. Ser descontente é ser homem. Que as forças cegas se domem Pela visão que a alma tem!

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E assim, passados os quatro Tempos do ser que sonhou. A terra será theatro Do dia claro, que no atro Da erma noite começou.

Grecia, Roma, Cristandade, Europa – os quatro se vão Para onde vae toda edade. Quem vem viver a verdade Que morreu D. Sebastião?257

Imagem 54: A Torre de Belém, o autor e o diário de navegação em mãos, depois do “batismo” no Tejo.

257

PESSOA, Fernando. Mensagem. Terceira Parte / O Encoberto. I. Os Symbolos. Segundo / O Quinto Império. In: PESSOA, Fernando. O Eu profundo e os outros Eus. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984, p. 60/61.

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A leitura de O Quinto Império me levou à arquibancada do Setor 3 da Marquês de Sapucaí, na noite de segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008, quando vi, pela primeira vez sem a mediação da TV, um desfile da Mocidade Independente de Padre Miguel e um desfile assinado por Rosa Magalhães, na Imperatriz Leopoldinense. O enredo da Mocidade, investigado por Claudicélio Rodrigues da Silva, tratava justamente do imaginário sebastianista revivido no Brasil. Intitulada O Quinto Império: de Portugal ao Brasil, uma utopia na história, a narrativa de Cid Carvalho terminava com o sebastianismo sertanejo observado no Romance d’A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, e na Guerra de Canudos, relatada por Euclides da Cunha na terceira parte d’Os Sertões, A luta. No artigo de Rodrigues da Silva, presente na coletânea de leituras marianas organizada por Alberto Pucheu e Eduardo Guerreiro, é mencionada uma melodia para o rei Sebastião gravada na última viagem etnográfica realizada pelas Missões Folclóricas do Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo, sob o comando de Mário, um ponto de tambor-de-mina:

Rei Sebastião É guerreiro militá É [Ê; Ô; O] Xapanã É pai do terrêro É [Ê; Ô; Ô] dentro desta guma riá258

Tomo um barco imaginário e me vejo no Guajará, mangueiras pelas calçadas, Belém do Pará, janeiro de 2009. Antes do início do Fórum Social Mundial daquele ano, na Universidade Federal Rural da Amazônia, eu e Thiago Hoshino, o grande amigo da faculdade de Direito, sandálias nos pés e boinas nas cabeças (ambos de cabelos compridos), nos deixávamos encantar pela cidade que, quase um século atrás, tombara Mário de Andrade a ponto de afirmar, ao interlocutor Manuel Bandeira, em carta de junho de 1927: “Quero Belém como se quer um amor. É inconcebível o amor que Belém despertou em mim. E como já falei, sentar de linho branco depois da chuva na terrasse

258

Tambor-de-mina e tambor-de-crioulo: registros sonoros do folclore musical brasileiro. São Paulo: Prefeitura Municipal de São Paulo, Departamento de Cultura, discos FM. 15 a 28-A, 1948. Citado em: SILVA, Claudicélio Rodrigues da. Obra citada, p. 149.

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do Grande Hotel e tragar o sorvete, sem vontade, só pra agir, isso me dá um gozo incontestavelmente realização de amor de tão sexual.”259 Tragamos muitos sorvetes, antes e depois da chuva, em Belém, enquanto andarilhos vindos do Sul, pesquisadores de Direitos Humanos, que acreditavam na máxima utópica estampada pela cidade: “Um outro mundo é possível”. Quando visitávamos a Basílica de Nossa Senhora de Nazaré, conhecemos, na escadaria, uma moradora de rua chamada Jerusalém – Dona Jerusalém, idosa, negra, vestindo farrapos. Usava guias, o que atraiu o olhar de Thiago, candomblecista. Começou, então, uma rápida troca de saberes musicais: Thiago cantava pontos de caboclos entoados no terreiro em que era Pai-Pequeno, em São Paulo, e Dona Jerusalém respondia com pontos de tamborde-mina. Foi quando ouvimos a seguinte canção:

Rei Sebastião Guerreiro militar É Xapanã É pai de terreiro Ele é guerreiro Nessa Roma Imperial

A variação de letra descoberta anos depois, na pesquisa de Rodrigues de Silva sobre o desfile da Mocidade Independente de 2008, me deixou estupefato: via, ali, um big-bang. Parece-me correta a ideia de Gregory Claeys de que mais importante do que a “utopia em si” é o movimento que se faz pela busca dela, o percurso, a viagem, a travessia no sentido rosiano – e as múltiplas conexões que brotam pelas estradas. Da mesma arquibancada do Sambódromo, em 2008, eu vi a Imperatriz Leopoldinense desfilar João e Marias, de Rosa Magalhães. Narrativa das mais inventivas e amarradas, vencedora do Estandarte de Ouro de melhor enredo. Rosa partia da genealogia da Família Real portuguesa, que desembarcou no Rio de Janeiro, em 1808, para recontar, ao final, a história narrada em 1996: o enlace de Leopoldina com Pedro I, o encantamento com a natureza tropical, a Independência de 1822. Antecipava, também,

259

MORAES, Marcos Antonio de (Org.). Obra citada, p. 346.

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o enredo vindouro, de 2009: o último setor do cortejo falava da própria agremiação e celebrava as vitórias da “Rainha de Ramos”. Inúmeros pontos chamam a atenção, automaticamente, em João e Marias, a começar pelos diálogos interartísticos também observáveis em Breazail. A quarta alegoria do desfile, que representava a fuga da família real, não escapou da análise que Gustavo Krelling e Dulce Osinski empreenderam, em Rosa de Ouro nunca foi de brincadeira. Os autores apontam o diálogo que Rosa Magalhães estabelece com os Azulejões de Adriana Varejão260, renomada artista plástica brasileira: “os azulejos do colonizador, representados na obra de Adriana Varejão, vão reforçar a ideia da vinda das tradições portuguesas para o Brasil, mas, principalmente, constituem uma relação que Rosa Magalhães estabelece com a arte erudita.”261 No terceiro carro alegórico (imagem 55), diferentemente, o substrato textual era um musical da Broadway: Les Misérables. Intitulada Os revolucionários franceses e Napoleão, a alegoria mereceu breve justificativa, no Livro Abre-Alas: “A Revolução Francesa foi uma consequência da má administração no reinado de Louis XVI e dá oportunidade a Napoleão de se elevar à categoria de Imperador”. O que se via, na Passarela do Samba, era um cenário de guerra: bandeiras esfarrapadas, homens e mulheres sujos, ferros retorcidos, luzes que simulavam incêndios. Sobre a escultura de uma águia dourada, o destaque João Helder encarnava Napoleão Bonaparte, em trajes de coroação. Nas fantasias das alas, as rosetas revolucionárias (imagem 56). A presença da “luta”, na obra de Rosa Magalhães, é mais instigante do que parece. Muito já se falou (e ainda será falado) de um ideal de harmonia e pacificação social (o equilíbrio de contrários, a neutralização das mazelas históricas sob um viés romantizado), o que não quer dizer que a carnavalesca apenas empreste as suas cores para o amor, a esperança e a paz, valores e sentimentos associados (superficial e quiçá equivocadamente) à busca por uma utopia262. A guerra, o oposto do pacifismo, aparece em algumas 260

Nesse caso, um diálogo assumido na justificativa da alegoria, conforme o anotado no Livro Abre-Alas de 2008: “Temendo a invasão de Portugal pelas forças napoleônicas, e aconselhados pelos ingleses, a Rainha D. Maria I e seu filho D. João, então regente, decidem se mudar para o Brasil. Embarcam, junto com os nobres, a família real e as 06 filhas Marias de D. João e D. Carlota. O carro é decorado com azulejos portugueses gigantes, uma releitura e também homenagem à artista plástica Adriana Varejão.” Disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA. 261 KRELLING, Gustavo; OSINSKI, Dulce Regina Baggio. Obra citada, p. 169/170. 262 Quem adverte é Gregory Claeys: “O que importa, no que se refere a definir melhor o gênero utópico, é a plausibilidade do que descobrimos depois que chegamos lá. É isso que diferencia a ficção científica da utopia, e também muitos dos subgêneros utópicos da utopia em si. Ajuda-nos a evitar reduzir a utopia a um princípio psicológico, um desejo “extravagante” ou “princípio de esperança”, além de distanciá-la de

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narrativas, sob as mais inusitadas roupagens. Aparece, inclusive, em Breazail, sob o selo do vermelho chinês (na quarta alegoria do desfile, O vermelho incendeia as guerras, os “Guerreiros de Xian” expressavam o poderio bélico das dinastias chinesas, conforme anteriormente anotado).

Imagem 55: Terceira alegoria do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2008, Os revolucionários franceses e Napoleão. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

“sonhos” de todos os tipos, pois tudo também é possível em um sonho. Esses conceitos muitas vezes confundem o motivo que leva algumas pessoas a buscarem utopia com o objeto a ser buscado, que manifestamente não é “esperança”, mas sim seu objeto ou realização. O critério da plausibilidade ajuda a limitar e a especificar a utopia, assim como a conceber sua factibilidade e a separá-la do meramente imaginário ou impossível. Mundos subterrâneos são implausíveis; uma sociedade organizada de acordo com princípios coletivistas, mas apenas ficticiamente localizada no subterrâneo, não é implausível, embora alguns detalhes possam ser. Escolhemos um topos, ou localização, muito diferente exatamente a fim de dar crédito a um ideal ampliado de sociedade melhorada.” In: CLAEYS, Gregory. Obra citada, p. 14/15. Ainda sobre a questão da “paz”, Michel Foucault, em Outros Espaços, diz que o espaço da “paz absoluta” existe – e não é uma utopia, mas uma heterotopia eternitária: o cemitério. Curiosamente, Rosa Magalhães já carnavalizou um cemitério na Passarela do Samba – o São João Batista, na segunda alegoria do desfile da São Clemente de 2015, homenagem a Fernando Pamplona (que, na juventude, ensaiava percussão, junto a um grupo de amigos foliões, em meio aos túmulos do campo santo – onde seguramente não eram incomodados pela vizinhança).

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Imagem 56: Fantasias da ala Roseta – símbolo da Revolução Francesa, no desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2008. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

De fato, são raras as visões de conflitos “realistas”. Diferentemente do que a BeijaFlor de Nilópolis apresentou repetidas vezes, no decorrer das últimas décadas (inclusive em 2018, com a maior crueza possível – opção estética que levou o júri do Estandarte de Ouro, conforme a transcrição dos debates travados após os desfiles apresentada pelo Jornal Extra, a criticar com veemência a ausência de carnavalização; a imagem de crianças mortas em caixões e a simulação de uma chacina em um colégio não agradaram aos julgadores d’O Globo, mas, contradições do carnaval, garantiram à escola a boa avaliação do júri oficial da LIESA, que a sagrou campeã), nunca se viu, na obra de Rosa Magalhães, manchas de sangue falso ou teatralizações de massacres (cenas violentas, em suma). As batalhas aparecem, grosso modo, ou pela inevitabilidade do tema (caso da Revolução Francesa, no enredo de 2008, e da Guerra dos Farrapos ou Revolução Farroupilha, no enredo de 2006) ou porque evocam manifestações folclóricas e folguedos populares. Em ambos os casos, nota-se a estetização carnavalizante: a autora se preocupa em traduzir visualmente os conflitos com o mais cuidadoso tratamento artístico – ora nas bandeiras rotas, ora na profusão de fitas e flores de tecidos. Vejamos alguns exemplos: A abertura do enredo de 2001, “Cana-caiana, cana roxa, cana fita, cana preta, amarela, Pernambuco... quero vê descê o suco, na pancada do ganzá!”, expressava as lutas ou justas entre mouros e cristãos – conflitos que nos remetem às Cruzadas e às 163


sangrentas batalhas pelo domínio de Jerusalém, cidade sagrada para judeus, cristãos e muçulmanos. A autora narra o seguinte:

A história da aguardente e do açúcar acompanha a trajetória da cana-de-açúcar, sua matéria-prima, originária das ilhas do oceano Pacífico. Embora já fosse conhecida por muito tempo, sua propagação deve-se aos árabes que se lançaram, no século VII, à conquista de um vasto império. À medida que iam avançando, iam se instalando com armas e bagagens. E na bagagem vinha a cana-de-açúcar. Os cavaleiros cristãos da Península Ibérica andavam em luta constante com os mouros e decidiram expulsar os inimigos da fé cristã de seus domínios, e para isto tiveram que lutar nas Cruzadas. De volta para casa, os Cruzados trouxeram a cana-de-açúcar, e tentaram plantá-la na Europa, sem grande sucesso. Mas passaram a consumir cada vez mais o açúcar, comercializado pelos venezianos, que tinha se tornado indispensável à mesa de reis, príncipes e grandes senhores.263

O nome dado ao carro abre-alas expressa tal imaginário: Alegoria aos festejos populares – A cavalhada, luta entre mouros e cristãos. Na indumentária da Comissão de Frente (imagens 57 e 58), o que se via era um festival de fitas, flores e franjas multicoloridas – a visão alegre para um tema conflitivo. A mesma estratégia narrativa foi empregada em 1990, quando, à frente do Acadêmicos do Salgueiro, a carnavalesca desenvolveu o enredo Sou amigo do Rei, sobre a perpetuação do imaginário que envolve Carlos Magno nas manifestações folclóricas brasileiras. Defende a autora:

Difundido desde o século XVIII, A história do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França e a cruel batalha que teve Oliveros com Ferrabrás, Rei de Alexandria e filho do grande Almirante Balão marcava as aventuras do Rei Carlos Magno, em luta contra os mouros, cujo chefe era Balão, pai de Floripes e Ferrabrás. Havia a luta do bem contra o mal, supostamente os mouros, pois os anjos protegiam os cristãos e os diabos ajudavam os muçulmanos. Ora, no Brasil este livro tão conhecido deu origem a festas folclóricas e folguedos, contando histórias heroicas, de batalhas e amores tão nobres.264

Na apresentação do Salgueiro, durante um amanhecer de segunda-feira, viu-se uma sucessão de congadas, cavalhadas e coroações sertanejas. A imagem do tabuleiro de xadrez mereceu destaque – afinal, trata-se de um jogo de estratégia que simula uma batalha por meio da utilização de símbolos medievais. Nessa mesma linha interpretativa

MAGALHÃES, Rosa. “Cana-caiana, cana roxa, cana fita, cana preta, amarela, Pernambuco... quero vê descê o suco, na pancada do ganzá!”. Sinopse do enredo do carnaval de 2001 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA). 264 MAGALHÃES, Rosa. Sou amigo do Rei. Sinopse do enredo do carnaval de 1990 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA). 263

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(a tradução de batalhas em festejos populares), podem ser pendurados, ao gosto da literatura de cordel, os já mencionados enredos de 1995 e 2014. Em Mais vale um jegue que me carregue que um camelo que me derrube lá no Ceará a chegada das embarcações que carregavam os animais oriundos da Argélia ganhou o colorido das cavalhadas – dada a presença dos tratadores argelinos, que usavam roupas do universo muçulmano:

E assim, em 24 de julho de 1859, a barca francesa "Splendide", vinda de Argel, chega a Fortaleza com 14 dromedários acompanhados por argelinos, pois só eles sabiam como tratá-los e domá-los. O acontecimento foi de parar toda a cidade, todo mundo foi espiar, até o presidente da província, escoltado por soldados. Desceram primeiro os mouros com seus turbantes e albornozes. O vestuário, e sobretudo a tradição de acirrados inimigos da fé cristã, lembrava a luta dos cristãos e mouros, fixada no folclore nordestino. Depois apareceram os camelos. A multidão abriu espaço para aqueles bichos tão esquisitos.265

Felipe Ferreira analisa meticulosamente, em O Marquês e o Jegue, uma das fantasias que traduzem tal campo de batalha – aquela utilizada pelos trabalhadores do barracão, chamada Teatro de mamulengos: a luta de cristãos e mouros (imagem 59). A interpretação por ele apresentada merece leitura integral:

Três continentes interligados num tecido cuja trama, ou enredo, esconde e revela sua estrutura, como uma máscara. Os mouros africanos, sua luta em terras europeias contra os cristãos, liderados por Carlos Magno de França, e a assimilação deste embate por grande parte dos folguedos populares brasileiros, toda essa teia de relações pode ser percebida como uma metáfora da cultura brasileira e, principalmente, do carnaval. Ao observarmos a fantasia, somos imediatamente atraídos pela espécie de grande poncho retangular que vem a ser a sua característica dominante. Este é, na verdade, um grande tabuleiro onde um jogo de enfrentamento entre dois opostos irá se realizar. Diferentemente, entretanto, do tabuleiro tradicional de xadrez – difundido no mundo ocidental a partir de sua introdução na Europa, quando da época das Cruzadas – com sua divisão dicotômica entre casas opostas (o branco e o negro, o marfim e o ébano etc.), o tabuleiro carnavalizado irá, ao mesmo tempo, destacar, multiplicar e fundir estas oposições. Destacar, ao colocar lado a lado retalhos de tecidos de diferentes cores, padronagens e texturas que, próximos uns aos outros irão reafirmar sua peculiaridade. Multiplicar, ao expandir a dualidade preto-branco em diversos nuances de cor e textura. Fundir, ao sobrepor, numa mesma casa elementos de origens opostas que, ao coexistirem num mesmo espaço, estarão criando uma nova relação entre si, rica de novas possibilidades significativas. (...) Este grande tabuleiro, ou patchwork, feito de retalhos da cultura popular e da cultura erudita, é, também, uma grande cortina teatral que irá, como nos teatros de bonecos da Europa medieval, servir de base a uma representação, um possível embate entre duas forças que, ao final, se unirão em um abraço. É sobre esta cortina-palco que 265

MAGALHÃES, Rosa. Mais vale um jegue que me carregue que um camelo que me derrube lá no Ceará. Sinopse do enredo do carnaval de 1995 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA).

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irá se realizar a “batalha” entre cristãos e mouros característica da cavalhada brasileira. Batalha, de resto, da qual se conhece o final e que, na verdade, é uma metáfora da reunião entre duas culturas. É esta metáfora que se verá repetida em nossa fantasia-palco-patchwork. De um lado o mouro, a cultura exótica, estrangeira; do outro o cruzado cristão, a cultura endógena, nativa.266

Imagem 57: Comissão de Frente da da Imperatriz Leopoldinense, no desfile de 2001, representando as lutas entre mouros e cristãos. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

Imagem 58: Comissão de Frente da da Imperatriz Leopoldinense, no desfile de 2001, representando as lutas entre mouros e cristãos. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

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FERREIRA, Felipe. Obra citada, p. 143/144.

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Imagem 59: Fantasia Teatro de mamulengos: a luta de cristãos e mouros, analisada por Felipe Ferreira. Fonte: FERREIRA, Felipe. O marquês e o jegue. Estudo da fantasia para escolas de samba. Rio de Janeiro: Altos da Glória, 1999, p. 142.

Também as fantasias do primeiro setor mangueirense de 2014 apresentavam retalhos e patchworks, o que demonstra a existência de uma mesma linha interpretativa no que tange à representação de folguedos populares que expressam batalhas, lutas, conflitos. A primeira ala do cortejo da Verde-e-Rosa se chamava Cavaleiros da Cavalhada; a segunda, Guerreiros da Cavalhada; a terceira, Cucurus – Palhaços da Cavalhada. Fitas e flores de tecido definitivamente não faltaram. Há, no entanto, algumas representações de batalhas menos festivas (ou travestidas de festividades populares) – caso da já mencionada alegoria que, no desfile de 2008 da Imperatriz Leopoldinense, expressava as batalhas ocorridas na França a partir da tomada da Bastilha, em julho de 1789. Outro exemplo nesse sentido é o carro de número 06 do desfile gresilense de 2006, cujo enredo, Um por todos e todos por um, se utilizava do romantismo de Alexandre Dumas para contar a história de lutas e aventuras de Giuseppe e Anita Garibaldi. A alegoria, intitulada A hidra devorará o Império, foi descrita com a mais austera economia, no caderno entregue ao júri: “Os revoltosos farroupilhas se 167


rebelam contra a Coroa.” Sobre o chassi, observava-se uma escultura da coroa do Império brasileiro envolta por farrapos de cores fechadas (verde musgo, vinho, marrom), além de barricadas, bandeiras e flâmulas chamuscadas – um tratamento de sujeira e destruição análogo ao que seria apresentado (ainda que com menos impacto dramático) no carro sobre a Revolução Francesa, dois anos depois. No encerramento do desfile de 2006, porém, a guerra cedia lugar a uma louvação do amor – e do “amor romântico” desenhado por Dumas. A sequência de duas alas finais, Bailarinas e Baianas, representava O amor de Garibaldi e Anita e O amor pela liberdade, respectivamente. No último carro alegórico, grandes corações em vermelho contrastavam com formas escultóricas e fantasias em amarelo e dourado – visão apoteótica beijando (com vontade) o clichê. O argumento exposto na sinopse do enredo é indiscutivelmente mais convidativo que o visual apresentado na avenida:

Os heróis dos dois mundos deixam a esfera histórica e se transformam em mitos. Personagens emblemáticos de uma época romântica. As aventuras americanas foram elemento essencial do mito garibaldino. Escritores como Victor Hugo, George Sand e Dumas lhes prestaram homenagens. Seus feitos serviram de fundo para filmes como O Leopardo, dirigido por Visconti, ou Viva a Itália!, de Rossellini. Até mesmo para um simples cantar brasileiro: “Neguinho do pastoreio Campeia no litoral E há de sentir ilusões De que ainda vê os lanchões De Giuseppe Garibaldi!”267

O que é importante destacar, observados tais contrastes, é que mesmo nos desfiles em que a guerra aparece de maneira menos festiva e mais crua, o desenrolar da história leva ao amor, à paz, à esperança, à união, à liberdade, a valores eminentemente positivos – ora com mais, ora com menos açúcar. Tal é o espírito impregnado na letra do samba de enredo entoado pelos gresilenses durante o desfile do ano 2000, iniciado com a partida das caravelas de Lisboa (da Torre de Belém, cenário tranquilo, onde tiveram início as digressões deste retalho). A composição, de autoria de Marquinhos Lessa, Guga, Amaurizão, Toninho Professor e Chopinho, terminava por exaltar: “São 500 anos vivos na memória / De luta, esperança, amor e paz!”. Flower power. 267

MAGALHÃES, Rosa. Um por todos e todos por um. Sinopse do enredo do carnaval de 2006 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA).

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III. 3 – As distopias e o pop-nostalgia

Rio de Janeiro, 16 de julho de 2013, Auditório do Instituto de Artes da UERJ. Em encontro promovido pelo Centro de Referência do Carnaval e pelo Departamento Cultural da UERJ, com a participação do professor Felipe Ferreira e do jornalista d’O Globo Marcelo de Mello, Rosa Magalhães concordou com a ideia de Ferreira de que a obra por ela desenvolvida pode ser considerada “barroca”, uma vez que o barroco é parte da pósmodernidade. Muito detalhadamente, Ferreira explicou que algumas características do barroco (dinamismo, contraste, dramaticidade, incompletude, movimento, opulência, sobreposições, acúmulo, decoração excessiva, originalidade, ousadia, entre outras) são detectáveis no contexto pós-moderno (usou como exemplo, inclusive, a sobreposição de imagens nas páginas da Internet). Iluminou-se a ideia de que o conceito de “barroco”, tanto mais no contexto carnavalesco das escolas de samba do Rio de Janeiro268, não é algo atrelado ao passado, empoeirado, arcaico, em oposição às tecnologias do agora. De certa forma, Ferreira aprofundou, diante da convidada ilustre, as proposições defendidas em artigo publicado na Revista de Carnaval de 2009 da Imperatriz Leopoldinense, intitulado Rosa Magalhães: Pós-Modernidade Barroca. No artigo, o autor afirma: “muito mais que barroca, a carnavalesca (...) pode ser definida como uma artista pós-moderna, por sua capacidade de acumular, sobrepor e justapor referências reunidas em toda uma vida ligada à cultura, às artes e ao ensino.”269 No mesmo encontro ocorrido na UERJ, naquela noite de inverno carioca, Felipe Ferreira questionou Rosa Magalhães sobre a presença de elementos da cultura pop em

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Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, em Carnaval Carioca: dos bastidores ao desfile, fala da “primazia do visual” em um desfile de escola de samba e atenta para o fato de que é impossível apreender as alegorias em sua totalidade: no barracão nunca estão prontas, na concentração estão desmontadas, no desfile estão em movimento, ou seja, formam um todo complexo cujo decifrar por inteiro não é permitido ao observador. Evocando autores estrangeiros (Arnold Hauser, Walter Benjamin, Jeanne Marie Gagnebin) e nacionais (Hiram Araújo, Frederico de Moraes, Ferreira Gullar), a pesquisadora defende que as escolas de samba do Rio de Janeiro são “manifestações barrocas”. Citando Hauser, discorre: “Haveria portanto alguns traços gerais nesse barroco revalorizado, que mencionados neste contexto soam particularmente carnavalescos. São eles: a substituição do absoluto pelo relativo; a valorização do incompleto ou do desconexo em formas que ‘parecem poder continuar em todas as partes que transbordam de si mesmas. Todo o firme e o estável entra em comoção’; o caráter improvisado: ‘Em última instância – diz Wolffin – existe a tendência a apresentar o quadro não como coisa do mundo que existe por si, mas como um espetáculo transitório no qual o espectador teve precisamente a sorte de participar do momento... Interessa que o conjunto do quadro apareça como não pretendido’”. In: CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Obra citada, p. 154/155. 269 FERREIRA, Felipe. Rosa Magalhães: Pós-Modernidade Barroca. In: Imperatriz Leopoldinense – Revista de Carnaval 2009. Rio de Janeiro: Gráfica Formato3, 2009, p. 34.

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alguns dos seus carnavais, algo que julgava bastante divertido, pertinente e coerente – a confirmação de que a autora, diferentemente do que pode sugerir uma leitura simplista, jamais se deixou aprisionar em um conceito estético antiquado; ao contrário, procura dialogar, ao máximo, com a contemporaneidade.270 Para ilustrar o seu raciocínio, Ferreira utilizou como exemplo o desfile da Estácio de Sá de 1987, assinado por Rosa Magalhães e Lícia Lacerda, cujo enredo, O ti-ti-ti do sapoti, contava a história do fruto originário do México que, depois de chegar ao Brasil, ganhou o gosto popular – inclusive a mesa de D. João VI, Leopoldina e demais membros da corte portuguesa, que, de acordo com a letra do samba (de autoria de Darcy do Nascimento, Djalma Branco e Dominguinhos do Estácio), “se empapuçaram” de tanto comer. O carro abre-alas da agremiação do Morro de São Carlos exibia o símbolo que gira na bandeira da escola, o leão. Mas não se tratava de um leão qualquer, e sim de uma releitura do leão da Metro-Goldwyn-Mayer, a famosa “MGM Studios”, empresa norteamericana de comunicação de massa, fundada em 1924, famosa pelas megaproduções cinematográficas. O anúncio da empresa, no início da exibição dos filmes por ela produzidos e distribuídos, ganhou o imaginário coletivo mundial: um leão, dentro de uma moldura redonda dourada (com as inscrições “Ars Gratia Artis”, ou seja, “A arte pela arte”), entre rolos de filme também na cor do ouro, ruge ferozmente duas vezes – inegável demonstração de força e poder, dadas as ancestrais simbologias do ouro e do leão, o “Rei dos animais”. Na alegoria que abria o cortejo estaciano (imagem 60), uma grande cabeça de leão, os dentões à mostra, saía de uma moldura de rolos de filme (em branco e preto). As patas do animal agarravam as películas, enquanto as composições, com plumeiros em amarelo e vermelho, incendiavam a avenida com seus “requebros febris” (a visão eternizada de Silas de Oliveira). Mas não se tratava, e eis o pulo do gato (ou do leão, todos felinos), de uma referência gratuita, banal: ao contrário, a evocação do universo do cinema ajudava a contar o enredo da escola, uma vez que a seiva (ou o látex, como também é chamado) do sapotizeiro é utilizada para a fabricação de gomas de mascar – os populares chicletes, tão presentes nas bombonieres dos cinemas e nas próprias produções das décadas de 1950 e 270

Pensar a obra de Rosa Magalhães em cotejo com as criações de Adriana Varejão pode ser um exercício dos mais interessantes. Varejão ressignifica elementos coloniais, como azulejos portugueses e anjos barrocos, inserindo-os no contexto da arte contemporânea e levantando, com isso, inúmeras discussões sobre as visões de “identidade nacional” e sobre as feridas abertas (não à toa apresenta peças que simulam a carne viva) de nosso passado (tão recente) patriarcal, agrário, escravocrata, machista e racista. Ver: VAREJÃO, Adriana. Entre carnes e mares. Rio de Janeiro: Cobogó, 2009.

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1960: os “rebeldes sem causa” mascavam chicletes e estouravam bolas271, inserido o produto industrializado (juntamente com a brilhantina, as jaquetas de couro, as lambretas, os óculos escuros, o milk-shake e a jukebox) em um imaginário de juventude, transgressão e rebeldia.

Imagem 60: Detalhe do abre-alas da Estácio de Sá, no carnaval de 1987, sobre o sapoti. O leão, símbolo da escola, foi ressignificado e transformado no leão da Metro (ou vice-versa, ao gosto carnavalesco). Foto: Delfim Vieira. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/carnaval/carnaval-historico/cuidado-leaoesta-solto-na-avenida-15071167.html. Acesso em 13/03/2018.

A transformação do leão-símbolo da Metro, multinacional da cultura de massa, no leão-símbolo da Estácio de Sá, agremiação carnavalesca da cultura popular carioca, é, para Felipe Ferreira, um belo exemplo da plasticidade de Rosa Magalhães. O processo de ressignificação “matava três coelhos”: apresentava o símbolo da escola, mexendo com os brios da comunidade apaixonada; começava a desenhar o enredo a ser contado, materializando na avenida o espírito de uma época; e despertava nos espectadores um sentimento de feliz nostalgia – o que, na visão de Ferreira, é o ponto mais interessante. De acordo com o pesquisador, é uma estratégia da artista a utilização de elementos vintage, capazes de acionar o “inconsciente coletivo” (termo bastante trabalhado por Maria Augusta Rodrigues, nas palestras que profere) e mexer com a memória afetiva de uma coletividade. Além da abertura do desfile da Estácio de Sá de 1987, Ferreira

271

No desfile da Estácio havia, inclusive, uma ala cuja fantasia representava “bola de chiclete”.

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mencionou, na mesa da UERJ, a apresentação do Salgueiro de 1991 e os desfiles gresilenses de 1998, 2000, 2005 e 2007. Em 1991, o Acadêmicos do Salgueiro levou para a Marquês de Sapucaí o enredo Me masso se não passo pela Rua do Ouvidor, contando a história de um rua que sintetiza o Centro do Rio de Janeiro e as transformações pelas quais a cidade passou – da fundação aos dias atuais, merecendo destaque o período imperial e a Belle Époque. Um dado interessante observado nas justificativas redigidas pela carnavalesca, no Livro Abre-Alas daquele ano, é que, objetivando unificar esteticamente a narrativa, ela optou por um leitmotiv: O desenvolvimento do tema traduz-se também nos trajes. Para tal, imaginamos como motivo central uma flor. Ora é impressa no tecido, ora possui volume, ora é romântica, ora é pós-moderna. A flor assume a função de um “leitmotiv”, acompanhando todo o desenrolar do enredo. Assim foram criadas estamparias cujo tema é um só, mas que vai sofrendo mudanças à medida que o tempo passa. Do rococó, passando pelo neoclássico, até os dias de hoje. Os modelos também fazem parte desta passagem de tempo, juntamente com o esquema cromático. As roupas leves visam uma melhor evolução para a Escola.272

Nas alegorias, especialmente a partir da Terceira Parte do enredo (a Primeira Parte tratava da abertura da rua, no final do século XVI, chamada Desvio do Mar; a Segunda Parte, do período em que a Família Real portuguesa viveu no Rio, na primeira metade do século XIX), amontoados de objetos antigos davam ao desfile um ar de antiquário ou grande bazar. Sucediam-se os seguintes elementos alegóricos: Carro Nº 5 – Carro da Moda; Carro Nº 6 – A Livraria; Carro Nº 7 – A Confeitaria; Carro Nº 8 – A Joalheria; Carro Nº 9 – A Relojoaria; Carro Nº 10 – O Fotógrafo; Carro Nº 11 – Carro das Cocotes; Carro Nº 12 – Da 1º de Março falta um passo para a Rua do Ouvidor; Carro Nº 13 – O Bonde; Carro Nº 14 – O Carnaval; Carro Nº 15 – Rua do Ouvidor hoje. Especialmente nas alegorias 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 13 e 14 viam-se elementos de épocas passadas, fixados nas nossas memórias (imagem 61). Relógios dos mais variados tipos (a autora informa que a rua possuía 33 relojoeiros), bibelôs de porcelana, lambe-lambes, móveis coloniais, tudo conferia à apresentação salgueirense um ar nostálgico – na letra do samba de enredo, composto por Sereno, Diogo e Luiz Fernando, “a nostalgia do Rio que era mais feliz.”273 272

Informações presentes no Livro Abre-Alas de 1991, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA. 273 De certa maneira, o mesmo espírito do enredo salgueirense motivou a carnavalesca a pensar a narrativa assinada para o Império Serrano, no Grupo de Acesso A, em 2010. Desenvolvido em parceria com Mauro Leite Teixeira e Andréa Vieira, o enredo João das ruas do Rio partia das narrativas de A alma encantadora

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O acúmulo de objetos ajudava o público a compreender a importância da Rua do Ouvidor, que, de acordo com o texto da sinopse do enredo, era comparável às Ruas Vivienne, em Paris, Regent Street, em Londres, e Broadway, em Nova York. Nas palavras de um viajante estrangeiro (de nome desconhecido), citado na sinopse, “as três, combinadas, dão como resultado a Rua do Ouvidor”, um exemplo “para aliviar o trânsito da Broadway”.274

Imagem 61: Alegoria que representava as Relojoarias, no desfile do Acadêmicos do Salgueiro, em 1991. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

A mesma fragrância nostálgica, cheiro bom de sachê de guarda-roupa, ajudou a colorir os desfiles da Imperatriz Leopoldinense dos anos 2000, 2005 e 2007. Na traseira da última alegoria de Quem descobriu o Brasil foi Seu Cabral, no dia 22 de abril, dois meses depois do carnaval viam-se esculturas que remetiam aos desenhos carnavalescos de J. Carlos e uma caricatura de Lamatine Babo, compositor de inúmeras marchinhas (entre elas, aquela que inspirou a carnavalesca a criar o título do enredo apresentado, trocando “inventou” por “descobriu”) e personagem homenageado pela Imperatriz Leopoldinense, sob o risco de Arlindo Rodrigues, no desfile campeão de 1981 – ou seja: das ruas para contar as mudanças pelas quais passou o centro da cidade; assim como no desfile sobre a Rua do Ouvidor, a última alegoria do Império Serrano mostrava uma rua carioca contemporânea, com ambulantes, flanelinhas, camelôs, “cenário natural do dia a dia”, conforme o samba de Marcelo Ramos, Henrique Hoffmann, Paulinho Valença, William Black e Popeye. 274 MAGALHÃES, Rosa. Me masso se não passo pela Rua do Ouvidor. Sinopse do enredo do carnaval de 1991 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA).

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nostalgia em dose dupla. Em 2005, no desenvolvimento do enredo sobre a obra de Hans Christian Andersen, viam-se ilustrações de livros infantis da segunda metade do século XIX (carro abre-alas), além de porcelanas chinesas (alegoria 3) e antigos brinquedos de crianças (alegoria 5), como caixinhas de música com bailarinas giratórias, palhaços de mola, blocos de montar, ursos de pelúcia e soldadinhos de chumbo (imagem 62). Em 2007, a fim de abrir o enredo sobre a história do bacalhau e a mitologia da Noruega com maior apelo popular, a carnavalesca reviveu na Sapucaí o excesso tropicalista dos programas de Abelardo Barbosa, o Chacrinha275, que, entre frutas, paetês, plumas e cartas de baralho, atirava pedaços do peixe aos presentes no auditório - e certamente deixou saudade (uma vez que não mais se viu tal irreverência espalhafatosa na televisão brasileira). Pode ser inserido nessa galeria de “antiguidades”, ainda, o fusca cor-de-rosa que ajudava a compor a alegoria dedicada à infância, no desfile da Estácio de Sá de 1987.

Imagem 62: Brinquedos infantis no desfile em homenagem a Hans Christian Andersen. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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Chacrinha, que já havia aparecido no cortejo gresilense de 2002, conforme visto em A Antropofagia de Rosa Magalhães, voltou à Sapucaí em 2018, no desfile da Acadêmicos do Grande Rio, desenvolvido por Renato Lage e Márcia Lage. O enredo, intitulado Vai para o trono ou não vai?, propôs uma colagem de imagens e canções que marcaram as décadas de 1960, 1970 e 1980. Problemas graves com o último carro alegórico (que não participou do desfile, terminando guinchado) esfacelaram a harmonia e a evolução da escola – que, inesperadamente, terminou a apuração de quarta-feira de cinzas rebaixada para a Série A (algo que nem o melhor vidente poderia prever). Foi a prova dos nove: a “lenda” de que o “Velho Guerreiro” traz “má sorte” carnavalesca (comenta-se, nos bastidores da folia, que enredos que falam do personagem estão fadados ao insucesso – caso dos dois desfiles gresilenses mencionados, da apresentação do Paraíso do Tuiuti, em 2017, e do desfile que eu e Gabriel Haddad assinamos em 2015, na Acadêmicos do Sossego, sobre a banana e o abacaxi) foi comprovada e posta em ata. Ata que, por vezes, termina rasgada – caso observado no pós-carnaval de 2018, quando a LIESA anulou os rebaixamentos de Império Serrano e Grande Rio, “virando a mesa” pelo segundo ano consecutivo.

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O enredo e o desfile de 1998 formam um caso sensivelmente mais complexo – o que obriga o leitor a uma análise cuidadosa. Em Quase no ano 2000 (imagens 63, 64, 65 e 66) não apenas o “pop nostalgia” (o conceito cunhado por Ferreira – e apresentado na mesa da UERJ – para tentar explicar a utilização dos elementos antigos, nas narrativas visuais de Rosa Magalhães) se faz presente (o pequenino avião de madeira a girar em torno de um grande planeta, no carro abre-alas; a presença de personagens de séries e filmes de ficção científica de diferentes épocas, na quarta alegoria; as referências explícitas aos quadrinhos de Flash Gordon, no primeiro setor) mas o conceito de distopia – e aqui o diálogo com Breazail, enredo que carnavaliza a Utopia de Thomas More, ganha vivacidade. Aparentemente um ponto fora da curva, tanto mais se o referencial adotado for “apenas” o conjunto de narrativas desenvolvido para a Imperatriz Leopoldinense, Quase no ano 2000 recebeu, na conclusão de A Antropofagia de Rosa Magalhães, comentários que merecem ser revisitados – e expandidos, à luz do conceito de distopia debatido por teóricos como Raymond Williams e Gregory Claeys. Escrevi, na dissertação de Mestrado defendida em 2014:

O enredo Quase no ano 2000 é um dos mais significativos nós do conjunto de narrativas observado porque parece, à primeira vista, um corpo estranho, um bicho-de-pé no pé do bicho-papão. Na verdade, o enredo apresenta um processo de construção e desenvolvimento visual semelhante aos demais, mudando apenas (não totalmente, vide o índio na última alegoria e o setor dedicado às flores e às belezas naturais; o ideal de unificação/pacificação social também se fez presente, não em escala nacional, mas global – donde brota a noção um tanto desgastada de “aldeia global”) o leque de referências. No primeiro setor do desfile, havia fantasias referentes a Tempos Modernos, de Charlie Chaplin, Asas do Desejo, de Wim Wenders, e Metrópolis, de Fritz Lang, indiscutivelmente cult movies do cinema autoral. No mesmo setor, brincava a ala Flash Gordon, referência despreocupada a um produto da cultura de massa. Na alegoria 04, Homem na Lua, personagens de filmes hollywoodianos disputavam o espaço cênico: Super-Homem, Darth Vader, os extraterrestres da série Homens de Preto, todos cantavam e dançavam com os rostos encobertos por máscaras importadas dos parques temáticos da Flórida. É como se na estante de Rosa Magalhães a série Guerra nas Estrelas dividisse a mesma prateleira com filmes de arte alemães; os quadrinhos de Flash Gordon figurassem ao lado de Macunaíma, o que não é surpreendente, afinal, os círculos culturais não são estanques, muito menos incomunicáveis (a já debatida ideia de circularidade e mediação cultural) – quantos são os casos de obras consideradas “menores” que, com o passar do tempo, ganham o status de cults, sendo redescobertas e ressignificadas num outro contexto?276

O que não foi debatido, naquele trabalho, é o caráter distópico que pode ser depreendido do enredo de Rosa Magalhães. De acordo com Gregory Claeys, “muito se 276

BORA, Leonardo Augusto. Obra citada, f. 304/305.

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discutiu se a ficção científica é exatamente uma parte da utopia, ou se, na verdade, a utopia é apenas um ramo da ficção científica.”277 Datado de 1929, o termo “ficção científica” foi criado por Hugo Gernsback, editor que abriu as portas para grandes nomes do gênero, como Isaac Asimov (Eu, robô), Arthur C. Clarke (2001) e Robert Heinlein (Tropas estelares). Desde então, ocupou espaços importantes, nas livrarias e salas de projeção, consolidando-se enquanto gênero bastante provocativo e ganhando uma legião de fãs (leitores e espectadores) apaixonados. Para Claeys,

Com a definição apresentada aqui, em que utopia, em resumo, é basicamente a representação formal de uma linha da tradição da comunidade ou cidade-estado ideal, a ficção científica é um subgênero em que há predominância dos temas ciência e tecnologia – utopicamente, quando expresso de maneira positiva, ou distopicamente, quando usado de modo negativo. (...) O gênero ficção científica cativou a imaginação popular de uma maneira nunca alcançada pela ficção utópica. O cinema e a televisão modernos foram invadidos pela ficção científica, e, desde o início do século XX, revistas e romances de ficção científica tiveram imenso apelo popular, e até grandes cultos, como a cientologia, surgiram do fascínio pelo espaço sideral e por óvnis. Na verdade, o espaço é a fronteira final da humanidade, o último domínio conquistável (e talvez até o último domínio que será conquistado). No mundo moderno, a especulação teológica foi, de modo geral, substituída pela especulação sobre ciência e tecnologia.278

A visão descarnada de futuro presente em Metrópolis, de 1927 (portanto anterior à divulgação do termo cunhado por Gernsback), se tornou um exemplo de distopia urbana: a exploração do operariado e o triunfo das máquinas são apenas alguns fios desencapados, numa usina de questões fumegantes. Alfredo Suppia desenvolveu uma análise comparativa de Metrópolis e Blade Runner, observando as visões de cidade presentes nas películas de Fritz Lang e Ridley Scott. Para o autor, Fritz Lang “vale-se da verticalidade como metáfora do conflito de classes, uma vez que o operariado, oprimido por jornadas de trabalho desumanas, amontoa-se nos subterrâneos, enquanto a burguesia goza de toda a tecnologia e segurança da superfície.”279 A arquitetura da cidade exibida na tela, portanto, expressa uma ideia de conflito e opressão: “a cidade torna-se um palco aberto aos mais ousados experimentos plásticos do cineasta-arquiteto Fritz Lang.”280 Na segunda alegoria do desfile assinado por Rosa Magalhães, em 1998, o que se via era justamente isso: sobre altos edifícios espelhados, decorados com criaturas gargulescas, os 277

CLAEYS, Gregory. Obra citada, p. 163. CLAEYS, Gregory. Obra citada, p. 163. 279 SUPPIA, Alfredo. A Metrópole Replicante. Construindo um diálogo entre Metrópolis e Blade Runner. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2011, p. 39. 280 SUPPIA, Alfredo. Obra citada, p. 39. 278

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soberanos de Metrópolis dançavam; nos esgotos, entre engrenagens, parafusos e roldanas, um grupo de operários exibia coreografia robótica – exemplo de teatralização, algo bastante utilizado pela carnavalesca ao longo de sua trajetória profissional. Uma visão sintética, portanto, da ideia central do filme – cujo próprio título se refere à urbanidade. O mesmo argumento comparativo apresentado por Suppia, em seu livro publicado em 2011, é utilizado pela artista, na sinopse do enredo de Quase no ano 2000:

O cinema ajudou a construir o imaginário do ano 2.000. Mas, agora que ele está aí, há que se reconhecer que a representação feita do futuro não se parece nem um pouco com o fim do milênio real. Metrópolis, de Fritz Lang, é a prova de que o cinema tomava o futuro como seu assunto desde os seus primórdios. Os robôs, o simulacro mecânico e mais tarde eletrônico do ser humano, já era elemento essencial no clássico Metrópolis, e continuou firme e forte nas cinco décadas seguintes. Blade Runner ou o Caçador de Andróides traz de volta a importância desta inexistente conquista tecnológica. Engrenagens, porcas, parafusos e circuitos de robôs representam os prazeres da dominação sem culpa, ou a escravidão sem culpa.281

O duelo entre homens e máquinas também foi traduzido na quinta alegoria do desfile, um tabuleiro de xadrez. A carnavalesca encenava os 2 matches de 6 partidas de xadrez disputados entre Garry Kasparov, campeão mundial capaz de analisar 3 jogadas por segundo, e o supercomputador Deep Blue, desenvolvido pela IBM (International Business Machines, empresa norte-americana do ramo da informática) para analisar 200 milhões de posições por segundo, em 1996 e 1997. No confronto de 96, o enxadrista nascido em Baku, no Azerbaijão, venceu por 4 a 2; em 97, depois de uma atualização do software de Deep Blue, a máquina levou a melhor e venceu o homem por 3¹/² a 2¹/² - um evento inédito, capaz de despertar as mais instigantes discussões filosóficas. A atualidade do enredo de 1998 se torna flagrante, mostrando que Rosa Magalhães não pretendia, apenas, investigar as visões de futuro construídas no passado, mas analisar o “hoje” (que hoje é o hoje de 20 anos atrás) e projetar um futuro harmonioso, multiculturalista, sem desigualdades, com a natureza preservada. Em O inverso das origens, a autora analisa a própria obra e discorre sobre as referências utilizadas:

Uma das mágicas do século 20, o cinema, também tratou da evolução do homem e da tecnologia. Os filmes de ficção espacial vêm da época de Meliés, com astronautas sem capacetes e tripulantes que mais se pareciam com as vedetes de musicais da época. O 281

MAGALHÃES, Rosa. Quase no ano 2000. Sinopse do enredo do carnaval de 1998 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA).

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filme Metrópolis, de Fritz Lang, não é só uma obra-prima como arte cinematográfica, pois plasticamente é belíssimo, mas condena também a massificação do homem, o trabalho automatizado. Podemos compará-lo, embora sob outro enfoque, ao filme em que Charles Chaplin trabalha numa fábrica. São tantos gestos mecânicos que, no final, de tão condicionado a fazer movimentos repetidos, ele se torna hilariante até para comer, e é aí que reside a crítica. Os figurinos da primeira parte do enredo para o desfile carnavalesco de 1998 foram inspirados nos filmes de Flash Gordon, do início da era cinematográfica. Os operários de Metrópolis e o robô-mulher, com traços art-déco, não poderiam ficar de fora dessa representação do século 20. A comissão de frente se encaixava nesse capítulo. (...) O homem na Lua e o módulo lunar foram o assunto de outro carro alegórico. E, de novo, o imaginário dos artistas da sétima arte foi explorado. Personagens de Jornada nas Estrelas, de Homens de Preto e seres estranhíssimos, embora nenhum deles tenha sido visto de verdade até hoje, juntaram-se ao astronauta. A inteligência artificial foi representada pelo jogo de xadrez em que Kasparov perdeu para o computador Deep Blue. Mas o Deep Blue só sabia jogar xadrez – as peças do jogo eram as diversas alas. Quis fazer um plotter com o jogo de xadrez. Procurei em vários livros, na Internet, e não encontrei nenhuma imagem que me agradasse, que mostrasse um confronto bonito das peças brancas e pretas. O jeito foi comprar um jogo de xadrez e montá-lo – também com a ajuda de um manual – como se a partida fosse começar. Tirei a foto, iluminada pelo abajur da sala, e foi assim que o plotter central do carro ficou pronto.282

Ainda que não fale em “distopias”, é ponto pacífico que obras como Metrópolis, e mesmo a derrota de Kasparov para o supercomputador da IBM, expressam o imaginário distópico, marcado por características opostas às dos conceitos de igualdade, liberdade, humanidade. Jerzy Szachi, em As Utopias, também não utiliza o termo distopia, mas fala em utopias negativas ou contra-utopias. Para ele, existe uma linha tênue entre o utópico e o distópico, uma vez que “a felicidade de alguns continua a ser a infelicidade de outros.”283 O autor destaca a “flexibilidade dos valores utópicos”, mas admite não possuir referenciais teóricos mais aprofundados para analisar as “utopias negativas”. Raymond Williams, diferentemente, desenvolve análise cuidadosa da literatura e da cinematografia distópicas em Cultura e Materialismo, falando em “novos paraísos e infernos” (terminologia cara a Joãosinho Trinta, vide o enredo desenvolvido para a Unidos do Viradouro, no ano 2000). Segundo o teórico britânico, a “ironia última e mais questionável” das distopias reside na apropriação (e ressignificação, com fins autoritários) que elas fazem de conceitos utópicos, como a palavra comunidade284. O lema 282

MAGALHÃES, Rosa; NEWLANDS, Maria Luiza. Obra citada, p. 111/112. SZACHI, Jerzy. Obra citada, p. 114. 284 Não curiosamente, o termo “comunidade” é dos mais utilizados no universo das escolas de samba, a fim de exaltar a coesão e a força de um determinando contingente de desfilantes. A Beija-Flor de Nilópolis é o caso mais comentado: a escola da Baixada Fluminense se orgulha em dizer que “é uma escola de comunidade”, inserindo a palavra nos seus sambas de enredo. As teias sociais observáveis por debaixo de tal conceito, porém, isso é trabalho para longas etnografias. 283

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do Estado em Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, é “Comunidade, estabilidade, identidade”. Diante do cenário de opressão, é característica dos “heróis distópicos” o desejo de ruptura, a necessidade da rebelião:

Como nas fases finais da ficção realista, a autorrealização não pode ser encontrada no relacionamento ou na sociedade, mas na ruptura, na fuga: o caminho que o selvagem toma na ficção de Huxley, como os milhares de heróis da ficção realista tardia, ao deixar o antigo lugar subterrâneo, as pessoas conhecidas, a família conhecida, ou como tantos heróis da ficção científica, correndo aos locais abandonados para escapar da máquina, da cidade, do sistema.285

Ganha reforço, aqui, a ideia de que a presença de índios brasileiros no último setor (e na última alegoria, sob a simbologia da onça negra) do desfile gresilense de 1998 não é algo aleatório: ao olhar para as comunidades tradicionais e defender a preservação dos recursos hídricos do planeta (e dos biomas como um todo), Rosa Magalhães esboça e arte-finaliza um posicionamento político (que permanece na pauta do dia) e confirma o caráter distópico da obra apresentada. Nos subterrâneos do enredo, parafraseando Jorge Amado, dançava a liberdade.

Imagens 63 e 64: Detalhes da quarta alegoria do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 1998, intitulada “O homem na Lua”. A presença de personagens cinematográficos da série Star Wars, de George Lucas, pode ser entendida enquanto exemplo do pop-nostalgia de que fala Felipe Ferreira. Fonte: transmissão televisiva da TV Globo.

285

WILLIAMS, Raymond. Obra citada, p. 282.

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Imagem 65: Detalhes da fantasia da Comissão de Frente da Imperatriz Leopoldinense, em 1998. Como a própria Rosa Magalhães narrou, em O inverso das origens, mistura de soldados gregos com pássaros tropicais e personagens de Flash Gordon. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

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Imagem 66: Detalhes da fantasia da Bateria da Imperatriz Leopoldinense, em 1998. Para representar o Computador, a carnavalesca Rosa Magalhães criou um figurino a partir da “estética do acúmulo”. Bolas de acetato (planetas?) sobre compridas varas de pesca bailavam pela avenida, construindo um visual bastante impressionante – o que levou o júri do Estandarte de Ouro a premiar, pela primeira vez, uma bateria como melhor ala do ano. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

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IV – “E la nave va...”: viagens reais e viagens simbólicas De que serve ter o mapa se o fim está traçado? De que serve a terra à vista se o barco está parado? De que serve ter a chave se a porta está aberta? De que servem as palavras se a casa está deserta? Pedro Abrunhosa – Quem me leva os meus fantasmas

IV. 1 - A bagagem Quando, em 2009, Rosa Magalhães publicou, na revista Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares – TECAP UERJ, o artigo intitulado Mais vale um jegue que me carregue que um camelo que me derrube, lá no Ceará..., optou por dividir o texto em três partes: A viagem, A criação e O desfile. A leitura de um fragmento de A viagem, destacado em A Antropofagia de Rosa Magalhães, é extremamente importante para a compreensão do processo criativo da autora – e para a definição dos novos rumos a serem seguidos neste trabalho:

O camelo sempre foi um dos bichos que mais me atraíram. Muito feio, diga-se de passagem, tem duas corcovas, os joelhos pontudos, as patas parecem grandes demais para os cambitos, é beiçudo e ainda por cima tem dois estômagos. Tudo parece não combinar. Achei que montar um desses animais seria fácil, pois, com duas corcovas, era só se encaixar no meio e os dois protetores naturais evitariam a queda. A minha experiência foi bem diferente. No Marrocos, depois de exaurir todas as possibilidades de conhecer museus e monumentos, mercados, lojas e palácios, o meu guia, Faté, tal qual o gênio da lâmpada, perguntou o que mais eu gostaria de fazer. “Andar de camelo” foi a resposta imediata. Já vinha ensaiando o pedido fazia tempo. Fomos para a estrada que margeia o deserto do Saara e lá, debaixo de uma palmeira, havia dois ou três camelos à espera de fregueses. Escolhi um, o tratador o fez ajoelhar-se, ele obedeceu a tudo direitinho. Mas só tinha uma corcova. Meu espanto foi saber que era ali mesmo, bem em cima daquele “calombão”, que eu deveria sentar, numa sela quase inexistente. A vontade, porém, era maior que o medo. Sentei, segurei a rédea e o bicho começou a se levantar. Foi horrível. Primeiro ele esticou as duas pernas traseiras, e a minha cara foi beijar o chão. Depois levantou as da frente, e lá fui eu pra trás. Vi o céu sem fazer esforço. Quando ficou de pé, fui para as alturas, porque o camelo é um bicho alto, mas muito alto mesmo. No começo, chacoalhou um bocado e o tratador, para minha segurança, ia correndo junto; mas depois, já no galope, foi emocionante. Lá estava eu, em pleno deserto do Saara, montada num camelo, galopando.286

286

MAGALHÃES, Rosa. Mais vale um jegue que me carregue que um camelo que me derrube, lá no Ceará... In: Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, v. 6, n. 1, 2009, p. 238. Disponível no seguinte sítio: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/tecap/article/view/12171/9486. Acesso em 20/11/2017.

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Rosa Magalhães adaptou o referido artigo para o livro O inverso das origens, excluindo as subdivisões. O novo título dado à narrativa, não sem a ironia característica da autora, foi Transportes alternativos não-poluentes. O trecho selecionado explicita o quanto a vivência real, prática, pele sob o sol, influencia as criações por ela elaboradas – para além das pesquisas bibliográficas de praxe, sobre mesas e pranchetas. Em Fazendo Carnaval, livro de 1997, a carnavalesca já havia discorrido sobre as viagens, no capítulo que encerra a obra: Enquanto o carnaval não chega. Além de narrar uma sucessão de exposições e mostras realizadas em diferentes estados brasileiros, fala da exibição dos figurinos desenhados para o enredo de 1991, Me masso se não passo pela Rua do Ouvidor, na Quadrienal de Teatro de Praga, na República Tcheca, e das pesquisas para a execução do enredo de 1996, Imperatriz Leopoldinense honrosamente apresenta: Leopoldina, Imperatriz do Brasil, realizadas na Áustria, em Viena (onde viu as aquarelas de Ender, “nunca expostas no Brasil”287), Salzburg (onde visitou o Museu do Teatro e o Teatro de Marionetes) e Innsbruck (onde sentiu o frio das neves eternas). Durante o depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MISRJ), em 26 de novembro de 2014, revelou que o enredo concebido para a Estácio de Sá, no carnaval de 1987, nasceu durante uma viagem à Tailândia – mais precisamente, durante um passeio de barco, quando o guia turístico apontou para uma árvore frondosa e exclamou: “sapota, sapota!”. A carnavalesca disse, na mesa presidida por Rachel Valença (da qual também faziam parte Felipe Ferreira, Haroldo Costa e Fábio Fabato), que a palavra “sapota” grudou na cabeça (feito goma de mascar?) e fez com que ela e Lícia Lacerda decidissem transformar em narrativa carnavalesca a história do sapoti – enredo que, depois das “terras mexicanas”, passeia pelo sul da Ásia. No mesmo evento, contou de viagens à China, à Rússia (onde, num evento de balé, diz ter sofrido preconceito – os anfitriões não gostaram de saber que ela era uma “carnavalesca”), à França, aos Estados Unidos (onde venceu o Emmy), à Noruega e à Dinamarca (onde experimentou um dos piores voos da sua vida, num avião minúsculo, sobrevoando montanhas geladas). O breve e superficial conjunto de memórias apresentado acima (coletado em eventos com a presença da carnavalesca) é, certamente, a ponta de um iceberg de experiências de viagens vivenciadas ao redor do globo. Sem sombra de dúvida, Rosa Magalhães pode ser considera uma “artista viajante”, que retira dos carimbos nos

287

MAGALHÃES, Rosa. Fazendo Carnaval, p. 152.

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passaportes a tinta que dá contorno às fantasias e aos carros alegóricos. A “experiência de viagem” é parte da matéria manipulada pela realizadora, colocando-a em um patamar diferenciado, no cenário ocupado pelos profissionais carnavalescos da cidade do Rio de Janeiro. O resultado disso é que na maioria dos enredos desenvolvidos por ela a ideia de viagem se faz presente, seja de forma direta/explícita (a narração de um evento viagem, por assim dizer – ou seja: uma ou mais de uma viagem enquanto “capítulos” de um enredo, uma “viagem propriamente dita”288, como ela mesma justifica, em O inverso das origens – caso da narrativa do ano 2000, que narra a viagem de Pedro Álvares Cabral, de Portugal ao Brasil, com a presença da Nau Capitânia, das algas, dos fura-buchos, do “primeiro desembarque na terra indígena”), seja de forma indireta (caso dos enredos que passeiam por diferentes culturas e localidades, sem necessariamente a presença de uma viagem específica – caso da narrativa de 2002, que fala da vinda dos cronistas franceses ao Brasil, no primeiro setor, e, quando trata das reverberações do indianismo de José de Alencar na Europa, vai a Milão, na Itália, sem que tais viagens, os deslocamentos em si, sejam traduzidos em fantasias e alegorias). Novamente, a riqueza da narrativa Breazail vem à tona, uma vez que se trata de um enredo que concentra as duas categorias acima mencionadas: há uma viagem em específico, central para o desenvolvimento do enredo (a “terceira viagem” de Américo Vespúcio ao Brasil, iniciada em 10 de maio de 1503 – sem a qual não se chega a Cabo Frio e ao desfecho da história), e viagens ocultas, saltos narrativos (e geográficos) que, no conjunto, varrem a Europa medieval, a China dos Mandarins, a Fenícia e a Irlanda dos celtas – culminando, tudo, na Utopia de More. Pode-se dizer, estreitando a leitura, que há viagens cronologicamente demarcadas (comprovadas, por meio dos registros históricos – emplumados tais registros da arte da ficção, na mira e na lupa das contestações de toda sorte) e viagens que não só ultrapassam fronteiras como cronologias (a ideia de heterocronia debatida por Foucault). Mapear tais incidências na obra da carnavalesca estudada é uma tarefa interessante, pois ajuda o leitor a dimensionar o papel narrativo das viagens e, o mais importante, contribui para a defesa da ideia de que ela, além de “anfíbia” (a adjetivação de Canclini), é uma artista fronteiriça que desenvolve à exaustão o conceito de deslocamento. No ofício de carnavalesca, Rosa Magalhães desenha cartografias

288

MAGALHÃES, Rosa; NEWLANDS, Maria Luiza. Obra citada, p. 26.

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particulares, no mais das vezes ligadas à bagagem pessoal – o acúmulo de memórias e vivências, a sobreposição de selos. Expandindo o olhar, a análise da presença das viagens na obra de Rosa Magalhães auxilia o leitor a compreender a dimensão utópica de tais exercícios artísticos, posto que os conceitos de viagem e utopia são interconectados. Gregory Claeys defende que tal conexão é uma consequência lógica da época em que a obra de More, basilar para as discussões do gênero utopia, foi escrita – o contexto da expansão marítima transatlântica, a época em que os mapas do mundo foram redefinidos. As ditas “viagens de descoberta” mudaram as mentalidades e alimentaram as mais extraordinárias fantasias. Diz o autor:

Como qualquer turista sabe, uma viagem rica é uma mistura de fantasia, antecipação e prazer em descobrir novidades. E quanto mais exótica, melhor, no que se refere a aventura e venda de livros. (...) A jornada mítica, fabulosa ou extraordinária é quase tão antiga quanto o ato de viajar, e muitas vezes é impossível desenhar os limites entre narrativa religiosa, lenda, fantasia, história de marinheiro e mentira deslavada. Peregrinos, que representavam boa parte dos viajantes medievais, saíam em suas jornadas transbordando de expectativas e suposições. Acreditavam que encontrariam o maravilhoso em alguma forma, fosse ao alcançar a Terra Sagrada ou no caminho até lá. Muitos ainda acham que o Jardim do Éden estava fisicamente localizado em algum ponto da Terra, talvez esperando ser redescoberto.289

Claeys também afirma que “o novo mundo era, desde o início, uma projeção da fantasia europeia de como seria Utopia”290 - mais do que “descoberto”, foi “inventado” (e invadido), a começar pelas terminologias da dominação (a palavra índios é o exemplo mais evidente). Os viajantes não carregavam as suas embarcações apenas com mantimentos, armas, piolhos e ratos – os porões das naus, galeras e caravelas estavam infestados de ideias pré-concebidas, imaginários cristalizados, crenças milenares (e de forte apelo literário, posto que ingredientes da mais saborosa, mesmo que amarga, ficção). Aqui, desnecessário é dizer da importância das viagens para a consolidação da literatura enquanto manifestação artística – se pensarmos que tanto a Ilíada quanto a Odisséia de Homero são poemas que falam de viagens (a ida para Tróia, o retorno para Ítaca), obras fundantes da literatura ocidental, a questão naturalmente ganha brilho. E também as viagens alicerçam narrativas orientais, africanas, ameríndias, de matriz oral ou escritas, mostrando que os deslocamentos são fundamentais para a existência humana – e para que

289 290

CLAEYS, Gregory. Obra citada, p. 71. CLAEYS, Gregory. Obra citada, p. 73.

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reflitamos sobre ela, o passado e o futuro, os novos mundos a serem inventados, os mapas a serem invertidos. Flora Süssekind é precisa ao afirmar:

Para fundar uma geografia e uma paisagem singulares e descrever acidentes, cenários e tipos peculiares, é preciso traçar cartas de orientação, itinerários. E, aprendida a cartografia e a “ciência da viagem” com esses viajantes-professores, produzir novos mapas político-literários em que se retorne às “origens”, “essências nacionais” e se figure um Brasil-nação pitoresco e unificado. Figuração que ao mesmo tempo que significa o “começo histórico” de uma imagem, precisa negar que é algo que se “funda”. E, ato contínuo, mostrar que sempre estivera lá, que se está apenas retornando a uma identidade nacional meta-histórica original. Daí a necessidade de marcos e mapas. E de uma viagem que se repete, com variações, mas aparentemente em mão única: o regresso. E com mapas traçados de antemão.291

Sim, há uma repetição de viagens, na obra de Rosa Magalhães – conjunto de narrativas que formam um mosaico-fluido, feixe de olhares sobre a vegetação espinhosa que brota das paisagens acidentadas onde os conceitos de “identidade nacional” repousam, pedras brutas. A autora, garimpeira de histórias, relê as narrativas fundacionais, traça mapas, itinerários, estratégias narrativas das mais inventivas para debater a questão – retornando, ao final, ao Brasil carnavalesco, a “origem” de um desfile de escola de samba. O regresso, conforme explica Süssekind, é inevitável – a máxima ideia, poetizada por Manoel Ricardo de Lima, de que a literatura trata, basicamente, de dois assuntos: a saída de casa e o regresso para a casa. No meio do caminho, as pedras preciosas. Lapidemos algumas visões.

291

SÜSSEKIND, Flora. Obra citada, p. 61.

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IV. 2 – Diários de navegação

Rio de Janeiro, 21 de novembro de 2017. Sonhei que debatia, numa mesa de pésujo (azulejos-tabuleiro de xadrez, moscas, baleiro, ovos coloridos, barulho de sinuca), algumas ideias carnavalescas com a carnavalesca Rosa Magalhães. Ela fumava, eu bebia cerveja. Ou café, parecia manhã. Manhã de carnaval, posso acrescentar. Nos arredores da Intendente Magalhães, onde o pão com manteiga é mais caprichado. Não me recordo, evidentemente, de todos os assuntos – e eram muitos, matéria para sonhos sem fim. Lembro, com a clareza da água mineral, que eu perguntava à “professora” se ela gostava de imaginar alegorias e fantasias marinhas (ou marítimas) para os cortejos da Sapucaí. A resposta era grossa, direta: não. Não gostava mais. Enquanto baforava, dizia que já havia feito mares demais, e tudo o que é demais cansa. Estava cansada das ondas. Das organzas em azuis e verdes, dos tecidos em aspiral (que, na linguagem carnavalesca, são chamados de “lasanha”). Dos mesmos recursos de sempre, malhas e farfalhados, placas de bolhas, papel-água, plástico cristal, laminados escamados do Babado da Folia. Mas fazia porque tinha de fazer – afinal, tudo era o mar. Tinha de fazer, como fez em 2008, na fantasia da bateria da Imperatriz Leopoldinense. Tinha de fazer, como fez no desfile da Portela de 2018, oi o mar, maré de saudade... oi o mar! Foi um sonho-síntese, ouso afirmar. Dividido entre os rejuntes da tese e os últimos coloridos do projeto carnavalesco da Acadêmicos do Cubango, os dois universos se juntaram, no campo dos meus devaneios, no espaço sagrado de um bar – o “templo do absurdo”, no enredo de Sílvio Cunha para a Unidos da Tijuca, em 1988, heterotopiaaguardente, desconhecida de Foucault (e da quase totalidade dos membros das sociedades utópicas internacionais, afirmo sem ousadia). Da mesa do bar, marco civilizacional de Sebastianópolis, na defesa de Luiz Antonio Simas, à mesa da minha casa, onde repousava uma cartolina recém-pintada, aquarela e lápis de cor (imagens 67 e 68): o abre-alas da Cubango, o Grande Veleiro de Bispo do Rosário e a Nau dos Insensatos pintada por Bosch - Velas ao mar, que o vento leve! Nos mares da insanidade, naveguem... delírios, sonhos, devaneios... A cabeça no travesseiro pensava no desenho do mar, ainda molhado, e nos materiais a serem usados, a transposição para o real. A cabeça no travesseiro pensava na tese, no andamento um pouco mais lento, bateria cadenciada, cansada, todo carnaval é correr contra o tempo e o acabamento é sempre o pior, sempre. Os materiais mais caros e os trabalhos mais delicados. 187


Imagem 67: Projeto artístico do Abre-Alas de 2018 da Acadêmicos do Cubango em fase inicial. Foto do autor.

Imagem 68: Projeto artístico do Abre-Alas de 2018 da Acadêmicos do Cubango finalizado. Intitulado Das Narrenschiff – Nau dos Insensatos, propunha um diálogo entre o Grande Veleiro de Arthur Bispo do Rosário e a Nau dos Loucos pintada por Bosch. Foto do autor.

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Na tarde do dia 26 de maio de 2017, sexta-feira, os sites dedicados à cobertura jornalística do universo das escolas de samba do Rio de Janeiro anunciavam o novo enredo da Acadêmicos do Cubango para o carnaval de 2018: O Rei que bordou o mundo. O cartaz do enredo apresentava uma releitura da bússola-mandala bordada por Arthur Bispo do Rosário nas costas do Manto da Apresentação. Também bordada, em cores vivas, a bússola girava (pequenina inovação). Todos os letreiros haviam sido bordados a mão pela minha mãe, Ana Maria, em Irati, no Paraná. De Nice eu enviei as ideias rabiscadas em papel; em Irati, minha mãe bordou as palavras e costurou botões em retalhos de algodão; no escritório de contabilidade do meu pai, também em Irati, as peças de algodão foram digitalizadas; no computador de Gabriel Haddad, em Niterói, tudo foi rearranjado e transformado em produto final. Foram muitas as discussões via Skype. Como acontece em dias de anúncios, estava nervoso e impaciente. A fim de me distrair, decidi acompanhar a amiga Brena, com quem dividia a intensa experiência do intercâmbio no sul da França, em um passeio (petit voyage) para o 70º Festival de Cinema de Cannes. Eu já havia tomado o trem para Cannes na quarta-feira da mesma semana, 24 de maio, para assistir a Gabriel e a Montanha com Andy Malafaia, produtor e cineasta que decidira acompanhar o processo criativo do desfile da Cubango. Da Gare d’Antibes postei a bússola bordada na minha página do Instagram (imagem 69). Relia trechos de Ode Marítima e contava o enredo a Brena, que pouco sabia do mundo do carnaval. Ela, Tássia e Eduardo, os demais intercambistas de Teoria Literária da UFRJ, não entendiam o porquê de tanto trabalho em maio. Afinal, tudo não era feito em janeiro? A mudança de rumo, na diretoria e no enredo da Acadêmicos do Cubango, exigiu que eu reorganizasse inúmeras rotas mentais desenhadas para Nova Friburgo. O destino a ser seguido era o mar – para depois peregrinar, junto a Bispo do Rosário, de Botafogo ao Mosteiro de São Bento, guiado por sete anjos sobre “nuves especiais” (um lugar para cada anjo, todos visitados com um caderno de esboços nas mãos); para depois denunciar a prisão, na Colônia Juliano Moreira, e poetizar as criações elaboradas na “cela-forte” em que ele reinava (Colônia que hoje sedia o Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, onde um ensaio fotográfico com quatro protótipos de fantasias de alas foi realizado, através das lentes de Talita Teixeira, em 7 de outubro de 2017 – imagens 70, 71, 72, 73 e 74); para depois, ao final, extrair o sumo das raízes culturais da região de Japaratuba, no Sergipe, lugar onde Bispo nasceu, celeiro de folguedos populares. Os símbolos marítimos absurdamente presentes: a imagem do navio era inegociável. 189


Imagem 69: Pôster do enredo do carnaval de 2018 da Acadêmicos do Cubango.

Imagem 70: Clayton Paiva veste a fantasia Rei dos Reis, no interior do pavilhão onde Arthur Bispo do Rosário viveu aprisionado, na Colônia Juliano Moreira. Foto: Talita Teixeira.

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Imagem 71: Clayton Paiva veste a fantasia Roda da Fortuna, na cela onde Arthur Bispo do Rosário viveu aprisionado, na Colônia Juliano Moreira. Foto: Talita Teixeira.

Imagem 72: Clayton Paiva caminha com a fantasia Roda da Fortuna pelos corredores do pavilhão onde Bispo viveu, na Colônia Juliano Moreira. Foto: Talita Teixeira.

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Imagem 73: Clayton Paiva veste a fantasia Xeque-Mate, no interior da “bolha” de desinfestação onde a obra de Arthur Bispo do Rosário estava armazenada, no Museu Bispo do Rosário Arte Contenmporânea, em Jacarepaguá. Bispo era um exímio enxadrista e convidava os visitantes a duelar com ele. Confeccionou diversos tabuleiros – um deles, o especial, intocável: o fim único era o inventário do mundo, a ser apresentado ao Criador. Foto: Talita Teixeira.

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Imagem 74: Clayton Paiva veste a fantasia Parafusos - Correntes Marítimas, em um dos “carreiros” das matas da Colônia Juliana Moreira. Ao fundo, uma oferenda de umbanda. Foto: Talita Teixeira.

O primeiro grande navio de Rosa Magalhães cruzou os mares da Sapucaí em 1987, na Estácio de Sá. Tratava-se de uma “caravela de navegadores portugueses” que expressava a chegada do sapoti ao território brasileiro. Conduzida por três seres marinhos (cavalos estilizados), a embarcação balançava ao sabor do mar imaginário, enquanto os tripulantes, vestidos de vermelho e branco, atiravam sapotis de verdade ao público das 193


arquibancadas. Tal alegoria, porém, se comparada às apresentadas em 1992, na Imperatriz Leopoldinense, parece um trabalho primário. No enredo sobre os 500 anos da viagem de Colombo à América, a carnavalesca inseriu não um, mas dois navios: o carro de número 4, nomeado O Porto (descrito no Livro Abre-Alas da seguinte maneira: “a nobreza e os camponeses se misturam dando adeus aos marinheiros. Esta festa todo ano se repete, quando os moradores do Porto de Paios vão nas suas carroças acenar para Colombo, como se ele partisse para novas aventuras.”), e o carro de número 12, As dádivas do Paraíso (“Aqui, o que se planta dá; mas o que Deus só plantou aqui foi realmente fantástico milho, feijão, pimentão, tomate, cacau, fruta do conde, abacaxi, batata, abacate e, naturalmente, o maracujá.”). Diferentemente do que se via em O ti-ti-ti do sapoti, em Não existe pecado abaixo do Equador os navegadores (espanhóis) faziam um movimento de ida e volta: retornavam à Europa com os porões carregados de maravilhas: frutos e legumes tropicais que mudaram o paladar do Velho Mundo (basta pensarmos, como a autora narra em O inverso das origens, que os europeus não comiam massas com molho de tomate nem conheciam as delícias oriundas do cacau). Voltou a carnavalesca a utilizar duas alegorias de barcaças em um mesmo desfile no ano de 2007, quando, ainda à frente da Imperatriz Leopoldinense, cozinhou o enredo sobre o bacalhau norueguês – temperando-o, no início e no fim, com a cultura brasileira bordada nas vestes de Chacrinha e nos estandartes do Bacalhau do Batata. O abre-alas trazia uma escultura do Velho Guerreiro (o “grande amigo do bacalhau”, segundo a justificativa do Abre-Alas) sobre um navio (de cor pink) repleto de bananas e abacaxis (imagem 75). As composições, fantasiadas de chacretes, dançavam com plumeiros em amarelo-canário. O acento tropicalista da abertura (cujo colorido automaticamente remetia ao setor dedicado à Tropicália e à primeira montagem de O Rei da Vela, em Goitacazes...), porém, não perpassou os demais setores – à exceção do último, quando os signos marcantes dos carnavais de Recife e Olinda foram traduzidos visualmente para a Passarela do Samba. A segunda embarcação do desfile aparecia na alegoria de número 05, Navio viquingue levado por bravas serpentes (imagem 76), assim justificado pela autora: “Os viquingues (...) eram grandes marinheiros e construtores de navios. Viajavam pelo mundo todo, conhecido e desconhecido, pois chegaram até às Américas. Segundo eles, o mar, sempre muito revolto, escondia em suas profundezas cobras enormes

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responsáveis por inúmeros acidentes.”292 As serpentes, em azuis e verdes, eram realmente enormes se comparados ao barco viking, que, apoiado sobre os corpos das bichanas, transportava um conjunto de guerreiros. A destaque de luxo, Valquíria Miranda, estava em um lugar apropriado, uma vez que a defesa do enredo informava que os marinheiros da Escandinávia eram acompanhados por Valquírias (impossível, claro, não pensar em Wagner e no conceito de gesamtkunstwerk). E não é preciso mergulhar mais fundo para explicar o porquê de dois barcos em um enredo sobre a história de um peixe que está diretamente ligada à história dos vikings.

Imagem 75: Abertura do desfile da Imperatriz Leopoldinense, em 2007. Sobre o mar por onde nadavam os bacalhaus da Comissão de Frente, um navio em pink anunciava o tropicalismo de Abelardo Barbosa, o popular Chacrinha. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

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Livro Abre-Alas de 2007, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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Imagem 76: Quinta alegoria do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2007, intitulada Navio viquingue levado por bravas serpentes. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

A estrutura (nos barracões se fala “o ferro”) do barco que transportava o cabeçudo boneco de Chacrinha, em 2007, era a mesma estrutura do barco que, no ano anterior, transportara os rebeldes liderados por Giuseppe Garibaldi293. O quarto carro alegórico do enredo Um por todos e todos por um traduzia um dos trechos mais emocionantes da obra de Alexandre Dumas, Memórias de Garibaldi: o momento em que, num ato de coragem e ousadia, o herói decide rumar para Laguna por via terrestre, uma vez que a Lagoa dos Patos e o Porto de Rio Grande estavam fortemente guardados por tropas e navios do Império. Os “lanchões” conduzidos pelo salvador, que então navegavam – e enfrentavam os canhões inimigos – pelas águas da Lagoa dos Patos, eram imprescindíveis para a tomada do Porto de Laguna (a cidade-natal de Anita, futura companheira dele). Dada a

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A reutilização de mesmas estruturas de ferro, de um ano para o outro, é algo bastante comum nos barracões do Rio de Janeiro – ainda mais em escolas com menor poderio financeiro e em momentos de crise. No universo da Intendente Magalhães, isso é regra. “Colocar tudo abaixo” ou “descer tudo”, como se diz, é algo que naturalmente gera mais despesas para o departamento financeiro de uma escola de samba. Rosa Magalhães é mestra no exercício de reutilizar (e ressignificar) as estruturas das alegorias – basta pensarmos que de 1992 a 2001 o abre-alas da escola de Ramos foi concebido e decorado sobre uma mesma base: um giratório central (a “estilização de uma coroa”, na explicação jocosa da artista) cercado por “queijos” (os platôs sobre os quais se apresentam destaques e composições). Leandro Vieira, atual carnavalesco da Mangueira, valeu-se da mesma estratégia, no carnaval de 2017: reutilizou estruturas (inclusive esculturas) de pelo menos três alegorias do carnaval anterior, sem qualquer prejuízo para a narrativa visual do enredo.

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impossibilidade de seguir integralmente pelos principais rios ou por via marítima, foram os barcos (Seival, o maior, e Farroupilha, menor) tirados da lagoa e, numa combinação extraordinária de força, velocidade, engenharia e estratégia militar, colocados sobre rodas e puxados por juntas de bois (o que está registrado em pintura de Lucílio de Albuquerque, Expedição a Laguna). Na sinopse do enredo, Rosa Magalhães se apropria da narrativa de Dumas (que, por sua vez, narra as memórias de Garibaldi em primeira pessoa): “Pensávamos numa expedição a Santa Catarina. Fui chamado para fazer parte dela, sob as ordens do general Canabarro. Havia uma dificuldade: não podíamos sair da lagoa (Lagoa dos Patos), porque a sua desembocadura era guardada pelos imperialistas. Mas para os homens que eu comandava nada era impossível. Eu propus construir duas charretes bem grandes e sólidas para colocar em cada uma delas um barco, e atrelar nas charretes cavalos e bois capazes de puxá-las. Minha proposta foi aceita. Cem bois domesticados , com a ajuda de cordas bem sólidas, se colocaram em marcha com aquele carregamento, tão naturalmente como se aquele fosse um carregamento qualquer.”294

Como se não bastasse, a saga dos lanchões teria mais adrenalina: durante uma tempestade, o Farroupilha naufraga, na costa de Santa Catarina; poucos marinheiros sobrevivem ao acidente – Garibaldi, o comandante, entre eles. Embarcado no Seival, o intrépido personagem entraria em Laguna, depois de passar por outras lagoas e pelo rio Tubarão, e participaria, em 22 de julho de 1839, do episódio que ficou conhecido como a “Tomada de Laguna”, vitória importante para a proclamação da República Juliana, em 29 de julho do mesmo ano. Na Marquês de Sapucaí, Rosa Magalhães apresentou um dos navios (provavelmente o Seival) sobre a charrete de madeira puxada por bois (imagem 77). Os animais exibiam chifres decorados com flores, fitas e estrelas prateadas – diálogo com as manifestações populares que se utilizam do boi enquanto elemento central, como o Boi de Mamão, típico dos estados do Sul (mais uma vez, uma interpretação festiva para um episódio de guerra). Inúmeros componentes fantasiados de pradarias formavam dois corredores humanos, nas laterais do carro alegórico, um recurso visual que dava a impressão de que o barco “navegava” sobre um campo verdejante – conjunto vivo, dançante, que o pintor Lucílio de Albuquerque jamais poderia ter imaginado.

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MAGALHÃES, Rosa. Um por todos e todos por um. Sinopse do enredo do carnaval de 2006 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA).

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Imagem 77: Quinta alegoria do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2006, intitulada Garibaldi atravessa os campos com seu navio. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

Ainda no desfile de 2006, havia outra embarcação: um pequeno batel, em frente ao carro de número 3, que representava o carnaval da cidade de Nice, berço de Garibaldi (imagem 78). Peixes com pérolas nas bocas compunham uma visão sofisticada das águas da Baía dos Anjos – águas de um azul intenso, companheiras para a escrita de boa parte deste trabalho.

Imagem 78: Terceira alegoria do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2006, intitulada Nice – cidade natal de Garibaldi. Entre os peixes com pérolas nas bocas, um batel. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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Barcos semelhantes já haviam aparecido em desfiles assinados pela autora: em 1995, nas laterais do carro 3, O cais, visão do porto do Rio de Janeiro, durante o Segundo Império, quando cientistas, nobres e vendedores populares se misturavam; em 1996, no carro 7, A chegada de D. Leopoldina ao Rio de Janeiro (imagem 79), com cilindros giratórios que simulavam o efeito das ondas; em 2000, na sexta alegoria, O primeiro desembarque na terra indígena (ver imagem 50); em 2002, no carro de número 3, A pescaria dos tubarões, visão alucinada dos relatos de André Thevet e Jean de Léry; e em 2008, no carro 5, D. João chega ao Rio de Janeiro (imagem 80). Este último, do enredo João e Marias, merece um olhar cuidadoso – e a explicação da carnavalesca ajuda a entender o porquê:

Depois de uma escala na Bahia, finalmente D. João chega a Rio de Janeiro, mais precisamente no lugar que hoje chamamos de Praça XV, num embarcadouro junto ao Chafariz de Mestre Valentim. Naquela época, a Baía de Guanabara era repleta de baleias, que foram exterminadas, tendo em vista que a cidade era iluminada com óleo de baleia. Assim, decidimos representar D. João chegando ao Rio em um barquinho levado por uma baleia.295

A baleia que trazia o singelo barquinho de um solitário D. João VI ao cais do Rio de Janeiro não era uma baleia qualquer: escamada, com barbatanas, era a materialização, na Passarela do Samba, de uma antiga tradição de elementos decorativos de mapas e cartas náuticas (signos utilizados pela artista em outras apresentações, como nos desfiles gresilenses de 1992 e 2000 – basta lembrarmos das serpentes marinhas do carro abre-alas, que também apresentava o rinoceronte Ganda). Mais especificamente, pode-se observar o diálogo com uma gravura de Kaspar Plautz, abade de Setenstetten, que “mostra o lendário São Brandão em busca da Terra Prometida dos Santos, a oeste da costa africana. A lenda do abade Brandão originou-se na Irlanda e associa temas pagãos, cristãos e clássicos.”296 A ilustração, apresentada por Gregory Claeys em Utopia, mostra uma criatura marinha (muito semelhante à baleia da alegoria de Rosa Magalhães) com dois esguichos d’água sobre a cabeça. Nas costas do bicho, além de uma caravela, vê-se um altar católico: velas acesas, o cálice para a Consagração (a transubstanciação do vinho no sangue de Jesus), um Cristo crucificado. Diante do altar, sacerdotes e demais pessoas professam a sua fé, ajoelhadas (imagem 81).

295

Justificativa presente no Livro Abre-Alas de 2008, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA. 296 CLAEYS, Gregory. Obra citada, p. 73.

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Umberto Eco apresenta a mesma gravura, em História das terras e lugares lendários, e explica que a famigerada baleia possuía nome: Jascônio. A explicação do autor italiano é muito interessante: São Brandão e seus místicos marinheiros passam por muitas ilhas: a ilha dos pássaros, a ilha do inferno, a ilha que é apenas um rochedo perdido no mar, à qual Judas está acorrentado, e a falsa ilha que já havia enganado Simbad e onde a barca de Brandão atraca para, no dia seguinte, ao acender o fogo, perceber que a ilha reage, pois ilha não era, mas sim um terrível monstro marinho chamado Jascônio.297

O exercício (re)interpretativo praticado pela carnavalesca (João VI ocupa o espaço simbólico de personagens tão divergentes quanto podem ser Simbad e São Brandão) revela uma sobreposição de referências e camadas textuais que convergem, todas, para um horizonte utópico - não à toa, a baleia já apareceu neste trabalho, em citação de Eduardo Bueno sobre a ilha O’Brazil. O monarca português adquire, no lombo do Jascônio, ares de um herói solitário, espécie de Robinson Crusoe lusitano, guiando o olhar do leitor, novamente, para a tradição das ilhas afortunadas: “terras localizadas em oceanos secretos onde o sol sempre nasce ou se põe: as Ilhas dos Abençoados dos gregos, lar de heróis abatidos; Avalon da lenda galesa; Antilhas, ou as Ilhas das Sete Cidades dos portugueses; e a Ilha de St. Brendan dos irlandeses, cuja história fascinou a Europa mais de um milênio atrás.”298 Maria Augusta Rodrigues, comentarista dos desfiles de 2008 pela TV Globo, viu na alegoria da baleia um exemplo de o quanto a pesquisa aprofundada é importante – e um diferencial para a obra de Rosa Magalhães. Nas palavras de Augusta: “Eu acho que o carnavalesco deve ser um artista o mais completo possível. E isso vai sendo acrescentado à medida que a gente vai trabalhando, vai viajando, a Rosa é uma pessoa que viaja muito. Além de uma excelente formação, ela é uma pessoa muito atualizada. Então os enredos são primorosamente históricos, e esse achado das Marias é muito interessante, e toda a parte de pesquisa visual, da cor, da pintura, enfim, porque essa alegoria, ela é basicamente uma alegoria pintada. Isso tem tudo a ver com a época, o tipo de pintura. Não é qualquer carnavalesco que faz isso. Faz quem conhece, quem acompanha, quem pesquisa, quem vai a museus, enfim, quem tem toda uma vivência no processo cultural brasileiro e também no exterior, no processo cultural europeu, no caso, e que a Rosa conhece muito bem.”299

297

ECO, Umberto. Obra citada, p. 155. FISCHER, Steven Roger. Obra citada, p. 262. 299 Transcrição de comentário de Maria Augusta Rodrigues durante a transmissão televisiva da Rede Globo do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2008. 298

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Imagem 79: Alegoria 7 do desfile gresilense de 1996, intitulada A chegada de D. Leopoldina ao Rio de Janeiro. Peixes e conchas emolduravam o mar por onde deslizava uma galeota. Fonte: MAGALHÃES, Rosa. Fazendo Carnaval, p. 32.

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Imagem 80: Quinta alegoria do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2008, intitulada D. João chega ao Rio de Janeiro. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

Imagem 81: Gravura de Kaspar Plautz, abade de Setenstetten, que ilustra o mítico monstro Jascônio, associado às histórias de São Brandão. Fonte: ECO, Umberto. Obra citada, p. 155.

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Voltando aos grandes barcos, não se pode deixar de falar dos navios presentes nos desfiles dos anos 2000 e 2003. Elemento fundamental para a narrativa do enredo sobre a viagem de Pedro Álvares Cabral, em 1500, a quinta alegoria do desfile gresilense do ano 2000 representava a Nau Capitânia – um primoroso trabalho de cenografia. A carnavalesca descreve a obra, em O inverso das origens:

A arte acrobática circense teve início com os marujos, que nas horas de ócio se penduravam nas cordas e faziam acrobacias, e foi assim que os coloquei na Nau Capitânia. As cores dos trajes seguiram o espírito circense e foram aplicadas em muitas combinações de vermelho, azul, preto, amarelo e branco. A tripulação era formada por grumetes, soldados, nobres e os funcionários que deviam assumir suas novas funções. Não faltaram os ratos, que frequentam qualquer navio que se preze. Mil ratinhos de espuma foram jogados na plateia pelos marinheiros encarregados da limpeza. Um dragão, colocado na proa da Nau Capitânia, simbolizava os monstros que os navegantes de então julgavam existir nas profundezas do oceano.300

O dragão na proa não era novidade: o abre-alas salgueirense de 1991, no enredo sobre a Rua do Ouvidor, nada mais era que um navio exuberante, decorado com guirlandas de flores, cujas velas eram estandartes – e cuja carranca um dragão, em vermelho e rosa. Já o espírito circense também dava o tom da terceira alegoria concebida para o enredo de 2003 da Imperatriz Leopoldinense, sobre a pirataria. Intitulado Peter Pan, as crianças se encantam com histórias de piratas, o carro exibia o navio do Capitão Gancho, canhões à mostra, cercado por crocodilos, relógios, esqueletos e tesouros. Entre as ondas do mar, esculturas de sereias – imaginário que seria revisitado no enredo infantil de 2005, justamente no abre-alas. O mais complexo navio de Rosa Magalhães não navegou em águas estacianas ou gresilenses: sobre ondas em azul e branco, sintetizou a proposta estética do desfile de 2012 da Unidos de Vila Isabel. O tema foi trabalhado e apresentado por mim no XII Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (ENECULT), ocorrido na Universidade Federal da Bahia, em Salvador, em novembro de 2016. Sob o título Hibridismo cultural em desfile: as cores da diáspora no carnaval carioca, discorri, em breves 15 páginas, sobre o diálogo estabelecido entre a carnavalesca e o artista anglonigeriano Yinka Shonibare, a base do conceito visual apresentado em 2012, quando a comunidade do Morro dos Macacos cantou Você semba lá... que eu sambo cá! O canto livre de Angola. 300

MAGALHÃES, Rosa; NEWLANDS, Maria Luiza. Obra citada, p. 134.

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Shonibare, artista em ascensão, vem desenvolvendo uma série de trabalhos que orbitam os conceitos de autenticidade, identidade e diáspora. As obras mais conhecidas, de inegável apelo visual, apresentam peças de diferentes épocas (mobiliários, salões de bailes, bibliotecas, mesas de banquetes, vestidos, casacas, navios, astronautas...) confeccionadas ou revestidas com “estamparias africanas” – tecidos lidos como representativos da África negra. O realizador, que bastante escreve sobre a própria produção, explica que enveredou por tais caminhos depois de ter a sua identidade questionada por um professor de Londres. Diz:

Penso que a minha negrura começou quando desci do avião em Heathrow. Vim para estudar pintura... Um dos meus professores veio ao meu atelier e disse-me – “Bom, você é africano, não é? Por que é que não faz arte tradicional autenticamente africana?” Evidentemente, dados os meus antecedentes, fiquei muito chocado com a ideia de que tinha de entender o conceito de uma autenticidade africana pura, de que se esperava isso de mim. Negava o meu compromisso com o modernismo e com a modernização. Por isso decidi explorar a noção de autenticidade e do que ela poderia significar. Foi então que concluí que a ideia de lealdade ou de fidelidade é-nos sempre imposta pelos outros, de fora.301

A partir de tal provocação, decidiu deixar de lado a arte abstrata e passou a criar os objetos com estampas – um trabalho revestido da mais interessante ironia:

Considerados por toda a gente como panos tipicamente africanos, inclusive pelos próprios africanos desde os anos de 1970, são de facto um produto inventado na Holanda, inspirado nos batik indonésios de Java, que os holandeses e ingleses começaram a produzir industrialmente para exportar para África no século XIX. Emblemas privilegiados da imbricação colonial, os tecidos “africanos” funcionam na obra de Shonibare como um dispositivo particularmente eficaz, quer conceptualmente quer formalmente, para lidar com a sua condição de artista contemporâneo de origem africana e com os dilemas dessa condição.302

Muito resumidamente, os panos estampados utilizados por Shonibare, lidos como representativos de uma “estética africana”, são provenientes “do diálogo (que, historicamente falando, está mais para discurso monológico de implicações violentas, vide o sangue dos colonialismos e imperialismos) entre países europeus e africanos – exemplificação da ideia de Stuart Hall de que as nações modernas são híbridos

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DIAS, José António Fernandes. Das esquinas do olhar. Artigo disponível no seguinte sítio: http://www.artafrica.info/html/artigotrimestre/4/artigo4.php. Acesso em 15/07/2012. 302 DIAS, José António Fernandes. Obra citada.

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culturais.”303 Tais “tecidos polifônicos” “moldam peças do imaginário do colonizador que representam a imposição, a mão de ferro colonialista que pesou sobre as nações africanas”304 – ou seja: uma proposta de indiscutível teor crítico, um exemplo de o quanto a arte contemporânea tenciona as narrativas diaspóricas e põe em xeque os conceitos cristalizados de “autenticidade” e “tradição”. Stuart Hall, em Da Diáspora, explica que nas areias (movediças) da cultura popular existe um “termo traiçoeiro”: tradição. Invocado sem parcimônia em qualquer debate sobre escolas de samba e carnaval carioca (inclusive dá nome a uma escola de samba sediada no Campinho, dissidência da Portela, de cuja comissão de carnavalescos já participou Rosa Magalhães, em meados da década de 1980), o termo, nas palavras do teórico, expressa “um elemento vital da cultura”, mas que “tem pouco a ver com a mera persistência das velhas formas.”305 Mais do que pensar na “tradição da ruptura” de Octávio Paz, importante é compreender que, na esteira do que explica Felipe Ferreira, as escolas de samba, organismos vivos que são, elaboram “estratégias de sobrevivência”306 e forjam tradições no fogo inapagável da cultura. Nenhuma tradição, nesse sentido, é algo estanque ou imutável. Para Hall, “os elementos da ‘tradição’ não só podem ser reorganizados para se articular a diferentes práticas e posições e adquirir um novo significado e relevância”307, mas podem se converter em “formas de luta”, entrecruzandose (ou, nos termos de Ferreira, Maria Laura Cavalcanti e Nilton Santos, negociando) com “tradições antagônicas”. O teórico da diáspora é direto ao afirmar que “as tradições não se fixam para sempre: certamente, não termos de uma posição universal em relação a uma única classe.”308 Os navios de Yinka Shonibare (imagem 82), heterotópicos símbolos da invasão de territórios, construção de novas fronteiras, imposição de idiomas, religiões, padrões de vestuário e demais práticas culturais “civilizadas”, tráfico de corpos escravizados e produtos da biodiversidade, tais navios, construídos pelos colonizadores, são

303

BORA, Leonardo Augusto. Hibridismo cultural em desfile: as cores da diáspora no carnaval carioca. Anais do XII ENECULT, 2016, p. 09. Disponível no seguinte sítio: http://www.cult.ufba.br/enecult/anais/2894-2/. Acesso em 20/11/2017. 304 BORA, Leonardo Augusto. Obra citada. 305 HALL, Stuart. Da Diáspora. Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG/Humanitas, 2011, p. 243. 306 Ver FERREIRA, Felipe. Estratégias de sobrevivência: o surgimento das escolas de samba no Brasil de Getúlio Vargas. In: FERREIRA, Felipe. Escritos carnavalescos, p. 151/165. 307 HALL, Stuart. Obra citada, p. 243. 308 HALL, Stuart. Obra citada, p. 243.

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apresentados ao público revestidos com a suposta estética dos colonizados. Aqui, é válido pensar nos ensinamentos de outro teórico da diáspora, Homi Bhabha, para quem é uma importante característica da crítica cultural (dialógica, polifônica, na trilha das análises discursivas de nomes como Bakhtin e Foucault) a construção de “um objeto político que é novo, nem um e nem outro.”309 Segundo Bhabha, “a linguagem da crítica é eficiente não porque mantém eternamente separados os termos do senhor e do escravo, do mercantilista e do marxista, mas na medida em que ultrapassa as bases de oposição dadas e abre um espaço de tradução: um lugar de hibridismo (...).”310 Nesse sentido, as embarcações coloridas de Shonibare desconstroem, “não sem ironia, os discursos sedimentados das fronteiras fixas, deslocando a problemática para o espaço do intercâmbio.”311 Continente e conteúdo se misturam e o objeto em si passa a ser sujeito da história: “os navios de Shonibare, portanto, não apenas levam a memória dos africanos para outros continentes; eles, os navios europeus, também são a memória africana.”312 Rosa Magalhães, ao desenvolver um enredo em cujo título se observa uma “oposição complementar” separada pelo Atlântico (Você semba lá que eu sambo cá (...)), decidiu dialogar com um artista cuja obra justamente tenciona as travessias transatlânticas. No artigo apresentado durante o XII ENECULT, defendi o seguinte:

Os dêiticos lá e cá deixam implícita a presença do Atlântico, oceano que une e separa as diferentes nações, a rota por onde os corpos escravizados vinham de lá, para, ao final das longas viagens nos porões dos tumbeiros, aportarem no Valongo cá – onde, a despeito do sofrimento comparável aos maiores genocídios da história, contribuiriam sobremaneira para o florescer do samba. A carnavalesca, ciente dessas sutilezas, assimilou a proposta fronteiriça de Shonibare e concebeu um conjunto visual de alegorias e fantasias que fundiam, nas formas e nos tecidos, Angola e Brasil. Três alegorias do desfile, a segunda, a quarta e a sétima, merecem especial destaque, uma vez que apresentaram configurações plásticas curiosas e demarcaram os três momentos distintos do enredo, quais sejam: a vida dos negros em Angola, antes da escravidão; a travessia do oceano, em um navio negreiro; e a fusão cultural ocorrida no Brasil, nos terreiros religiosos e festejos populares. O segundo carro alegórico, chamado Imbondeiro, a Árvore da Vida, era basicamente uma única escultura de árvore, com grossas raízes e muitos galhos sem folhas. O revestimento da escultura representou o componente original, fator que transformou aquela que provavelmente foi uma das mais baratas alegorias do ano na mais comentada de todas (a estilista Isabela Capeto, julgadora do prêmio Estandarte de Ouro, defendeu que a árvore não deveria ser desmontada após o desfile, mas exposta no Museu de Arte Moderna - MAM). A exemplo de Shonibare, Rosa revestiu a peça com uma infinidade de retalhos, criando uma imagem sintética e, ao mesmo tempo, bastante 309

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 51. BHABHA, Homi K. Obra citada, p. 51. 311 BORA, Leonardo Augusto. Obra citada. 312 BORA, Leonardo Augusto. Obra citada. 310

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complexa, dado o emaranhado de formas geométricas e a mistura gritante de cores quentes. O detalhe curioso é que os tecidos africanos propriamente ditos foram pouco utilizados; para baratear o custo, optou-se por criar estampas a partir de recortes de tecidos variados, simulando à brasileira o visual de Shonibare. E a tática deu certo: a impressão, à distância, era de que toda a escultura era revestida por tecidos africanos – a ilusão do carnaval. A quarta alegoria, Do Porto de Luanda ao Rio de Janeiro: o trajeto do navio, guarda maior complexidade, posto que releitura carnavalizada dos já carnavalizantes navios estampados de Shonibare. Fosse a arte feita de definições simplistas, Rosa construiu um navio de Shonibare de grandes proporções e o colocou na avenida, repleto de composições (pessoas fantasiadas que saem sobre as alegorias). Mas como não estamos num mar de calmarias, não se pode dizer que o navio de Rosa é um navio de Shonibare. Primeiramente, é preciso levar em conta o contexto em que o navio de Rosa foi apresentado, um desfile de escola de samba. Na Marquês de Sapucaí não temos uma instalação a desfilar, mas uma alegoria, ou seja: a natureza do objeto é outra, o rito que o envolve não é o mesmo das exposições do artista. Com base nisso, parece frágil o argumento de que o navio de Rosa é uma cópia, plágio de outra obra; antes uma releitura, um diálogo com outro artista. As técnicas de construção (inclusive devido às dimensões da peça) são diversas, as estamparias também. O que pode ser considerado equivalente ou ao menos similar, o fato que justifica o diálogo, é a interpretação que subjaz o navio: ele também sintetizava, no desfile da Vila Isabel, a fusão cultural entre diferentes continentes (no caso, a África e a América), representando a memória africana a cruzar o oceano. Não à toa, a ala que antecedia a alegoria, a ala das baianas, usava roupas com sobreposições de tecidos africanos e se chamava Memória africana. Finalmente, a sétima alegoria, O negro rei Martinho e a sua corte da Vila Isabel, é exemplo da mescla entre referências da cultura pop, o mainstream, e os trabalhos de Yinka Shonibare e Rubem Valentim, representativas de um universo mais “erudito”. No carro, que homenageava o cantor e compositor Martinho da Vila, viam-se três blocos de referências visuais. A escultura que dominava a cenografia, uma cabeça de leão estilizada, dialogava com peças confeccionadas para o musical da Broadway O Rei Leão, dirigido por Julie Taymor. O revestimento de parte da alegoria utilizava as estampas africanas, a permanência da conversa com Shonibare. Nas laterais do carro, finalizando a decoração, esculturas que reproduziam criações de Rubem Valentim, artista plástico brasileiro que reinterpretou símbolos ligados às religiões afro-brasileiras em suas pinturas e esculturas. A arte de Valentim, a exemplo do trabalho de Shonibare, está no limiar entre diferentes culturas, é híbrida – bem como o candomblé e a umbanda. A escolha do artista, portanto, foi cuidadosamente pensada por Rosa Magalhães, que procurou fechar o desfile da escola (a alegoria representava, simbolicamente, a travessia do Atlântico no sentido inverso: o Brasil aportando em Angola, conduzido por Martinho da Vila) com referências à arte nacional.313

O estampado navio que atravessou a Marquês de Sapucaí, no róseo amanhecer do dia 13 de fevereiro de 2012 (imagens 83 e 84), contribuindo para a apoteótica apresentação da Unidos de Vila Isabel (considerada a campeã daquele ano, para o público e para a crítica), não era, portanto, um navio qualquer, mas uma obra de arte conectada à contemporaneidade (vide o conteúdo da exposição Ex-África, montada no CCBB carioca,

313

BORA, Leonardo Augusto. Obra citada.

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no primeiro semestre de 2018), heterotopia ainda mais heterotópica, diaspórica, disposta a inverter as cartas náuticas do mundo (imagem 85).

Imagem 82: Cartaz de exposição de Yinka Shonibare, realizada no Principado de Mônaco, em 2011. Fonte: http://www.yinkashonibarembe.com/. Acesso em 10/03/2017.

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Imagem 83: Visão frontal da quarta alegoria do desfile da Unidos de Vila Isabel, no carnaval de 2012, intitulada Do porto de Luanda ao Rio de Janeiro: o trajeto do navio negreiro. Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Carnaval. Acesso em 10/03/2017.

Imagem 84: Visão lateral da quarta alegoria do desfile da Unidos de Vila Isabel, no carnaval de 2012, intitulada Do porto de Luanda ao Rio de Janeiro: o trajeto do navio negreiro. Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Carnaval. Acesso em 10/03/2017.

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Imagem 85: Sem título. Acrílica sobre tela de Arjan Martins, artista contemporâneo brasileiro, exposta na mostra Ex-África, em cartaz do CCBB carioca de 20 de janeiro a 26 de março de 2018. Foto do autor.

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IV. 3 – O céu não é o limite

Rio de Janeiro, 25 de novembro de 2017. Atrás de um portão de ferro pintado de verde, na Rua Prefeito Júlio de Moraes Coutinho, lado par da Avenida Brasil, nas proximidades do castelo mourisco da Fiocruz, encontra-se o “barracão de alegorias” da Acadêmicos do Cubango. Espaço grande, dividido em espaços menores: a “garagem” dos carros alegóricos, com o desafiador limite de pouco mais de 4 metros de altura (na Passarela do Samba, podem chegar a 13), o almoxarifado de aviamentos e pedrarias, um galpão para guardar esculturas compradas ou recebidas enquanto doação de outras escolas, um salão com bancadas, para a feitura dos adereços das alegorias (no segundo andar do almoxarifado de aviamentos), o almoxarifado de tecidos, uma pequenina cozinha e a sala de reuniões de diretores e carnavalescos, com três mesas de trabalho, alguns armários cheios de troféus e papeis envelhecidos, um banheirinho sem luz, uma cristaleira colonial danificada pelas chuvas (doação de uma diretora). Todos estes espaços circundam um terreno a céu aberto, onde esculturas abandonadas ardem sob o sol de 40 graus, calangos correm, assustados com o fluxo de pessoas, automóveis de dirigentes de escolas do Grupo de Avaliação (o antigo Grupo D, no qual estreei como carnavalesco, na Mocidade Unida do Santa Marta, em 2013) se revezam na tarefa de entupir os porta-malas e os bancos traseiros com restos de fantasias recebidas pela Cubango da Unidos de Vila Isabel – e repassadas sem custo algum, uma vez que descartadas. No mesmo terreno a céu aberto, o abre-alas em construção é movimentado pelos ferreiros João e Cristiano, membros da equipe de Hélcio Paim. Os mastros da Nau dos Insensatos sobem pela primeira vez: complexa estrutura de tubos metálicos, roldanas, talhas e correntes. Eu observo as formas vazadas do navio, o esqueleto, antes da madeira e de qualquer decoração (imagem 86). Os ossos do carro alegórico em contraste com o céu azul, sem um fiapo de nuvem, apenas o sol, maçarico, e o voo circular de urubus, anunciando carniça nova. Observo as formas vazadas do navio e penso que no enredo da Acadêmicos do Sossego para o carnaval de 2015 havia travessias transatlânticas: a vinda de navios do Porto de Banana, em Angola, trazendo mudas de bananeiras e corpos escravizados; e o retorno das embarcações, levando o brasileiro ananás ibá-cachi à região do Senegal – tudo retirado de Câmara Cascudo. Optamos, no entanto, por não fazer o carro alegórico (no Grupo B, à época, era permitida a apresentação de apenas um carro alegórico, costumeiramente o abre-alas) em forma de barco, inclusive pelas questões 211


financeiras (a escola não possuía caixa o suficiente para “erguer” um carro do zero; preferimos, a fim de não sacrificar o orçamento das fantasias das alas, reutilizar a estrutura-base do ano anterior). A presença das viagens marítimas, ponto central para a compreensão do enredo, se via nos chapéus dos ritmistas: sobre um turbante estilizado, um barquinho de papel forrado com um tecido (oxford) estampado com mapas antigos; duas bananas de plástico insinuavam as velas do barco; sobre compridas hastes de fibra, pompons em azul ajudavam a criar um clima marítimo e carnavalesco a um só tempo – tentativa, talvez bem sucedida, de dialogar com a bateria gresilense de 1998 (imagem 87).

Imagem 86: Abre-Alas de 2018 da Acadêmicos do Cubango em construção, em 25/11/2017. Foto do autor.

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Imagem 87: Algumas cabeças das fantasias da bateria do Acadêmicos do Sossego para o carnaval de 2015, aguardando a distribuição em um dos ateliês (terreiro consagrado a Obaluaê, no bairro Viçoso Jardim, Niterói). Bananas de plástico faziam as vias de velas, sobre barquinhos de papel decorados com cartas náuticas. Foto do autor.

Conforme já foi relatado, não se viu, durante o desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2004, interpretações alegóricas das embarcações de 1500. Uma viagem marítima estrutura a narrativa de Breazail, mas a carnavalesca optou por não içar as velas. Também seguiu tal caminho em 1994, na apresentação de Catarina de Médicis na Corte dos Tupinambôs e Tabajeres. A “festa brasileira em Ruão” foi narrada com pormenores (imagem 88); a viagem dos navios franceses (Rosa Magalhães fala em “piratas”314) que levaram os cerca de cinquenta índios do litoral brasileiro para a entrada triunfal da Rainha de França na cidade de Rouen, entretanto, ficou restrita à brevidade da sinopse:

Como em 1549 o rei Henrique II e sua esposa, Catarina de Médicis, tinham visitado a cidade de Lyon, e a festa havia sido fantástica, os moradores de Ruão, a cidade a ser visitada em 1550 (somente 50 anos após a descoberta do Brasil), ficaram preocupados Em O inverso das origens, a carnavalesca conta: “O início da história ficava por conta dos piratas franceses – omitidos no enredo – que costumavam visitar nosso litoral por vários motivos, entre eles o roubo de madeira tintorial. Davam-se bem com os aborígenes e com certeza foi deles a ideia de levar índios para a França.” In: MAGALHÃES, Rosa; NEWLANDS, Maria Luiza. Obra citada, p. 51. 314

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sem saber como fazer para superar os festejos do ano anterior. Sendo lá um porto, de onde já haviam saído vários navios para o Brasil, os franceses decidiram fazer um convite aos índios com quem se relacionavam amistosamente nas terras brasileiras - os Tupinambás e os Tabajaras. O convite foi logo aceito e cerca de 50 índios embarcaram para Ruão, onde chegaram após vinte dias de viagem, aproximadamente.315

Imagem 88: Comissão de Frente e carro abre-alas do desfile de 1994 da Imperatriz Leopoldinense, que contou, na Marquês de Sapucaí, a história da viagem de cerca de 50 índios brasileiros, levados para a França em 1550. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

Seguindo a mesma linha de raciocínio (ou a mesma rota marítima), a viagem dos navios holandeses que saíram das águas do Recife e levaram retratos da natureza brasileira enquanto presentes para Louis XIV, durante o governo de Maurício de Nassau, igualmente não foi representada em fantasias ou carros alegóricos, no desfile gresilense de 1999. O enredo propunha um salto: da corte tropical pernambucana aos candelabros opulentos de Versailles – separando as alegorias (2 e 3), quatro grupos de “nobres franceses”: com frutas, animais da fauna marinha, flores e animais terrestres, na exata sequência dos figurinos. Os enredos de 1994, 1999 e 2004 ilustram a ideia de que, apesar do inegável apreço pela representação alegórica de barcos, há enredos que, mesmo tratando de viagens ultramarinas bastante específicas, não “embarcam” em navios de ferro, madeira, 315

MAGALHÃES, Rosa. Catarina de Médicis na Corte dos Tupinambôs e Tabajeres. Sinopse do enredo do carnaval de 1994 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA).

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isopor, pintura de arte. Tomando como referência a ausência dessas heterotopias, é possível, ainda, circular um outro grupo de enredos assinados pela carnavalesca, sistema de que fazem parte aqueles que, a despeito da sugestão de grandes viagens e mirabolantes peregrinações, sagas que riscam o mundo, não especificam uma ou outra travessia. Enredos menos fincados na materialidade das páginas dos diários de navegação e mais atentos ao mito, ao delírio, à fantasia carnavalesca em sentido amplo – o que, adverte Mário de Andrade, é mais do que permitido. Podem figurar, nesse conjunto, as narrativas de 1988, 1989, 2001, 2011 e 2016. Os enredos de 1988, 1989 e 2011 guardam uma semelhança imediata: tratam de produtos fortemente ligados ao imaginário cultural brasileiro – o boi, o feijão e o arroz, a cana-de-açúcar. Os temas desfiados nos enredos (ou moídos nos engenhos mentais da artista) são simples, corriqueiros, no prato do dia-a-dia, nas cozinhas mais simples e nas mais sofisticadas. Nos três casos a autora propôs dar a volta ao mundo, passeando por diferentes épocas e civilizações – e terminando, claro, numa louvação ao Brasil. Assim, em 1988 o espectador era convidado a conhecer o Egito, berço do culto a Ápis316, e a ilha de Creta, onde Teseu matou o Minotauro; em 1989, o “extremo Oriente” (China e Japão), os reinos africanos da costa e os palácios árabes desfilavam interconectados; em 2001, o

O culto ao Boi Ápis é costumeiramente associado às raízes agrárias do “carnaval” em sentido amplo, mito de origem que as escolas de samba tratam de reproduzir em seus desfiles – a exemplo da narrativa de Festa Profana, da União da Ilha do Governador, em 1989, assinada por Ney Ayan; e da Parábola dos divinos semeadores, da Mocidade Independente de Padre Miguel, em 2011, assinada por Cid Carvalho. Felipe Ferreira fala do assunto, em O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro, inserindo-o no grupo das “festas do mundo antigo”: “A festa egípcia já era celebrada à beira do rio Nilo séculos antes da Era Cristã e consistia, basicamente, em uma procissão na qual a principal figura era um touro enfeitado. Seus chifres eram pintados, seu corpo envolto em fitas coloridas e coberto por ricos tecidos. O animal percorria as ruas da cidade tendo sobre ele uma criança e sendo seguido por grupos fantasiados e mascarados. A farra durava sete dias, nos quais aconteciam banquetes, danças e todo tipo de divertimentos.” O autor destaca, na sequência, que tais eventos devem ser entendidos enquanto “manifestações carnavalescas” apenas no sentido mais genérico da expressão, ligado aos ideais de excesso, inversão, “histórias estranhas, divertidas e grotescas”: “Nesse sentido, até as comemorações das colheitas, como as do trigo ou da uva, já realizadas muito antes da Era Cristã, poderiam ser aceitas como ‘carnavais’, pois suas descrições obviamente revelam a presença de ‘alegria coletiva, folguedo, folia, confusão ou desordem.” Na mesma obra, Ferreira fala da antiguidade das alegorias em forma de barco: “O costume de incorporar charretes em forma de pequenos navios às procissões também era comum em outras comemorações, como as Panatenéias que aconteciam em Atenas. É a presença, nas festas, desses pequenos barcos com rodas que acabou por fazer com que alguns pesquisadores considerassem tais celebrações como um exemplo de folia carnavalesca da Antiguidade, ao imaginar que o nome ‘Carnaval’ teria origem em carrus navalis, ou seja, um carro em forma de navio. Hipótese que, anos mais tarde, foi suplantada por outra teoria, que associa a palavra Carnaval a carne vale, ou ‘adeus à carne’ (...).” Ainda que no campo do fabulístico, é interessantíssima a constatação de que a recorrência de navios na obra de Rosa Magalhães está ligada a uma tradição ancestral – das procissões em louvor a Ísis, no Egito, às oferendas para Iemanjá, no Rio Vermelho, passando pelos Triunfos renascentistas, como se pode ver em pinturas da época. Ver: FERREIRA, Felipe. O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro, p. 19, 20 e 21. 316

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leitor se via conduzido do Oriente Médio à Europa medieval, deslizava em uma gôndola na Veneza dos Doges e desembarcava num canavial pernambucano, tomava um gole de birita nas cidades históricas de Minas Gerais e terminava brincando carnaval – no Morro da Mangueira, escola fundada por Cartola e Carlos Cachaça, que levava a pinga no nome. Heterotopias e heterocronias: no carnaval, o que é pouco é bobagem. Os enredos de 2011 e 2016 gestaram desfiles um tanto heterodoxos, a começar pelas temáticas iniciais: cabelos e palhaços. Estreando na Unidos de Vila Isabel depois de uma rápida passagem pela União da Ilha do Governador, Rosa Magalhães desenvolveu, em 2011, uma narrativa completamente fragmentada, tingida de uma certa ironia: em um desfile sobre fios de cabelo, não se viu um fio condutor de raízes fortes, a exemplo do que foi amplamente debatido com relação a Breazail. A ausência de maior coesão é algo observável no texto da sinopse de enredo, assinado a quatro mãos (Rosa Magalhães e Alex Varela): sem brilhantismo (ou brilhantina), trata-se de uma sequência não-linear de nomes (mitos, lugares, personagens históricos) explicados sem qualquer profundidade, conforme se depreende do seguinte trecho:

Os índios Hopi do Arizona acreditavam que o corte do cabelo tinha que ser feito de maneira coletiva, durante as festas de solstício de inverno, para não perderem a força vital. O primeiro corte de cabelo do Príncipe Herdeiro dos Incas coincidia com o momento em que era desmamado ao completar dois anos de idade. No mesmo momento em que cortava o cabelo, fortalecendo-o, recebia o nome, tornando-se uma pessoa, fato que acontecia numa grande festa coletiva. Um caso individual da força do cabelo é a história bíblica de Sansão e Dalila. Ao contrário das histórias relatadas nos dois parágrafos acima, Sansão perdeu os poderes quando lhe cortaram os cabelos. As tranças e os cabelos longuíssimos têm como simbolismo a submissão. A trança dos chineses, a das mulheres russas e, até mesmo, a de Rapunzel, fábula dos irmãos Grimm, provam este fato. Porém, podem ser também símbolos de salvação, como a de Lady Godiva, que se vestiu só com seus longos cabelos e livrou seu povo dos pesados impostos.317

A competência artística da carnavalesca se fez notar em fantasias e alegorias caprichadas, o que garantiu à escola um excelente conjunto visual – a começar pela impactante abertura, com três gigantescos elefantes indianos (imagem 89); faltou, porém, o quê a mais: o jegue escondido na história, o monstro Jascônio transportando D. João

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MAGALHÃES, Rosa; VARELA, Alex. Mitos e histórias entrelaçados pelos fios de cabelo. Sinopse do enredo do carnaval de 2011 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos de Vila Isabel, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA).

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VI, as formas de Bosch e Gaudí no subsolo do pau-brasil. O próprio título, Mitos e histórias entrelaçados pelos fios de cabelos, exibe uma obviedade incomum na trajetória em estudo – aspecto também observável no título do enredo de 2014 da Estação Primeira de Mangueira (que se valeu de uma rima nada sofisticada). Em outras palavras: debaixo dos caracóis do enredo da Vila Isabel havia pouco substrato – o que, em se tratando das amarrações de Rosa Magalhães, soa burocrático e desperta questionamentos: estaria a carnavalesca desconfortável por ter de desenvolver um tema patrocinado por uma multinacional de cosméticos? Ou seria o desconforto proveniente da divisão (imposta?) da autoria do enredo com um historiador assumidamente ligado à família que então administrava a agremiação azul e branca?

Imagem 89: Abertura do desfile da Unidos de Vila Isabel, em 2011. O carro abre-alas, conduzido por três imensos elefantes indianos, era dividido em duas partes, que se chamavam: O começo do Universo na tecedura dos cabelos de Shiva, segundo a tradição hindu; e Da cabeleira de Ganga surge o Rio Ganges. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

Sem dúvidas, a narrativa desenvolvida para a São Clemente, em 2016, intitulada Mais de mil palhaços no salão, é mais coesa e aprofundada que a de 2011. O enredo viaja por diferentes tempos, lugares e contextos, mas não apenas as transições são mais suaves 217


como o próprio texto é mais saboroso do ponto de vista histórico-literário. A seguinte passagem não deixa mentir:

Quando os Milagres e os Mistérios saíram do interior das igrejas, os artistas que circulavam solitários pelas cortes e castelos passaram a se encontrar nas feiras em torno dos feudos, e foram criadas verdadeiras companhias de saltimbancos. As feiras viram ponto de encontro de artistas de todas as artes e habilidades – dançarinos de corda, volantins, malabaristas, jograis, trovadores, adestradores de animais, pelotiqueiros, músicos, domadores de ursos, dançarinos, prestidigitadores, bonequeiros e acrobatas. Os espetáculos dos Mistérios e Moralidades incorporaram mais um personagem cômico: o rústico. Até mais ou menos 1500, a comicidade desse tipo de espetáculo estava a cargo do Diabo e do Vice. O Vice era um camponês velhaco, canalha, fanfarrão, covarde, e representava todas as fraquezas humanas. Por algum motivo, ele acabava se deparando com o Diabo, sempre acompanhado por um séquito de pequenos demônios e metido em situações cômicas, que o transformava em figura ridícula. Aparece então a palavra clown, para designar o rústico. E ele passou a ser um tipo com características bem definidas. Continuava um grosseirão, meio caipira, mas ganhou esperteza, sua linguagem evoluiu, adorava palavras difíceis. Em 1768, o sargento inglês Philip Astley construiu um anfiteatro ao ar livre, onde pela manhã dava aulas de equitação e apresentava espetáculos equestres. Foi ele quem teve a ideia que iria revolucionar o mundo dos espetáculos: num picadeiro de 13 metros de diâmetro, mesclou exercícios equestres com proezas dos artistas de feira. O espetáculo, baseado na disciplina militar e na valorização da destreza e do perigo, deixava a platéia muito tensa. Era preciso que o espectador tivesse momentos de relaxamento - e é aí que surge o palhaço do circo. O clown, o campônio de quem os artistas itinerantes sempre gostaram de caçoar, veio a ser o protótipo do bufão do circo.318

A transição das feiras medievais para a Londres de Jorge III (segunda metade do Século das Luzes) não se dá aos solavancos – a navegação é tranquila, fluida feito um bom espetáculo de circo. Fluidez que faltou à escola, durante a passagem pela Passarela do Samba: problemas de harmonia e evolução, aliados a um samba de enredo pouco empolgante, prejudicaram o cortejo; por conseguinte, a agremiação amarela e preta amargou, na quarta-feira de cinzas, um apático 9º lugar. O oposto se viu no ano anterior, 2015, quando a São Clemente desfilou o enredo A incrível história do homem que só tinha medo da Matinta Pereira, da Tocandira e da Onça Pé-de-Boi, homenagem a Fernando Pamplona. A “aprendiz” traduzia, reinterpretava e atualizava, na Sapucaí, a obra do “mestre” que a levou para o carnaval319:

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MAGALHÃES, Rosa. Mais de mil palhaços no salão. Sinopse do enredo do carnaval de 2016 do Grêmio Recreativo Escola de Samba São Clemente, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA). 319 Os jornalistas Fábio Fabato e Luiz Antonio Simas narram, em Pra tudo começar na quinta-feira: “Depois das aulas e pitos práticos do ‘papai’ Pamplona na construção do Pega no ganzê (Salgueiro, 1971), o título pelo Império Serrano em 1982 (ao lado de Lícia Lacerda) foi a segunda maior lição recebida por Rosa Magalhães no começo da estrada. Criou corpo e pintou a franja para seguir adiante.” In: FABATO,

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proposta coerente e carregada de sutilezas. O enredo, embriagado de poesia, tratava de uma viagem: da cidade de Rio Branco, capital do Acre, onde Pamplona cresceu em meio a lendas e mitos aterrorizantes (imagem 90), à Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, onde Pamplona assistiu ao primeiro desfile de escola de samba da sua vida e se deixou apaixonar pelo Acadêmicos do Salgueiro. A sinopse narra:

Em Rio Branco era assim, um florestão envolvendo a cidade. Ninguém adentrava na mata - "Tá doido, seu?" Era habitada pela bruxa Matinta Pereira, que calava o uirapuru, mas que sumia com a chuvarada, por um bicho brabo, o gogó de sola, de dentada perigosa feito cobra, pela formiga tocandira, pela onça do pé de boi, que todo mundo jura que existia, e com pé de boi e tudo. Pois foi lá nesse lugar tão longe que nosso personagem passou a infância. Foi crescendo, até que um dia chegou a hora de voltar para o Rio de Janeiro, sua terra natal, e onde passaria o resto de sua vida. No Lido é que começou a brincar carnaval, ouvindo "Mamãe eu quero" e "Touradas em Madri". O bloco de sujo de que fazia parte ensaiava no cemitério. A molecada se encontrava perto da quadra IV, que ainda estava em construção, e os defuntos ali enterrados não reclamavam do barulho. "A avenida Rio Branco era um deslumbramento só" - mão dupla, tudo decorado, cheia de grupos fantasiados. Entre os carros, desfilavam os cordões, grupos e blocos com muitos pierrôs, arlequins, tiroleses, holandeses, e muitas colombinas também. Passa o tempo, passa a guerra, passa a ditadura de Vargas, o tempo vai correndo e nosso herói vai se tornando mais adulto e mais valente. Essa avenida Rio Branco, dos desfiles carnavalescos, era a mesma que abrigava o Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional, o Museu e a Escola de Belas Artes. E lá foi ele, atraído pelas artes, para a tal escola, e também para o teatro, onde trabalhou por muito tempo. Foi desse local, numa janela do andar superior, seu camarote exclusivo, que viu pela primeira vez um desfile de escola de samba, com Natal reclamando e a Portela evoluindo ali, naquela mesma avenida. Um dia, foi convidado para fazer parte do júri das escolas de samba. Aceitou. E foi também na Avenida Rio Branco que, encarapitado num palanque de madeira, viu um desfile bastante sui generis. "A primeira escola quebrou o eixo do carro. Que entre a segunda. Mas a segunda só entraria se a primeira entrasse. Então que entre a terceira. E nada da terceira, e nada da quarta também - Às onze e meia da noite, chega alguém avisando que a quinta iria desfilar - até que enfim." A quinta era o Salgueiro, apresentando um enredo sobre Debret - o que cativou nosso jurado: em vez de "Panteão de Glória", "Batalhas de Tuiuti", etc., cantava um artista - Debret. Foi desse dia em diante que nosso personagem se tornou carnavalesco e salgueirense - as cores vermelho e branco, ainda por cima, o remetiam ao time de futebol lá do Rio Branco, quando ainda era menino.320

Fábio; SIMAS, Luiz Antonio. Pra tudo começar na quinta-feira. O enredo dos enredos. Rio de Janeiro: Mórula, 2015, p. 152. Alexandre Medeiros discorre, em As Três Irmãs: “O ingresso (de Rosa Magalhães) no mundo do carnaval foi em 1970, ao trabalhar como figurinista no barracão do Salgueiro. Chegou sem saber muito bem o que faria. A artista foi compor uma equipe que tinha o líder, Fernando Pamplona, e mais Maria Augusta, Arlindo Rodrigues e Joãosinho Trinta. O enredo era ‘Festa para um Rei Negro’, com o qual a escola foi aclamada campeã em 1971.” In: DINIZ, Alan; FABATO, Fábio; MEDEIROS, Alexandre. As Três Irmãs. Como um trio de penetras “arrombou” a festa. Rio de Janeiro: Novaterra, 2012, p. 156/158. 320 MAGALHÃES, Rosa. A incrível história do homem que só tinha medo da Matinta Pereira, da Tocandira e da Onça Pé-de-Boi. Sinopse do enredo do carnaval de 2015 do Grêmio Recreativo Escola de

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Construindo uma ponte imaginária entre a capital Rio Branco e a Avenida Rio Branco, a carnavalesca navegou por mares tranquilos – mas, assim como nas demais narrativas elencadas aqui, não apresentou a embarcação, um Ita no Norte (Itaquicé), que trouxe Pamplona ao Rio de Janeiro, em viagem de 45 dias marcada por sabores, cores, descobertas, aventuras de menino.321 Curiosamente, coube a Fernando Pamplona o elogio ao “navio inexistente” mais comentado da obra de Rosa Magalhães: a barca francesa Splendide, vinda de Argel, que desembarcou 14 dromedários em Fortaleza, em 24 de julho de 1859322. Justamente a alegoria que representava o navio, a sétima do desfile de 1995, quebrou, tão logo entrou na avenida, durante a apresentação oficial da Imperatriz Leopoldinense. Rosa Magalhães narra o episódio em um documentário produzido pela LIESA, em 2002 – o que é transcrito por Fábio Fabato e Luiz Antonio Simas: “os diretores fizeram ‘tchum’ e, por mágica, a alegoria sumiu.”323 Sumiu e não causou qualquer comprometimento ao desfile, segundo os jurados – tanto que a escola terminou bicampeã. Sumiu e nunca foi esquecida, em especial pelos torcedores da Portela, que, após uma apresentação lírica e apoteótica (desfilou o enredo Gosto que me enrosco, de José Félix), dava o título de campeã como certo – mas terminou a apuração em segundo lugar. No desfile das campeãs daquele ano, transmitido pela extinta TV Manchete, a sétima alegoria cruzou a Sapucaí sem polêmicas nem avarias. Mamulengos nordestinos carregavam em suas cores o imaginário das batalhas entre mouros e cristãos – a mesma Samba São Clemente, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA). 321 Pamplona conta, em sua autobiografia: “Pegamos um Ita, o Itaquicé, vapor enorme e adeus! Adeus floresta grande e mal-assombrada, adeus ‘jabuti’, barquinho em que passageiros, remando, atravessavam o Rio Acre para o ‘outro lado’, adeus coroa de flores feita de papel crepom. (...) Enfrentando o misterioso mar, passamos por São Luís, tomando refresco de açaí. Brincando de esconder no navio, meti-me por baixo de um escaler no tombadilho superior sem guarda-corpo. A mão rápida de um taifeiro fez com que este escrito não terminasse em Belém do Pará; vi, de longe, Natal e, em Recife – que tinha porto -, parentes vieram a bordo nos visitar; em Salvador, além da costumeira venda de redes, havia um estranho batuque no cais, uma roda de gente dentro da qual dois negros faziam uma ginástica esquisita, cantavam com um acompanhamento melódico (mas monocórdico), que saíam de arcos parecidos com os dos índios. Achei bacana e, na ocasião, ninguém me explicou o que era aquela dança esquisita, a tal da capoeira! Depois de quarenta e cinco dias da partida de Rio Branco chegávamos ao Rio de Janeiro.” In: PAMPLONA, Fernando. O encarnado e o branco. Rio de Janeiro: NovaTerra, 2013, p. 20/21. 322 O desembarque dos animais é narrado por Jota Efegê em Figuras e coisas do carnaval carioca: “Trazidos pelo navio Splendid, numa viagem de 38 dias, o desembarque dos camelus bactrianus dromedarius, como alguns jornais da terra esbanjando erudição zoológica os trataram, causaram grande rebuliço. Enormes, mastigando continuamente, os estranhos animais, com suas corcovas, não tiveram acolhida festiva. O povo apinhado no cais, influenciados pelas beatas, tinha-os como monstros salvos do Dilúvio. Apontavam para eles como se fossem anticristos. E, esconjurando-os, benziam-se: ‘vote, credo!’. In: EFEGÊ, Jota, Obra citada, p. 236. 323 FABATO, Fábio; SIMAS, Luiz Antonio. Obra citada, p. 155.

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temática observada na ala do tabuleiro, analisada por Felipe Ferreira. Pamplona, comentarista da Manchete, explicava aos telespectadores que aquele era o carro que não havia participado do desfile oficial. E que aquele carro tinha um problema de leitura: nomeado A chegada do camelos, não se via camelo algum. Pouco depois, o professor de Rosa Magalhães explicou às gargalhadas: os animais estavam ali, sim, inteligentemente bem posicionados. Das escotilhas do navio, saiam os pescoços dos bichos, como se assustados estivessem com as justas dos folguedos populares. Tirava o mestre o chapéu para a aprendiz.

Imagem 90: Visão frontal do carro abre-alas da São Clemente, no desfile de 2015. A grande escultura da feiticeira Matinta Pereira representava os medos do menino Fernando Pamplona, o homenageado do enredo, que cresceu em terras acreanas e pegou um Ita com destino ao Rio de Janeiro. Ao fundo, as águias do Theatro Municipal, localizado na Avenida Rio Branco – local de onde Pamplona vislumbrou o primeiro desfile de escola de samba da sua vida. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

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V – Os olhares estrangeiros: o eu e o outro

Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros Onde quer que estejamos. Ricardo Reis – Odes

V. 1 – O Brasil muito longe daqui – ou a quiche e a mandioca Nice, 12 de março de 2017. Passado o carnaval e a ressaca da distância, fomos, na noite do dia 04 de março, sábado, a uma festa organizada por brasileiros, em uma república, na Place Garibaldi – entrada da Vieille Ville. Conhecemos os anfitriões, Brisa e Thomas (ela, brasileira de Minas; ele, francês de Aix-en-Provence), na saída de uma discussão de Que horas ela volta?, longa de Anna Muylaert, exibido durante um encontro de estudos brasilianistas, em um cinema da Garibaldi. Depois da festa (e de algumas garrafas de vinho), caminhávamos, os quatro intercambistas, pela Route de Turin, a via que nos levava às residências universitárias onde morávamos, numa região imigrante (quantas vezes não adormeci ouvindo cantos e orações...). No caminho, numa esquina qualquer, um rapaz nos dirigiu a palavra: “Brasileiros? Há quanto tempo eu não ouvia o português!” Iniciamos, então, uma conversa rápida, quase natural ou espontânea, produto, hoje acredito, de uma necessidade absurda que então sentíamos de afirmar a nossa brasilidade diante do carnaval embalado por Bruno Mars, diante do frio que congelava os nossos dedos, diante de algumas atitudes xenófobas vivenciadas na universidade e no transporte público (“Voltem para a Colômbia, cheirar cocaína”; “Não existe cartão de crédito no Brasil?”). O rapaz, originário de Santarém, no Pará, vivia em Nice há um ano e estudava gastronomia. Vivenciara o atentado de 14 de julho de 2016, na Promenade des Anglais, e afirmou que, naquela ocasião, pensou seriamente em voltar ao Brasil. Trabalhava, todas as noites, em um restaurante com estrela Michelin. Enfiado num sobretudo e enrolado num cachecol, disse que aquele encontro havia sido uma alegria, pois não tinha amigos brasileiros na cidade e sentia falta de conversar sobre as coisas da “nossa terra”. Por conta disso, convidou-nos para um jantar na casa dele, no final de semana seguinte. Tássia pegou o contato. O cardápio seria surpresa – que levássemos um vinho cada.

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Brena foi categórica, diante do inusitado: “a gente não aceitaria um convite de um estranho que nos parasse para conversar em uma rua do Brasil. E olhem que também sou paraense!” E zarpou, no final da semana seguinte, para as terras da Grã-Bretanha, visitar o namorado em Windsor. Fomos, os demais, ao jantar do domingo seguinte, 12 de março. Quando chegamos na casa do rapaz, conhecemos o marido dele, francês de Lille, que morara muitos anos no Ceará – também trabalhava com gastronomia e, supostamente apaixonado pelo Brasil, decidira, no começo dos anos 90, abrir um restaurante em Canoa Quebrada. Morou 20 anos, entre o Ceará e São Paulo (que agora melhorava, “depois da eleição de João Dória”). O que se deu, passadas as apresentações e as trocas iniciais, foi um monólogo do sujeito – que, muito mais velho, personificaria, ali, a figura do colonizador diante dos “colonizados”. Disse que Canoa Quebrada era um retrato fiel do Brasil: um lugar movido a drogas, roubos e prostituição. Que apesar de amar o Brasil (e de não entender, mesmo, o porquê de os franceses amarem tanto o Brasil), entendia que toda a América Latina, bem como os países africanos e a Índia, estavam num patamar civilizatório abaixo da Europa e da América do Norte – o que era facilmente comprovável, bastava ir a qualquer museu. “Aqui, no Primeiro Mundo, temos uma História”, proferiu, orgulhoso – e eu podia ver o H maiúsculo na entonação de “História”. Tássia interveio, com calma: “Mas não podemos esquecer que para que essa ‘história oficial do Primeiro Mundo’ fosse construída, um país como a França explorou diversos outros países, como a Argélia, a Tunísia, o Haiti e o Senegal, roubando riquezas, impondo padrões, lucrando às custas do trabalho escravo e do tráfico de mercadorias...”. De nada adiantou. O homem, sisudo, ergueu o dedo, no mais autoritário dos tons professorais: “Você não entendeu. A nossa história não é de exploração, é de revolução. Fizemos a maior revolução de todas, tanto que o mundo inteiro estuda a História do nosso país. E por isso temos consciência política. Coisa que no Brasil não existe.” Eduardo, imbuído de uma sociabilidade incompatível com a minha persona, tentava interagir com o sujeito, levantando problematizações. Mas o sujeito não queria problematizar: afirmava, e com “argumentos de autoridade” que nos oprimiam a cada sentença. “Vocês são privilegiados, porque estão estudando em um país de Primeiro Mundo (quantas vezes repetiu isso?), onde podem caminhar de madrugada, sem medo de serem roubados. No Brasil, a maioria das pessoas não sabe escrever o nome. Porque tem

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muita gente vagabunda, vamos falar francamente. Não gostam de trabalhar e votam pela barriga. Eu via no meu restaurante. É da cultura.” Enquanto o marido discursava, o rapaz de Santarém manipulava panelas, bandejas, garrafas, talheres. Quieto, menos que monossilábico. Iniciava um serviço tipicamente francês: de entrada, tapenade (que não conseguíamos comer, estáticos que estávamos diante de algumas narrativas envolvendo assassinatos e prostituição em Canoa Quebrada); o prato principal seria uma quiche; num afago saudosista, brigadeiro de colher anunciado para a sobremesa. Numa última tentativa de “salvar” a refeição, perguntei ao rapaz sobre o trabalho no restaurante e os segredos da cozinha francesa. Ele, num primeiro momento de protagonismo, pegou um livro grosso, muito grosso, abriu-o na página marcada e mostrou-nos, com um misto de orgulho e medo, a receita da quiche que então era assada no forno. Explicou que o preparo era extremamente matemático: as medidas seguiam precisões cirúrgicas e os tempos eram cronometrados com o rigor dos Jogos Olímpicos – por isso havia começado a preparar os ingredientes na noite anterior. “Aqui, não existe essa história de ‘pitada’. ‘Pitadinha’. Isso é um horror!” – exclamou o marido, roubando o turno da voz. Passou a falar da culinária brasileira, um sarapatel sem técnicas, uma cozinha que precisava aprender com a França se quisesse conquistar algum status internacional. “Quem fala em ‘pitadinha’ não merece respeito!” O rapaz, talvez incomodado, retrucou: “Não é bem assim. É que a culinária brasileira segue outros saberes. É uma cozinha de ouvido, não é matemática. Mas as técnicas indígenas do cultivo da mandioca, por exemplo, isso é uma coisa muito rica e que está sendo estudada aqui na França, porque pode ajudar a resolver o problema da fome em muitos lugares.” O sujeito deu de ombros e rompeu, de vez, o verniz social: disse que a culinária, reflexo de um povo, expunha os intestinos brasileiros. “Basta olhar para a organização de uma cozinha. No Brasil, é tudo misturado. Qualquer um vira chef. Aqui, os negros imigrantes ficam na base, lavando os pratos. Porque não estudaram para serem chefs e nunca serão chefs. E sabem que este é o lugar deles.” Tássia, mais forte do que qualquer um de nós jamais seria, delicadamente rebateu: “O curioso é que o seu marido disse que não lava pratos, mas é sous-chef. Está estudando para ser chef. E ele é imigrante e é negro, caso você não saiba. E agora eu me vou embora, porque eu não sou obrigada a ouvir você falar essas coisas do meu país e das pessoas da cor da minha pele. São muitas divergências e é impossível eu comer qualquer coisa dessa casa.” 224


Saímos, todos, em silêncio. Depois, explodimos – de raiva, de incompreensão. Afinal, qual era a do rapaz do Pará? Qual era a daquela relação? A quiche nunca saiu do forno – está lá até hoje, recheada de racismo. Temperada com xenofobia. Virou um símbolo para o nosso grupo – e por isso me vejo obrigado a utilizar tal vivência na costura final da tese. Nada sabemos daqueles dois: Tássia, amedrontada, excluiu o contato. O episódio, ocorrido pouco depois de passado o primeiro mês do DoutoradoSanduíche em Nice, desencadeou inúmeras discussões sobre o que é ser brasileiro. Mais: o que é ser brasileiro sob o olhar do outro, tanto mais quando o outro veste o manto (ainda que desconheça a terminologia dos estudos culturais pós-colonialistas) do etnocentrismo. Tanto mais quando o outro possui um lugar de fala privilegiado no contexto discursivo, utilizando-se de uma autoridade fincada na certidão de nascimento, na cor da pele, na religião que professa, em critérios de diferenciação historicamente violentos e segregacionistas. No contexto do carnaval carioca, não livre das segregações (existe o “mito da democracia”, no seio das escolas de samba; trata-se, porém, de um mito tão frágil quanto uma fantasia mal colada sob uma chuva torrencial324), Rosa Magalhães é a artista que mais vezes se propôs a transitar em tal seara. Em parte, devido às vivências pessoais: conforme já foi falado, a autora é uma entusiasmada viajante – e isso, é claro, se reflete nos trabalhos por ela desenvolvidos. Além disso, como foi discutido em A Antropofagia de Rosa Magalhães, boa parte da produção artística da autora (ao menos as 11 narrativas analisadas naquele trabalho) assumidamente dialoga com o imaginário colonial brasileiro – seja pela “identidade” da Imperatriz Leopoldinense, agremiação à frente da qual a artista ficou 18 anos; seja pelo imaginário maior em que as escolas de samba estão enredadas, marcado por realezas e ressignificações populares de quadros do Brasil colônia (basta pensarmos na figura do Rei Momo, no caráter barroco discutido por Maria Laura Cavalcanti, nas simbologias das “cortes” populares presentes em inúmeros folguedos, na própria nomenclatura de algumas escolas – Imperatriz Leopoldinense, Império da Tijuca

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Diversos estudos contemporâneos apontam para as incongruências internas e para os preconceitos tantos que permeiam as escolas de samba. Os baixíssimos índices de carnavalescas mulheres e de carnavalescos negros, a ausência de papéis de liderança feminina diante de baterias e demais instâncias administrativas de uma agremiação, os contraditórios “níveis de tolerância” para com as expressões da homossexualidade entre profissionais (carnavalescos, passistas, mestre-salas, intérpretes, mestres de bateria, etc.) e foliões, a invisibilização dos corpos negros das passistas, tudo isso vem sendo debatido, conforme apontam as mesas redondas dos últimos eventos acadêmicos dedicados ao pensar carnavalesco (o exemplo mais recente, o I Seminário Escolas de Samba UFF: história pública, saberes e arte, ocorrido na Universidade Federal Fluminense, Campus Gragoatá, nos dias 6, 7 e 8 de novembro).

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e Império Serrano são os principais exemplos cariocas, havendo outros, de norte a sul do Brasil325). O que faz espocar, novamente, a faísca já vislumbrada: quais questões identitárias estão impressas na obra da carnavalesca que mais viagens internacionais transformou em fantasias e carros alegóricos? Entre a quiche e a mandioca, qual o prato principal de um jantar por ela proposto? A partir daqui, numa espécie de tour panorâmico, é válido observar (com o fim único de um mapeamento entre muitos possíveis) os destinos geográficos e as linhas gerais das interpretações sugeridas (e coloridas com brilho intenso) em mais de trinta narrativas. Naveguemos com ela.

V. 1. 1 – Os mitos que enlaçam antigas tradições Que as escolas de samba nutrem um especial apreço pela história das ditas “antigas civilizações”, isso não é novidade – o que já foi brevemente explicado páginas atrás. Se as narrativas de enredo de Joãosinho Trinta faziam questão de passear pelos “povos de antigamente” (dando especial atenção a egípcios e gregos326), o mesmo não se pode dizer das obras de Rosa Magalhães. De abordagens mais objetivas, os enredos desenvolvidos pela carnavalesca preferem os recortes acadêmicos à pretensão enciclopedista de desfiar sagas – o que não quer dizer, porém, que a artista não tenha flertado, aqui e acolá, com faraós e gladiadores. As dinastias chinesas e os mineiros celtas, em Breazail, não deixam mentir. Já na Estácio de Sá, na segunda metade da década de 1980, em parceria com Lícia Lacerda ou em carreira solo, ela ensaiava diálogos fantásticos com a Antiguidade – o que,

A leitura de Lilia Moritz Schwarcz esclarece a questão: “Aqui não se atribuem aos reis poderes mágicos ou transcendentais, como no caso clássico francês dos reis taumaturgos estudados por Bloch, porém de toda maneira o ritual local aprimora o ‘fraco’ cerimonial dos Bragança. No Brasil, os imperadores passam a ser ungidos e sagrados, numa tentativa de dar sacralidade a uma tradição cuja inspiração era antiga mas a realização datada, Nesse movimento, ao mesmo tempo em que os monarcas ganham santidade, os santos, quando muito adorados, ganham realeza no Brasil. O Divino Espírito Santo recebe um império, o deus Momo vira, anos mais tarde, rei Momo. De qualquer modo, mantos imperiais convivem com mantos divinos, e o imaginário da realeza acaba permeando fortemente o catolicismo brasileiro, da mesma maneira que uma série de manifestações populares, como o Carnaval – com seus impérios, reis, rainhas e enredos , se nutre de cenas da monarquia.” In: SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador. D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 16. 326 Jota Efegê explica que isso pode ser uma herança dos antigos Ranchos e das Grandes Sociedades. O cronista usa como exemplo o enredo do Ameno Resedá de 1908, Corte Egipciana. Logicamente, tal questão merece ser problematizada com mais profundidade, em futuras pesquisas. Ver: EFEGÊ, Jota. Obra citada, p. 251. 325

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no plano da visualidade, resultava bem sucedido, ainda que sem arroubos de criatividade. O melhor exemplo é o argumento de O boi dá bode, de 1988, que abraça, em um mesmo cortejo, Minotauro e Ápis – colunas e frontões gregos e sarcófagos de faraós. O mesmo sistema simbólico voltaria a aparecer na Unidos de Vila Isabel, em 2011: a Comissão de Frente, o primeiro casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira e a ala de abertura falavam do mito da Medusa, derrotada por Perseu (o universo da mitologia grega, portanto); a terceira e a quinta alegorias falavam de povos da Antiguidade Oriental: a força de Sansão e os embates entre hebreus e filisteus, no carro O templo do deus Dagon (materialização de uma narrativa bíblica do Livro dos Juízes, algo muito raro nos trabalhos da autora) e as perucas utilizadas por egípcios, com direito a uma esfinge gigantesca inspirada na mais famosa sequência de Cleópatra, filme com Elizabeth Taylor e Richard Burton, no carro O grande cortejo egípcio. Algo tão belo quanto genérico – daí a afirmação do comentarista Fábio Fabato, durante a transmissão do desfile das campeãs daquele ano, pela TV Bandeirantes, de que Rosa Magalhães é melhor quanto abraça o hibridismo e mistura jegues e camelos.

V. 1. 2 – Orientalismos As referências a hebreus, filisteus e egípcios, em Mitos e histórias entrelaçadas pelos fios de cabelo, são exemplares do olhar orientalista de Rosa Magalhães. Pode-se dizer, em linhas (ou fios) gerais, que são observáveis, nas criações carnavalescas da autora, algumas características do orientalismo elencadas por Edward Said, como os clichês e estereótipos revestidos de exotismo e sensualidade (a utilização de épicos de Hollywood como referências é algo que não só confirma como reforça o exposto). Para Said, “tais lugares, regiões, setores geográficos, como o ‘Oriente’ e o ‘Ocidente’, são criados pelo homem”327, ou seja: construções discursivas impregnadas de visões de mundo no mais das vezes conflitantes – um conjunto de generalizações históricas e um empreendimento cultural de gigantesca envergadura. É do pesquisador a ideia de que as visões de “Oriente” cristalizadas no sistema simbólico do “Ocidente” mais dizem do hegemônico imaginário ocidental que do imaginário de um Oriente “real” – e exemplos na literatura não faltam para ilustrar a defesa, tanto que o autor empreende uma varredura 327

SAID, Edward. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007, p. 31.

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de Homero a Camus. No carnaval das escolas de samba, não é preciso ir muito longe: o desfile de 2017 da Mocidade Independente de Padre Miguel, uma das campeãs, é orientalista do começo ao fim, apresentando uma visão genérica e estereotipada (agarrada às narrativas mais popularizadas das Mil e uma noites, inclusive à versão de Walt Disney para a história de Aladdin) do Marrocos. Ainda para Said, desde a campanha napoleônica no Egito, o Orientalismo é submetido a categorias de análise ocidentais, como o imperialismo, o positivismo, o utopismo, o historicismo, o darwinismo, o racismo, o marxismo, etc. Geralmente, o resultado da análise é a polarização: o Ocidente desenvolvido/rico e o Oriente arcaico/pobre, o Ocidente forte e o Oriente fraco, o Ocidente politicamente organizado e o Oriente anárquico, o Ocidente moral e sexualmente equilibrado e o Oriente das orgias depravadas e das mais sedutoras odaliscas. Estudar o Orientalismo a contrapelo, na visão do autor, contribui para a desconstrução de um discurso hegemônico que perpetua, ao longo dos séculos, uma visão dominadora. Entretanto, tal perspectiva, basilar para a compreensão dos estudos póscoloniais, não tem dado as caras na Marquês de Sapucaí. Nos desfiles assinados por Rosa Magalhães, via de regra, o “Oriente” é um lugar exótico – a descrição do camelo outrora apresentada bem ilustra tal estranhamento. Em 1995, sedutoras odaliscas sambavam sobre as minaretes de um palácio argelino; em 1989 e em 2001, nos enredos sobre o arroz e a cana-de-açúcar, respectivamente, a mesma cena se repetia, o que denota uma constante. As visões para com o Oriente Médio, por fim, também são traduzidas em festejos populares, como as cavalhadas – algo observado em 1995 e em 2001. Em 2010, no enredo sobre D. Quixote, os figurinos e elementos alegóricos dedicados ao Rei Mouro Mambrino igualmente faziam alusão aos folguedos brasileiros. A China, conforme já foi apresentado, a partir da análise dos segmentos chineses de Breazail, aparece em 1989, 2004, 2005 e 2011. À exceção de 2005, uma leitura verdadeiramente interessante e diferenciada (o palácio imperial revestido de porcelanas azuis), as demais interpretações para os povos do “extremo Oriente” são previsíveis – o que não invalida a beleza das fantasias e alegorias nem representa, eis o mais importante ponto a ser destacado, um descompasso para com o universo carnavalesco328 (que explora

É válido destacar que a construção de tal “universo carnavalesco” nos remete ao século XIX e, no caso específico do apreço pelos exotismos orientais, à “sociedade vitoriana”, nos termos de Peter Gay. É o que anota Felipe Ferreira, em Inventando Carnavais. Segundo Peter Gay, a “sociedade vitoriana” entende o mundo a partir de uma perspectiva positivista e evolucionista. As fantasias dessa sociedade representam o mundo do outro (no tempo e no espaço), algo explorado à exaustão em séries televisivas contemporâneas. 328

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tais imaginários desde o século XIX – fantasias de sultões, odaliscas e chineses já eram comercializadas, na Rua do Ouvidor, na época do Segundo Império). A Índia, seguindo a rota da seda, é retratada enquanto esplendoroso reino de riquezas – e seguramente o conjunto formado pelas fantasias e alegorias dos dois primeiros setores do desfile da Imperatriz Leopoldinense do carnaval (campeão) do ano 2000 (um dedicado às pedras preciosas; o outro, às especiarias e aos tecidos) é das mais belas e detalhistas criações plásticas que já passaram pelo Sambódromo do Rio.329 Ainda neste subtema, deve-se inserir o grande destaque dado à Tailândia, no desfile estaciano de 1987. Rosa Magalhães, que disse, no depoimento ao MIS, ter extraído a ideia do enredo sobre o sapoti das memórias de uma viagem ao antigo reino do Sião, na Indochina, levou à Marquês de Sapucaí, ao lado de Lícia Lacerda, reproduções primorosas de templos e divindades tailandeses. Quando o samba de enredo de 87 foi “reeditado” pela escola, em 2007, num desfile assinado por Paulo Menezes, os mesmos signos se fizeram presentes – sem, no entanto, o impacto originalmente causado na apresentação de 20 anos antes.

V. 1. 3 – Vive la France! Proporcionalmente, numa análise comparativa com China, Índia e países ou regiões do Oriente Médio, a França é quase onipresente na obra de Rosa Magalhães – a começar pelo enredo de 2017 da São Clemente, Onisuáquimalipanse. A autora narrou, na Sapucaí, a curiosa história que levou à construção do Palácio de Versailles, no reinado de Louis XIV. Vencedor do prêmio de melhor enredo, segundo o júri do Estandarte de Ouro, trata-se de uma narrativa linear e bastante coesa: a autora não conta a história do reinado do “Rei Sol” nem apresenta qualquer visão alegórica do esplendor de Versailles (a única referência direta ao palácio é uma pequena maquete giratória, na última alegoria). O foco do enredo é o projeto, a construção e a inauguração do Château de Vaux-le-Vicomte, tudo Ver: GAY, Peter. Schnitzler’s century: the making of middle-class culture – 1815-1914. Nova York/Londres: W.W. Norton & Company, 2002. 329 Curiosamente, China e Índia voltariam a cruzar a Passarela do Samba, em 2018: os países foram os temas dos enredos do Império Serrano (O Império do Samba na Rota da China, de Fábio Ricardo) e da Mocidade Independente de Padre Miguel (Namastê... a estrela que habita em mim saúda a que existe em você!, de Alexandre Louzada). Ambas as apresentações pecaram no que tange à criatividade e às ousadias narrativas: o que viu, na escola que abriu (Império Serrano) e na escola que fechou (Mocidade) a primeira noite de desfiles do Grupo Especial, no domingo, foi uma sucessão de clichês e fórmulas requentadas – uma dose de orientalismo que faria Said escrever uma lauda.

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empreendido pelo Ministro das Finanças do Rei, Nicolas Fouquet – que terminou em uma masmorra, uma vez que Louis XIV entendeu que houve desvio financeiro. Irritado com o despeito do Ministro, o Rei é levado, posteriormente, a ordenar a construção de um palácio ainda mais grandioso, Versailles – e aí o enredo termina, um recorte dentro de um recorte. Mesmo a crítica política, expressa na última ala, não deixa o ideário francês de lado: o presidiário, com listras em preto e branco e o número “171” no peito, apresenta vestes e peruca à Louis XIV. Talvez por isso, a ausência de uma explícita conexão com o cenário político brasileiro, o enredo não obteve, perante o público presente no Sambódromo, um apreço imediato. Na sinopse, a carnavalesca brinca: “PS - Essa história aconteceu há muito tempo e qualquer semelhança com fatos de outras épocas é mera coincidência.”330 Nota-se, em Onisuáquimalipanse, um desfile de personalidades importantes para a compreensão do protagonismo francês no que tange à construção das sociedades de corte, no século XVII. O enredo reúne, além de Fouquet e Louis XIV, Gérard Lebrun, François Vatel, André Le Nôtre e, não bastasse, Molière. O bloco de referências visuais manipulado pela autora é vastíssimo - daí o indiscutível sucesso do conjunto alegórico. Rosa trabalhou, com equilíbrio e elegância, na sua “zona de conforto”: não era a primeira nem a segunda vez que a corte de Louis XIV passava pelas suas pranchetas. O Rei Sol era figura carimbada. Em 1999, o terceiro carro alegórico reproduzia a Galeria dos Espelhos de Versailles. O destaque João Helder, com peruca azul turquesa e flores de lis no esplendor, encarnava o monarca absolutista. Quatro anos mais tarde, em 2003, o Rei voltou a acenar para o público – com outra roupagem, vestido de ouro. Na quinta alegoria do enredo sobre a pirataria, Louis XIV recebe parte do resgate e do saque do pirata, Rosa Magalhães voltava a desenhar Versailles – mais especificamente, o quarto real, decorado em rosa e dourado. A autora contava a história de René Duguay-Trouin, que sitiou (ou “sequestrou”) a cidade do Rio de Janeiro, em 1711, exigindo um volumoso resgate em moedas, escravos, bois, açúcar e demais riquezas331. Na visão imaginativa da

MAGALHÃES, Rosa. Onisuáquimalipanse – envergonhe-se quem pensar mal disso. Sinopse do enredo do carnaval de 2017 do Grêmio Recreativo Escola de Samba São Clemente, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA). 331 Maria Luiza Newlands escreve, em O Inverso das Origens: “Este último (Duguay-Trouin) esteve em visita – sem ter sido convidado – às nossas praias cariocas com uma frota de dezoito navios em 1711 e quase explode a cidade, se não lhe pagassem o resgate que exigia: duzentos bois, cem caixas de açúcar e seiscentos mil cruzados. Que recebeu, mesmo já tendo invadido as casas e saqueado os bens da população. 330

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carnavalesca, o navegador foi recebido por Louis XIV em trajes de dormir (uma espécie de pijama ou camisolão), durante uma sessão matinal de rapapés (ela narra, na descrição do carro alegórico, que “os nobres se reuniam para assistir ao Rei acordar”, o que era uma grande honra). Voltou a autora a cortejar Louis XIV em 2006, por meio do diálogo literário com as páginas de Alexandre Dumas. A segunda alegoria do desfile, intitulada Os Três Mosqueteiros e Louis XIV, coroava o setor de alas dedicado ao absolutismo do Rei Sol (com destaque para as fantasias Os guardas do Cardeal Richelieu, Os Mosqueteiros do Rei e O Homem da Máscara de Ferro). A autora destacava, com a sequência de imagens carnavalescas, que Giuseppe Garibaldi era o quinto mosqueteiro de Alexandre Dumas, irmanado simbolicamente a Athos, Porthos, Aramis e D’Artagnan. O carro procurava reproduzir “os cenários das aventuras dos Mosqueteiros do Rei”, trazendo o destaque de luxo Neucimar Pires como Louis XIV – o Rei Sol. Jardins (a mesma topiaria que roubou a cena em Onisuáquimalipanse), casarios, tavernas e um grande carrossel compunham a cenografia, que, a despeito dos problemas de acabamento (destacados pela comentarista Maria Augusta Rodrigues, durante a transmissão televisiva da Rede Globo), evocava com muito bom gosto o imaginário cortesão francês do auge das Monarquias Absolutas. O Rei Sol foi destaque, ainda, em 2011, no enredo sobre o cabelo, para a Unidos de Vila Isabel. A sexta alegoria do desfile, em estilo rococó, falava nos Penteados extraordinários na corte francesa de Louis XIV – e exibia esculturas de cortesãs com cabeleiras enormes, intencionalmente desproporcionais, cada uma decorada de uma forma. Representava, assim, a criação de apliques e a utilização de adereços inusitados, como candelabros, navios, arranjos florais, ninhos de passarinhos. E contava, também, que ratos se refugiavam nas madeixas e faziam a festa – afinal, a nossa noção de higiene passava ao largo dos espelhos de Versailles. Outras visões de França aparecem nos enredos de 1991, 1994, 1997, 1998, 2002, 2006, 2008, 2009 e 2016. Em 1991 e 1997, o diálogo se dá por meio do Rio Antigo: tanto em Me masso se não passo pela Rua do Ouvidor, para o Salgueiro, quanto em Eu sou da lira, não posso negar, para a Imperatriz Leopoldinense, a autora evoca o espírito da Belle Époque e discorre, no texto e na visualidade, sobre um Rio que se afrancesava. O samba O castigo veio a nado, porque dois dos seus navios naufragaram na volta com grande parte do dinheiro. Deve ter sobrado ainda muita coisa, porque ele fez jus até a uma estátua de mármore branco na cidade de Saint-Malo, na Bretanha, da qual é um dos filhos mais ilustres.” In: MAGALHÃES, Rosa; NEWLANDS, Maria Luiza. Obra citada, p. 173/174.

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salgueirense dizia: “Ficou / da carne seca à Notre Dame de Paris / a nostalgia / do Rio que era mais feliz.”332 Em 1997, ao falar da vida e da obra de Chiquinha Gonzaga, a carnavalesca mostrou uma “Pianópolis” (a forma como o Rio era chamado, devido ao grande número de pianos) de acento e perfume franceses – a época do Alcazar Lírico (Alcazar Lyrique), também presente em 1992, na alegoria de número 11, o “Carro das Cocotes”. Em 2008, como observado anteriormente, a autora utiliza das cores da Revolução de 1789 para compor um setor inteiro dedicado às barricadas que levaram à decapitação de Louis XVI e Maria Antonieta – e à posterior ascensão de Napoleão Bonaparte ao trono, reestabelecendo o Império. Antes do setor em azul, branco e vermelho, porém, coloriu o asfalto da avenida uma sofisticada combinação de cores suaves, tons pastel: rosa-chá, pêssego, champanhe, creme. A segunda alegoria do desfile e o conjunto de alas que a antecediam expressavam o universo de Maria Antonieta, nos domínios do Petit Trianon. Rosas, bolos, confeitos, laçarotes, tudo remetia ao imaginário que Sophia Copolla traduziu em cinema, no filme de 2006, com Kirsten Dunst no papel principal (obra bastante criticada pelos franceses, diga-se). Ganhadora do Oscar de melhor figurino, graças ao trabalho de Milena Canonero, a película de Copolla serviu de referência para o trabalho empreendido por Rosa Magalhães – mais um exemplo de diálogo intersemiótico. Uma paleta de cores semelhante preencheu o setor francês do desfile clementiano de 2016 – aquele dedicado ao “palhaço de cara branca”, surgido, segundo a defesa da autora, em padarias (boulangeries) francesas. As guerras de farinha deram origem a palhaçadas – daí o mote da quarta alegoria do cortejo, repleta de pães, doces e padeiros (ou palhaços) enfarinhados. Em 1998, 2002 e 2006 a França se faz presente por meio da literatura: Jules Verne, em Quase no ano 2000, André Thevet e Jean de Lery, em Goitacazes: Tupi or not Tupi, in a South American Way!, e Alexandre Dumas, em Um por todos e todos por um. Os três enredos, que já foram amplamente debatidos, costuram obras literárias com bastante plasticidade. A narrativa de 1994, Catarina de Médicis na Corte dos Tupinambôs e Tabajeres, também apresenta acento literário, como exposto em A Antropofagia de Rosa Magalhães: trata-se do diálogo, ao final, com Michel de Montaigne e Jean-Jacques Rousseau – a possível influência do índio brasileiro na Revolução Francesa, teoria de

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Composição de Sereno, Luiz Fernando e Diogo.

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Afonso Arinos de Melo Franco333. A mesma temática seria revisitada no desfile de 2009, sobre a história do bairro de Ramos e os 50 anos da Imperatriz Leopoldinense. Na penúltima alegoria, Rosa Magalhães reapresentou ao público o escritório de Montaigne sendo invadido pela floresta tropical, numa interessante (ainda que não tão bem-sucedida plasticamente) auto-homenagem. Ficou o gosto de que o original (a alegoria de 1994) era infinitamente superior. Em 2006, para além de Alexandre Dumas e da presença de Versailles, a França também aparece, e com grande intensidade (trata-se do melhor setor do desfile – a rigor, o único verdadeiramente estimulante do ponto de vista visual), no trecho dedicado ao carnaval de Nice. Como Garibaldi, o protagonista do enredo, nasceu na capital do Departamento dos Alpes Marítimos, quase na fronteira entre a França e a Itália, a carnavalesca resolveu apresentar um conjunto de alas e uma alegoria dedicadas às folias niçoises. Para isso, recorreu à história do carnaval de Nice e levou para a Sapucaí as batalhas de flores (batailles de fleurs), os festejos de pescadores, os seculares “cabeções” (grosse tête). O carro alegórico dedicado aos festejos (imagem 91), o mais bonito e “bem acabado” daquela apresentação problemática, reconstituía um carro alegórico de 1873: o estopim do célebre “caso Ratapignata”, polêmica descrita por Felipe Ferreira em Inventando Carnavais. Conta o autor que Nice vivia, na segunda metade do século XIX, uma espécie de “crise de identidade”: após inúmeras disputas, o território da cidade foi anexado pela França (fazia parte, então, do Reino de Sabóia) em 1860. Entre a população, porém, havia uma resistência (ainda perceptível/compreensível para quem morou e vivenciou o dia-a-dia dos diferentes lados de Nice, em 2017) ao “afrancesamento”, a começar pela adoção do idioma oficial. O Comitê de Festas, encarregado do carnaval da cidade (que despontava enquanto principal destino turístico do inverno europeu, superando o esplendor de Turim) precisava lidar com a tensão instalada – que explodiu, porém, nos festejos de 73:

Se o Comitê tem êxito em sua estratégia de organizar as festas do Carnaval niçois ao gosto da nova burguesia francesa, ele não consegue, no entanto, livrar-se de uma tensão existente na própria cidade, que, mesmo oficialmente vinculada à França, ainda possuía setores que relutavam em se desligar definitivamente da Itália. Um fato ocorrido no carnaval de 1873 dá a dimensão das forças políticas envolvidas nessa questão e de sua relação com o Comitê de Festas: a chamada “Batalha do Morcego”.

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Ver FRANCO, Afonso Arinos de Melo. O índio brasileiro e a Revolução Francesa. As origens brasileiras da teoria da bondade natural. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Topbooks, s.d.

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A Batalha do Morcego (ou da “Ratapignata”) – exaustivamente descrita por Sidro (1979a; 1979b; 2001) – pode ser resumida numa tensão decorrente do fato de o Comitê ter premiado um carro alegórico de tendência “italiana” em detrimento de outro, apoiado pela corrente “francesa”. O carro “italiano” representava Catarina Segurana em seu ato heroico de defesa da cidade por ocasião do assédio de 1543, uma lembrança não muito agradável para os franceses. A outra alegoria, representando um grande castelo povoado por morcegos (chamados no dialeto niçois de ratapignata), não possuía alusões tão evidentes a questões políticas, o que vai ao encontro do interesse dos “franceses” desejosos de retirar do foco carnavalesco qualquer referência aos acontecimentos desagradáveis sucedidos na França desde a anexação de Nice; como, por exemplo, a derrota de Sedan, a queda do Segundo Império, o sítio de Paris e a Comuna.334

Imagem 91: Terceiro carro alegórico do desfile de 2006 da Imperatriz Leopoldinense. Para expressar as raízes niçoises de Giuseppe Garibaldi, Rosa Magalhães dialogou com a história da cidade, reinterpretando, na Marquês de Sapucaí, a alegoria que gerou polêmica no concurso carnavalesco de 1873. Foto: Wigder Frota. Acervo pessoal.

A vitória do carro dedicado a Catarina Segurana, na terça-feira de carnaval, incendiou a imprensa francesa – e deixou registrada para a história, nas páginas dos jornais, um debate político dos mais acalorados. Rosa Magalhães, no cortejo gresilense 334

FERREIRA, Felipe. Inventando Carnavais. O surgimento do carnaval carioca no século XIX e outras questões carnavalescas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005, p. 263.

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de 2006, apresentou uma releitura do carro perdedor (ou melhor: do carro que ganhou o “primeiro prêmio de segunda categoria”335), o castelo medieval repleto de morcegos. Dialogava em profundidade com a história do carnaval de Nice e reforçava, indiretamente, o caráter francês da narrativa – e do sangue de Garibaldi. V. 1. 4 – Folias geladas

Rosa Magalhães se especializou em materializar paisagens geladas na Passarela do Samba, figurando enquanto uma das artistas carnavalescas que mais vezes precisou transportar geleiras e nevascas para o calor do Rio de Janeiro. É claro que o fascínio dos olhos tropicais pelas neves eternas não é surpreendente. Talvez a mais famosa leitura de paragens congeladas já apresentada na Marquês de Sapucaí, o Carro da Rússia do desfile de 1992 da Unidos do Viradouro, sobre os povos ciganos (o enredo se chamava A magia da sorte chegou), não foi assinada por Rosa Magalhães, mas por Max Lopes – alegoria eternizada na memória coletiva devido ao incidente ocorrido tão logo a geleira ganhou a área de dispersão, na Praça da Apoteose: um incêndio nunca antes observado durante um desfile de escola de samba. Felizmente, o ocorrido não gerou vítimas. O “carro dos cachorros” (forma como a alegoria ficou conhecida, devido às esculturas de huskies siberianos), porém, foi consumido pelas chamas e se transformou em um amontoado de ferros retorcidos e isopor derretido. O contraste entre o fogo e o gelo, sem qualquer gravidade, foi visualmente traduzido por Rosa Magalhães no segundo carro alegórico do desfile de 2007 (imagem 92), sobre o bacalhau. De nome complexo, Muspilheim e Nifheim, a alegoria explicava que, segundo a mitologia nórdica, nos primórdios do mundo existiam duas regiões: uma ao Sul, cheia de chamas, e uma região gelada que ficava ao Norte – uma terra de temperaturas baixíssimas, praticamente inabitável. Do choque entre as forças naturais teria surgido a Terra. As cores explosivas das lavas vulcânicas emolduravam um fiorde branco – e o carro seguramente conseguiu expor ao público a força da natureza da Noruega. Componentes batiam com batutas em pequenas tinas com tinta alaranjada, espirrando-a intencionalmente na brancura do gelo. Um carro em (des)construção, enquanto desfilava.

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FERREIRA, Felipe. Obra citada, p. 265.

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Imagem 92: Segundo carro alegórico do desfile de 2007 da Imperatriz Leopoldinense, sobre o bacalhau e a mitologia da Noruega. Intitulada Muspilheim e Nifheim, a alegoria mostrava o choque entre as lavas vulcânicas e as neves eternas. Foto: Wigder Frota. Acervo pessoal.

Viajando para a Dinamarca, no enredo de 2005, a autora se valeu de um conto de Hans Christian Andersen, A Rainha da Neve, para conceber a segunda alegoria do desfile e as fantasias do primeiro setor de brincantes. O acento literário se faz notar no nome dado à fantasia da Ala Estrela Solitária: O Sol aparece timidamente. As demais fantasias do setor, intituladas Geleiras, Duendes da neve, Rainha da Neve (baianas) e Súditos da Terra Gelada, conduziam o olhar do espectador para a cenografia do carro alegórico, uma geleira de formas pontiagudas confeccionada, em grande parte, com material acrílico de box de banheiro. Ironicamente, as composições femininas de tal alegoria vestiam minúsculos biquínis – que representavam, talvez, cristais de gelo. O apresentador Fernando Vannucci, que narrou, por muitos anos, os desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro para a TV Globo, também falou em “ironia” ao se referir à terceira alegoria do cortejo gresilense de 1996. Intitulado O passeio de trenó na neve do Tirol – a Festa do Sol, o carro trazia o ator Jorge Lafond, negro, representando a brancura da neve. Assim como em 2005, o conjunto de alas que antecedia a alegoria expressava um universo gelado (no caso, a neve dos Alpes austríacos): Damas no inverno, 236


Nobres no inverno, Flocos de neve e Festa do Sol na neve. Muito comentado, naquele ano, foi o fato de que a alegoria “fez nevar” em plena Sapucaí: o carro expelia pequenos flocos de espuma, “efeito especial” que Rosa Magalhães encontrou em São Paulo, na decoração natalina de um shopping-center, conforme o narrado no encontro organizado pelo Centro de Referência do Carnaval, na UERJ, em 16 de julho de 2013. Em 2011, no primeiro desfile assinado para a Unidos de Vila Isabel, a carnavalesca apresentou outra paisagem gelada: a segunda alegoria, O corte de cabelo coletivo nas festas de solstício de inverno, levou à Passarela do Samba as pradarias onde viviam os índios Hopi, não faltando totens, cocares e cabanas típicos dos povos indígenas norte-americanos. A descrição do carro diz o seguinte:

A segunda alegoria tem como tema os dramas rituais para o corte de cabelo dos Hopi. No solstício de inverno, durante o Soyál, o primeiro Kachima (dançarinos mascarados) aparece na aldeia cambaleando como uma criança muito nova; ele e a cerimônia simbolizam o renascimento da vida. É neste período que os Hopi acreditam que o corte de cabelo deve ser feito de maneira coletiva durante os cerimoniais, para não perderem a força vital. A alegoria apresenta a paisagem de uma região das Grandes Planícies e Pradarias, onde vivem os Hopi, durante o inverno, coberta de neve. Observam-se imagens de tendas, as habitações dos nativos, e esculturas com representações da arte Hopi.336

Não foi uma geleira das mais inspiradas, mas o resultado plástico da alegoria tampouco comprometeu a narrativa visual do desfile. Quebrando o gelo, a combinação de amarelo e rosa – uma marca registrada da autora. No mesmo desfile, uma ala feminina representava as tranças russas, abusando das peles e das referências ao frio moscovita. Apesar do rico apelo imagético e das notáveis tradições literária e cinematográfica (sem falar na joalheria e, claro, no balé), a Rússia praticamente não aparece nas narrativas de Rosa Magalhães. Importante é registrar que, embora nós, brasileiros, estejamos habituados com o carnaval em pleno verão, com temperaturas elevadas, corpos desnudos e praias lotadas, o carnaval europeu ocorre no inverno, em meio a paisagens geladas – logo, a presença da neve, nas narrativas estudadas, não deixa de ser algo carnavalesco, ainda que sob o olhar estrangeiro (percepção que fortalece o argumento de que Rosa Magalhães se utiliza de filtros estrangeiros para desenhar as suas visões de Brasil). A importação de fantasias venezianas para o calor dos trópicos certamente já causou inúmeros desmaios.

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Justificativa presente no Livro Abre-Alas de 2011, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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V. 1. 5 – E foi da Áustria a escolhida O carnaval de 1996, acima mencionado (com direito a flocos de neve), propôs o intercâmbio Brasil-Áustria graças à figura da Imperatriz Leopoldina. Ao menos cinco carros alegóricos confeccionados para aquela apresentação retratavam paisagens e interiores palacianos austríacos, a começar pelos passeios de trenó pelas montanhas tirolesas. A segunda alegoria, Teatro de Marionetes no Palácio de Schönbrunn – a infância de Leopoldina, reproduzia a sala de música do interior do referido palácio, um trabalho cenográfico dos mais expressivos – que arrancou elogios emocionados de Fernando Pamplona. Visões palacianas também se viam nas alegorias 4 (A chegada do Marquês de Marialva a Viena para pedir a mão de Leopoldina), 5 (A visão que Leopoldina tinha do Brasil) e 06 (Festa de noivado de Leopoldina). Na última, candelabros dourados bailavam, ajudando a compor um visual de luxo e opulência. Em resumo, a Áustria de Rosa Magalhães é um lugar culto, frio, romântico e rebuscado, comparável à beleza visual da película Amadeus, de Milos Forman, biografia de Wolfgang Amadeus Mozart. V. 1. 6 – British Style

Em comparação à quase onipresença da França, as aparições do Reino Unido, nas narrativas carnavalescas de Rosa Magalhães, são discretas e pontuais. Em Breazail, conforme o que foi profundamente investigado, há um passeio pela Irlanda dos mineiros celtas e, indiretamente, a presença da Inglaterra, na figura (fantasmática) de Thomas More. Outra referência britânica que merece destaque é aquela observável na narrativa de 2016, Mais de mil palhaços no salão, devido ao fato de que o primeiro circo foi criado pelo sargento inglês Philip Astley. No Livro Abre-Alas, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA, a autora assim descreveu o terceiro carro alegórico:

O circo como conhecemos hoje surgiu na Inglaterra, criado por Philip Astley. No princípio apenas para apresentação de acrobacias sobre cavalos, o circo foi agregando outros números com intuito de atrair mais público. Philip Astley foi o primeiro a

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introduzir a figura do palhaço no circo, para descontrair a plateia entre os números de acrobacia que eram perigosos e emocionantes.337

Para expressar a presença britânica, a autora concebeu figurinos inspirados em roupas militares típicas das terras da Rainha, como variações da indefectível indumentária da “Guarda Real”. No colorido, possíveis diálogos com o visual lisérgico de Sargent Peppers, dos Beatles: amarelo, azul, vermelho e rosa. Por meio do colorido vibrante, a autora “neutralizava” a típica frieza do British Style.

V. 1. 7 – Nesse feitiço tem castanhola A Espanha é o destino do enredo desenvolvido por Rosa Magalhães para o carnaval de 2010 da União da Ilha do Governador, uma interpretação do grande romance de Miguel de Cervantes: Dom Quixote de La Mancha, o cavaleiro dos sonhos impossíveis. Apenas o último setor de tal apresentação situava as aventuras de Quixote em território brasileiro (com referências a Ziraldo, Cândido Portinari e Carlos Drummond de Andrade); o restante do cortejo percorria vilas, cidades e castelos espanhóis, acompanhando o “cavaleiro errante” e o fiel escudeiro Sancho Pança. Gustavo Krelling e Dulce Osinski abordam tal presença espanhola em Rosa de Ouro nunca foi de brincadeira. Para eles, Rosa Magalhães se valeu de uma cartela de referências de artistas espanhóis para conceber os figurinos que ajudaram a contar o enredo quixotesco, ou seja, uma “homenagem” também interna, nas formas e nas cores, e não algo puramente temático. Havia roupas inspiradas na dança flamenca, por exemplo; roupas que traduziam criações de Pablo Picasso (imagens 93 e 94):

Também merece ser citada uma das fantasias de Rosa Magalhães no carnaval de 2010 para a escola de samba União da Ilha do Governador (...). A fantasia possui muitas semelhanças com os figurinos criados por Picasso para o balé Le Tricorne, fato que evidencia a apropriação pertinente desse tipo de fonte pela artista. Ao mencionar Dom Quixote, personagem espanhol, ela busca no acervo de um pintor de igual nacionalidade e grande relevância referências para a visualidade de seu desfile.338

Leques, rosas vermelhas, mantilhas, nada ficou de fora (imagem 95). Elementos que, ressignificados e coloridos de modo diferente (a predominância do branco), já 337

Justificativa do terceiro carro alegórico da São Clemente, no carnaval de 2016, presente no Livro AbreAlas daquele ano. Disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA. 338 KRELLING, Gustavo; OSINSKI, Dulce Regina Baggio. Obra citada, p. 170.

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haviam sido observados em 2004, no último setor do desfile Breazail. As referências à arquitetura de Gaudí foram acompanhadas, no plano dos figurinos, de menções explícitas à cultura da Espanha.

Imagens 93 e 94: À esquerda, desenho de Pablo Picasso para o balé Le Tricorne; à direita, fantasia de espanhola desenvolvida por Rosa Magalhães para o desfile de 2010 da União da Ilha do Governador, sobre D. Quixote de La Mancha. Fonte: http://www.carnavalize.com/2017/05/10-vezes-que-rosa-foi-deusabarroca-do.html. Acesso em 14/03/2018.

Imagem 95: Abertura do desfile da União da Ilha do Governador de 2010, sobre D. Quixote de La Mancha.Rosas vermelhas, leques e livros emolduravam a “loucura” do personagem homenageado. Foto: Wigder Frota. Acervo pessoal.

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Também em 1992 e em 2007 observam-se referências a diferentes Espanhas – algo já falado no trabalho. Em 1992, nobres de Castela bailavam com roupas de época, predominando o verde e o branco – as cores-base da Imperatriz, juntamente com o ouro. Em 2007, um setor foi dedicado ao papel desempenhado pelos bascos na história do comércio do bacalhau. Cinco alas e um carro alegórico traduziram o medievo espanhol e a nobreza basca, não faltando cozinheiros, músicos e bufões. Na sexta alegoria daquele cortejo, o banquete pantagruélico de que falam Krelling e Osinski – outra referência literária esgrimida pela autora.

V. 1. 8 – Fado tropical Evidentemente, o apreço por narrativas que tratam de episódios da história do Brasil, país colonizado por Portugal, aproxima Rosa Magalhães do universo lusitano. O enredo do ano 2000 é o exemplo mais flagrante, uma vez que trata da “descoberta” do Brasil e tem início com os sonhos de riqueza de D. Manuel, ou seja, o apogeu do Império Luso, a glória d’Os Lusíadas. Personagens inseridos nesse contexto aparecem em inúmeras narrativas da autora, inclusive em 2004 – a memória de Américo Vespúcio e a ficção de Rafael Hitlodeu. Os três enredos desenvolvidos para a Estácio de Sá passam pelas viagens marítimas iniciadas em Belém (no caso do sapoti, a história varre os tapetes da família real portuguesa). No Salgueiro, em 1990 (Sou amigo do Rei), a história dos Doze Pares de França chega ao medievalismo ibérico e à tradição das feiras da Lisboa medieval. Em 1996, na Imperatriz, a carnavalesca une Brasil, Áustria e Portugal, terminando o enredo com a nossa independência. Em 2001, ao tratar do ciclo da cana-de-açúcar, evoca as memórias das lutas entre mouros e cristãos (o universo temático do desaparecimento de D. Sebastião, em Alcácer-Quibir) e desenha um complexo retrato da sociedade colonial brasileira. Em 2008, a fuga da família real e a genealogia das casas reais portuguesas foram transportadas para a Passarela do Samba, conduzindo os espectadores para o casario lisboeta de 1808. As baianas, mui formosas, traziam azulejos; a bateria, as águas do Tejo. Via de regra, Portugal aparece, nesses enredos, enquanto matriz colonizadora – o que reforça (como se necessário fosse) o entendimento de que os enredos da carnavalesca, especialmente aqueles desenvolvidos para a Imperatriz Leopoldinense, evocam um imaginário colonial, imperial, nobiliárquico. A figura do colonizador violento aparece de 241


maneira indireta ou suavizada em enredos como o de 2002 (no setor dedicado ao romance O Guarani, onde se viam alguns arcabuzes) e o de 2012 (quando a autora trata do tráfico negreiro de maneira mais aprofundada, descrevendo a crueldade com que os cativos eram embarcados nos tumbeiros, depois de serem obrigados a passar por “batismos forçados” – o momento em que recebiam um nome cristão). Há que se destacar, ainda, o diálogo com um autor da literatura portuguesa, Gil Vicente, no título do enredo de 1995.

V. 1. 9 – Nobreza holandesa Pouco ainda precisa ser dito sobre a presença holandesa no enredo de 1999, quando a carnavalesca, por meio das ilustrações do Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae, apresentou, na Marquês de Sapucaí, um multicolorido retrato do Brasil Holandês administrado por Maurício de Nassau. Mas é interessante observar que, ao final da narrativa, há um salto geográfico (expresso no salto das onças que se projetavam para fora do chassi da última alegoria?) para a Polônia, onde, em uma biblioteca de Cracóvia (imagem 96), os volumes da obra encomendada por Nassau foram reencontrados, no século XX.

Imagem 96: Sétimo carro alegórico do desfile de 1999 da Imperatriz Leopoldinense, que expressava o “descobrimento”, no contexto do pós-Segunda Guerra, dos volumes do Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae no interior da Biblioteca Jaguelônica, em Cracóvia, na Polônia. Foto: Wigder Frota. Acervo pessoal.

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Pontualmente, a Holanda também aparece em narrativas como a de 2003, sobre a pirataria (o próprio samba, de autoria de Brandãozinho, Rubens Napoleão, Darcy do Nascimento e Jorge Rita, fala nos “corsários holandeses”). A sinopse menciona: “Outras nações com menor poderio naval, como a França, a Inglaterra e a Holanda, começam a estimular a pilhagem dessas riquezas extraídas do novo mundo, sobretudo o ouro, o açúcar, o tabaco. As madeiras nobres também não eram desprezadas.”339

V. 1. 10 - Tambor africano, solo feiticeiro Inconteste é o fato de que Rosa Magalhães, em suas narrativas carnavalescas, mais visitou os territórios europeus e orientais do que os reinos e as nações africanos. Poucas são as incursões da artista pelo chamado “Continente Negro”, o que indica, de antemão, o predomínio dos temas filtrados pelo olhar do colonizador, branco, e a utilização de motivos orientais (ou orientalistas) enquanto ferramentas visuais permanentes. Em 1989, na Estácio de Sá, com o enredo sobre o arroz e o feijão, a artista, que debutou no carnaval enquanto assistente de uma equipe de carnavalescos que desenvolvia, no Salgueiro, um enredo de “temática afro” (Festa para um Rei Negro, 1971), faz um primeiro passeio pelos territórios africanos (e utiliza-se a expressão “africana/o” em sentido amplo devido ao fato de que é assim, genericamente, que tal espaço geográfico é, no mais das vezes, desenhado na obra da artista. Afora o Egito, a Argélia e Angola, é como se o restante do território se apresentasse unificado, generalização que reflete uma construção discursiva que há séculos embota o olhar ocidental340). A alegoria e as fantasias que expressavam o cultivo do arroz na África tribal exibiam grafismos (a inspiração da arte Bakuba) e o uso do capim desidratado enquanto material para substituir as plumas – algo destacado positivamente por Fernando Pamplona, durante a transmissão televisiva da Rede Manchete. Na sequência, outra 339

MAGALHÃES, Rosa. Nem todo pirata tem perna de pau, olho de vidro e cara de mau. Sinopse do enredo do carnaval de 2003 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA). 340 Um exemplo recente ajuda a entender o exposto: durante os Jogos Olímpicos de verão realizados no Rio de Janeiro, em 2016, uma série de “casas temáticas” foram instaladas em diferentes regiões da cidade. Na Lagoa Rodrigo de Freitas, as casas de França, Holanda e Suíça. Na Casa Daros, em Botafogo, foi instalada a “Casa do Qatar”; nas vizinhanças da Zona Sul, as casas da Grã-Bretanha, da Alemanha, da Dinamarca, da Jamaica e da Hungria. No “Porto Maravilha”, as casas de Colômbia, Austrália, Finlândia, Brasil, México e Portugal. Na Barra da Tijuca, as casas da República Tcheca, da Eslováquia, do Japão e... da África. Sim, algo genérico e homogeneizador, como se o continente africano fosse uma coisa só, simplificado nos mais desgastados estereótipos.

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alegoria expressava os usos rituais (“comidas de Santo”) do feijão e do arroz nas festas de Candomblé. Para ilustrar a afro-brasilidade das cerimônias, a carnavalesca usou búzios e esteiras. Os destaques vestiam fantasias que ilustravam os orixás, cada um com a sua respectiva cor. No ano 2000, após dedicar dois setores às riquezas da Índia (com ênfase nas especiarias, no primeiro setor, e nas sedas e nos diamantes, no segundo), a carnavalesca apresentou uma sequência de alas que traduziam visualmente as riquezas que os portugueses buscavam no solo africano:

Na África, trocavam trigo, tecidos e cavalos por ouro, marfim, escravos e pimenta malagueta, mais barata que as especiarias indianas. A dupla formada pelas especiarias e pelo ouro realmente era muito atraente. É fácil perceber o interesse pelo ouro; ele era utilizado corno moeda confiável e empregado pelos aristocratas asiáticos na decoração de templos e palácios e na confecção de roupas. Ouro e especiarias foram bens sempre muito procurados nos séculos XV e XVI, mas ainda havia outros, como a madeira, os corantes, as drogas medicinais e, pouco a pouco, um instrumento de trabalho dotado de voz: os escravos africanos.341

Nas fantasias, intituladas O marfim, Africano – Costa do Marfim, O Ouro – Costa do Ouro, Riquezas da África (Bateria), Misticismo africano (Passistas), Mama África e Ourivesaria, a predominância de variações de laranjas e amarelos – tudo pontuado de branco, preto e palha. Pingentes de ráfia de sopro e badulaques dourados ajudavam a compor um conjunto extremamente volumoso, ainda que leve. A ráfia, aliás, foi utilizada em todas as fantasias do setor. Na alegoria, que trazia Jorge Lafond, a predominância da cor marfim. Dentes, chifres, búzios, guias, palha, tudo se interconectava. Novamente, viam-se referências aos grafismos Bakuba, com girafas e guerreiros estilizados. O único enredo de Rosa Magalhães que, seguindo as problemáticas e limitadoras classificações (melhor é dizer “rotulações”) temáticas, pode ser considerado integralmente “afro” é Você semba lá... que eu sambo cá! O canto livre de Angola, de 2012, na Unidos de Vila Isabel. Devido ao sofisticado diálogo com Yinka Shonibare, que permeia a plástica de todo o cortejo, e às menções pontuais a Rubem Valentim e a Julie Taymor (imagem 97), algo já debatido neste trabalho, não parece exagerada a afirmação

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MAGALHÃES, Rosa. Quem descobriu o Brasil foi Seu Cabral, no dia 22 de abril, dois meses depois do carnaval. Sinopse do enredo do carnaval de 2000 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA).

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de que tal enredo é um ponto fora da curva, um caso especial, uma pérola da carnavalesca sete vezes campeã da folia do Rio de Janeiro. A autora desenvolveu uma narrativa (tanto no plano da escrita quanto no plano da visualidade) a partir do ponto de vista pós-colonial, valendo-se da arte contemporânea enquanto pedra de toque. O resultado, é importante reforçar, foi um impacto: apesar de não ter vencido a disputa, a Unidos de Vila Isabel foi a grande vencedora do prêmio Estandarte de Ouro, abocanhando dezenas de outros prêmios. Rosa Magalhães, beirando os setenta anos, mostrava que sempre é possível “mudar de ares” e buscar outras linguagens (e leituras) – atualização possível, é claro, devido ao cuidado com que desenvolveu e materializou a pesquisa. A carnavalesca demorou, mas quando fez um “enredo afro” imprimiu uma assinatura tão marcante que desfiles com temáticas africanas subsequentes passaram a beber na fonte de 2012 (alguns de maneira quase explícita, caso do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2015, cujo enredo, Axé Nkenda – um ritual de liberdade, foi assinado pelo carnavalesco Cahê Rodrigues).

Imagem 97: Última alegoria do desfile da Unidos de Vila Isabel, no carnaval de 2012. Percebe-se a combinação de referências a Yinka Shonibare (estampas), O Rei Leão (grande escultura de cabeça) e Rubem Valentim (esculturas laterais). Foto do autor.

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V. 1. 11 – Toda a América Pré-Colombiana foi saqueada em suas riquezas Os territórios americanos, especialmente a América Pré-Colombiana, aparecem com bastante destaque em algumas narrativas da autora. É o caso de Não existe pecado abaixo do Equador, de 1992, que transportava o mito edênico para as florestas da América Central - Adão e Eva com pinturas corporais, a serpente com traços maias, a substituição da maçã pelo maracujá e dos anjos por papagaios (imagem 98). Em 1987, ao falar do sapoti, juntamente com Lícia Lacerda, a carnavalesca abusou dos grafismos astecas para expressar as origens mexicanas da fruta: serpentes emplumadas, calendários, totens e pirâmides transportaram para a Passarela do Samba um pouco de Chichén Itzá. O enredo de 2003 é o que trata da América Pré-Colombiana com maior vigor crítico. Diferentemente da narrativa de 1992, uma celebração dos 500 anos da viagem de Colombo, observa-se, em Nem todo pirata tem perna de pau, olho de vidro e cara de mau, uma leitura carnavalizada do processo de invasão, exploração e extermínio levado a cabo (não sem o uso da pólvora, não sem a égide da cruz) pelos colonizadores europeus. Uma sequência de cinco alas (que usavam placas de acetato ao invés de penas e plumas, o que gerava um conjunto intencionalmente “pelado”) expressava o imaginário trabalhado pela carnavalesca: Ídolo Asteca, Tesouro de Cuauhtémoc, Jóia Asteca, Ouro Inca e Ídolo de Atahualpa. A quarta alegoria do cortejo, cujo nome dá título a este fragmento de tese, condensava a linguagem explorada nos figurinos: ao redor de uma pirâmide decorada com placas douradas e filetes de espelhos, ídolos e bandeiras de astecas e incas compunham um cenário de riqueza – o “Eldorado” espoliado pelos invasores. Um crânio humano decorado com mosaicos subia e descia, em frente à pirâmide – na verdade, uma reprodução alegórica da caveira asteca exposta no Museu Britânico (exemplo claro da apropriação dos tesouros cerimoniais dos povos ameríndios americanos). Ao colocar em evidência a figura de Atahualpa, Sapa Inca condenado à morte depois de, forçadamente, entregar toneladas de tesouros a Francisco Pizarro, Rosa Magalhães lançava luzes sobre a “história dos vencidos”. O enredo de 2003, sem medo de errar, é um dos mais críticos da trajetória da artista.

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Imagem 98: Vista frontal da alegoria Éden, a oitava do desfile gresilense de 1992. Notam-se referências à estética pré-colombiana e à natureza tropical das Américas (papagaios, maracujás, folhas, um tamanduá), mas as esculturas que representam Adão e Eva, com pintura corporal indígena, são inspiradas em projetos renascentistas de Michelângelo. Fonte: MAGALHÃES, R. Fazendo Carnaval, p. 10.

V. 1. 12 - Tutti-multinacional Ainda versando sobre a ideia de “exploração”, o músico Paulinho da Viola, Príncipe do Samba, comentarista do carnaval de 1987 pela TV Globo, discorreu sobre o teor crítico do enredo O ti-ti-ti do sapoti. Segundo ele, as carnavalescas Rosa Magalhães 247


e Lícia Lacerda foram muito inteligentes ao levarem para a Sapucaí uma narrativa prosaica que terminava com uma crítica à “multinacionalização” de produtos típicos do “terceiro mundo” – caso do sapoti, transformado em goma de mascar nas indústrias norteamericanas. A matéria-prima barata, cultivada no “quintal da vida”342 e no “quintal do mundo”, é apropriada pela multinacionalização do capital (as corporações sediadas em terra estrangeira) e convertida em um símbolo da cultura de massa estadunidense, figurando no mesmo combo em que estão inseridos os blockbusters, a Coca-Cola, o hotdog e a pop-corn dos cinemas Multiplex. A leitura de Paulinho da Viola é pertinente, mas não deve ocultar o fato de que o enredo em questão também homenageia a cultura cinematográfica dos Estados Unidos – basta lembrarmos do leão da Metro no carro abrealas, algo já explicado no corpo da tese (a noção de pop nostalgia). Está-se diante, mais uma vez, não de uma dicotomia, mas de uma visão de mundo que parte da ideia de complementaridade – algo mais espinhoso que um simples “equilíbrio de contrários”, nos termos schwarzianos (defasados, para Eneida Maria de Souza) explorados em A Antropofagia de Rosa Magalhães, com relação à Tropicália e ao universo temático das composições de Caetano Veloso. Talvez a ironia (fina) de Rosa Magalhães resida mais é nesse lugar de difícil classificação, um não-lugar de fala ou um entre-lugar temático (o que nos leva, automaticamente, ao conceito de Silviano Santiago): a mesma mão que afaga conduz o olhar do leitor a uma crítica subjacente. As baianas daquele desfile (imagem 99), trajadas de Estátua da Liberdade (com perucas brancas, tochas nas mãos, panos da costa dourados que imitavam as vestes drapeadas da escultura e babados cujos degradês dialogavam com o colorido das gomas de mascar), personificam tal “entrave” extremamente rico do ponto de vista da crítica cultural: a mais tradicional ala de um cortejo de Escola de Samba, composta pelas “matriarcas” da agremiação, encarnava o símbolo máximo dos Estados Unidos da América, o centro nervoso do capitalismo financeiro e dos neocolonialismos do século XX.343

342

Referência à letra do samba de enredo defendido pela Estácio de Sá, em 1987, de autoria de Darcy do Nascimento, Djalma Branco e Dominguinhos do Estácio. A letra canta: “E hoje no quintal da vida sou criança; / me dá que o sapoti é meu!” 343 O exemplo ajuda a problematizar o conceito de “pureza” tantas vezes invocado durante discussões identitárias envolvendo os “mitos de origem” das escolas de samba do Rio de Janeiro. O que a carnavalesca diz, por debaixo dos babados em degradê, é que a “pureza” inexiste e que as tradições são maleáveis.

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Imagem 99: Ala das Baianas da Estácio de Sá, durante o desfile de 1987, assinado por Rosa Magalhães e Lícia Lacerda. Foto: Antônio Nery. Fonte: Jornal Extra, 5/02/2015. Disponível para consulta em: https://extra.globo.com/noticias/carnaval/carnaval-historico/serie-especial-capitulo-5-estacio-de-sa-viraescola-grande-15244404.html. Acesso em 15/03/2018.

O apreço de Rosa Magalhães por Carmen Miranda, exposto no final do enredo de 2002 (imagem 100), ajuda a problematizar a questão e a compreender as opções criativas da autora. Ora, ninguém potencializou mais os arquétipos (e estereótipos) da brasilidade no exterior (principalmente nos Estados Unidos) que a “Pequena Notável”; por outro lado, ninguém foi tão acusada de “americanização” e “deturpação da cultura popular brasileira” quanto ela, vaiada sem parcimônia no mesmo palco que a consagrou, o Cassino da Urca. Simone Pereira de Sá, cuja tese de doutoramento trata das facetas complementares de Carmen (a empresária de visão que agenciou compositores e promoveu o samba brasileiro no exterior e a “secretária” da América, “macaquita” de Tio Sam rotulada como “rumbeira”), defende que a junção desses rostos contraditórios nada mais é que o produto de um gesto heterofágico “que se caracteriza pela disponibilidade e abertura para o ‘outro’”.344 Tal movimento de abertura (que não é necessariamente “pacífico”, mas o disputar de um espaço) também é debatido por Eneida Maria de Souza, autora que se utiliza das contradições de Carmen Miranda para pensar o lugar de fala latino-americano no contexto

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SÁ, Simone Pereira de. Baiana Internacional. O Brasil de Carmen Miranda e as lentes de Hollywood. Rio de Janeiro, 1997, 230 f. Tese de Doutorado - Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, p. 201.

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global contemporâneo. São provocativas e necessárias as leituras manipuladas por ela, especialmente a proposição de que “suspeitar das sínteses conciliadoras e do lugar fixo dos saberes é um alerta para se entender este nosso conturbado e esfuziante conflito de ideias.”345 No corpo de Carmen Miranda e nos corpos das baianas da Estácio bailavam questões ainda flamejantes.

Imagem 100: Drag Queen vestida de Carmen Miranda, no último setor do desfile gresilense de 2002. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

345

SOUZA, Eneida Maria de. Nem samba nem rumba. In: Crítica Cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p. 159.

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VI – Meu Brasil brasileiro? Sobre o arraiá de cá Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. Oswald de Andrade – Manifesto Antropófago

VI. 1 – A festança brasileira Nice, 7 de março de 2017. Passado o carnaval, no período conhecido como “dança das cadeiras”, Rosa Magalhães se despede da São Clemente e é anunciada a nova carnavalesca da Portela, que havia conquistado o 22º campeonato da sua história na quarta-feira de cinzas de 1º de março. O carnavalesco que assinara o enredo, as fantasias e as alegorias do cortejo portelense, Paulo Barros, havia se transferido para outra agremiação em azul e branco, a Unidos de Vila Isabel, pouco depois da abertura dos envelopes. A troca já era dada como certa e corria a notícia, nos grupos de whatsapp, antes mesmo do desfile acontecer. O carnaval das escolas de samba, hoje, é mediado pelas redes sociais. As notícias e as especulações correm assustadoramente, bem como fervilham as análises informais (inclusive as mais descontextualizadas, as ditas “análises de barracão”, provenientes, quando muito, de visitas rápidas aos lugares em que os carros alegóricos são confeccionados; no mais das vezes, provenientes das frestas dos portões da Cidade do Samba). O retorno de Rosa Magalhães à Portela (a artista já desenhara figurinos para a escola, contribuindo para a elaboração visual dos enredos concebidos por Hiram Araújo e Departamento Cultural, no final da década de 1970) me encheu de expectativas – afinal, uma repentina mudança de rumo (a artista parecia acomodada, à frente da São Clemente) em direção a Oswaldo Cruz e Madureira, entreposto dos mais significativos da cartografia mítica do samba brasileiro. Mais do que isso, a carnavalesca voltava, depois da passagem malsucedida pela Mangueira e do amargor de posições ingratas, nunca competitivas, na São Clemente, a assumir uma agremiação preparada para disputar o título (era, afinal, a recém-coroada campeã). Nice, 14 de junho de 2017. Eu ardia em febre e não conseguia levantar da cama – fato que atribuo, não sem a dose de misticismo, à energia inicial empregada para os 251


rabiscos de fantasias do enredo sobre Bispo do Rosário. Somatizações. No Rio de Janeiro, a sinopse do enredo da Portela era apresentada aos compositores e à imprensa. Rosa Magalhães leu o texto, na quadra da agremiação: De Repente de Lá Pra Cá e Dirrepente de Cá Pra Lá... O título, valendo-se de uma oposição de dêiticos análoga àquela vislumbrada no enredo para a Vila Isabel, em 2012, anunciava que, mais uma vez, a artista propunha uma travessia, um atravessamento, um intercâmbio, uma troca. Uma viagem, melhor dizendo: a saga que trouxe famílias de judeus ameaçadas pelo Tribunal do Santo Ofício à Pernambuco invadida por Maurício de Nassau (De Repente de Lá Pra Cá) e que, depois da reconquista portuguesa, levou tais imigrantes (que fundaram a primeira Sinagoga das Américas, na Cidade Velha) a uma colônia da América do Norte, Nova Amsterdã, depois rebatizada New York (Dirrepente de Cá Pra Lá...). Uma narrativa apresentada sob a forma da literatura de cordel, inovando ao prescindir da pura e simples sequência de palavras e apostando em um vídeo de animação, sucessão de xilogravuras (uma proposta intersemiótica, múltiplas linguagens em cena). Uma narrativa que trazia piratas: na viagem em direção ao Norte, quando passava pelo Caribe, o navio que levava os judeus foi interceptado por flibusteiros. E uma narrativa, o que me pareceu extraordinário, fundacional (não apenas abordava a invasão holandesa e a fundação da Nova Holanda como a fundação da atual Nova Iorque, dose dupla) e utópica (ao final da sinopse, a menção ao poema de Emma Lazarus, The New Colossus, gravado na base da Estátua da Liberdade):

Muitos anos se passaram. Os ingleses conquistaram aquela terra, e o povoado de judeus e brasileiros ganhou nome venerando, famoso no mundo inteiro: Noviórque, é isso mesmo que você tava pensando.

E quando, muito mais tarde, a França deu de presente a Estátua da Liberdade, 252


em seu pedestal foi gravado um poema da descendente de um daqueles imigrantes vindos do Brasil, no passado.

No poema, tão bonito, é como se a Estátua falasse com os exilados aflitos, sofridos, refugiados, e a sua chama os guiasse com generosa bondade para o belo portão dourado da Paz e da Liberdade.346

Rosa Magalhães defendia a tese de que judeus pernambucanos ajudaram a fundar Nova York – o Brasil, portanto, no solo de Manhattan. O estrangeiro e o brasileiro, mais uma vez, em uma dança circular: no final da narrativa, o cosmopolitismo da “Capital do Mundo”; no início, o “arraiá de cá”. O que se pretende, a partir de agora, é inverter a lupa e passar olhos sobre as visões de Brasil (algumas entre incontáveis, evidentemente – nunca é exagerado reforçar o teor incompleto deste trabalho e o fato de que a leitura aqui proposta é apenas um barquinho de papel à deriva em um oceano) condensadas, arquipélago vulcânico, na obra da carnavalesca. Citando Oswald de Andrade, no Manifesto Antropófago, “nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.”347 É preciso, pois, “descobrir” por quais Brasis a autora passeia, no mapa-múndi do Brasil. É preciso, ainda mais, observar as pegadas da “utopia antropofágica”348 nas trilhas do nosso torrão. Como “fizemos foi carnaval”, tudo começa e termina em festa: as

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MAGALHÃES, Rosa. De Repente de Lá Pra Cá e Dirrepente de Cá Pra Lá... Sinopse do enredo do Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela para o carnaval de 2018. Disponível no seguinte sítio: http://www.gresportela.org.br/Noticias/Detalhes/confira-sinopse-do-enredo-da-portela-para-o-carnaval2018. Acesso em 18/02/2018. 347 ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropófago. In: SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas Latino-Americanas. Polêmicas, Manifestos e Textos Críticos. São Paulo: EDUSP, 2008, p. 174. 348 Ver: ANDRADE, Oswald. A Utopia Antropofágica. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1995.

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“festanças brasileiras” coloridas por Rosa Magalhães abrem alas para os últimos setores do desfile em curso.

VI. 1. 1 – O sertão que não é só lamento e a mítica Bahia O enredo portelense de 2018 revisita o mesmo universo temático pelo qual a autora passeou no desfile gresilense de 1999: a presença holandesa no Nordeste brasileiro, no século XVII. Acordes nordestinos, nos carnavais de Rosa Magalhães, são bastante comuns – algo justificado pela artista, no encontro que tivemos, em 04 de outubro de 2012, no barracão da Unidos de Vila Isabel. Segundo ela, as raízes paternas, nordestinas (Raimundo Magalhães Júnior nasceu em Ubajara, no Ceará), sempre a encantaram, despertando um natural interesse por “temas sertanejos, folclóricos e indígenas.” Ainda nas palavras da carnavalesca, o artesanato e os folguedos populares nordestinos oferecem uma aula de uso da cor: “eles usam as cores com muito mais liberdade que os europeus, que a gente estuda na universidade. Isso é maravilhoso e me interessa cada vez mais.” Os sertões de Rosa Magalhães, via de regra, são um espaço de florescimento, e não de penúria. As riquezas animais, vegetais e minerais brotam do solo; as manifestações culturais explodem em paetês, guizos e canutilhos. O exemplo-síntese deste olhar é o enredo de 1995: na narrativa levada à Marquês de Sapucaí, iniciada com um encantador bailar de sombrinhas (diálogo com danças e festividades nordestinas, como o frevo, os maracatus, o bumba-meu-boi), 4 das 9 alegorias retratavam o interior nordestino como um lugar de alegrias e tesouros (na alegoria 4, O Eldorado, cornucópias e jarros dourados reuniam guirlandas de frutos e buquês de pedras preciosas; na alegoria 8, O Passeio do Camelo, ainda mais frutos emprestavam o seu colorido à composição cênica, onde também se viam rendas, cestarias, cactos, flores e bonecos de barro; no último carro, intitulado Viva o jegue!, os elementos decorativos dialogavam com coroações populares e vestes de festejos juninos, sobrando remendos, fitas, babados, laçarotes.). O samba, assinado por Eduardo Medrado, João Estevam, Waltinho Honorato e César Som Livre, afirmava, em seu grand finale, que “o sertão não é só lamento, meu momento é aqui / faço a festa e lavo a alma hoje na Sapucaí”. Este mesmo sertão festivo desfilou as suas maravilhas em 1988, nos batuques dos bumbás (não faltando, em um enredo sobre o boi, os tradicionais vaqueiros – que também desfilaram em 95); em 1990, no vastíssimo imaginário armorial (que será explorado 254


adiante); em 1999, nas pinceladas de Post e Eckhout; em 2001, no girar das cavalhadas e das moendas dos engenhos; em 2013, na homenagem ao homem do campo e à agropecuária brasileira. O desfile de 2013, campeão absoluto, expressa o único momento da trajetória da artista em que também é exposto o outro lado da moeda: a miséria da seca, o fantasma da morte, o suplício dos retirantes nos períodos de estiagem. As alas que antecediam a segunda alegoria da apresentação da Vila Isabel concentravam cores tristes, pesadas, e exibiam caveiras (de animais e de seres humanos), árvores esturricadas e demais alusões às mazelas causadas pela fome (pensemos em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, O Quinze, de Rachel de Queiroz, e Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto). Os nomes das fantasias não deixam mentir: A imagem da devastação, Queimadas, População de famintos, Efeitos da seca e Colheitas perdidas. No segundo carro alegórico do cortejo, intitulado Homens e animais na luta contra a fome, dezenas de famintos clamavam por água e alimentos em volta de um imenso tatu. O chão rachado do sertão se misturava à carapaça do animal, compondo um todo bastante curioso. Ainda na apresentação de 2013, cujo enredo foi assinado por Rosa Magalhães, Alex Varela e Martinho da Vila (talvez por isso a maior das sinopses analisadas – texto que, para um enredo sobre a pujança da agricultura, por vezes se mostra estéril e desconjuntado, resvalando em clichês que denunciam a mão da entidade patrocinadora, a empresa BASF349, e apelando para colagens mal realizadas de fragmentos musicais350), há inúmeras referências a artistas populares (costumeiramente classificados como “artistas naif”), a começar por Francisco da Silva, cearense, onipresente no carro AbreAlas (imagens 101 e 102). Esculturas de galos, cavalos e serpentes inspiradas no trabalho dele, conforme o explicado na defesa da alegoria, coloriram a Sapucaí. Obras de Manuel Graciano, Fé Córdula, Costinha e Zezinha também se faziam notar, em diferentes momentos da apresentação. No caso de Zezinha, Maria José Gomes da Silva, a mais conhecida bonequeira do Vale do Jequitinhonha (fronteira entre Minas Gerais e Bahia, o sertão de Guimarães Rosa), a carnavalesca apresentou diversos bonecos giratórios, em um tripé que representava uma igrejinha sertaneja (a igreja cujo “sino vem anunciar”, 349

O dirigismo se mostra desnudo nas referências bibliográficas apresentadas ao júri. A primeira obra referenciada é BASF Brasil, 100 anos – Transformando a química da vida. Um vídeo publicitário da empresa também é elencado, o que reforça o entendimento. 350 É preciso destacar, porém, que o enredo de 2013 é um caso bastante rico para se pensar a plasticidade do quesito – afinal, uma sinopse “desconjuntada” (para não dizer fraca e desestimulante) gerou uma apresentação de visual surpreendente e um samba de enredo extraordinário.

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conforme a letra do arrebatador samba de enredo composto por Martinho da Vila, Arlindo Cruz, André Diniz, Leonel e Tunico da Vila).

Imagem 101: Cobra e Dragão, pintura do artista plástico nordestino Francisco da Silva. Fonte: https://www.leilaodearte.com/leilao/2017/agosto/37/francisco-da-silva-cobra-e-dragao-8406/. Acesso em 13/03/2018.

Imagem 102: Carro abre-alas do desfile de 2013 da Unidos de Vila Isabel, sobre a agropecuária brasileira e a vida do homem do campo. O diálogo com a obra de Francisco da Silva é evidente. Fonte: https://extra.globo.com/noticias/carnaval/carnaval-2013-vila-isabel-comemora-terceiro-titulo-de-suahistoria-7572894.html Foto: AP. Acesso em 13/03/2018.

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Para além dos sertões, há outras expressões nordestinas, de caráter festivo, na obra da carnavalesca. O último setor da apresentação de 2007 reunia frevos, maracatus e bonecos de Olinda para homenagear o bloco Bacalhau do Batata, fundado pelo garçom Isaías Pereira da Silva, em 1962. As baianas, naquela ocasião, representavam Damas do Paço, carregando Calungas. O imaginário dos maracatus (Rural, com os Caboclos de Lança; e Nação ou de Baque Virado, com os cortejos reais) já havia sido explorado pela autora em Brasil, mostra a sua cara..., de 1999, quando utilizou variações de vestes dessas manifestações culturais para traduzir visualmente as ilustrações de animais (aéreos, aquáticos e terrestres) e plantas reunidas no Theatrum Rerum. Logicamente, em um enredo que se propunha a mapear as festividades das cinco regiões brasileiras, tanto as folias sertanejas quanto as litorâneas deveriam se fazer presentes. E assim foi feito, em 2014, no único desfile mangueirense assinado por Rosa Magalhães. Festas juninas (a quarta alegoria representava A maior festa junina em Campina Grande), mamulengos, vaquejadas, congadas, cacumbis, caboclinhos, cavalhadas, maracatus, frevos, marujadas, coroações do Divino, folias de reis, tudo desfilou, em variações de verde e rosa. E um setor inteiro foi dedicado às festas de Iemanjá, Rainha do Mar, ganhando a Bahia o maior dos destaques. A descrição do terceiro carro alegórico não deixa mentir:

A mais venerada entidade feminina do candomblé, Iemanjá é celebrada no dia 2 de fevereiro, na Bahia, com uma procissão-regata que é, ao mesmo tempo, uma das maiores e mais importantes festas populares brasileiras. Esta alegoria faz também uma citação especial a outra grande festa – a lavagem das escadarias da igreja do Bonfim – com suas famosas fitas coloridas e suas baianas impecavelmente trajadas de branco.351

Uma das “baianas impecavelmente trajadas de branco”, com torso, pulseiras e colares, era a própria carnavalesca, Rosa Magalhães, numa inédita aparição utilizando fantasia completa; depois, isso virou uma constante. Se o Morro da Mangueira, como diz a canção, é “onde o Rio é mais Bahia”, nada mais coerente que tamanho cuidado para com os festejos musicados por Caymmi e traduzidos literariamente nas páginas amadianas. A admiração da “mítica Bahia” é algo existente desde sempre, no contexto das escolas do Rio. No concurso de 1933, quando a

351

Justificativa do terceiro carro alegórico da Estação Primeira de Mangueira, no carnaval de 2014, encontrada no Livro Abre-Alas daquele ano. Disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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ala das baianas se tornou obrigatória, a bicampeã Mangueira cantou Uma segunda-feira do Bonfim, na Ribeira; a Azul e Branco do Salgueiro, Uma noite na Bahia; a União do Uruguai, Na Bahia.352 Três agremiações desfiaram o mesmo tema (na época, não havia a obrigatoriedade do quesito enredo e as escolas podiam cantar diferentes sambas durante a apresentação). Em 1969, o Acadêmicos do Salgueiro cantou Bahia de todos os deuses, enredo de Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues, sagrando-se campeão após um desfile memorável – que contou com Maria Augusta Rodrigues e Joãosinho Trinta enquanto assistentes diretos. Arlindo revisitaria a Bahia em 1980, na Imperatriz Leopoldinense, dando o primeiro título de campeã do Grupo Especial à escola de Ramos. O enredo, O que é que a Bahia tem, exaltava as belezas naturais e culturais do estado cuja capital foi a primeira capital do país. A estética do desfile jamais sairia das retinas do GRESIL – e por este motivo Rosa Magalhães a revisitou duas vezes, enquanto lá esteve: em 1993 e em 2009. No enredo Marquês que é Marquês do Sassarico é Freguês, em 93, a carnavalesca inseriu O que é que a Bahia tem para homenagear a obra de Arlindo Rodrigues, um dos três carnavalescos escolhidos para, na narrativa sobre a história do carnaval carioca, ilustrar a estética das escolas de samba:

As Escolas de Samba, de certa forma oriundas das Sociedades Carnavalescas, foram representadas por alguns carnavalescos. O barroco e a Bahia de Arlindo Rodrigues – uma referência ao próprio carnaval da Imperatriz e ao seu primeiro campeonato -, o delírio inigualável de Fernando Pinto, com índios, motocicletas, flores e um grande tatu, e logo em seguida uma alegoria relembrando um enredo de Joãosinho Trinta, Ratos e Urubus, cujos figurinos eram do Viriato (Ferreira), que fez então uma releitura do próprio trabalho.353

Em 2009, no enredo que abordava as origens do bairro de Ramos e o cinquentenário da própria escola, a Bahia desenhada por Arlindo voltou a entrar em cena, com todo o requinte a que tinha direito. O conjunto de alas e alegorias dedicado à memória do campeonato de 1980 foi o mais bonito daquele desfile, especialmente as grandes esculturas de baianas giratórias (imagem 103), com tabuleiros nas cabeças, e as fantasias de filigranas (de ouro, diamantes, prata e esmeraldas). A fantasia da bateria Swing da

352

Ver MUSSA, Alberto; SIMAS, Luiz Antonio. Samba de enredo: história e arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 353 MAGALHÃES, Rosa; NEWLANDS, Maria Luiza. Obra citada, p. 38/39.

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Leopoldina expressava o Esplendor da Arte Baiana; o corpo de passistas da escola, A Prataria Barroca. Aos olhos dos espectadores, um banquete dos mais saborosos.

Imagem 103: Detalhe das baianas giratórias que compunham a alegoria de número 4 do desfile de 2009 da Imperatriz Leopoldinense. Assim como no desfile gresilense de 1993, Rosa Magalhães dialogava com a obra de Arlindo Rodrigues, exaltando um ideal de “baianidade” com todos os colares e balangandãs a que tinha direito. Fonte: https://escolasdesambadoriodejaneiro.blogspot.com.br/2016/12/imperatrizleopoldinense-2009.html. Acesso em 13/03/2018.

VI. 1. 2 – No balanço da expedição O Sul do Brasil, que a autora já havia visitado em produções televisivas (assinou a Produção de Arte da série O Tempo e o Vento, adaptação da trilogia de Érico Veríssimo, exibida pela Rede Globo, em 1985, com direção geral de Paulo José), pouco aparece nos mais de trinta enredos analisados. O destaque, já explorado neste trabalho, é a narrativa de 2006, Um por todos e todos por um, que viaja pelos campos da “Santa e Bela Catarina”354. Longe dos clichês costumeiramente explorados em narrativas que tratam do

354

Expressão presente no samba de enredo composto por Niltinho Tristeza, Amaurizão, Maninho do Ponto e Tuninho Professor. Trata-se de um caso curioso: o governo do estado de Santa Catarina, possível patrocinador do desfile, exigiu a presença de tal verso em todos os sambas concorrentes – impondo, portanto, uma obrigatoriedade. A Imperatriz Leopoldinense aceitou a imposição. O que se conta, porém, é que o patrocínio estatal não apareceu até hoje, resultando, o desfile, em uma apresentação bastante problemática no que tange ao acabamento dos carros alegóricos.

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Sul (chimarrão, churrasco, Festa da Uva, imigrantes europeus, diademas de flores, araucárias e gralha azul), a carnavalesca optou por um recorte literário, passeando por Os Três Mosqueteiros e Memórias de Garibaldi. Sem dúvidas, uma escolha acertada.

VI. 1. 3 – No coração da floresta Rosa Magalhães nunca apresentou, na Passarela do Samba, uma narrativa amazônica, o que é interessante. Há, no carnaval carioca, uma linha de enredos baseados em lendas da Amazônia (o quase homônimo Lendas e Mistérios da Amazônia, concebido por Clóvis Bornay para a Portela, em 1970, é o exemplo máximo), figurando o espaço geográfico banhado pelos afluentes do Rio-Mar enquanto manancial mitopoético para carnavalescos de diferentes épocas.355 A Beija-Flor de Nilópolis visitou a Amazônia muitas vezes, ganhando dois campeonatos (1998 e 2004) com enredos de matriz cabocla. A própria Imperatriz Leopoldinense navegou por águas amazônicas, em 1985: o enredo Adolã, a Cidade-Mistério, desenvolvido por José Félix e Arlindo Rodrigues, tratou de mitos marajoaras. No enredo mangueirense de 2014, no entanto, havia um trecho dedicado às festas ocorridas “no coração da floresta”. O Festival de Parintins mereceu uma sequência de alas e um carro alegórico, intitulado O ritual da pajelança na festa do boi de Parintins e apresentado, no Livro Abre-Alas, como uma “dramatização teatral comovente”. A carnavalesca utilizou a figura do Pajé (imagem 104), um dos “itens”356 avaliados pelos julgadores do Festival, para sintetizar o universo ritual de Parintins. No enredo, o pajé é descrito como um “poderoso curandeiro e temido feiticeiro que domina a cena da pajelança enquanto os bois dançam e a plateia vibra.”357 A linguagem plástica do setor muito dizia da estética do festival, marcada pelo uso maciço de penas sintéticas, cores 355

O mais recente exemplo é o enredo de 2018 da Unidos de Padre Miguel, escola de samba da Zona Oeste carioca que se apresentou no sábado de carnaval, na Série A. A narrativa, assinada por Daniel Targueta e visualmente desenvolvida por João Vítor Araújo, ganhou o título Eldorado Submerso: delírio TupiParintintin e propunha, ao menos no plano da narratividade escrita, diálogos com Órfãos do Eldorado, de Milton Hatoum O que se viu, no desfile (que terminou vice-campeão do Grupo de Acesso), foi uma sucessão de lendas e mitos amazônicos, para tudo terminar no Festival Folclórico de Parintins. 356 Ao todo, o júri do Festival atribui notas a 21 itens (comparáveis aos “quesitos” avaliados nos desfiles das escolas de samba). Sobre o evento, ver: BARBIERI, Ricardo José. Etnografia da Galera do Caprichoso: simbolismo e sociabilidade entre jovens no festival de Parintins. In: Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares (TECAP – UERJ), v.10, n. 1, maio 2013. 357 Justificativa do quinto carro alegórico da Estação Primeira de Mangueira, no carnaval de 2014, encontrada no Livro Abre-Alas daquele ano. Disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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vibrantes (cítricas) e grandes esculturas articuladas (os famosos “bonecões de Parintins”). No intercâmbio de saberes que, desde o final da década de 1990, ocorre entre os “galpões” da ilha do Amazonas e os barracões do Rio de Janeiro, Rosa Magalhães se viu inserida – e desenvolveu uma leitura sensível, ainda que sem novidades ou maiores proposições.

Imagem 104: Alegoria alusiva ao Festival de Parintins, no Amazonas, presente no desfile de 2014 da Estação Primeira de Mangueira, sobre festas populares. Fonte: http://blogdoraymondh.blogspot.com.br/2014/03/analise-o-que-vi-dos-desfiles-das.html. Acesso em 13/03/2018.

VI. 1. 4 – Pianópolis - Rua do Ouvidor Se o Sul e o Norte tão pouco aparecem, o Rio Antigo é o cenário glorioso de algumas narrativas de enredo da autora. Em 1991, no Acadêmicos do Salgueiro, a Rua do Ouvidor é tomada como síntese de uma cidade em transformação, aparecendo a Belle Époque enquanto cereja civilizacional – perfumes e bombonieres, apesar dos ratos e das remoções. A sucessão de imagens apresentadas em fantasias e carros alegóricos compunha um imaginário efervescente, fluxo contínuo de pessoas, tendências, jóias, guloseimas, excessos, importações. E música, muita. De modo que não parece equivocada uma comparação entre a leitura de Rosa Magalhães e as Memórias da Rua do Ouvidor de Joaquim Manuel de Macedo. Flora Süssekind apresenta Macedo enquanto “cronista viajante”, assim sintetizando a obra por ele elaborada: 261


É também como registros de viagens curtas, de casa em casa, quarteirão a quarteirão, que o narrador das Memórias da rua do Ouvidor se refere aí às suas crônicas. Principalmente a partir do momento em que passa a falar da moderna rua do Ouvidor de seu tempo. “Eia, pois, a viajar!”: é com esse convite que inicia a descrição minuciosa da rua, as suas lojas, modistas e confeitarias. E as imagens ligadas sobretudo às viagens marítimas se sucedem de folhetim a folhetim. “Apenas sujeitas a frequentes ventos contrários no encontro de importunos amoladores”, lê-se a certa altura. “Ancoremos aqui por hoje”, diz-se noutro dia para “fechar” a crônica. “Um caminhante, homem de experiência, dizia aos companheiros de jornada: - devagar, que eu tenho pressa”, conta o narrador macediano, noutro momento. E aproveita por definir o ritmo de passeio ao léu característico à crônica: “Eu não digo o mesmo aos meus leitores, porque em viagem pela rua do Ouvidor não há meio de andar depressa.”358

Também não é outra que não a Rua do Ouvidor a via por onde passou o cordão que levou João do Rio, em 1906: “Era em plena Rua do Ouvidor. Não se podia andar. A multidão apertava-se, sufocada. Havia sujeitos congestos, forçando a passagem com os cotovelos, mulheres afogueadas, crianças a gritar, tipos que berravam pilhérias.”359 A rua convulsionava e o cronista sentia na pele (e nos pisões sobre os sapatos importados) o misto de sensações que o carnaval proporcionava. O resultado da experiência é uma “crônica etnográfica”, das mais expressivas para se pensar a visão dos cordões de outrora. Pois tal espírito cronístico se faz presente nos menores detalhes do desfile do Salgueiro de 1991, revelando a capacidade da autora de viajar pelos diferentes tempos e pelas múltiplas facetas de “apenas” uma rua da cidade. Tal espírito é o motor do enredo desenvolvido para o Império Serrano, em 2010 – a sinopse é assinada por Rosa Magalhães; o desfile, em parceria com Mauro Leite e Andréa Vieira. João das Ruas do Rio é uma assumida declaração de amor à cidade do Rio de Janeiro – e, em específico, à vida que fervilha nas regiões centrais de Sebastianópolis. Dialogando com A alma encantadora das ruas, um dos livros que eu trouxe comigo, no desembarque de 2008, a carnavalesca exclama sem qualquer pudor: “Amo as ruas do Rio, tal como João do Rio, do Rio de Janeiro, a casa de todos nós!!!!”360 O final do texto bem revela de um olhar direcionado para as pequenas coisas, estilhaços e fragmentos de imagens cotidianas:

O tempo passou, surgiram novas ruas cheias de arranha-céus, novos bairros, novos transportes. Mas o asfalto ferve de gente e... de ambulantes.

358

SÜSSEKIND, Flora. Obra citada, p. 130/131. RIO, João do. Obra citada, p. 140. 360 MAGALHÃES, Rosa. João das Ruas do Rio. Sinopse do enredo do Grêmio Recreativo Escola de Samba Império Serrano para o carnaval de 2010. Disponível no seguinte sítio: http://www.galeriadosamba.com.br/carnavais/imperio-serrano/2010/4/. Acesso em 13/03/2018. 359

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São pipoqueiros, tapioqueiros, vendedores de acarajé, milho verde, olha a pamonha! O vassoureiro equilibra todo tipo de vassouras e espanadores, pastéis, churros, empadas, a caminhonete vende cachorro-quente com as coberturas mais inusitadas de petit-pois e maionese, panos de chão clareados, burro-sem-rabo com pilhas de sacos de papel e jornal, e latinha de cerveja amassada, nas esquinas flores e plantas para todos os gostos, óculos de grau se misturam a colares de retalhos, bijuterias e relógios - só fica sem saber das horas quem quiser! Carregadores para celulares, protetores para o sol, balas de todo tipo e as frutas da estação, em oferta especial. Os flanelinhas guardam as vagas, o garoto insiste em lavar os vidros, um cantor vende seus próprios CDs, e nesse circo armado nas ruas, os malabaristas fazem as suas demonstrações de equilíbrio e agilidade, entre um sinal e outro.361

Em 1997, ao contar a vida e a obra de Chiquinha Gonzaga, a artista novamente passeou pelo imaginário do Rio Antigo, ganhando as ruas menos abastadas e adentrando nos salões da República, do jovem Theatro Municipal às escadarias do Palácio do Catete. Ao falar do próprio trabalho, em O inverso das origens, Rosa Magalhães mais uma vez abraça o autobiográfico e desenha um breve retrato da sua infância e juventude:

Chiquinha Gonzaga foi uma mulher com uma vida tão mirabolante que isto sem dúvida a fez merecer virar enredo de escola de samba. Tanto sua vida quanto sua obra foram dignas de registro. Nascida em uma família relativamente abastada, afilhada do Duque de Caxias, começou a compor ainda criança, pois desde pequena já era boa pianista. Casouse cedo, teve filhos e seu marido obrigou-a a acompanha-lo em viagem à Guerra do Paraguai, para a qual fazia transporte de soldados. Impedida pelas circunstâncias de levar o piano para o navio, Chiquinha levou um violão, instrumento tido na ocasião como inferior. Uma senhora de família tocando um violão era quase uma blasfêmia. Pois foi esse violão tão pouco chique que lhe fez companhia durante o exílio no mar. O marido detestava o instrumento, vendo-o de certa forma como um concorrente, já que a jovem esposa lhe dedicava atenção demais. Ao voltar para o Rio, Chiquinha recebeu um ultimato do marido ciumento: ou a música ou ele. A resposta dela foi surpreendente: “Fico com a minha música.” Com esta decisão, começava a vida artística de Dona Francisca, e as agruras que também a esperavam. A cidade do Rio de Janeiro era conhecida como Pianópolis, tal a quantidade de pianos e de moças e senhoras que se dedicavam ao estudo musical. Eu mesma ainda pertenci às últimas gerações em que estudar música e piano fazia parte da formação feminina. Entrei para as aulas de piano com seis anos e lá fui eu, aos trancos e barrancos, até a harmonia e a leitura das partituras. Uma façanha para a dedicada professora, que enchia meus cadernos com estrelas douradas cada vez que eu tocava alguma melodia razoavelmente bem (...). No auge da Bossa Nova, eu achei que um violão seria tudo de bom que alguém poderia querer. Até minha mãe ganhar um violão. Tentei aprender, mas também não deu certo. Cheguei à conclusão de que ouvir é uma coisa muito boa, tocar são outros quinhentos. Pelo menos, foi assim que pude conhecer, digamos, com uma certa intimidade, os instrumentos preferidos da Chiquinha.362

361 362

MAGALHÃES, Rosa. Idem. MAGALHÃES, Rosa; NEWLANDS, Maria Luiza. Obra citada, p. 96.

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Não faltaram, no desfile, as lojas que vendiam instrumentos musicais, máscaras e partituras, uma homenagem estendida, graças ao imaginário evocado por Chiquinha Gonzaga, à memória urbana e à história pública do Rio de Janeiro que também era Pianópolis. Assim como em 1991 e em 1993, a carnavalesca fazia rebrotar, na Passarela do Samba, os antigos carnavais de rua, os bailes de mascarados, o espírito dos cordões (psicografado por João do Rio) que percorria as ruas e vielas do Centro. A Praça Tiradentes, importante ponto de referência, nas proximidades do Campo de Santana (o monumento a Pedro I foi carnavalizado pela artista, na última alegoria da Imperatriz Leopoldinense do desfile de 1996), ganhou a Sapucaí de maneira indireta: além dos inúmeros teatros que existiam no local (hoje, o Carlos Gomes e o João Caetano ainda sobrevivem), conta a autora que as máscaras importadas da Europa eram comercializadas “por incrível que pareça, em uma loja na Rua da Imperatriz, junto à Praça Tiradentes, onde morou Chiquinha.”363 O desfile sobre Chiquinha Gonzaga, e é a própria carnavalesca quem destaca isso, também representou o definitivo abraçar das dramatizações em carros alegóricos. Atores vestidos de soldados encenaram, na sexta alegoria do cortejo, a ação policial que encerrou a apresentação do musical A Corte na Roça, espetáculo em cuja trilha sonora a compositora havia inserido o maxixe e o lundu, ritmos considerados impróprios – e até mesmo perigosos, a exemplo dos cucumbis. Nos termos da artista:

Os soldados invadiam o teatro, munidos de cassetetes, e faziam parar o espetáculo. A fantasias deles era muito simples, um uniforme cáqui com boné. O efeito ficou bom e, a partir de então, com a ajuda de um diretor teatral, João Batista, comecei a fazer pequenas intervenções teatrais na apresentação dos carros alegóricos. Essas intervenções foram evoluindo ao longo do tempo. Em Quase no ano 2000, de 1998, operários da fábrica de Metrópolis eram robotizados, até que, na Antropofagia do carnaval de 2002, um carnaval inteiro acabou povoado de atores e atrizes representando.364

A presença da teatralização viria a se tornar uma das marcas mais expressivas do trabalho da carnavalesca, estratégia apropriada por outros profissionais, nem sempre com o mesmo sucesso365. 363

MAGALHÃES, Rosa; NEWLANDS, Maria Luiza. Obra citada, p. 98. MAGALHÃES, Rosa; NEWLANDS, Maria Luiza. Obra citada, p. 98/99. 365 O julgador Madson Oliveira, do quesito Alegorias e Adereços, despontuou em 0,1 décimo o trabalho apresentado pela Beija-Flor de Nilópolis, no desfile de 2018, sob a seguinte justificativa: “O conjunto alegórico apresentado pela agremiação foi quase todo teatralizado, com pouca carnavalização, arriscando364

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Discretamente, na parte traseira do sétimo e penúltimo carro do desfile da Unidos de Vila Isabel de 2011, a Rua do Ouvidor e os ares do Rio Antigo voltaram a cruzar a Sapucaí. Rosa Magalhães narrava um fato curioso: cidadãos de todos os cantos da cidade teriam corrido à famosa rua, no final do século XIX (a data exata não é mencionada) para observar, em uma vitrine de um salão de cabeleireiro, a exposição de uma imensa trança de cabelos. Segundo “os boatos do lugar” (conforme a letra do samba salgueirense de 1991), a trança pertencera “a uma mineira, que, por sentir fortes dores de cabeça, foi aconselhada a cortá-la pelo médico que a tratava.”366 Uma vez que no desfile de 1991 havia referências aos penteados afrancesados que eram devidamente “empoados” nos salões da Ouvidor, a referência não deixa de ser uma revisitação. E a passagem da Rua do Ouvidor pela Avenida Marquês de Sapucaí, uma sobreposição de pedras e asfalto, não deixa de ser, é claro, um exercício heterotópico.

VI. 1. 5 – O medievo de lá pra cá Quando falou das montagens de autos teatrais populares das feiras da Idade Média, Rosa Magalhães transformou o segundo carro alegórico da São Clemente, no carnaval de 2016, em um palco mambembe onde atores se apresentavam, merecendo destaque a figura do diabo. Tratava a autora das origens remotas das “palhaçadas”, brincadeiras cênicas levadas para as ruas, nos arredores dos castelos. No mesmo carro, a artista figurava fantasiada de camponesa – ela também parte do teatro. Mas o imaginário medieval traduzido visualmente no enredo Mais de mil palhaços no salão não fica restrito aos limites geográficos da Europa. Rosa Magalhães, em Sou amigo do Rei, o enredo salgueirense de 1990, falou do “medievo brasileiro” e do Movimento Armorial, cujo artífice foi Ariano Suassuna. A autora apresentou, com extraordinária riqueza de detalhes, a transposição de signos da Idade Média europeia para os sertões brasileiros: na ausência de uma “Idade Média cronológica” (já a chegada da

se na estética de figurinos cênicos realistas, ao invés de fantasias.” A escola nilopolitana, sob a batuta de uma comissão de carnaval encabeçada por Laíla, Cid Carvalho e Marcelo Misailidis, “pesou a mão” nos atos teatrais, apostando no “choque”, não na qualidade cênica. O resultado não agradou à crítica carnavalesca. Justificativa disponível em: http://liesa.globo.com/. Acesso em 11/03/2018. 366 Justificativa do enredo de 2011 da Unidos de Vila Isabel, encontrada no Livro Abre-Alas daquele ano. Disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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esquadra cabralina, em 1500, se deu durante a Idade Moderna367, segundo a tradicional periodização da história), as simbologias medievais se espraiaram no território nordestino, gestando tradições de cantadores populares, lendas, histórias de cavaleiros, batalhas, bardos e castelos. A autora explica, na sinopse do enredo, que as Congadas, festejo realizado em várias regiões do Brasil, “teve início com a coroação do Rei do Congo, sendo um auto popular que conta, através da representação, a luta de Carlos Magno e dos Doze Pares de França contra o gigante Ferrabrás.”368 Rosa Magalhães menciona, na sequência, as Taieiras, grupo feminino que, vestindo blusas vermelhas, saias brancas e faixas em verde e amarelo, além de fitas e flores, executa bailados e sai em cortejo, nos rincões nordestinos (são famosas as Taieiras do interior do Sergipe), e as Cavalhadas. De acordo com a carnavalesca, a influência da saga de Carlos Magno se faz presente em tudo isso, aportando, por fim, na literatura de cordel e na prosa de Suassuna. Trechos do Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta são assimilados no texto de apresentação do enredo, a fim de explicar aos compositores e ao público a genealogia de Dom Pedro Dinis Quaderna, 12º Conde da Pedra do Reino e 7º Rei do Quinto Império e do Quinto Naipe do Sete-Estrelo do Escorpião. Para a autora, Quaderna sintetiza uma série de signos que unem os imaginários epopeicos clássicos, o medievo e a cultura sertaneja: Aquiles, Ulisses, Hamlet, D. Quixote, Carlos Magno, aspectos arquetípicos de todos se unem à força dos beatos e cangaceiros do sertão, compondo um personagem híbrido. Sobram, na sequência da sinopse, menções a mantos, selas, lanças, brasões, bandeiras, cartas de baralho, tabuleiros de xadrez, astros zodiacais, cruzes, coroas, insígnias (os mesmos signos do imaginário de Arthur Bispo do Rosário). A artista visualiza “uma cavalgada, bem organizada, realizada por Reis, Valetes, Rainhas, Peões e Bispos (...).”369 O reino sertanejo era “cheio de cavalos e cavaleiros, de frutas vermelhas de mandacaru, reluzentes como estrelas, estrelas de metal ostentadas nos estandartes das cavalhadas ou nos chapéus dos Vaqueiros e Cangaceiros, Fidalgos da Casa Real.”370 Sob o brilho dourado do sol,

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A tomada de Constantinopla pelos turcos, em maio de 1453, é utilizada como marco definidor do final da Idade Média e início da Idade Moderna. Como toda delimitação histórica, é um dado que precisa ser relativizado – afinal, uma convenção estabelecida em um gabinete; apenas um ponto em uma “linha do tempo”, ideias amarradas às noções de linearidade, evolução e progresso, muito problemáticas. 368 MAGALHÃES, Rosa. Sou amigo do Rei. Sinopse do enredo do carnaval de 1990 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA). 369 MAGALHÃES, Rosa. Obra citada. 370 MAGALHÃES, Rosa. Obra citada.

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onças aladas anunciavam um universo mítico em festa, nos moldes da descrição apresentada por Suassuna, no Folheto I d’A Pedra do Reino: “Perto, no leito seco do Rio Taperoá, cuja areia é cheia de cristais despedaçados que faíscam ao sol, grandes cajueiros, com seus frutos vermelhos e cor de ouro.”371 Rosa Magalhães encerra a sinopse salgueirense reforçando a união entre o passado da França e o sertão brasileiro; abusa, para isso, da poeticidade: “havia cavalhada exatamente aqui, no Reino do Sertão e no Reino da Normandia. Os heróis, Carlos Magno e os Doze Pares de França, vivem, amam e combatem no coração do Brasil.”372

VI. 1. 6 – A folia de cocar Um aspecto que não pode ficar de lado em um estudo que se propõe a mapear o universo simbólico da carnavalesca é o apreço pela figura do índio, algo que automaticamente faz com que seja necessário um passeio por A Antropofagia de Rosa Magalhães. Na dissertação defendida em 2014, expliquei que, no período de 1992 a 2002 (11 narrativas de enredo, portanto), o índio aparece 8 vezes (1992, 1993, 1994, 1996, 1998, 1999, 2000 e 2002), sob as mais diferentes roupagens.373 Não há repetições, mas transformações e reprocessamentos temáticos. Pois bem: para além desse recorte temporal, a presença indígena também é observável em outros enredos assinados pela autora, a começar pela narrativa que automaticamente sucede o período enfocado na dissertação, o enredo de 2003. Em Nem todo pirata tem perna de pau, olho de vidro e cara de mau, os índios presentes na peça de James Barry foram transportados para a Passarela do Samba, com direito a grandes cocares e machadinhas - uma leitura de acento infantil da genérica imagem que se tem dos apaches norte-americanos. Roupagem semelhante apareceria em 2011, na Unidos de Vila Isabel, na narrativa sobre os fios de cabelo. Franjas e peles de animais se uniam aos cocares imensos, tudo para ilustrar a mitologia dos índios Hopi.

SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007, p. 31. 372 MAGALHÃES, Rosa. Obra citada. 373 É preciso destacar que a presença do índio nas manifestações carnavalescas brasileiras é algo mais antigo que o surgimento das escolas de samba, merecendo destaque os famigerados cucumbis. Roberto DaMatta fala que tais fantasias carnavalescas expressam “figuras periféricas do mundo social brasileiro”, aquelas que “o cotidiano só revela dolorosamente.” Ver: DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 62. 371

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É curioso atentar, aqui, para o fato de que a imagem do selvagem norte-americano foi assimilada pela cultura popular brasileira e transportada para as manifestações carnavalescas do nosso país. Os Apaches do Tororó (por vezes se vê a grafia “Apaxes”), bloco fundado em 1970, em Salvador, é um exemplo disso. A imagem do chefe apache, extraída dos massificados westerns, seria reprocessada em um contexto popular afrobrasileiro, ganhando as ruas da capital baiana.374 No Rio de Janeiro, o exemplo maior é o Cacique de Ramos, bloco fundado em 20 de janeiro de 1961, no subúrbio da cidade – a mesma região da Imperatriz Leopoldinense. Justamente por isso, Rosa Magalhães apresentou uma grande cabeça de cacique, o símbolo do bloco, na alegoria que encerrava o desfile gresilense de 2009 (imagem 105), sobre a fundação da escola de samba e a história do bairro de Ramos. Brincantes com cocares em branco, preto e vermelho mostravam que o Cacique e a Imperatriz eram dois galhos de uma mesma árvore sociocultural. A tamarineira do Cacique se unia à árvore que outrora oferecia sombra aos sambistas da Rainha de Ramos, conforme o narrado por Alexandre Medeiros na crônica Quadra colorida em verde, branco e ouro.375

Imagem 105: A homenagem ao Cacique de Ramos permitiu que Rosa Magalhães revisitasse a temática do índio. Fonte: https://escolasdesambadoriodejaneiro.blogspot.com.br/2016/12/imperatriz-leopoldinense2009.html. Acesso em 13/03/2018.

Em Nova Orleans, no sul dos Estados Unidos, há uma tradição de chefes indígenas negros (os “Black Indians”), no contexto carnavalesco. Sobre isso, ver GÓES, Fred. Antes do furacão. O Mardi Gras de um folião brasileiro em Nova Orleans. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2008. 375 Ver MEDEIROS, Alexandre. Quadra colorida em verde, branco e ouro. In: DINIZ, Alan; FABATO, Fábio; MEDEIROS, Alexandre. Obra citada, p. 80/83. 374

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Os mesmos índios de vestes americanizadas se viam misturados a melindrosas, bruxas, fadas, holandesas, polichinelos e baianinhas na ala Bloco de Rua, concebida por Rosa Magalhães para o desfile de 2015 da São Clemente, sobre a vida e a obra de Fernando Pamplona. A autora demonstrava compreender a complexa teia de relações transculturais que enredam a imagem do índio apache, brindando o público com um conjunto de fantasias brilhante.

VI. 1. 7 – O carnaval nosso de cada ano Não é outra coisa senão o carnaval o triunfo maior das narrativas de Rosa Magalhães. Utopia, heterotopia e heterocronia, as definições não bastam para expressar o quanto a folia momesca aparece nas obras da autora, coroando as histórias desfiadas. Sempre que pode, a artista inseriu o carnaval nos seus mapas carnavalescos, exercício metalinguístico dos mais apropriados – o enredo clementiano de 2015 é apenas um exemplo bem-sucedido; há inúmeros a serem apontados, a começar pelos já mencionados acordes foliônicos presentes em 1991, 1993 e 1997. Nos três enredos, o carnaval do Rio Antigo ganhou a Sapucaí, sobrando referências às figuras das trevas: caveiras, caixões, diabos, morcegos, a própria ceifadora376 se fazia presente. Festa que duela com a morte (se pensarmos na iconografia de Bruegel a antiguidade da questão ganha corpo), o carnaval flerta com as forças d’além-túmulo e com as cortes do submundo – não à toa, o rancho Ameno Resedá, na folia de 1911, apresentou o enredo Corte de Belzebu, “dramatizando um inferno muito atraente, repleto de simpáticos diabos e formosas diabinhas e embalado por uma orquestra de sopros.”377 Ciente desse imaginário, Rosa Magalhães levou para a Sapucaí uma carruagem puxada por touros negros e conduzida por demônios, em 1993. Os mesmos demônios vermelhos coloriram a apresentação salgueirense de 1991, emoldurando o penúltimo carro alegórico. Em 1997, os diabos ganharam novas cores: verde, preto e amarelo limão. Inseridos no setor que falava dos carnavais populares do tempo de Chiquinha Gonzaga, empunhavam tridentes e conduziam o olhar dos espectadores para a quinta alegoria do cortejo, adornada com estandartes e rosas de ouro. 376

Novamente, é preciso lembrar das manifestações carnavalescas de Nova Orleans e das pesquisas de Fred Góes. O autor menciona os cortejos festivos que acompanham defuntos – a carnavalização dos funerais, algo também observável no dia dos mortos mexicano. 377 FABATO, Fábio; SIMAS, Luiz Antonio. Obra citada, p. 19.

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O espírito dos carnavais populares reapareceria em algumas narrativas, sob diferentes roupagens: em 2003, a autora se valeu da marchinha Pirata da perna de pau, de Braguinha, para encerrar o enredo sobre a pirataria com uma homenagem aos “piratas de Momo”, foliões anônimos que se fantasiam de flibusteiros e saem pelas ruas da cidade; em 2007, foi a vez do carnaval popular de Olinda invadir a Sapucaí, graças à referência ao bloco Bacalhau do Batata; em 2009, a homenagem à própria Imperatriz Leopoldinense (imagem 106) e ao bairro de Ramos rendeu, por extensão, visões dos antigos carnavais suburbanos, com especial destaque para os banhos de mar a fantasia. A carnavalesca conta, na sinopse do enredo, que a praia de Ramos era conhecida como Mariangú, devido à presença das aves de mesmo nome. Apelidada de “Copacabana do subúrbio”, também sediava competições esportivas e de caça ao caranguejo. A terceira alegoria do desfile propunha uma visão festiva desse universo à beira-mar, com foliões usando bóias e trajes de banho, tudo albergado pela seguinte justificativa:

Nos requintados coretos da Rua das Missões, promoveram-se encontros memoráveis de blocos e ranchos que animavam os foliões até a manhã da quarta-feira de cinzas. Outro grande momento da festa era quando o grupo de mascarados, sereias, netunos, pierrôs, arlequins e colombinas mergulhavam no mar da aprazível praia de Mariangú, a nossa praia de Ramos.378

As referências ao carnaval do subúrbio não acabavam aí: a Comissão de Frente, coreografada por Alex Neoral, trazia 15 Clóvis ou Bate-Bolas379, tradicionais figuras dos bairros das Zonas Norte e Oeste do Rio de Janeiro (imagem 107). No carro alegórico de número 4, onde predominavam o preto e o branco, calhambeques e mascarados cortejavam um imenso Rei Momo de feições muito parecidas com aquelas do monarca que encerrou a apresentação gresilense do ano 2000, em uma alegoria que celebrava os “500 anos do Brasil” a partir da marchinha de Lamartine Babo, e do monarca que encerrou a apresentação mangueirense de 2014, em uma alegoria que celebrava o lirismo do carnaval por meio de um carrossel. No final do desfile do ano 2000, a carnavalesca apresentou pierrôs, arlequins e colombinas vestidos de verde, amarelo e dourado, todos

378

Justificativa do enredo de 2009 da Imperatriz Leopoldinense, encontrada no Livro Abre-Alas daquele ano. Disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA. 379 Sobre tal manifestação carnavalesca, ver PEREIRA, Aline Valadão Vieira Gualda. Os Bate-Bolas do carnaval contemporâneo do Rio de Janeiro. In: Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares (TECAP – UERJ), Estudos de Carnaval, v.6, n. 1, 2009, p. 115/124.

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expressando uma “visão festiva do descobrimento”. No final do desfile de 2014, os mesmos pierrôs, arlequins e colombinas (além de palhaços) vestiam verde e rosa.

Imagem 106: Abre-alas do desfile de 2009 da Imperatriz Leopoldinense, uma visão carnavalesca em homenagem à fundação da agremiação de Ramos. Foto: Wigder Frota. Acervo pessoal.

Imagem 107: Bate-bolas da Comissão de Frente que a Imperatriz Leopoldinense levou para a Sapucaí em 2009, sob o comando do coreógrafo Alex Neoral. Além do diálogo com Arlindo Rodrigues (o trem alusivo ao desfile gresilense de 1981, homenagem a Lamartine Babo), a presença de manifestações carnavalescas suburbanas é um ponto a ser destacado na obra de Rosa Magalhães. Foto: Wigder Frota. Acervo pessoal.

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Outros desfiles encerrados com a celebração do carnaval foram os dos anos 2001, 2002, 2008 e 2011. Em 2001, o enredo sobre a cana-de-açúcar e a cachaça saltava da Inconfidência Mineira (segundo Rosa Magalhães, os inconfidentes só brindavam com cachaça, uma vez que eram nacionalistas) para o Morro da Mangueira. A carnavalesca concebeu um setor inteiro (6 alas e 1 carro alegórico, além de uma segunda Comissão de Frente devidamente paramentada) dedicado à memória de Carlos Cachaça, fundador da Verde e Rosa. Até Cartola entrou na dança: a alegoria final homenageava a música As rosas não falam, apresentando um verdadeiro roseiral ao redor do trem da primeira estação da Central do Brasil (imagem 108).

Imagem 108: Última alegoria do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2001, homenageando Carlos Cachaça e a Estação Primeira de Mangueira. Foto: Agência O Globo. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

Em 2002 e em 2011 o carnaval aparece graças a duas figuras icônicas já mencionadas no trabalho: Carmen Miranda e Lamartine Babo. Encerrando a apresentação sobre a antropofagia, a presença da Pequena Notável, entre cachos de bananas, morangos e flores multicoloridas, coroava o dito South American Way, algo cafona e estereotipado – isso nas palavras da própria realizadora, para quem a estrela internacional era a síntese mais carnavalizada do Manifesto de 1928. Em 2011, na apresentação sobre os fios de cabelo, as marchinhas de Lamartine foram transformadas em perucas de palhaços e 272


cabrochas – a hoje polêmica O teu cabelo não nega, mote para o enredo que Arlindo Rodrigues desenvolveu para a Imperatriz, em 1981, reaparecia em azul e branco. Os diálogos mais assumidamente metalinguísticos, no que tange aos desfiles das escolas de samba, se deram em 1993, 2008, 2009 e 2014. Em 2008 e em 2009, a Imperatriz revisitava a si mesma sob a pena da carnavalesca – ora com mais, ora com menos sucesso. O encerramento do cortejo de 2008, com a coroa decorada com pompons e as referências a todos os campeonatos conquistados pela agremiação, foi bem pensado e muito bem executado (imagem 109) Já as “referências autobiográficas” de 2009 causaram estranhamento – e ainda mais incômodo causou a reinterpretação de Rosa Magalhães para a alegoria alusiva às “glórias” do Duque de Caxias que o carnavalesco Max Lopes apresentou em 1989 enquanto peça do enredo Liberdade, Liberdade, abre as asas sobre nós! Originalmente imponente, luxuosa e alta (tão alta que teve dificuldade para entrar no Sambódromo), a visão dos cavaleiros combatendo no Paraguai foi reduzida a um tripé de decoração desleixada (em verdade, uma lycra verde sobre uma empilhadeira que levantava um cavalo branco), algo incomum na trajetória da artista, marcada pelo cuidado para com os menores detalhes.

Imagem 109: Traseira da última alegoria da Imperatriz Leopoldinense, no desfile de 2008, com a presença de todos os troféus de campeã conquistados pela escola de Ramos. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

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Para além dos carnavais da época do Marquês de Sapucaí (segunda metade do século XIX, dos entrudos aos cordões), o enredo de 93 estendia o olhar para os desfiles da contemporaneidade e projetava o futuro – heterocronia das mais ousadas. Rosa Magalhães e Viriato Ferreira, numa atitude antropofágica, abocanharam as estéticas de Arlindo Rodrigues, Fernando Pinto e Joãosinho Trinta, recriando fantasias e alegorias marcantes concebidas por tais artistas. O barroco baiano de Arlindo, o tropicalismo de Fernando Pinto (com direito a onças, araras, motocicletas, inclusive o tatu-tanque de guerra) e o lixo (que virou luxo, entre ratos e urubus) de João 30 foram ressignificados em um outro momento. Ao final, depois das visões de futuro um tanto enigmáticas (dinossauros e lagartos se misturavam a formas vazadas que lembravam tubos espaciais e máquinas de teletransporte), uma reprodução da própria Marquês de Sapucaí (arquibancadas, holofotes, Praça da Apoteose) cruzou a Avenida (e curioso é notar que o último carro do Acadêmicos do Salgueiro, escola que ganharia aquele campeonato, expressava a mesma ideia). Antes do Sambódromo de concreto e do Arco da Apoteose projetados por Niemeyer, o público se espremia em arquibancadas de metal e contemplava as decorações de rua que anualmente venciam o concurso proposto pela prefeitura. A memória dos desfiles de escolas de samba que escorriam por debaixo dessas decorações380 não ficou de fora do enredo que Rosa Magalhães desenvolveu para a São Clemente, em 2014 – e aqui retornamos ao diálogo da autora com a obra do seu “mestre”, o carnavalesco Fernando Pamplona. Naquele desfile, a artista revisitou os célebres “enredos negros” do Salgueiro e recriou a imagem da Igreja da Candelária emoldurada pelas formas geométricas das decorações concebidas por Pamplona – formas também traduzidas em fantasias, algumas das mais criativas já assinadas por ela (imagens 110 e 111). Até mesmo a visão celestial da última alegoria, onde se via uma escultura do carnavalesco envolto por nuvens e anjinhos negros, ganhava ares carnavalizados de acento retrô, com arabescos de vime e pingentes de ráfia – elementos decorativos amplamente utilizados nos desfiles do Salgueiro.

380

Sobre as decorações de rua, ver GUIMARÃES, Helenise. A batalha das ornamentações. A Escola de Belas Artes e o Carnaval Carioca. Rio de Janeiro: FAPERJ / Rio Books, 2015.

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Imagens 110 e 111: Duas fantasias de alas concebidas por Rosa Magalhães para o desfile de 2015 da São Clemente. A transformação das antigas decorações de rua idealizadas por Fernando Pamplona em figurinos geométricos agradou ao júri do Estandarte de Ouro. Fonte: http://www.portaldosambarj.com/2015/02/pordentro-do-desfile-sao-clemente.html. Acesso em 13/03/2018.

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A bonita relação entre Rosa e Pamplona nos leva, por fim, ao desfile que rendeu à carnavalesca o seu primeiro título de campeã do Grupo Especial do Rio de Janeiro, quando ainda assinava desfiles ao lado de Lícia Lacerda: o desfile do Império Serrano de 1982, Bum Bum Paticumbum Prugurundum. O Sambódromo não existia, os carros alegóricos, nas palavras da autora, poderiam ser feitos sobre carrinhos de aeroporto, tamanhas as dimensões reduzidas. O título, por si só, é provocativo: trata-se de uma onomatopeia

retirada da entrevista concedida por Ismael Silva a Sérgio Cabral, publicada originalmente no livro As escolas de samba – o quê, quem, quando, onde, como e por quê e depois, em parte, na obra Escolas de Samba do Rio de Janeiro.381 Segundo a artista, o título sugerido por Fernando Pamplona, Onze, Candelária e Sapeca aí, não a agradava: usava de um trocadilho que não mascarava a “clareza” da proposta. A expressão onomatopaica de Ismael, por sua vez, “ocultava” o enredo sem deixar de sintetizar (sonoramente, em especial) a proposta de falar da evolução das escolas de samba, para terminar na crítica ao gigantismo do espetáculo (as “superescolas de samba S.A.”). O exemplo ilustra o fato de que Rosa, a começar pelos títulos dos enredos, é adepta da experimentação.382

O enredo havia sido proposto ao Império Serrano por Fernando Pamplona, mas o desenvolvimento (inclusive a escritura da sinopse) coube à dupla de jovens carnavalescas, ambas ex-alunas dele, na Escola de Belas Artes. Pamplona narra, em O Encarnado e o Branco, que jamais assinaria um desfile de escola de samba em uma agremiação que não o Salgueiro – e manteve a palavra até o final da vida383. Rosa e Lícia, que assumiam a escola da Serrinha depois de um ano conturbado (no carnaval de 1981, com o enredo Na

381

Ver CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. São Paulo: Lazuli Editora, Companhia Editora Nacional, 2011, p. 269. 382 BORA, Leonardo Augusto. A Antropofagia de Rosa Magalhães, p. 15. 383 O episódio é narrado vivamente por Rachel Valença e Suetônio Valença: “Para o carnaval, Jamil (Jamil Salomão Maruff, conhecido por Jamil Cheiroso, presidente da escola na época) fez contato com Fernando Pamplona, o respeitado carnavalesco que dera tantas vitórias ao Salgueiro. Mas Pamplona, fiel à vermelho e branco da Tijuca, não aceitou. Porém, por gostar de Jamil, dono, segundo ele, ‘do sorriso mais simpático do samba’, e ter uma forte simpatia pelo Império, deu uma sugestão de enredo: Onze, Candelária e Sapecaí, uma história do desfile das escolas de samba baseada nas três fases do carnaval, segundo o livro Fala, Mangueira, de Marília Trindade Barboza e Arthur Loureiro de Oliveira Filho. E para desenvolvê-lo indicou duas ex-alunas suas na Escola de Belas-Artes, Rosa Magalhães e Lícia Lacerda. (...) A primeira exigência das carnavalescas foi a troca do título do enredo. Rosa Magalhães não suportava o trocadilho Sapucaí/Sapecaí. Até aí, tudo bem. Mas a proposta do novo título era polêmica: Bum Bum Paticumbum Prugurundum. De onde isso saíra? Rosa explica que, ao ler o clássico livro do jornalista Sérgio Cabral As escolas de samba: o quê, quem, como, quando e por quê, para desenvolver o conteúdo do enredo, se deparou com a famosa entrevista concedida ao autor por Ismael Silva e se apaixonou pela onomatopeia com que ele descreve o ritmo do novo samba surgido no Estácio, feito para o deslocamento, e não para dançar parado.” In: VALENÇA, Rachel; VALENÇA, Suetônio. Serra, Serrinha, Serrano. O Império do Samba. Rio de Janeiro: Record, 2017, p. 237/238.

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terra do pau-brasil nem tudo Caminha viu, o Império foi a última colocada do Grupo Especial, porém não houve rebaixamento e a escola permaneceu no 1º grupo), dividiram a narrativa em três capítulos: Praça Onze ou Fase Autêntica; Candelária ou Fase de Interação; e Marquês de Sapucaí ou Escolas de Samba S/A. Três momentos bem demarcados, a fim de narrar linearmente a história dos desfiles das escolas de samba na cidade de São Sebastião. Na primeira parte, evocavam o romantismo dos primeiros concursos, ocorridos na extinta Praça Onze, quando “os sambistas diziam no pé e o seu amor pela Agremiação era às vezes questão de vida e até de morte.”384 No segundo momento, começavam por abordar o trabalho de Marie Louise e Dirceu Nery, no Salgueiro de 1959 (homenagem a Jean-Baptiste Debret), e exaltavam os enredos desenvolvidos por Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues (como História do Carnaval Carioca e Bahia de Todos os Deuses, mencionados no samba de enredo), no Salgueiro, e Fernando Pinto, no próprio Império Serrano – com destaque para o título conquistado em 1972, homenagem a Carmen Miranda. No último trecho da narrativa, criticavam o “supergasto” que nem sempre acompanhava um “super-samba”, ou seja, a mercantilização das agremiações e o gigantismo luxuoso personificado na figura de Joãosinho Trinta, à frente da Beija-Flor do Nilópolis (imagem 112). João Trinta, sob a ótica do enredo, era o “todopoderoso” carnavalesco midiático (que, dizem as carnavalescas, não gostou da “homenagem” imperiana). O desfile, contra todos os prognósticos385, foi um triunfo. A escola levou a taça e Madureira explodiu em festa, coroando as meninas-prodígio.

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LACERDA, Lícia; MAGALHÃES, Rosa. Bum Bum Paticumbum Brugurundum. Sinopse do enredo do carnaval de 1982 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Império Serrano, presente no conjunto de textos daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA). 385 Rachel Valença e Suetônio Valença narram: “O desfile, no dia 21 de fevereiro, era, tal como no ano anterior, no sentido Presidente Vargas-Catumbi na rua Marquês de Sapucaí. O Império Serrano encerraria o desfile de 12 escolas, Concentrado ao lado dos Correios, logo atrás da suntuosa Imperatriz Leopoldinense de Arlindo Rodrigues, a escola amargava a humilhação de sua simplicidade. A criatividade e o talento das carnavalescas não disfarçava a pobreza daquele carnaval. Além do mais, um atraso expressivo jogou o desfile, marcado para 7h20, para as 10h30 da manhã. O sol era escaldante. Mas a escola não se acovardou. O que se viu a seguir é difícil de narrar. As arquibancadas lotadas cantavam o samba com uma energia contagiante. O componente dava tudo de si, sem uma hesitação sequer. A bateria, em sua linda fantasia de arlequim alvo, causou êxtase. Foi um desses momentos mágicos que de vez em quando é possível presenciar no carnaval. Prova disso é o comentário do jornalista Paulo Siqueira no Jornal do Brasil de 24 de fevereiro de 1982: ao descrever de maneira imparcial e até dura o desfile do Império, admite, no entanto: “Há muito tempo não se via uma aclamação tão intensa a uma escola de samba.” A vitória, ainda assim, parecia distante. A Imperatriz apresentou-se deslumbrante em fantasias e alegorias e com um samba valente. Mas a desobediência a um item do regulamento daquele ano, que proibia pessoas sobre carros alegóricos, acabou custando à escola de Ramos preciosos pontos e dando a vitória ao Império Serrano. O desfile de 1982 também proporcionou ao Império Serrano nada menos do que sete Estandartes de Ouro: além do de sambaenredo, que era esperado, ganhou ainda os prêmios nas categorias enredo, bateria, comunicação com o público, passista masculino, para o passista Ricardo, revelação, para a porta-bandeira Andrea Machado, à

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Observa-se, em Bum Bum Paticumbum Prugurundum, uma visão idealizada para com os primeiros desfiles de escolas de samba (idealização já presente no título, uma vez que extraído de uma entrevista que por vezes é lida enquanto “mito de origem” e tomada como “verdade absoluta” – algo, naturalmente, problemático). As autoras defendem um “samba autêntico”, de raiz, pulsante nos pés dos brincantes e nas mãos dos ritmistas. A espontaneidade e a singeleza ao invés das coreografias e das vestes e alegorias suntuosas. Subentende-se, da leitura da sinopse do enredo, que os “fortes esquemas financeiros” maculavam a pureza do carnaval, sendo necessário dar um grito de alerta. Mais de 35 anos depois, a discussão permanece a provocar celeumas – basta pensarmos no “modelo” de carnavalesco personificado por Paulo Barros. A crítica estava feita – e jamais abandonaria de todo a produção de Rosa Magalhães.

Imagem 112: Fantasias e alegorias do final do desfile de 1982 do Império Serrano. No alto e no centro da imagem, vê-se a escultura de Joãosinho Trinta, considerado o símbolo do “super-carnavalesco” das “Superescolas de Samba S/A”. Foto: Agência O Globo / Anibal Philot. Disponível no seguinte sítio: https://oglobo.globo.com/rio/bairros/baluartes-da-imperio-serrano-revivem-momentos-especiais-daescola-21386745. Acesso em 12/03/2018.

época com 14 anos, e personalidade masculina para o presidente Jamil Salomão Maruff.” In: VALENÇA, Rachel; VALENÇA, Suetônio. Obra citada, p. 243/244.

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VI. 2 – O panelaço brasileiro Na ilha de Vancouver, conta Ruth Benedict, os índios celebravam torneios para medir a grandeza dos príncipes. Os rivais competiam destruindo seus bens. Atiravam ao fogo suas canoas, seu azeite de peixe e suas ovas de salmão; e do alto de um promontório jogavam no mar suas mantas e vasilhas. Vencia o que se despojava de tudo. Eduardo Galeano – O Livro dos Abraços (Os índios/4)

Rio de Janeiro, 6 de março de 2018. A capa da edição do mês do Le Monde Diplomatique (imagem 113) exibe, sob o título Tribunais de exceção, uma charge colorida que mostra Themis, a deusa grega da Justiça, sobre um cadafalso, com as mãos amarradas (a balança caída), os olhos vendados e a forca no pescoço. Compondo a cenografia (que emula a opressão medieval dos tribunais eclesiásticos), os moradores do “burgo” usam camisas da seleção brasileira e empunham frigideiras e panelas. Sobre um muro de pedras, em diálogo com a iconografia do Cavalo de Tróia, um pato amarelo com olhos em “x” (referência ao “pato da FIESP”, um inflável armado em plena Avenida Paulista, em frente ao prédio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, enquanto símbolo a favor do impeachment de 2016). Julgando diretamente a prisioneira condenada à morte (e protegidos por dois soldados do exército), o juiz Sérgio Moro (dedo em riste), o ministro do STF Gilmar Mendes (as mãos na alavanca do alçapão) e o presidente Michel Temer (com a faixa presidencial). Com a faixa presidencial e um costeiro de faisões naturais – a presença da carnavalização. O leque de penas, nas costas do presidente, automaticamente remetia o olhar do leitor à memória do desfile que a Paraíso do Tuiuti, escola de samba do bairro de São Cristóvão, com as cores azul e amarela e tendo por símbolo uma coroa encimada por uma lira, havia realizado no início da madrugada de segunda-feira de carnaval, 12 de fevereiro de 2018. No cortejo, o destaque mais alto do quinto e último carro alegórico, intitulado Neotumbeiro, vestia a fantasia Vampiro Neoliberalista: terno preto, faixa presidencial, peruca grisalha, caninos afiados à mostra (um filete vermelho escorrendo sobre a maquiagem branca) e faisões balançantes nas costas, junto a cédulas de dólares. Muitos e muitas. E asas de morcego por toda a parte.

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Imagem 113: Capa da edição de março de 2018 do Le Monde Diplomatique, com a visão do presidente Michel Temer com um costeiro de faisões – reinterpretação da fantasia carnavalesca apresentada pela escola Paraíso do Tuiuti, sob assinatura de Jack Vasconcelos. Fonte: http://diplomatique.org.br/edicao/edicao128/. Acesso em 18/03/2018.

Na manhã de segunda-feira, a imagem do “Vampirão” estampava as principais publicações do mundo. Como dizem os mais antenados, “viralizou”. Tamanha foi a repercussão que o assunto mais comentado, nas esquinas da cidade, era o “charivari” ocorrido no Sambódromo. Na apuração da quarta-feira de cinzas, a Tuiuti, última colocada do ano anterior (quando não foi rebaixada porque ocorreu uma “virada de mesa” devido aos graves acidentes ocorridos com carros alegóricos), alcançou um até então impensável vice-campeonato. A imagem do presidente-vampiro e sua corte de Manifestoches (componentes fantasiados de “batedores de panelas”, montados em patos amarelos infláveis e usando camisas da seleção canarinho, chapéus de triboulet, narizes de palhaço e grandes mãos de espuma nas costas, como se fossem marionetes) passou a 280


estampar charges em jornais do país inteiro. O carnaval enquanto ferramenta de crítica política (e os desfiles da Mangueira e da Beija-Flor potencializaram isso, por caminhos distintos) estava na pauta do dia, despertando um sentimento transgressor muito em voga na década de 1980, no contexto da redemocratização, em escolas como Caprichosos de Pilares, São Clemente e Mocidade Independente de Padre Miguel. Léo Morais, o destaque que vestiu a fantasia, talvez não imaginasse o quanto a sua imagem seria reprocessada, defendida e acusada, nas redes sociais e nos portais de notícias. O carnavalesco Jack Vasconcelos, autor do enredo Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão? (título que dialoga com o samba antológico que a Unidos de Lucas cantou em 1968, Sublime Pergaminho), virava um dos personagens da folia momesca de 2018. Curioso é pensar que durante a discussão travada na UERJ, em 16 de julho de 2013, quando as ruas ainda explodiam (fragmentos de vidraças e balas de borracha das ditas “jornadas de junho”), Rosa Magalhães respondeu, ao ser questionada sobre o porquê de não mais existirem enredos críticos, nos moldes dos anos 80: “porque não há mais espaço para isso.” A artista, ladeada por Felipe Ferreira e Marcelo de Mello, declarou que não mais se sentia estimulada a desenvolver uma narrativa como aquela que havia apresentado, juntamente com Lícia Lacerda, na Imperatriz Leopoldinense, em 1984, ano da inauguração do Sambódromo. O enredo Alô, Mamãe!, para ela, havia ficado no passado: “se algum carnavalesco fizer algo naquele estilo, hoje, vai ser execrado. O público não quer mais ver aquilo, está cansado de política. Os jurados não entenderiam. Hoje ficou tudo mais sério.” O Vampiro Neoliberalista e os Manifestoches de Jack Vasconcelos provariam, poucos anos depois, que a vivacidade do carnaval é algo inapreensível. As correntes marítimas não aprisionam as ideias: mudam de maneira repentina, voraz, confundindo as rotas e os olhares dos navegadores. A própria Rosa Magalhães, em 2016, voltaria às críticas políticas – talvez não tão afiada como nos “velhos tempos”, mas disposta, sim, a questionar o presente e a desenhar as suas charges.

VI. 2. 1 – Pirão de areia e sopa de vento O enredo gresilense de 1984 apontava o dedo para a cara do Brasil, um país ainda governado aos golpes de cassetete – e alegre não é constatar, em tempos de intervenção federal, que pouca coisa mudou desde então. Valendo-se do símbolo do telefone (telefone 281


com fio, este objeto de comunicação que envelheceu na velocidade da luz e hoje é uma legítima peça de bricabraques), as carnavalescas, donas de um estilo que podia ser classificado como “tropicalismo jocoso” (abacaxis, de fato, apareceram aos caminhões – inclusive na roupa das baianas), segundo o comentário de Fernando Pamplona, durante a transmissão da TV Manchete, transportaram para as fantasias e os carros alegóricos o clima de incerteza política que pairava sobre Brasília. O ponto de partida foi o primeiro discurso realizado na Câmara pelo recém-empossado deputado Aguinaldo Timóteo, fato narrado pelo jornalista Ancelmo Gois, no calor das eleições de 2014: Aguinaldo Timóteo, 77 anos, não se elegeu deputado federal. Ficou com 18.839 votos, na sexta suplência da coligação do PR, de Garotinho. Em 1982, ele foi, ao lado de Brizola, recém-chegado do exílio, o deputado federal mais votado do país, com mais de 500 mil votos. No seu primeiro discurso na Câmara, pegou um telefone e ligou para a mãe. O sucesso foi tanto que “Alô, mamãe” virou enredo da Imperatriz, em 1984. Mas, no ano seguinte, votou em Maluf, o candidato da ditadura, contra Tancredo, no Colégio Eleitoral. Foi do céu ao inferno.386

O deputado desfilou no carro abre-alas, falando ao telefone (imagem 114). A alegoria apresentava um claro desenho cartunesco, com direito a um balãozinho de histórias em quadrinhos (dentro do balão, o título do enredo levemente alterado - “Alôoo, Mamãe!!”). Pamplona, ao comentar a abertura do desfile, destacou o “momento de sufoco econômico que vivemos”. A fala de Aguinaldo Timóteo, na leitura das carnavalescas, sintetizava um movimento nacional: a vontade de pedir colo à mãe, diante de um cenário desolador. Um grito de socorro e um pedido de desculpas: o filho do enredo das autoras, que poderia ser qualquer brasileiro (filho da pátria), pede que a mãe o perdoe, uma vez que não conseguiria enviar o “dinheiro do mês” porque o montante havia sido “sugado por um vampiro que aparece todas as noites e leva os trocados.”387 Qualquer semelhança com a simbologia presente no desfile de 2018 do Paraíso do Tuiuti não é mera coincidência. Três décadas se foram; os vampiros são imortais? E não é por outro motivo que não este o porquê de o samba de enredo composto por Velha, Guga, Tuninho e Alvinho cantar em tom de piada: “Alô, Mamãe! / Assim não aguento / Almoçar pirão de areia / E jantar sopa de vento!”

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http://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/alo-mamae-551699.html. Acesso em 09/03/2018. LACERDA, Lícia; MAGALHÃES, Rosa. Alô, Mamãe! Sinopse do enredo do carnaval de 1984 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, presente no conjunto de textos daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA). 387

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Imagem 114: Aguinaldo Timóteo fala ao telefone, no abre-alas da Imperatriz Leopoldinense, em 1984. Fonte: Transmissão televisiva da TV Globo.

VI. 2. 2 – Pirataria S/A O verde e o amarelo da bandeira brasileira cederam espaço ao preto, na penúltima alegoria do desfile gresilense de 2003. De nome Pirataria S/A, o carro exibia uma caveira decorada com sandálias, relógios, telefones celulares e peças de eletroeletrônicos. Sobre ônibus e vans de cores cítricas, componentes com fantasias inspiradas na estética punk representavam os piratas da contemporaneidade brasileira. O pavilhão nacional se misturava à bandeira pirata, numa evidente crítica política (imagem 115). Rosa Magalhães explica, em O inverso das origens, que a presença de Braguinha, no título do enredo, era algo inegociável (e novamente o teor autobiográfico se esparrama pelas páginas):

No enredo sobre pirataria, Braguinha se aliava bem com o tema por ter sido também um defensor do direito autoral no Brasil. Tive a honra e o prazer de participar com ele de um passeio a um castelo na Áustria por ocasião de um Congresso Mundial de Direitos Autorais, no qual ele representava uma sociedade de arrecadação de direitos autorais musicais e meu pai, uma de direitos autorais de montagens teatrais. Pois foi ao defensor dos direitos autorais que pedi emprestado o título para o enredo do carnaval de 2003, sobre a pirataria. (...) O termo pirataria, tão usado atualmente, tem também a conotação de plágio, cópia, de uso indevido de ideias. A luta moderna contra a pirataria não é só por causa dos produtos copiados, mas sobretudo por causa das ideias que geram estes produtos, dos 283


artistas que projetam, compõem, orquestram, escrevem, enfim, mobilizam seus talentos para obter o resultado impalpável que se chama criação artística.388

Imagem 115: Fantasias e carro alegórico do sexto setor do desfile de 2003 da Imperatriz Leopoldinense, sobre a pirataria. Produtos pirateados (inclusive vans e ônibus) se avolumavam na alegoria, onde também se via a bandeira nacional misturada à bandeira pirata. Foto: Wigder Frota. Acervo pessoal.

Ao abordar a delicada questão dos direitos autorais, parte do espectro dos direitos culturais (que, por sua vez, se veem albergados pelos direitos humanos), a artista transformava a Passarela do Samba em um poderoso espaço de reflexão crítica. Tocava em um assunto ainda pouquíssimo debatido no seio das escolas de samba (e mesmo nas escolas de Direito) – basta pensarmos que os autores dos enredos não recebem qualquer parcela financeira oriunda da transmissão televisiva dos desfiles e/ou da venda dos textos e das imagens da produção. A rigor, no mais das vezes sequer há um contrato, reinando a informalidade e os acordos “de boca”389. Casos de plágio são, infelizmente, comuns. Roubos de enredos, idem. A memória carnavalesca é fraquinha por demais. MAGALHÃES, Rosa; NEWLANDS, Maria Luiza. Obra citada, p. 178 – 180. Maria Laura Cavalcanti discorre sobre isso ao falar da constante insegurança demonstrada por Renato Lage e Lílian Rabello, carnavalescos da Mocidade Independente, em 1992, com relação aos acordos financeiros. Nas palavras dela: “Fechar o contrato era um aspecto especialmente sofrido em sua (Renato 388 389

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VII. 2. 3 – A carne é fraca, é isso aí Em 1988, ao final do enredo O boi dá bode, desenvolvido para a Estácio de Sá, Rosa Magalhães apresentava um aglomerado de faixas, comendas, medalhas, brasões, broches e rosáceas. Eram os prêmios dos “bois de raça” que virariam peças de exportação – o que não deixava de ser uma crítica à postura de “vaca de presépio” (tema da alegoria que antecedia os “bois premiados”) adotada pela política brasileira diante do capital estrangeiro. Os figurinos e os adereços do carro (imagem 116) dialogavam com a obra Bovinocultura: sociedade do boi, de Humberto Espíndola, artista mato-grossense. A instalação de 100 metros quadrados foi apresentada ao público enquanto “arte ambiental” (o conceito de Hélio Oiticica390) na XI Bienal Internacional de São Paulo, em 1971 (imagens 117 e 118). A autora adaptava, para o contexto do carnaval carioca, o universo simbólico de um artista plástico contemporâneo que pretendia, com a sua produção, criticar a cultura mercantilizada da agropecuária do Brasil:

A produção de Humberto Espíndola parte do tema do boi, visto como símbolo da riqueza de Mato Grosso. Em Bovinocultura, realiza um retrato sarcástico da sociedade do boi, que é principalmente moeda e símbolo de poder. Em seus primeiros trabalhos, Espíndola apresenta o animal envolto em penumbra, provocando estranheza. A efígie do boi, em suas telas, é colocada em um primeiro plano, ou isolada em um oval central, ganhando a dimensão de nobreza de um retrato. Em Glória ao Boi nas Alturas (1967), utiliza uma deliberada frontalidade do animal, em torno do qual se acumulam máscaras, imprimindo ao quadro um ritmo dinâmico. Alguns quadros possuem um sentido simbólico, com a utilização das cores da bandeira brasileira. Em outros, emprega crachás e medalhas, que remetem a exposições agropecuárias. Como nota o crítico Frederico Morais, Espíndola humaniza o boi, para denunciar a vontade de poder do ser humano, como ocorre em O Tirano (1984). Já na série Arqueologia do Boi - Boi Branco (1993), destacam-se o uso de tonalidades rebaixadas e o caráter mágico. O artista realiza posteriormente gravuras geradas e

Lage) relação com a escola. (...) (Renato) concordava com a necessidade de o carnavalesco se profissionalizar, mas assinalava também a dificuldade de unir as pessoas: ‘o carnaval é um show, então é uma competição muito grande, um quer engolir o outro. Por exemplo a ideia de fazer um piso salarial. O carnavalesco tem a liberdade de negociar o contrato. Sempre brigamos por um bom contrato. Só não consegue melhor porque os outros não fazem. Aí eles falam em mercado, ora, o mercado não existe.’ A situação era, em suma, a seguinte: o contrato se fechava abaixo de suas expectativas, entretanto no decorrer do ano ganhavam no final mais do que o negociado. Na expressão de Lilian, a relação adquiria desse modo uma feição ‘super-paternalista’ que a incomodava. (...) Cabe lembrar a natureza muito particular desse contrato: ‘É mais na palavra – comenta Renato – bem poucos fazem’”. In: CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Obra citada, p. 64/65. 390 Ver OITICICA FILHO, César (org.). Hélio Oiticica – Museu é o mundo. Rio de Janeiro: Beco do Azougue editorial, 2011.

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coloridas em computador, nas quais obtém grande potência no colorido, como em Vaca Escada (2001).391

Imagem 116: Penúltima alegoria do desfile de 1988 da Estácio de Sá, intitulada Boi premiado. Rosa Magalhães dialogava com Humberto Espíndola para tecer uma crítica à postura dos pecuaristas e políticos brasileiros em face do capital estrangeiro. Fonte: transmissão televisiva da TV Globo.

Imagem 117: Instalação Bovinocultura: Sociedade do boi, de Humberto Espíndola, exposta na XI Bienal Internacional de São Paulo, em 1971. Fonte: http://www.humbertoespindola.com.br/005-obras-088.htm. Acesso em 17/03/2018. 391

ESPÍNDOLA, Humberto. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2018. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa8706/humbertoespindola. Acesso em: 11/03/2018. ISBN: 978-85-7979-060-7. Sobre a produção do artista, ver ainda: ESPÍNDOLA, Humberto. 20 anos de bovinocultura. Apresentação Idara Negreiros Duncan Rodrigues; comentário Mário Pedrosa, Mario Schenberg, Jayme Maurício, Roberto Pontual, Clarival do Prado Valladares, Aline Figueiredo, Frederico Morais, Maria da Glória Sá Rosa. Campo Grande: Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, 1987.

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Imagem 118: Na instalação Bovinocultura: Sociedade do Boi, Humberto Espíndola criticava a política brasileira, utilizando, para isso, de faixas, chifres e prêmios concedidos a “bois de raça”. Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra11793/bovinocultura-sociedade-do-boi-instalacao. Acesso em: 11/03/2018.

No mesmo desfile, o último carro alegórico trazia um enorme fogão, com panelas de todos os tipos (inclusive uma chaleira e um verdíssimo chuchu). Sobre as panelas, “fervendo”, um grupo de travestis e Drag Queens expressava a brincadeira do final da narrativa: o boi, quando morre, vira vaca.392 A autora não apenas se referia ao prato “vaca atolada”, feito com carne bovina e mandioca, como à ideia de que a “vaca brasileira” havia ido para o brejo: recessão econômica, desilusões governamentais, instabilidades, tudo contribuía para o entendimento de que o “boi” havia dado “bode” – aparecendo a transgressão enquanto ferramenta política de luta. As “vacas” da alegoria, além disso, desnudavam o corpo gay no universo carnavalesco, algo trabalhado por autores como Samuel Abrantes393 e Fabiano Gontijo.394

Nas palavras da autora: “Já tivemos boi voador, boi-bumbá, boi de mamão, boi de cara preta que pega menino que tem medo de careta, tem boi magro, gordo, boi na entressafra, boi de cabresto, boi com abóbora, boicote ao boi. E quando não acreditamos em algo dizemos que é mais fácil um boi voar! Mas às vezes, o BOI DÁ BODE... e ainda por cima, quando morre... vira vaca.” In: MAGALHÃES, Rosa. O boi dá bode. Sinopse do enredo do carnaval de 1988 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Estácio de Sá, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA). 393 Ver: ABRANTES, Samuel. Samile Cunha. Transconexões, memórias e heterodoxia. Rio de Janeiro: Rio Books, 2014. 394 Ver: GONTIJO, Fabiano. O Rei Momo e o arco-íris: homossexualidade e carnaval no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2009. 392

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Tal universo ganharia mais purpurina no desfile mangueirense de 2014. O sexto setor de A festança brasileira cai no samba da Mangueira exaltava a Parada Gay de São Paulo enquanto festa popular que ocupa, todos os anos, a mais famosa avenida da Terra da Garoa. Rosa Magalhães e Oswaldo Martins, os autores do enredo, transformaram a Sapucaí em uma tribuna a favor dos direitos LGBTQI, daí a pertinência do trecho:

Respeitar a diversidade é hoje, principalmente nas grandes metrópoles, garantir às pessoas o direito a suas escolhas individuais e ao pleno exercício dos direitos civis inerentes à vida contemporânea. Símbolo da diversidade, o arco-íris foi adotado pela comunidade gay, alvo da homofobia, como escudo de defesa dos preconceitos que, embora ilegais, permanecem visíveis na sociedade. Sair do armário, da expressão em inglês “out of the closet”, representa libertar-se do medo e assumir sua orientação sexual. A Parada Gay, que se repete em vários pontos do país, é hoje uma festa popular que arrasta multidões.395

A alegoria Saindo do armário nada mais era que um imenso closet, com sapatos de salto, batons, bolsas e espelhos. Composições vestindo casacos pretos entravam em portas de armários e saíam trajando fantasias de ícones do mundo gay, como Carmen Miranda, Madonna, as drags do musical australiano Priscilla (imagem 119). As panelas de O boi dá bode davam lugar aos estojos de maquiagem.

Imagem 119: Detalhe da penúltima alegoria do desfile de 2014 da Estação Primeira de Mangueira, visão carnavalizada para a expressão “sair do armário”. Foto: Wigder Frota. Acervo pessoal. 395

Justificativa do sexto carro alegórico de 2014 da Estação Primeira de Mangueira, encontrada no Livro Abre-Alas daquele ano. Disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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Voltariam a aparecer, as caçarolas e as frigideiras, no último carro alegórico do desfile que Rosa Magalhães desenhou para a São Clemente, em 2016. Intitulado O Manifesto do Palhaço, o carro exibia um gigantesco boneco articulado com roupas em verde e amarelo, cara branca e nariz redondo vermelho (imagem 120). Nas mãos, duas tampas de panelas. O boneco sintetizava a ideia defendida pela autora no final da sinopse de Mais de mil palhaços no salão: “a garotada que saiu de cara pintada, fazendo barulho pelas ruas, seguindo o exemplo dos nossos palhaços. A eles, a pátria agradece.”396

Imagem 120: Última alegoria do cortejo de 2016 da São Clemente, O manifesto do palhaço. Batendo tampas de panelas, o imenso boneco articulado misturava as manifestações contra os governos de Fernando Collor e Dilma Rousseff, uma generalização. Foto: Wigder Frota. Acervo pessoal.

VII. 2. 4 – Onisuáquisólamento Há uma ambiguidade curiosa, no palhaço batedor de panelas. Ele é turvo, conflituoso: qual o rosto por debaixo da maquiagem? Não há qualquer dúvida no que tange às inclinações políticas do enredo de 2018 da Paraíso do Tuiuti, que pode ser lido

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MAGALHÃES, Rosa. Mais de mil palhaços no salão. Sinopse do enredo do carnaval de 2016 do Grêmio Recreativo Escola de Samba São Clemente, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA).

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à luz da esquerda progressista: não apenas Jack Vasconcelos já declarou publicamente a sua militância, o seu repúdio ao “presidente golpista” e o seu apoio às pautas de nomes como Marcelo Freixo, do PSOL, como a linguagem do desfile era bastante clara, quase didática (sem perder a carnavalização, o que é louvável). A Reforma Trabalhista, o Projeto de Lei do Senado nº 432/2013 (que propõe a revisão do conceito de trabalho escravo, um retumbante retrocesso) e as guinadas neoliberais propostas por Michel Temer foram execradas; os manifestantes que bateram panelas contra o segundo mandato de Dilma Rousseff (e que apoiaram a deposição da presidenta sob argumentos dos mais frágeis, processo que impulsionou uma onda discursiva de preconceitos e truculências), transformados em “marionetes abobalhados”, palhaços sem graça “cavalgando” patos (imagem 121).

Imagem 121: Brincantes vestindo a fantasia Manifestoches, no desfile de 2018 da Paraíso do Tuiuti, do carnavalesco Jack Vasconcelos. Trata-se de uma leitura que contrasta ideologicamente com aquela apresentada em 2016 por Rosa Magalhães. Foto: Wigder Frota. Acervo pessoal.

No desfile da São Clemente, porém, a batida das panelas ganhou uma conotação sinfônica (a autora chegou a declarar, em uma entrevista, que Villa Lobos aprovaria o 290


barulho dos panelaços397), que, no entanto, não chega a tocar o heroísmo – a “pátria agradece”, mas não há glorificação. Talvez porque o heroísmo, na obra de Rosa Magalhães, é algo situado no passado e colorido de romantismo. Anita e Giuseppe Garibaldi merecem honras e glórias; no Brasil de hoje, aos olhos da autora, isso não existe mais – a vaca continua no brejo. Na mesma entrevista em que falou das panelas, ela disse que o foco do enredo não era a cena política brasileira: “vai ter uma pitadinha, só. A realidade é muito enjoada, a gente foi para um outro lado de falar sobre o palhaço…” Voltava a defender o que afirmou na UERJ, em 2013: o carnaval não combina com imagens de sofrimento e falar das nossas mazelas é a ocupação dos jornalistas e dos cientistas sociais. Ela, carnavalesca, não se sentia confortável para mexer nessas vísceras tão antigas quanto malcheirosas – apenas cutucava, de leve, a fim de provocar o público. Pode-se dizer, e isso foi tencionado nos fóruns de discussão carnavalescos, que tais cutucões expressaram uma “crítica coxinha”, na terminologia quase maniqueísta que tomou conta das redes sociais brasileiras, em 2015 e 2016. A maquiagem do palhaço condensava ao menos duas épocas (os caras-pintadas de 1992 e os manifestantes de 2015; pode-se debater a presença - ou a ausência - dos manifestantes de 2013, posto que não há dados suficientes para uma afirmação categórica) e dois contextos políticos (ou dois blocos de motivações) completamente diferentes, havendo, sim, uma generalização – leitura epitelial ou ironia esfumaçada? Se Jack Vasconcelos elencou os problemas um por um e deu nome (e faisões) aos bois398, no desfile de 2018 da Paraíso do Tuiuti, Rosa Magalhães desfiou, no desfile de 2016 da São Clemente, uma crítica gelatinosa - ainda que não tão confusa quanto aquela que apresentaria no ano seguinte, 2017, quando, ao final do enredo Onisuáquimalipanse, inseriu a tal ala de presidiários com os números 171 397

Quando questionada, a artista declarou que não bateu panelas, eximindo-se de qualquer polêmica de ordem pessoal. Nas palavras dela: “Não bati panela, até porque moro tão retirada, nem ouço. Mas o panelaço é uma coisa engraçada, porque é musical. Se o (Heitor) Villa-Lobos (maestro brasileiro) ouvisse isso, ele colocava numa daquelas sinfonias dele. Poderia fazer uma sinfonia do panelaço. E foi no Brasil inteiro. Em cada lugar teve um ritmo diferente.” Disponível no seguinte sítio: http://sambarazzo.com.br/site/tag/desfiles-da-rosa-magalhaes. Acesso em 12/03/2018. 398 É digno de nota o fato de que no carnaval de Nice, conforme o vivenciado durante o período de mobilidade acadêmica, a crítica política é explícita e escrachada. O tema da folia de 2017 era Rei da Energia (Roi de l’énergie), sobrando ridicularizações de líderes mundiais como Donald Trump, apresentado, em um carro alegórico do corso iluminado, diante de um imenso secador de cabelos. Usinas nucleares defecando em vasos sanitários e dragões chineses escarrando no planeta Terra são apenas algumas das imagens “leves” que desfilaram na Place Masséna. Os líderes franceses tampouco foram poupados: em uma alegoria de grande inventividade, caricaturas de políticos se digladiavam em uma espécie de roda-gigante. François Hollande, Marine Le Pen, Nicolas Sarkozy, François Fillon e Emmanuel Macron, todos se esbofeteavam risonhos – exemplo do espirituoso bom humor francês.

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no peito (releitura de uma famosa fantasia de carnaval, em vestes do século XVII). Com a roupa em preto e branco (imagem 122), a carnavalesca ensaiava um paralelo entre a condenação de Fouquet e as prisões da operação Lava Jato, mas o acento político, como dito páginas atrás, não causou alarde. Se há algo em comum nos desfiles assinados por Rosa Magalhães, em 2016, e por Jack Vasconcelos, em 2018, além das citações aos panelaços de 2015, é a presença de Samile Cunha, famosa Drag do universo carnavalesco, na última alegoria de ambos os cortejos. No carro das caçarolas, a artista vestiu a fantasia Palhaçada; no carro dos manifestoches, a fantasia Quem é o pato? Um mesmo contexto sob dois olhares e dois caminhos ideológicos. Duas rotas em um mesmo mapa, aquele que, na defesa de Joãosinho Trinta para o antológico Ratos e Urubus, tanto pode expressar um coração quanto uma bunda, caso o olhar se mostre invertido399. O mapa do Brasil, a comissão de frente do Theatrum Rerum, no divã do carnaval.

Imagem 122: Desfilante da última ala do desfile de 2017 da São Clemente, com fantasia intitulada O Nobre 171. A carnavalesca não apenas se referia, de forma bem-humorada, à prisão de Fouquet, mas à sucessão de prisões levadas a cabo pela Operação Lava Jato, no cenário brasileiro. Foto: Wigder Frota. Acervo pessoal.

Na sinopse de Ratos e Urubus, o carnavalesco defendeu o seguinte: “Este enredo é um protesto. Protesto contra esta grande maldade que estão fazendo com nossa terra, com nossa gente, com nosso Brasil. Este país tem, na sua geografia, a forma de um grande coração. Invertido e desequilibrado, de cabeça para baixo, mostra os contornos de uma grande bunda. E uma bunda do tamanho do Brasil tem muita sujeira nos seus intestinos para ser expelida.” In: GOMES, Fábio; VILLARES, Stella. O Brasil é um luxo – Trinta carnavais de Joãosinho Trinta. Rio de Janeiro: CBCP – Centro Brasileiro de Produção Cultural: Axis Produções e Comunicação, 2008, p. 151. 399

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VII – Conclusão – Utopias antropofágicas ...Naquele Império, a Arte da Cartografia alcançou tal perfeição que o mapa de uma única Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa do Império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmesurados não foram satisfatórios e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente com ele. Menos Afeitas ao Estudo da Cartografia, as gerações seguintes entenderam que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos; em todo o País não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas. Jorge Luis Borges – do rigor na ciência (Suárez Miranda: Viajes de Varones prudentes, livro quarto, cap. XLV, Lérida, 1658.)

Rio de Janeiro, 12 de fevereiro de 2018. Na área de concentração da Marquês de Sapucaí, enquanto desfilava a primeira escola da segunda noite de desfiles do Grupo Especial, Unidos da Tijuca, eu caminhava em meio às alas e alegorias da Portela, no lado conhecido como Balança. Encontrei amigos, parei para falar com eles. Latões de Antártica. Fotografava, com o mesmo encanto que me fez aportar no Rio, em 2 de fevereiro de 2008, detalhes que me lembravam da pesquisa sobre Rosa Magalhães – ali eu estava enquanto folião, enquanto agente credenciado (um dos carnavalescos da Acadêmicos do Cubango, que se apresentara no sábado) e enquanto pesquisador, o olhar etnográfico. O enredo que muito em breve desfilaria na Passarela do Samba reunia os principais pontos abordados neste trabalho, o que, é lógico, me enchia de expectativas (isso, inclusive, já foi falado; prefiro, porém, os discos riscados, os chiados, evocando a bela sabedoria de Clara, a protagonista de Aquarius, e os princípios do Wabi-sabi). Mais uma vez, a carnavalesca desenvolvia uma narrativa de viagem. A rigor (ainda que sem o rigor na ciência, a provocação borgiana), duas viagens: a que trouxe famílias de judeus sefarditas à Pernambuco de Maurício de Nassau – famílias que se fixaram na Formosa Recife e fundaram a Sinagoga Kahal Zur Israel; e a que levou 23 judeus refugiados (como não pensar nos 24 marinheiros abandonados por Vespúcio?400) 400

Quem narra a história é o jornalista Paulo Carneiro, cuja obra é referenciada pela carnavalesca Rosa Magalhães. Ver: CARNEIRO, Paulo. Caminhos Cruzados – a vitoriosa saga dos judeus do Recife, da expulsão da Espanha à fundação de Nova York. Rio de Janeiro: Autografia, 2015.

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às terras geladas de Nova Amsterdã, depois da Insurreição Pernambucana (o enredo da Unidos de Vila Isabel de 1972, Onde o Brasil aprendeu a liberdade, cujo samba, de autoria de Martinho da Vila, riscou distâncias na voz de Beth Carvalho). Viagens feitas de navios, as heterotopias em si – daí a presença de um barco (imagem 123), na Comissão de Frente coreografada por Sérgio Lobato (o mesmo experiente bailarino que coreografou os Exus da Comissão de Frente da Cubango), e de um imponente navio pirata (imagens 124 e 125), na quarta alegoria da Portela, cujas luzes então se acendiam, iluminando os rostos maquiados das composições – uma tripulação de esqueletos, o que me fez lembrar do cemitério São João Batista, o segundo carro alegórico do desfile da São Clemente de 2015. Viagens que uniam o sertão e o agreste pernambucanos (xilogravuras, chitas, bordados e estampas associadas à arte em couro do cangaço, como os trabalhos de J. Borges e Espedito Seleiro, adornavam as fantasias (imagem 126); também havia menções a Glauber Rocha, como a presença do disco solar que emoldura Corisco, no cartaz de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de 1964, no costeiro de uma das primeiras alas (imagem 127); sem falar nos cactos, caranguejos, carcarás e animais da caatinga, com destaque para o tatu - o que me fez lembrar do segundo carro alegórico do desfile da Unidos de Vila Isabel de 2013) à neve de Nova Amsterdã (imagens 128, 129 e 130) – não apenas o olhar estrangeiro em contraste com os sabores nacionais como a presença do gelo (pinheiros brancos, bisões, casebres e moinhos de madeira falquejada). Índios, muitos: os primeiros habitantes da região então invadida pelos holandeses desfilaram com imensos cocares e moicanos (imagem 131); na mesma alegoria, viam-se as típicas “ocas” das nações ameríndias norte-americanas, feitas de peles, no formato cônico. Ao final, a clara mensagem de um ideal utópico: botes de refugiados eram recebidos pela Estátua da Liberdade (imagens 132 e 133), em cujo pedestal está gravado um trecho do poema The New Colossus, de Emma Lazarus, descendente dos judeus que para lá imigraram:

Not like the brazen giant of Greek fame, with conquering limbs astride from land to land; Here at our sea-washed, sunset gates shall stand a mighty woman with a torch, whose flame is the imprisoned lightning, and her name Mother of Exiles. From her beacon-hand glows world-wide welcome; her mild eyes command 294


the air-bridged harbor that twin cities frame. “Keep, ancient lands, your storied pomp!” cries she with silent lips. “Give me your tired, your poor, your huddled masses yearning to breathe free, the wretched refuse of your teeming shore. Send these, the homeless, tempest-tossed to me, I lift my lamp beside the golden door!”401

Imagem 123: Comissão de Frente da Portela, na concentração para o desfile de 2018. O tripé que acompanhava a apresentação dos bailarinos era justamente um barco, símbolo heterotópico. Foto do autor.

401

Disponível no seguinte sítio: https://www.poetryfoundation.org/poems/46550/the-new-colossus. Acesso em 10/03/2018. Tradução livre, sem preocupação com a métrica: Não como o famoso gigante grego, de bronze, / com pernas abertas e conquistadoras que abarcam a terra inteira. / Aqui, nos nossos portões ao pôr-do-sol banhados pelo mar, / ergue-se uma poderosa mulher com uma tocha, cuja chama / é o relâmpago aprisionado, e o seu nome / é Mãe dos Exilados. Do farol de sua mão / Brilha um boas-vindas universal; os seus olhos suaves comandam / O porto de uma ponte-aérea que enquadra as cidades-gêmeas / “Mantenham, terras antigas, a sua pompa histórica!”, ela chora / com lábios silenciosos. “Dê-me os seus fatigados, os seus pobres / as suas multidões estranguladas ávidas por respirar liberdade, / o refugo miserável da sua costa apinhada. / Mande-me estes, os sem-abrigo, os cuspidos pelas tempestades, / pois eu ergo o meu farol ao lado do portal dourado!”

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Imagem 124: Alegoria do navio pirata, no desfile de 2018 da Portela. O tema da pirataria aparece em diferentes narrativas de Rosa Magalhães e é trabalhado por Michel Foucault em Outros espaços. Foto do autor.

Imagem 125: Composições fantasiadas de piratas, na concentração da Portela, em 2018. Condensavam, em suas vestimentas esfarrapadas, o espírito aventureiro dos desbravadores dos mares. Foto do autor.

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Imagem 126: Detalhes das saias das baianas da Portela, ainda na área de concentração, no carnaval de 2018. A presença dos pássaros, reproduções de xilogravuras nordestinas, evocava o espírito da liberdade em meio aos galhos retorcidos do sertão. Foto do autor.

Imagem 127: Ala feminina da Portela, expressando o contraste entre o chão rachado das secas e os verdejantes canaviais onde judeus imigrantes trabalharam, no Brasil Holandês. Nas cabeças e nos costeiros, referências ao sol do cartaz de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, marco do Cinema Novo. Foto do autor.

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Imagem 128: Nova Amsterdã na Neve, o quinto carro alegórico do desfile de 2018 da Portela. Bisões e ocas indígenas sobre uma paisagem gelada: a recorrência do branco invernal, em Rosa Magalhães, expressa um contraste entre o estrangeiro e a tropicalidade. Foto do autor.

Imagem 129: Fantasias indígenas e europeizantes dividiam espaço, na alegoria gelada da Portela, em 2018. As construções de madeira falquejada (casebres e moinhos) falavam da fundação de Nova Amsterdã, colônia holandesa na América do Norte – uma narrativa fundacional clássica. Foto do autor.

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Imagem 130: Na parte traseira do mesmo carro alegórico portelense, pinheiros nevados guiavam o olhar dos espectadores a uma tradição de “alegorias geladas” concebidas por Rosa Magalhães ao longo da sua trajetória. Foto do autor.

Imagem 131: Desfilantes portelenses fantasiados de índios moicanos, na entrada da Marquês de Sapucaí, em 2018. As tribos nativas da região invadida por holandeses (e, depois, ingleses) foram transformadas em alas por meio da aquarela de Rosa Magalhães. Foto do autor.

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Imagem 132: A Estátua da Liberdade da sexta e última alegoria da Portela, no carnaval de 2018, é preparada para o desfile, na área de concentração. Foto do autor.

Imagem 133: Último carro alegórico do desfile de 2018 da Portela, expressando uma sobreposição de tempos e espaços. À frente, botes de refugiados tocavam nessa delicada questão contemporânea. No “corpo” da alegoria, prédios espelhados de Manhattan e letreiros luminosos da Broadway. Na parte traseira, os imigrantes que construíram a cidade, sobre vigas de metal. Foto: Cris Gomes e Luana Rayssa. Fonte: http://revistacarnaval.com.br/2018/02/17/veja-como-foi-o-desfile-da-portela-em-2018/. Acesso em 10/03/2018.

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Emma Lazarus, no soneto de 1883, exalta a “Mãe dos Exilados”, aquela que lança a esperança a todos os povos e acolhe os miseráveis e moribundos, as vítimas das tempestades. Os acordes utópicos são evidentes e expressam mais um diálogo literário proposto pela carnavalesca, que misturou, no último carro alegórico do desfile portelense, os painéis e letreiros luminosos da Broadway (inclusive o musical O Rei Leão, de Julie Taymor, era um dos espetáculos anunciados – referência da autora a uma das referências utilizadas por ela, na composição do desfile da Unidos de Vila Isabel de 2012, sobre a diáspora negra que trouxe milhões de angolanos escravizados ao Brasil, levando, na segunda metade do século XX, a Kizomba do bairro de Noel para os terreiros de Luanda) com a visão dos excluídos amontoados em botes salva-vidas, todos maquiados para parecerem sujos, usando roupas compostas por fragmentos de tecidos azuis. Um contraste, portanto, que bem expressa as brutais contradições da contemporaneidade, quando o mundo se vê diante da mais grave crise de refugiados desde o final da II Guerra e dos horrores dos campos de concentração, a “solução final” do totalitarismo nazista. Em um mesmo carro alegórico, o glamour das vedetes dos teatros e o brilho dos arranhacéus (incluindo o Empire State Building e a simbologia do King Kong, a alteridade e o exótico destruídos pela “civilização”) da Capital do Mundo eram obrigados a dialogar com a miséria dos desvalidos, aqueles que se veem à deriva, entregues aos mares revoltos do abandono apátrida. Na traseira do carro, uma interpretação viva para a famosa série de fotografias que registrou para a posteridade o trabalho dos operários anônimos que ergueram os edifícios de Manhattan e comiam os seus sanduíches sem redes nem capacetes. O que se via era uma viga, suspensa, pairando sobre uma cidade em permanente (re)construção (interessante é pensar na sequência final de Gangues de Nova York, o controverso longa-metragem de Martin Scorsese, de 2002, que mostra a erupção da metrópole espelhada por sobre cemitérios de imigrantes irlandeses). Ironicamente, os julgadores despontuaram a criação por problemas de acabamento – que realmente existiam, a despeito da complexidade discursiva. O enredo da Portela adquire colorido político mais intenso uma vez que foi proposto e materializado após o presidente norte-americano Donald Trump, republicano, ter proferido, durante a campanha que o levou à Casa Branca (foi eleito em 9 de novembro de 2016, quando derrotou a democrata Hillary Clinton) e ao longo do primeiro ano de mandato, uma série de declarações assumida e orgulhosamente xenófobas, defendendo o fechamento das fronteiras (inclusive a construção de um muro para separar os Estados 301


Unidos do México) e a adoção de medidas restritivas (ou mesmo proibitivas) com relação ao acesso de imigrantes de determinados países islâmicos, como Síria, Líbia, Irã, Sudão, Somália e Iêmen. O discurso levado para a Sapucaí dizia o oposto, pintando os Estados Unidos com as cores da tolerância e do acolhimento. Uma alegoria heterocrônica: à frente, os imigrantes que pedem abrigo nos botes de plástico do século XXI; atrás, os imigrantes que levantaram as barras de ferro, os tijolos alaranjados e as pilastras de concreto da skyline observada pelos olhos dos viajantes que hoje aportam na megalópole. No meio, a Broadway, buás e lantejoulas de viço carnavalesco. A transexual Rogéria Meneguel aos pés da estátua, Chama da liberdade, com asas de águia em amarelo-fogo. Eu via, ali, uma espécie de Anjo da História, o quadro de Paul Klee teorizado por Walter Benjamin e revisitado por Benedict Anderson, em Comunidades Imaginadas.402 Fragmentos, retalhos, farrapos, ruínas (de linhas tortas, os tragos marianos), estilhaços de uma cidade junto às telas de led – “depara-se com as ruínas de cidades abandonadas, sem as muralhas que não duram, sem os ossos dos mortos que rolam com o vento: teias de aranha de relações intricadas à procura de uma forma.”403 Não para aí. Os figurinos da penúltima ala que desfilou à frente da alegoria Nova York, Pedestal da Liberdade, intitulada Somos todos imigrantes, misturavam elementos de roupas típicas dos mais diferentes países, tudo colorido de azuis intensos, predominando o azul marinho e o azul royal (mesma cor utilizada para maquiar os rostos dos desfilantes – segundo o comentarista Milton Cunha, “pele de Portela”). Tais roupas foram inspiradas em pinturas de Marc Chagall, ele também um imigrante, o mesmo artista que ditou o colorido do carnaval que eu e Gabriel Haddad elaboramos para a Acadêmicos do Sossego, em 2016, sobre as imagens poéticas de Manoel de Barros - poeta que explicitamente menciona Chagall, no poema As Lições de R. Q., presente no Livro sobre Nada, de 1996:

Aprendi com Rômulo Quiroga (um pintor boliviano): A expressão reta não sonha. Não use o traço acostumado. A força de um artista vem das suas derrotas. 402

Ver ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 224. 403 CALVINO, Ítalo. As cidades e as trocas. In: As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 72.

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Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro. Arte não tem pensa: O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo. Isto seja: Deus deu a forma. Os artistas desformam. É preciso desformar o mundo: Tirar da natureza as naturalidades. Fazer cavalo verde, por exemplo. Fazer noiva camponesa voar – como em Chagall.404

Chagall, judeu nascido na atual Bielorrússia que precisou se exilar nos Estados Unidos durante o Terceiro Reich, me acompanhou durante o intercâmbio em Nice, cidade em que adquiri alguns livros sobre a obra dele – inclusive aquele em que são apresentadas as ilustrações para as fábulas de Jean de La Fontaine. Lá está localizado o Musée National Marc Chagall, edifício projetado pelo próprio artista, que concentra o conjunto de telas que traduzem episódios do Pentateuco, além de uma tábua zodiacal em mosaico. Na condição de imigrante que então eu vivenciava, encontrei na “vizinhança” de Chagall um afago permanente. Nas visitas ao museu, diante de Adão e Eva expulsos do Paraíso (o fundo azul-esverdeado, fluido; as aves, os peixes, as cabras; o anjo do Senhor e os expulsos em branco, os cabelos de Eva vermelhos, os de Adão azuis; e um corpo enigmático, cabeça de sol e pele de flores e arbustos, amarelado, a expressar a Árvore do Conhecimento – cujo fruto, maçã ou maracujá, foi mordido pelo primeiro homem, um eco de Camus e um enredo de Rosa Magalhães), pensava em John Milton e em Thomas More, pensava na condição de imigrante e nas narrativas diaspóricas que me levavam às lições do catecismo – que hoje eu nego, porque faço carnaval? Não para aí (2). Rosa Magalhães, a autora da ópera, estava em um daqueles botes, vestindo os retalhos azuis, o rosto maquiado sujo, as pernas para cima, junto a outros componentes também aos farrapos – entre eles, Samuel Abrantes, alter ego de Samile Cunha (ou viceversa). A autora voltava a tomar parte do cortejo enquanto composição de alegoria,

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BARROS, Manoel de. Poesia Completa. São Paulo: LeYa, 2013, p. 234.

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usando, sem dúvidas, a mais dolorosa (e a mais politizada) das roupas que já vestira. Não havia brilhos, não havia glamour. Quando a artista passou por mim, cantando o samba e acenando para as pessoas que se acotovelavam no “joelho” da entrada da Avenida, a imagem se fixou nos meus olhos feito algo relampejante e literalmente fragmentado. Penso nas linhas de Didi-Huberman: O “destroço” – o torso, o corpo despedaçado, o fragmento corporal – de um símbolo sob o fogo da “sublime violência do verdadeiro”: há nessa figura essencialmente “crítica” toda uma filosofia do traço, do vestígio. Lembremo-nos da “floresta de símbolos” que olhavam, de modo estranho embora familiar, o herói baudelairiano citado por Benjamin. Este último desenvolvimento nos leva a modificar ou a precisar a cena: imaginamos doravante essa floresta com todos os vestígios de sua história, suas árvores partidas, vestígios de tempestades, suas árvores mortas invadidas por outras vegetações que crescem ao redor, suas árvores calcinadas, vestígios de todos os raios e de todos os incêndios da história. Então, a imagem dialética torna-se imagem condensada – que nos põe diante dela como diante de uma dupla distância – de todas essas eclosões e de todas essas destruições. Não há portanto imagem dialética sem um trabalho crítico da memória, confrontada a tudo o que resta como ao indício de tudo o que foi perdido.405

A passagem da Portela e a passagem de Rosa Magalhães sobre um dos botes de refugiados da última alegoria do cortejo, aos meus olhos, promoveu um pequeno e silencioso incêndio nos tantos fragmentos que me fazem a memória. Aplaudi a passagem dela e reprocessei o conceito de imagem dialética teorizado por Didi-Huberman, conceito este que acompanha os meus escritos desde as primeiras matérias cursadas no Mestrado. As árvores partidas da floresta de pau-brasil. A Comissão de Frente da Portela se chamava Diáspora, palavra que possui o mesmo prefixo de dialética, dia, através de. Bailarinos (com roupas que tecidos amarrados) simulavam o mar intempestivo ao redor do barco que conduzia os judeus a Nova York (imagem 134). Ao final da coreografia, o barco se transformava em uma águia e um dos marinheiros abria a bandeira dos refugiados, laranja com uma faixa preta (imagem 135). Pensei, ao ver a cena (exibida em um dos telões da área de concentração da Sapucaí, a imagem filtrada e expandida ao globo), na fala proferida por Ali Hıdır Eligüzel e Yağız Alp Tangun, pesquisadores da Dokuz Eylül University, na Turquia, durante a mesa 14, nomeada Contemporary concerns, da 17ª Conferência da Sociedade de Estudos Utópicos da Europa, ocorrida em Lisboa, em julho de 2016 – quando a vitória

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DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 174.

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do caricato Donald Trump parecia algo impensável, ainda que os fantasmas da xenofobia se materializassem com mais ectoplasma em países como a Áustria, uma sinalização perigosa de que o mundo caminhava a passos largos para o recrudescimento dos nacionalismos e o fechamento das fronteiras.

Imagem 134: Apresentação da Comissão de Frente da Portela, no desfile de 2018. Enquanto 8 bailarinos executavam movimentos para representar o oceano intempestivo, os 7 componentes sobre o barco encenavam a viagem dos imigrantes judeus. Foto: Wigder Frota. Acervo pessoal.

Imagem 135: Componente da Comissão de Frente da Portela, no desfile de 2018, exibindo para o público e o júri a bandeira dos refugiados. Foto: Alexandre Durão – G1. Fonte: https://g1.globo.com/rj/rio-dejaneiro/carnaval/2018/noticia/desfile-da-portela-veja-fotos.ghtml.

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Era o dia 7 de julho, mais precisamente, manhã de muito calor, céu sem nuvens, azul intenso, o sol inteiro nos pêssegos que se dependuravam orgulhosos, na entrada da Universidade Nova (cuja arquitetura lembra um livro aberto). Da mesma mesa participava Manuela Salau Brasil, socióloga da Universidade Estadual de Ponta Grossa, cujo trabalho versava sobre as “vozes da utopia” nos 15 anos de Fórum Social Mundial. Os mapas se desenham rápidos, na cabeça de um marinheiro: lembrei que mais do que da cidade de Ponta Grossa, nos Campos Gerais paranaenses (que me levavam ao Campo Geral de Miguilim), eu gostava das viagens para Ponta Grossa, e das viagens de ônibus, porque necessariamente parávamos em Fernandes Pinheiro, a terra do meu Nonno violinista que dá nome à rua onde cresci, Leonardo Bora, de uma ancestralidade judia perdida nas fronteiras de Veneza. Fernandes Pinheiro, a cidade que possui a maior estátua de São Sebastião do mundo, o santo de que ele era devoto. Lembrei, também, que eu havia participado da edição de 2009 do Fórum Social Mundial, realizada em Belém, a cidade que fez Mário de Andrade tombar apaixonado, pleno de desejos, saboreando sorvetes. A cidade onde Jesus nasceu, no presépio do Manifesto Antropófago. Traçava as minhas rotas mentais quando fui surpreendido pela fala de Ali e Yağız: pedirem silêncio ao público presente no Auditório 2 e dedicaram a apresentação do trabalho ao menino Alan Kurdi, de três anos, fotografado morto nas areias de uma das praias de Bodrum, na Turquia, em 2 de setembro de 2015. A foto do menino sírio, imigrante não-refugiado, vítima de um naufrágio na “costa esmeralda” da Turquia, a foto tantas vezes exposta, debatida e problematizada nos telejornais e nas redes sociais adquiria, naquele momento, uma voz. Duas vozes: as vozes dos rapazes sírios, ambos refugiados na Turquia e albergados pela universidade Dokuz Eylül. Vozes graves, que não titubeavam ante a dificuldade da leitura em inglês, a língua oficial do evento. Vozes que leram um paper intitulado An Island of Global Refugees in Utopia’s 500th Anniversary,406 enfocando a

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O resumo do trabalho diz o seguinte: Utopias can represent widening borders to the benefit of humankind. Illimitable methodology means will power and responsibility in structuring the way the world wanted to live. All utopian books have a special place in utopian literature and the evolution of its age; this enlargened world is not only phyisical but also includes scientific, moral, cultural and technical disciplines. European governments have faced a growing global refugee problem in recent years, 500 years since the publication of Utopia. This global refugee crisis attacks their endogenous dynamic structures, whilst as the crisis deepens, so does the severity of the situation in the Syrian civil war. The E.U and Turkey concluded recently a treaty about global refugees and established a residence camp in Turkey yet refugees still are standing at the border of E.U. This term, “borders”, does not point any more to utopian ideals, but instead are reminiscente of dystopia and the collapse of frustrations. In this presentation, we will study the utopian and dystopian phenomenon of borders concerning refugee camps and self-organized global refugee sites in Turkey. In this way, Turkey is an island on which they remain for just ashort period before attempting to

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experiência vivenciada nos campos de refugiados da Turquia. Ao final da leitura, um casal de pesquisadores de Oxford tomou a palavra e pediu desculpas, em nome do “mundo ocidental”. “Só o que podemos dizer é que precisamos pedir perdão”, proferiu a mulher. Ainda ouço. Miserere-re nobis; ora, ora-pro-nobis: o enredo apresentado por Rosa Magalhães, no carnaval de 2018, reprocessava o tema da Utopia explorado na narrativa fundacional de 2004, Breazail, mirando as lentes para os gritos do hoje – botes e campos de refugiados, tempestades menos alegóricas, ilhas com menos fantasia e menos encantamentos, fronteiras militarizadas, novas ameaças de guerra e violência galopante. As vedetes, em meio aos telões, exalavam uma certa melancolia – penso no argumento de Cabaret, de Bob Fosse, porque não gosto de pensar em O Ovo da Serpente, de Ingmar Bergman, um dos filmes que mais me aterrorizam. Os principais eixos temáticos extraídos das raízes de Breazail se faziam notar na passagem da Portela. E impossível é não pensar, ao se analisar o arco temático que nos leva do Brasil de Américo Vespúcio aos Estados Unidos dos judeus pernambucanos que subiram o Atlântico a bordo do navio Saint Catherine, na reflexão apresentada por Caetano Veloso na introdução de Verdade Tropical, um dos textos-base para a feitura de A Antropofagia de Rosa Magalhães. Escreveu o autor: Os Estados Unidos são um país sem nome – América é o nome do continente onde, entre outros, os estados de colonização inglesa se uniram, e a mera designação da união desses estados não constitui uma nomeação -, o Brasil é um nome sem país. Os colonizadores ingleses deixaram a impressão de ter roubado o nome geral do continente para o país que fundaram. Os portugueses não parecem ter chegado a fundar um país propriamente, mas deram um jeito de sugerir que não aportaram a uma parte da América e sim a uma totalidade absolutamente outra a que chamaram de Brasil. O paralelo com os Estados Unidos é inevitável. Se todos os países do mundo têm, hoje, de se medir com a “América”, de se posicionar em face do “Império Americano”, e se os outros países das Américas o têm que fazer de modo ainda mais direto – cotejando suas respectivas histórias com a do seu irmão mais forte e afortunado -, o caso do Brasil apresenta a agravante de ser um espelhamento mais evidente e um alheamento mais radical. O Brasil é o outro gigante da América, o outro melting pot de raças e culturas, o outro paraíso prometido a imigrantes europeus e asiáticos, o Outro. O duplo, a sombra, o negativo da grande aventura do Novo Mundo. O epíteto de “gigante adormecido”, aplicado aos Estados Unidos pelo almirante Yamamoto, será tomado por qualquer brasileiro como referente ao Brasil, e confundido com o já considerado agourento “deitado eternamente em berço esplêndido” da letra do Hino Nacional.407

get to the E.U. Disponível no seguinte sítio: http://uss2016.fcsh.unl.pt/pdf/Book_of_Abstracts.pdf. Acesso em 10/03/2018. 407 VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008, p. 13.

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O famoso cantor e compositor brasileiro, um dos aríetes da Tropicália, bem sintetiza as tensões simbólicas existentes entre o Brasil e os Estados Unidos, relação de neocolonialismo que passa pelos mais distintos símbolos – do beijo que Aurora Miranda dá no Pato Donald, em Você já foi à Bahia?, ao mito da América nevada, em um globo de cristal cheio d´água, souvenir, enquanto terra de oportunidades (o que virou telenovela, sob a pena de Glória Perez, tendo Soy loco por ti América, de Caetano Veloso, enquanto tema de abertura, na voz de Ivete Sangalo - que então regravava os sucessos de Carmen Miranda). Rosa Magalhães, que posou para fotos empunhando um Emmy em plena Times Square, se vê caminhando nessa zona movediça. É uma narradora, portanto, profundamente conectada às discussões identitárias do seu tempo – algo que ela defendeu na justificativa do enredo de 1998, o distópico Quase no ano 2000, ao explicar que, mais do que as obras literárias de Jules Verne, os roteiros de Fritz Lang e os quadrinhos de Flash Gordon, os textos-base da pesquisa foram notícias e reportagens coletadas em revistas, jornais e sites da Internet. Não curiosamente, volta-se, na conclusão dessa tese, ao cerne das discussões travadas na conclusão da dissertação, quando as provocações de Sergio Paulo Rouanet, em A coruja e o Sambódromo408, ganharam os holofotes. Por mais repetitivo que soe, é necessário sublinhar a ideia de que a obra de Rosa Magalhães (e comprova o exposto a decupagem do conteúdo das mais de trinta narrativas de enredo que aparecem, ainda que fragmentadas, tatuadas no corpo da tese, pele de pirata) forma um sistema simbólico inclusivo, algo análogo ao que se pode observar na produção de escritores plenamente conscientes do seu ofício. Breazail expressa um mergulho vertical em busca da seiva identitária que dá o nome ao Brasil, narrativa que empreende um intercâmbio literário de notável envergadura. A ideia de viagem, conforme o debatido, está intrinsicamente unida ao conceito de utopia, conferindo ao conjunto da obra da autora (quantas são as viagens por ela transformadas em enredos?) um caráter utópico ainda mais maleável. O diálogo com Michel Foucault, por meio de reflexões acerca da poética de Mário de Andrade, pode parecer desnecessário (ponto enquadrado na qualificação do trabalho), mas penso que as teorizações do filósofo, no que tange ao conceito de heterotopia, disparam fagulhas das mais potentes, importantes para uma compreensão menos impressionista e mais teórica 408

Ver ROUANET, Sergio Paulo. A coruja e o Sambódromo. In: ROUANET, Sergio Paulo. Obra citada, p. 46-95.

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(no sentido acadêmico do termo, sem ser academicista) de algo tão vivo e poroso quanto um desfile de escola de samba. Destaco sete pontos a serem elencados, antes do final do périplo, a fim de que sejam melhor delineados os mapas narrativos esboçados na pesquisa: 1 – Rosa Magalhães, carnavalesca de formação acadêmica sólida, pode ser considerada uma artista anfíbia, na terminologia de Canclini, que se vale dos diálogos literários e interartísticos enquanto ferramentas importantes para a construção das suas narrativas de enredo. Nessas narrativas (um todo complexo, o que envolve o samba de enredo, a visualidade do espetáculo, as justificativas e as traduções midiáticas, tocando a noção de obra de arte total), são recorrentes os exercícios prospectivos em busca de “mitos de origem” – daí a ideia de que ela desenvolveu, ao longo da carreira, uma série de narrativas fundacionais. O enredo de 2004, cerne da pesquisa, expressa o mergulho mais ramificado e profundo em busca dos sentidos da brasilidade. Levanta hipóteses contrastantes para a origem do nome Brasil (a “metáfora vegetal” e a mineralogia) e menciona duas ilhas míticas: Hy Bressail ou O’Brazil, na costa irlandesa; e Utopia, criação de Thomas More, ilustre leitor de Américo Vespúcio. 2 – O diálogo com Thomas More (cuja materialização cênica encontrou em Antoni Gaudí o colorido e as formas ideais) não é um ponto fora da curva, mas a expressão de uma continuidade. Se em 2004 observamos uma leitura da obra basilar dos estudos utópicos, fato é que ideias associáveis ao utopismo (conforme as teorizações de nomes como Gregory Claeys, Lyman Tower Sargent e Umberto Eco) aparecem, sob os mais diferentes enfoques, na obra da artista como um todo. Comprovam isso o apreço pelas narrativas de viagem (a presença de viagens reais, efetivas, e também de deslocamentos físicos e temporais insinuados), a recorrência das imagens de navios e elementos associados às cartas náuticas e às rotas de navegação, bem como o agridoce sabor distópico (sem falar na presença dos conflitos bélicos, com roupagens realistas ou bordadas de folclore) observável em algumas narrativas. 3 – Destrinchando a ideia-base de utopia, a partir da leitura que Alberto Pucheu propõe do poema Carnaval Carioca, de Mário de Andrade, abrem-se os conceitos de heterotopia e heterocronia, teorizados por Michel Foucault na conferência Outros espaços. As proposições foucaultianas podem ser aplicadas ao contexto dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, encontrando na obra de Rosa Magalhães um terreno dos mais férteis. Heterotópicas e heterocrônicas, as narrativas da carnavalesca são, em 309


essência, narrativas de deslocamento, diaspóricas, em trânsito, propondo, ano após ano, entrechoques de olhares, culturas, paisagens. O “mapa do mundo”409 de Rosa Magalhães, porém, não segue os desenhos dos planisférios convencionais. Fragmentado e inapreensível, é um mapa extremamente plástico, que de(s)forma, com intencionalidade, países e continentes, rompendo as fronteiras físicas e propondo intercâmbios inusitados. Se o número de aparições de um determinado lugar fosse tomado como escala para definir o tamanho desse lugar no mapa, a França seria maior que o continente africano inteiro. 4 – É a carnavalesca uma autora que leva a bagagem das viagens realizadas ao redor do globo para as suas pranchetas de criação artística. Daí o fato de que em praticamente todos os enredos apresentados na Passarela do Samba aparecem, direta ou indiretamente, outros países. Os “olhares estrangeiros”, porém, são apresentados em relação a um “olhar brasileiro” – mesmo em uma narrativa como Onisuáquimalipanse, situada na França, uma visão de Brasil é semeada, ao final, a partir da insinuação de que os desvios de verba de Fouquet nada (ou tudo) podem dizer da contemporaneidade tupiniquim. Uma estratégia visual utilizada para demarcar a oposição entre o estrangeiro e o nacional é a construção, sempre que possível, de imagens geladas: a presença da neve em oposição à verdejante natureza dos Trópicos; o uso das casacas de pele em oposição à nudez dos selvagens. A “oposição”, entretanto, não é absolutista. Trata-se de um jogo de tabuleiro (a lógica presente na fantasia de teatro de bonecos analisada por Felipe Ferreira), havendo as mais imbricadas interpenetrações. O resultado visual, via de regra, é híbrido (vide as fantasias da comissão de frente de 1996, violinistas de Viena com araras brasileiras), o que atesta a incomensurabilidade dos trabalhos, nos termos de Stuart Hall.410 5 - No que tange ao “olhar brasileiro”, o carnaval aparece enquanto triunfo e glória. Não apenas o ideal monárquico em torno do Rei Momo (algo problematizado por Lilia Moritz Schwarcz, em As Barbas do Imperador) merece o apreço da artista, mas as folias suburbanas e os demais festejos populares. A crítica social se faz presente e revela uma faceta chargista: Rosa Magalhães, leitora do hoje, não se furta a escrever, por meio

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Expressão tomada de empréstimo das teorizações de Marta Morais da Costa. Ver: COSTA, Marta Morais. Ver: COSTA, Marta Morais da. Mapa do mundo: crônicas sobre leitura. Belo Horizonte: Leitura, 2006. 410 Explica o autor, em Da Diáspora: “Para outros ainda, a hibridização está muito avançada – mas quase nunca num sentido assimilacionista. Esse é um quadro radicalmente deslocado e mais complexo da cultura e da comunidade do que aqueles escritos na literatura sociológica ou antropológica convencional. O ‘hibridismo’ marca o lugar dessa incomensurabilidade.” In: HALL, Stuart. Obra citada, p. 72.

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da sua arte, breves crônicas políticas do Brasil atual, ainda que prefira não engrossar a sopa e não dar nome aos bois. O índio é um personagem definitivo e o imaginário colonial (o que certamente se deve ao fato de que ela escreveu 18 narrativas para a Imperatriz Leopoldinense, escola que possui marcas identitárias muito demarcadas, vide as reflexões de Vinícius Natal, Alexandre Medeiros e Felipe Ferreira) é um ponto-chave para a compreensão do seu universo temático tão afeito à harmonia da mestiçagem e a alguns dos pilares do Modernismo de 22. 6 - Ainda que não seja o desejável referendar esta ou aquela classificação, é fato que a pesquisa realizada contribui para o entendimento de que Rosa Magalhães pode ser considerada uma artista acumuladora ou mesmo barroca, que se utiliza de uma bricolagem muito própria, capaz de unir em um único carro alegórico três eixos de referências estéticas completamente distintos (um musical da Broadway, a obra de um artista anglo-nigeriano contemporâneo e a imagética de Rubem Valentim, no caso da última alegoria da Unidos de Vila Isabel, em 2012; ou Marc Chagall, dezenas de musicais da Broadway e fotografias de duas épocas (os botes de refugiados, início do século XXI, e os imigrantes sobre as vigas de metal, início do século XX), no caso da última alegoria da Portela, em 2018). As proposições de Felipe Ferreira (que fala em “pós-modernidade barroca”), Mário de Carvalho, Gustavo Krelling e Dulce Osinski, apresentadas na introdução do trabalho, ecoam com mais amplitude. 7 – É de uma felicidade mística o fato de eu ter conseguido prorrogar o prazo para a finalização da pesquisa e, em decorrência disso, poder analisar, ainda que en passant, o desfile que a Portela realizou em 2018. O enredo em questão, De Repente de Lá Pra Cá e Dirrepente de Cá Pra Lá..., pode ser entendido como o mais engajado passo da carnavalesca de mãos dadas com o utopismo, um tema que se desdobra, cambiante, antes e depois de Breazail. Ao encerrar a sua narrativa com a visão dos refugiados, e ao se colocar entre eles, Rosa Magalhães ritualizava e reatualizava a ideia de utopia enquanto não-lugar. Não mais uma ilha florida onde crianças brincam com jóias e pérolas cintilam nas encostas, mas um bote inflável em meio às tempestades. Ilhas e tempestades, os raios iniciais de Shakespeare. Das notas da tragédia humana, que insistem em continuar. Gilles Deleuze afirmou que Michel Foucault, na seara da filosofia, “seria um novo cartógrafo, que tentou dar conta dos diagramas de forças e saberes que constituíram e

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constituem historicamente as sociedades ocidentais.”411 Rosa Magalhães, no campo (minado) do carnaval também pode ser entendida enquanto cartógrafa, narradora que percorre tantos territórios quanto possível em busca dos minérios narrativos que se escondem sob o solo. Narradora e narrativas não livres das contradições inerentes à própria noção de multiculturalismo, a preciosa lição de Homi Bhabha, para quem tal termo é “semelhante a um cabide em que tudo é pendurado, do discurso das minorias à crítica pós-colonial, dos estudos sobre gays e lésbicas à ficção chicana – tornou-se o signo mais sobrecarregado para descrever as contingências sociais dispersas que caracterizam a Kulturkritik contemporânea.”412 O perigo do esvaziamento terminológico é perene, assim como a pulsão antropofágica de justapor em um mesmo conjunto as mais desconexas influências, moldando um todo organicamente degustável. Em Oswald de Andrade, tão presente em A Antropofagia de Rosa Magalhães, pode estar uma chave para a compreensão disso. Benedito Nunes é quem anota:

Princípio e fim, a utopia, no pensamento oswaldiano, forma o espaço transistórico onde se projetam “todas as revoltas eficazes na direção do homem” – também espaço ontológico, entre o que somos e o que seremos, entre, diria Oswald, a “economia do Haver” e a “economia do Ser”. Transformando-se, nesse espaço, de impulso biopsíquico em impulso espiritual, o instinto antropofágico tende à sua própria negação como vontade de poder, na medida em que ele próprio conduz à utopia, e na medida em que utopia significa a absorção, na liberdade e na igualdade, da violência geradora dos antagonismos sociais. Não busque porém o leitor no pensamento de Oswald de Andrade a latitude do discurso reflexivo-crítico, a delimitação cuidadosa de problemas e pressupostos, nem “essas longas cadeias de raciocínio” que caracterizam a filosofia. Busque, isto sim, as cadeias das imagens que ligam a intuição poética densa à conceituação filosófica esquematizada, aquém de qualquer sistema e um pouco além da pura criação artística. E, sem confundir seriedade com sisudez, aceite que o tempero da sátira tenha entrado em altas doses nesse banquete antropofágico de ideias, presidido pelo humor de Serafim Ponte Grande, que fundiu o sarcasmo europeu de Ubu Roi com a malícia brasileira de Macunaíma.413

Princípio e fim, misturando no caldeirão das bruxas de Breazail as conclusões inconclusivas de A Antropofagia de Rosa Magalhães às conclusões tão ou mais

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ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de; SOUZA FILHO, Alípio; VEIGA-NETO, Alfredo. Uma cartografia das margens. Apresentação. In: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de; SOUZA FILHO, Alípio; VEIGA-NETO, Alfredo (Orgs.). Cartografias de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 09. 412 BHABHA, Homi K. O Bazar Global e o Clube dos Cavalheiros Ingleses. Textos Seletos. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2011, p. 84. 413 NUNES, Benedito. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, Oswald de. A Utopia Antropofágica. Obras completas. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1990, p. 38/39.

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inconclusivas que aqui se delineiam, tem-se como resultado um caldo criativo de sabor inclassificável, a mistura carnavalesca da antropofagia oswaldiana com o utopismo oficialmente inaugurado com More – sem esquecer, o segredo da poção, do suor derramado por Mário, o artista que se despiu do academicismo para se entregar ao gozo do carnaval carioca. Num certo sentido, Goitacazes e Breazail são enredos irmãos, aparecendo a última narrativa desenvolvida para a Portela enquanto herdeira dessa mesma linha (torta, de fato, retorcida feito os galhos secos que formavam os costeiros das baianas de Madureira). Penso n’O Conto da Ilha Desconhecida, de José Saramago, transformado em filme por Matilde Real – um experimento comovente que foi exibido durante a abertura da Conferência de estudos utópicos de 2016: crianças imigrantes da Cova da Moura, bairro de Amadora, município da região metropolitana de Lisboa, encenavam as palavras do escritor e analisavam os mapas existentes nas paredes (o Brasil no horizonte, uma terra de maravilhas). O texto de Saramago, não raro utilizado para se pensar a urgência da materialização dos direitos humanos fundamentais414, defende a ideia (posta na boca do filósofo do rei) de que toda pessoa é uma ilha. Ao final, expande a leitura e sugere poeticamente que uma embarcação (o bote de refugiados na alegoria da Portela) é uma ilha que navega pelos mares: a “ilha desconhecida” buscada pelo pobre marinheiro, considerado louco, que, depois de bater à porta das petições (e impossível é não pensar na porta da lei de Franz Kafka) e pedir ao rei uma embarcação para buscar uma ilha ainda não cartografada, decide se aventurar no mar junto à “mulher da limpeza” (uma das faxineiras do castelo), é a própria caravela por ele recebida do capitão do porto. O final do conto é um primor:

Desde que a viagem à ilha desconhecida começou que não se vê o homem do leme comer, deve ser porque está a sonhar, apenas a sonhar, e se no sonho lhe apetecesse um pedaço de pão ou uma maçã, seria um puro invento, nada mais. As raízes das árvores já estão penetrando no cavername, não tarda que estas velas içadas deixem de ser precisas, bastará que o vento sopre nas copas e vá encaminhando a caravela ao seu destino. É uma floresta que navega e se balanceia sobre as ondas, uma floresta onde, sem saber-se como, começaram a cantar pássaros, deviam estar escondidos por aí e de repente decidiram sair à luz, talvez porque a seara já esteja madura e é preciso ceifá-la. Então o É o que propõe Melina Fachin ao afirmar que “contemporaneamente, o descompasso existente entre a teoria dos direitos humanos – positivada em declarações internacionais e reafirmada na maioria das cartas constitucionais hodiernas – e sua prática, ou melhor, a ausência dela – escancarada nas duras condições de vida dos brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza – revela a insuficiência da dogmática positivista que se mostra incapaz de responder às demandas postas ao direito.” Ver: FACHIN, Melina Girardi. Diálogos entre o direito e a literatura: arquipélagos a descobrir uma proposta de aproximação entre a prática e a teoria dos direitos humanos fundamentais a partir d’O Conto da Ilha Desconhecida. In: Revista Jurídica Themis – Universidade Federal do Paraná, n. 17, 2005/2006, p. 9. 414

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homem trancou a roda do leme e desceu ao campo com a foice na mão, e foi quando tinha cortado as primeiras espigas que viu uma sombra ao lado da sua sombra. Acordou abraçado à mulher da limpeza, e ela a ele, confundidos os corpos, confundidos os beliches, que não se sabe se este é o de bombordo ou o de estibordo. Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher foram pintar na proa do barco, de um lado e do outro, em letras brancas, o nome que ainda faltava dar à caravela. Pela hora do meiodia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma.415

Diante das letras de Saramago, compreende-se que, mais do que encerrar uma proposição, os diálogos estabelecidos no decorrer da pesquisa procuraram justamente “buscar a si mesmo” e a pontilhar uma leitura pessoal cujas conexões podem ou não encontrar respaldo nos discursos da carnavalesca. É o risco observado por Benedito Nunes ao advertir o leitor de que buscar os rigores da ciência ou as engrenagens da filosofia nas proposições de Oswald de Andrade é algo que pode resultar, quando muito, em uma viagem numa canoa furada – a ironia de que fala o rei ao marinheiro de primeira viagem: “Mas tu, se bem entendi, vais à procura de uma (ilha) onde nunca ninguém tenha desembarcado, Sabê-lo-ei quando lá chegar, Se chegares, Sim, às vezes naufraga-se pelo caminho (...).”416 Conforme anteriormente observado, mesmo o bacalhau, mote do enredo gresilense de 2007, pode ser entendido enquanto um símbolo da busca pela utopia. O que dizer, então, da criatura Jascônio, a baleia escamada que transportou São Brandão às ilhas afortunadas e trouxe um D. João solitário às águas da Guanabara? Não sei se Rosa Magalhães sabia disso, mas acredito que sim. Mesmo que intuitivamente, construía a artista uma sucessão de narrativas utópicas e antropofágicas, autofágicas como devem ser – e não se deve perder de vista o entendimento de Olavo Bilac: “o carnavalesco legítimo não tem cansaço nem aposentadoria: envelhece carnavalesco, e morre carnavalesco; morre no seu posto, extenuado pelo carnaval, entisicado pelo carnaval, devorado pelo carnaval.”417 O carnaval enquanto eterna devoração, uma grande comilança418. Para além de qualquer oratório, a ideia a ser debatida, desenhada nas areias da praia, é a de que a obra de Rosa Magalhães oferece ao público-leitor um sem-fim de rotas

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SARAMAGO, José. O Conto da Ilha Desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 61/62. SARAMAGO, José. Obra citada, p. 27. 417 In: GÓES, Fred. O carnaval na literatura brasileira. Disponível no seguinte sítio: http://www.academia.org.br/abl/media/RB%20-%2048%20-%20PROSA.pdf. Acesso em 04/04/2018. 418 A grande comilança era o nome do carro abre-alas da Imperatriz Leopoldinense no desfile de 2002. A alegoria, conforme o narrado em A Antropofagia de Rosa Magalhães, foi confeccionada com os restos de um incêndio que destruiu parcialmente o barracão da escola, em setembro de 2001 – exercício criativo autofágico, uma vez que a artista utilizou os destroços de antigos carnavais por ela assinados (inclusive anjos barrocos) para expressar os intestinos (na justificativa, fala em “suco gástrico”) das criaturas préhistóricas que traduziam visualmente a ancestralidade do instinto antropofágico. 416

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passíveis de serem traçadas, navegadas e alteradas. É a carnavalesca uma intérprete de Brasil disposta a espremer as folhas (páginas felizes e infelizes) da nossa história, extraindo delas o sumo, matéria-prima de folias e avessos. A minha circum-navegação seguiu os caprichos de um olhar inquieto, dividido entre os corredores universitários e as quadras das escolas de samba, as pilhas de livros sobre a escrivaninha e as bancadas dos barracões, a fama de ser um professor dos mais simpáticos e a (má) fama de ser um carnavalesco dos mais austeros. Um olhar que seguiu as suas constelações inventadas e tropeçou nas suas mandingas, “descobrindo” as suas ilhas desconhecidas e assumindo-se passional: sem paixão, não se faz carnaval. O afeto, em tempos sombrios, é algo revolucionário. No lombo do Jascônio, entre as corcovas dos camelos, percorri os textos escritos e os desfiles de Rosa Magalhães com um diário de bordo nas mãos, as tardes dedicadas ao samba e as madrugadas entregues à tese. De um lado, Rosa Magalhães; do outro, o Bispo do Rosário, no caso específico do segundo semestre de 2017. Floradas em um mesmo jardim, no ser-Tao de Guimarães Rosa. Bordava-se o mundo. Não poderia deixar de tatuar no corpo-marinheiro da tese, o fechamento, o relato que redigi após a apuração das notas do carnaval de 2018, na quarta-feira de cinzas, 14 de fevereiro. A Portela terminou em 4º lugar, no Grupo Especial; a Cubango, 5º lugar do Grupo de Acesso. Pouco me importava a definição do júri: a escola que defendi já tinha no bolso os dois prêmios Estandarte de Ouro oferecidos à Série A, melhor Escola e melhor Samba. Eis o texto que transbordei, um tantinho aprimorado: Abertos os envelopes, lavadas as “cinzas redentoras” e apagados os holofotes da Passarela do Samba, eis o resumo da ópera: Quando recebemos o aval da diretoria do GRES Acadêmicos do Cubango para o desenvolvimento de um enredo não-patrocinado, eu e Gabriel Haddad não pensamos duas vezes. O desejo de falar de Bispo era antigo, firmado o ponto nas galerias da Bienal de São Paulo de 2012. Aguardava, palpitante, na caixa mais preciosa – aquela que pouco se abre e que se guarda no alto do armário. Tirar as ideias da cuca não foi (nunca é) tarefa fácil. É coisa de mitologia. Comecei a desenhar os figurinos em junho, em Nice, quando aprontava as malas para o retorno ao Brasil, depois de 5 meses de Doutorado-sanduíche e de um carnaval exilado, no frio, entre batalhas de flores de perfume insosso e passeios de mascarados com pouca alegria. O samborokô faltava – doía. Os rabiscos custavam a sair e eu não entendia o motivo. 315


Era verão, nas terras de lá. Veio o medo, veio a febre. Um tal de sentir na pele que algo poderia irromper (o mesmo tremor que senti, nada curiosamente, ao me mudar para o Rio, em março de 2012). Aqui, novamente, ao longo do mês de julho, não havia noite nem dia: havia as mãos sujas de tinta e as costas curvadas na mesa. A arte sobre a arte: enfim, nascia. Depois, a feitura dos protótipos – e que aventura das grandes foi essa! Desconstruir ideias para reconstruir o mundo: rasgos, farrapos e tramas. Dramas, muitos. Brigas – não entendo criação sem conflito. O samba foi escolhido, as roupas ganharam os corpos. Para além das paredes do estúdio, num ato depois imitado (mesmo que sem fundamento), fotografamos as roupas na Colônia Juliano Moreira, integrando-as ao espaço em que o homenageado viveu, “aprisionado por seus irmãos”. O contraste entre a fantasia carnavalesca e a crueza de um manicômio. O concreto berrava o passado. Devido às questões financeiras, começamos tardiamente os trabalhos de barracão. Seguindo a máxima de Bispo, a regra era transformar: ressignificar elementos, garimpar materiais já usados, buscar nos montes de “lixo” aquilo de que são feitos os sonhos. Amizades se fortaleceram, no decorrer desse processo: jamais nos sentimos sozinhos, às margens da Avenida Brasil. Foram muitas as madrugadas, algumas com cerveja e petisco (ninguém, afinal, é de ferro); outras com tiroteios – e nessas horas eu chamava São Lázaro, o padroeiro da escola, que tudo observava da sua capelinha branca (felizmente, nenhum incidente penetrou o barracão). Para tudo culminar no manto, o elemento-síntese da última alegoria: mosaico, memória afetiva, construção coletiva que reuniu dezenas de mãos e infindáveis retalhos. Nomes, centenas. De pessoas queridas, dos familiares, dos funcionários do barracão, dos dirigentes, dos baluartes, dos fundadores, de quem nos visitava, de quem admiramos, dos carnavalescos formadores (Rosa Magalhães, duas vezes), de artistas fundamentais, de escritores que nos inspiram, de sambistas que nos embalam. Mas nunca chegamos a ver, antes da concentração, o manto a girar de pé. Eis que chegou o dia, sábado, Presidente Vargas. A comprida coxia aberta, o cheiro do mangue. Para alguns, tudo tranquilo. Para mim, uma tempestade. Porque brotam e rebrotam detalhes, explodem inseguranças, o tempo avança mais rápido em dias de carnaval. Ouvíamos dos passantes que as alegorias estavam bonitas, “muito dignas”. Mas... ensalsichadas entre os carros (monumentais!) de Viradouro e Padre Miguel, as coirmãs mais poderosas, ambas em vermelho e branco, não havia dignidade o bastante: éramos a prima pobre, a saia de chita no baile da corte. A noite ameaçava chuva, os primeiros fogos. Entramos na área de concentração e o manto permanecia deitado. 316


Ao correr de uma ponta à outra, a escola que se montava (e jamais vou entender o mistério, o enigma desse momento: os grupos que surgem vestidos, numa rápida fração de tempo, e tecem o tapete humano), percebi a ausência dos maiores estandartes da segunda alegoria. Cada um reunia quatro lençóis de Bispo, todos unidos por ilhoses e barbantes. Justamente os elementos preferidos: no alto, fechando a cenografia do carro, os lençóis que exibem as bússolas – releitura no cartaz do enredo. Foi quando me vi gritando, desnorteado, não acreditando que algo tão significativo havia sido esquecido ou descartado – muita coisa se descarta, numa concentração de escola de samba. Às vezes, esculturas inteiras. Afinal, uma grande oferenda, o ebó que a gente despacha. Veio, dos componentes da alegoria (inclusive funcionários do Museu Bispo do Rosário e usuários ainda residentes na Colônia), a resposta que eu não queria: com medo de que não desse tempo de finalizar a montagem do carro, os encaixes foram atirados, sem muita cerimônia, ao limbo do Canal do Mangue. Pulei a mureta e desci, em direção às peças, movido por uma energia que só se manifesta ali. Então me deparei com uma cena muda: duas pessoas, um homem e uma mulher, sujos, aos farrapos, passavam os dedos sobre os bordados de Bispo e tentavam traduzir palavras e desenhos. Interpretavam a obra, imersos num mundo à parte, distantes da concentração e da balbúrdia inevitável. Jean-François Champollion diante da Rosetta, hieróglifos, linhas de Nazca, os touros de Lascaux e os veados da Capivara. Voltei ao asfalto da Presidente Vargas certo de que as peças ficavam ali. Já estavam despachadas – carrego de Exu eu não quero carregar. E observei, ao lado de Gabriel, o manto finalmente subir - e girar sobre o fogaréu, fantasmático e pleno. O tecido se desenrolou e abriu feito grande bandeira. Disseram uma grande macumba. Teve gente que chorou. Depois disso, meus amigos, foi cair na brincadeira e aproveitar os 53 minutos de desfile como se criança eu ainda fosse. A criança que outrora fazia, em Irati, miniaturas de escolas de samba, equilibrando licoreiras e taças (pobre cristaleira da Nonna...) e vestindo super-heróis com tufos de algodão e forminhas de brigadeiro. Foi lindo. Manicômio nunca mais! Viva o Bispo do Rosário! E para terminar a festança, ainda caiu no meu colo uma fantasia da Lins Imperial, a primeira escola de samba em que desfilei, no carnaval de 2008, no primeiro dia em que estive em São Sebastião do Rio de Janeiro, 2 de fevereiro. Naquela noite choveu. O primeiro desfile a que assisti foi o da Estácio de Sá, com o enredo A história do futuro.

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Dessas coisas de simbologia. 10 anos e algumas histórias, de todas eu guardo um volteio. Da homenagem ao Zicartola, trago a letra do poeta:

Se alguém por mim perguntar Diga que eu só vou voltar Depois que me encontrar

* Tão logo uma viagem termina, começa o carregamento da próxima navegação. Esquadros e esquadras na mesa, mantimentos e semoventes. Todo carnaval morre e nasce na quarta de cinzas e todo abismo é navegável a barquinhos de papel – o Desenredo de Rosa, o outro. O ciclo moto-perpétuo, ouroboros, eterno retorno. Enquanto redijo essas linhas, penso nas possibilidades narrativas para o solo que já rebrota. As tintas ainda descansam, os olhos não. As mãos, inquietas, procuram a matéria bruta de que podem extrair o mundo. Relicários, amuletos, ex-votos. Invoco Mário e Drummond e me ponho a descansar – talvez, hoje, com necessidade de sonhar. É que a tristeza é senhora, desde que o samba é samba, e há uma desesperança, há! Os rumos dos tempos vindouros, os desdobramentos do carnaval, as retinas tão fatigadas, saudade demais. Não mais purpurina nas roupas, a casa limpa. O Rio é uma cidade submersa, a profecia de Chico Buarque? Na festa não resiste uma cidade? Penso na Crônica da cidade do Rio de Janeiro, de Eduardo Galeano, ele também estrangeiro: “No alto da noite do Rio de Janeiro, luminoso, generoso, o Cristo Redentor estende os braços. Debaixo desses braços os netos dos escravos encontram amparo. Uma mulher descalça olha o Cristo, lá de baixo, e apontando seu fulgor, diz, muito tristemente: -Daqui a pouco, já não estará mais aí. Ouvi dizer que vão tirar ele daí. -Não se preocupe – tranquiliza uma vizinha. – Não se preocupe: Ele volta.

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A polícia mata muitos, e mais ainda mata a economia. Na cidade violenta soam tiros e também tambores: os atabaques, ansiosos de consolo e de vingança, chamam os deuses africanos. Cristo sozinho não basta.”419

Que nas festas e das frestas, o oceano ao fundo, pelas ruas que tanto amamos e que tanto nos humanizam, refundemos uma re-existência. Segue o barco, ventania. Rumo às ilhas desconhecidas, arquipélagos-constelações. A “promessa de alegria” dos versos de Drummond. Não vão se calar os nossos tambores.

Imagem 136: Última alegoria, intitulada Apresentação, do desfile de 2018 da Acadêmicos do Cubango. Para exaltar as origens quilombolas do homenageado, utilizamos a obra que, segundo os relatos da terapeuta Rosângela Maria, era a preferida dele: o carrossel. Atabaques anunciavam o girar do Manto da Apresentação, peça em que estavam bordados centenas de nomes – inclusive Rosa Magalhães. Foto: Revista Carnaval.

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GALEANO, Eduardo. Obra citada, p. 78.

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Imagem 137: Abre-Alas da Portela ainda na concentração, na segunda-feira de carnaval de 2018. Intitulado O voo da águia em busca da liberdade, misturava a arquitetura de uma sinagoga à fluidez celeste. Componentes fantasiados de águia realizavam uma coreografia com asas de tecido. Já na primeira alegoria do cortejo a carnavalesca Rosa Magalhães expressava um imaginário de viagem. Foto do autor.

Imagem 138: Segunda alegoria do desfile de 2018 da Acadêmicos do Cubango, mostrando a passagem da riqueza do Mosteiro de São Bento à crueza do manicômio. Izak Dahora, ator que interpretou Arthur Bispo do Rosário, abria o manto em azul e evocava as asas de uma águia – voava, ele também, em busca da liberdade. Foto: Revista Carnaval.

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Imagem 139: Comissão de Frente e carro Abre-Alas da Acadêmicos do Cubango, no desfile de 2018. Exus aos farrapos conduziam a Nau dos Insensatos, movimento heterotópico e heterocrônico, início e fim deste périplo carnavalesco. Foto: Revista Carnaval.

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Imagem 140: No desfile oficial da Portela, em 12 de fevereiro de 2018, Rosa Magalhães desfilou na última alegoria da escola, sobre um dos botes de refugiados. As roupas dos componentes, inspiradas em pinturas de Marc Chagall, exibiam fragmentos de diferentes tecidos. Foto do autor.

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Imagem 141: No desfile das campeãs de 2018 (a Portela terminou a apuração em 4º lugar), a carnavalesca Rosa Magalhães desfilou no carro abre-alas, em frente à sinagoga. Usava, no entanto, a mesma roupa de refugiada que vestiu quando desfilou no bote da última alegoria – um rearranjo interno dos mais expressivos. Foto: Wigder Frota. Acervo pessoal.

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VIII - Referências bibliográficas VIII.1 – Livros, teses, dissertações, artigos científicos, periódicos e sinopses

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IX – Anexos 1. Sinopse/Histórico do enredo do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense para o carnaval de 2004, conforme o apresentado no Livro AbreAlas daquele ano, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA:

BREAZAIL

Receita para fazer um bom vermelho

Pique a madeira e coloque-a num caldeirão de água bem quente. Para cada libra de brasil, acrescente uma onça de feno-grego e meia onça de goma-arábica. Ferva durante três horas e deixe repousar por três dias. Retire do caldeirão, com cubos, a quantidade de tinta necessária para tingir. Prepare este líquido em outro caldeirão, no qual acrescentará o alume. Coloque a seda, que foi deixada num banho de alume durante uma noite, no segundo caldeirão, e passe-a por oito banhos quentes. Caso deseje um outro tom, numa tina de água fresca, dissolva um pouco de água-forte. Assim a cor carmesim se transformará em vermelhofogo, denominado scarlatin. Uma reação química hoje, uma mágica ontem. Os magos alquimistas, precursores dos químicos da era moderna, muito contribuíram para estas descobertas. Dedicavam-se sobretudo à busca de transmutar outras substâncias em ouro e prata. Se não encontraram estas fórmulas para os metais, descobriram outras, de valor, talvez, até maior

O poder simbólico do vermelho

Desde o primórdio das civilizações, o vermelho do sangue e do fogo adquiriu o duplo significado de vida e destruição. Ao vermelho foram atribuídos vários poderes: provoca a fertilidade, afasta os maus espíritos, assegura a vitória no combate. As virtudes do vermelho não se limitavam aos impulsos bélicos, era algo muito mais místico e profundo. Os indivíduos que se vestiam de vermelho ou púrpura elevavam-se material e espiritualmente acima dos outros. 337


O vermelho é tão dominante na China que à cor brilhante dá-se o nome de vermelho chinês. As sedas e os algodões tintos de vermelho vestiam os soldados e os mandarins. Pela sua raridade era caro.

Breazail

Breves pinceladas sobre corantes e tinturas da Antiguidade são fundamentais para podermos entender e valorizar a grande aceitação da madeira tintorial brasil asiático e mais tarde do brasil no Novo Mundo. Os fenícios, grandes navegadores, comercializavam os tecidos tintos de vermelho - o próprio nome fenício, vindo de grego, significa púrpura. Eram os detentores do segredo da fabricação desta mística e suntuosa cor. O dióxido de estanho era um produto indispensável no processo secreto da fabricação da púrpura. Obtinham esse inestimável corante mineral de cor avermelhada com os celtas, povo mineiro que o extraía de minas espalhadas desde a Irlanda até a Ibéria. Os celtas chamavam o estanho de breazail, ou vermelhão. Existem muitas teorias, mas acredita-se que o termo brasil tenha origem celta

O brasil asiático e o brasil do Novo Mundo

O brasil asiático (Caesalpina sappan) vegetal tinturial, era vendido em toda a Europa (desde o século XIII), originário do longínquo oriente. O preço do sappan era mais baixo que de materiais silvestres ou animais. Por ser de fácil aplicação e grande rendimento, tornou-se muito popular. Colombo, ao chegar à América, escreveu aos reis que esta região possuía madeira tintorial em grande quantidade. Mais tarde descobriu-se que era uma variedade diferente da asiática e foi chamada de Caesalpina echinata, o nome científico para o pau-brasil. Quando foi informado de que a única riqueza aparentemente disponível na terra recém descoberta por Cabral era o pau-e-tinta, D. Manuel tratou de declarar a árvore monopólio da Coroa, optando, em seguida, por arrendar sua exploração para a iniciativa privada. Primeiro ciclo extrativista, primeira matéria-prima de exportação, primeiro produto contrabandeado, o pioneirismo do pau-brasil não para por aí. O chamado lenho 338


tintural se transformaria no primeiro monopólio estatal, primeira privatização, primeiro produto tributado e objeto do primeiro cartel nos trópicos, e também se tornaria a primeira espécie ameaçada de extinção.

A primeira feitoria e forte em Cabo Frio

Américo Vespúcio é um personagem complexo e contraditório. Vespúcio forjou em torno de si um mar revolto de celeuma e controvérsia. De suas quatro supostas viagens ao Novo Mundo, duas o trouxeram ao Brasil. Após a primeira, ele teria informado ao rei que a única riqueza explorável naquele novo território era "uma infinidade de árvores de pau-brasil." Na segunda, teria se tornado o responsável pela fundação da primeira feitoria portuguesa na América. Vespúcio concluiu que a terra visitada era pobre em perspectivas econômicas e as oportunidades comerciais se limitavam ao pau-brasil. Seu relatório parece ter selado o destino do Brasil por quase meio século. O primeiro entreposto para o comércio do paubrasil foi construído em Cabo Frio. “Chegamos a um porto em que decidimos erguer um castelo (fortaleza e feitoria), o que logo fizemos, e deixamos ali 24 cristãos que estavam conosco, recolhidos da perdida nau do comandante. Construído o castelo, carregando nossas naus de pau-brasil, ali permanecemos cinco meses. Concluídas essas atividades, concordamos em voltar.”

A Utopia

A narrativa das viagens de Américo Vespúcio, através de cartas, fez muito sucesso. O enredo revelou-se insinuante, floreado como um romance. Não foi Vespúcio que batizou o Novo Mundo, foi seu texto. Sucesso estrondoso numa Europa basicamente iletrada, "Mundus Novus" teve 25 edições em mais de seis línguas, em menos de dois anos. Teriam sido cerca de 20.000 exemplares vendidos. Um verdadeiro best-seller. Um dos leitores que se encantou com a narrativa foi Thomas More, filósofo inglês. Foi baseado neste pequeno trecho da narrativa de Vespúcio que escreveu seu livro mais importante - A Utopia. Um desses 24 marinheiros que ficaram em Cabo Frio se torna o 339


personagem chamado Rafael Hitlodeu, narrador de uma história que se tornaria um marco da filosofia. Ao invés de morrerem nesta feitoria, saíram da lá e logo adiante encontraram um país inigualável chamado Utopia, habitado por pessoas singulares no seu modo de vida: os utopianos. Vivem em perfeita harmonia, nada lhes falta, há comida em abundância, mas não comem exageradamente. Todos trabalham, mas também se divertem. Não dão valor ao que outros povos normalmente prezam muito. Para mostrar seu desprezo, o ouro e a prata não são usados como adornos. As jóias são para as crianças se enfeitarem e brincarem, os adultos não se interessam por elas. Neste país imaginário, os trajes são simples e elegantes, os tecidos são naturais e claros, sem tingimentos. Em Utopia, o pau-brasil com certeza ainda existe, dando sombra e oferecendo um raro espetáculo com suas belas flores amarelas. Nossa esperança é transformar nosso chão numa utopia, a Mata Atlântica preservada e abundante em pau-brasil... Rosa Magalhães – carnavalesca

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2. Samba de enredo do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense para o carnaval de 2004, conforme o apresentado no Livro AbreAlas daquele ano, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA:

Vermelho é vida É sangue, é coração Coloriu a história De paixão, de vitória.... De vibração Pintou o manto dos reis E o encanto chinês O poder e a religião Das minas o celta extraía O corante breazail Porém era o fenício quem fazia A tinta que o mundo seduziu

Da Ásia a madeira Deu o tom pra Europa inteira Mas o Brasil do bom Só em terra brasileira

Viagem ao Novo Mundo Deu a Vespúcio a primazia De erguer em Cabo Frio Fortaleza e feitoria Depois partiu com nosso pau-brasil Deixando aos marinheiros poesia Visão do infinito, lugar mais bonito Era o chão da Utopia Quem dera a paz e a harmonia Ver meu país cantar feliz Na sombra de um pau-brasil Um samba da Imperatriz 341


Hoje eu quero ver Caldeirão ferver nessa magia O Brasil deu a cor Pra tingir de amor nossa folia

Compositores: Jeferson, Veneza, Carlos de Olaria, Me Leva e Guga Intérprete: Ronaldo Ilê

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VIII – Referências bibliográficas

18min
pages 324-336

VII – Conclusão – Utopias antropofágicas

48min
pages 293-323

IX – Anexos

6min
pages 337-342

VI.2.3 –A carne é fraca, é isso aí

6min
pages 285-288

VI.2.4 – Onisuáquisólamento

6min
pages 289-292

VI.2.1-Pirão de areia e sopa de vento

4min
pages 281-282

VI.2.2-Pirataria S/A

2min
pages 283-284

VI. 2 – O panelaço brasileiro

2min
pages 279-280

VI.1.7- O carnaval nosso de cada ano

16min
pages 269-278

VI.1.6 – A folia de cocar

3min
pages 267-268

VI.1.3 – No coração da floresta

2min
page 260

VI.1.5 – O medievo de lá pra cá

4min
pages 265-266

VI.1.1- O sertão que não é só lamento e a mítica Bahia

8min
pages 254-258

VI.1.2 – No balanço da expedição

1min
page 259

VI.1.4 – Pianópolis – Rua do Ouvidor

8min
pages 261-264

V.1.12- Tutti-multinacional

4min
pages 247-250

V.1.11 – Toda a América Pré-Colombiana foi saqueada em suas riquezas

1min
page 246

V.1.10 – Tambor africano, solo feiticeiro

5min
pages 243-245

V.1.9 – Nobreza holandesa

1min
page 242

V.1.8 – Fado tropical

1min
page 241

V.1.7 – Nesse feitiço tem castanhola

2min
pages 239-240

III. 3 – As distopias e o pop-nostalgia

24min
pages 169-181

V.1.4 – Folias geladas

5min
pages 235-237

V.1.3 – Vive la France

12min
pages 229-234

IV. 3 – O céu não é o limite

22min
pages 211-221

V.1.2 – Orientalismos

4min
pages 227-228

IV. 2 - Diários de navegação

31min
pages 187-210

V.1. 1 – Os mitos que enlaçam antigas tradições

2min
page 226

III. 2 – De luta, esperança, amor e paz

19min
pages 157-168

II. 4. 2 - Utopias e heterotopias: Michel Foucault, navegador

23min
pages 122-132

II. 3. 3 – Pau-Brasil

21min
pages 98-108

II. 4. 3 – O heterotópico Carnaval Carioca: invocando Mário de Andrade

22min
pages 133-144

II. 2. 3 – Breazail: metanarrativa metálica

16min
pages 74-80

I – Por mares nunca dantes navegados

1hr
pages 17-43

II. 3. 2 – Cabo Frio, o cenário do clímax

19min
pages 88-97

II. 2. 2 – Uma ilha chamada Brasil?

13min
pages 67-73
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