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II. 2. 2 – Uma ilha chamada Brasil?

II. 2. 2 – Uma ilha chamada Brasil?

Londres, 14 de maio de 2017. Penso que estou numa ilha – o que, inclusive, já rendeu duas homenagens do Grêmio Recreativo Escola de Samba União da Ilha do Governador: em 1992 (num enredo sobre as ilhas em geral, do Havaí a Madagascar) e em 2012 (sobre a cidade de Londres, especificamente, pegando o gancho dos Jogos Olímpicos daquele ano – a cidade passaria o bastão para o Rio de Janeiro). Releio Utopia, diante da Torre de Londres, num domingo de sol, o Tâmisa faiscante (imagem 24). À noite, o retorno para Nice: sair da ilha, atravessar o Canal da Mancha, ganhar o continente. Fui à quadra da União da Ilha, pouco antes da viagem a Nice – noite de 19 de janeiro, véspera de feriado de São Sebastião, quando a quadra em que eu morava, na Tijuca, se enchia de pessoas vestidas de vermelho, palmas, cheiro de milho cozido, alimento de Oxóssi. Homenagem a Maria Augusta: 40 anos de Domingo, enredo e desfile que em definitivo inseriram a crônica no carnaval das escolas de samba (espírito que parecia perdido, mas que, aos poucos, volta a ser cortejado).

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Imagem 24: 14/05/2017. Ao fundo, a Torre de Londres, onde Thomas More foi decapitado. Foto do autor. 67

Em 19 de janeiro de 2014, domingo, apresentamos os protótipos das fantasias da Mocidade Unida do Santa Marta para o carnaval que ocorreria em março, depois de uma longa madrugada acesos, “virados”, no ateliê contratado pela escola, na Pavuna. Pizzas gordurosas, clássicos do funk, cervejas de lata, um vai e vem de pessoas que não mais sabemos quem são. Rafael Bqueer, performer oriundo de Belém, fotografava tudo. Às 8 da manhã, quando Rafael Gonçalves e Gabriel Haddad dormiam um pouco, dividindo a cama da mãe do chefe do ateliê, Anderson Paiva, candomblecista de Xangô (que possuía dois cágados enormes, no quintal, que mordiam os nossos calcanhares), eu e Vitor Saraiva, com quem assisti aos desfiles de 2018, a calefação na temperatura máxima, em Nice, fizemos uma burrinha, elemento fundamental para a ala dos boiadeiros (o enredo, Na hora em que o sol se esconde, partia de algumas canções de Dorival Caymmi para falar do Brasil profundo, suas histórias e suas gentes). Uma visão de Brasil que eu não mais traduziria em desfile: de acento colonial, a narrativa se baseava em História pro Sinhozinho, tema que passeou pelas adaptações televisivas do Sítio do Picapau Amarelo e terminou por virar ponto de Umbanda, presença obrigatória em qualquer roda de pagode – desses casos em que a autoria praticamente se perde e se converte em domínio público. Uma visão de Brasil que nos remetia, é claro, à obra de Rosa Magalhães – as moendas e o mel da cana, em 2001; o enredo de 2005, Uma delirante confusão fabulística, que unia Hans Christian Andersen e Monteiro Lobato.

Não poucas foram as vezes em que Rosa Magalhães se embrenhou pelo Brasil profundo, a fim de buscar as “raízes” da nossa gente. A narrativa de 2004, por sua vez, se restringe ao litoral brasileiro, à costa enfim mapeada, invadida e colonizada pelos europeus. Mas busca, mais do que nenhuma outra, as raízes da(s) nossa(s) identidade(s) – inclusive no sentido literal, as raízes das árvores tinteiras. A terceira subdivisão da narrativa assinada pela carnavalesca recebeu justamente o título do enredo, Breazail. No fragmento textual, lê-se:

Breves pinceladas sobre corantes e tinturas da Antiguidade são fundamentais para podermos entender e valorizar a grande aceitação da madeira tintorial brasil asiático e mais tarde do brasil no Novo Mundo. Os fenícios, grandes navegadores, comercializavam os tecidos tintos de vermelho -o próprionome fenício, vindo de grego, significa púrpura. Eram os detentores do segredo da fabricação desta mística e suntuosa cor. O dióxido de estanho era um produto indispensável no processo secreto da fabricação da púrpura. Obtinham esse inestimável corante mineral de cor avermelhada com os celtas, povo mineiro que o extraía de minas 68

espalhadas desde a Irlanda até a Ibéria. Os celtas chamavam o estanho de breazail, ou vermelhão. Existem muitas teorias, mas acredita-se que o termo brasil tenha origem celta.74

É a partir dessa premissa que a autora muda o rumo da viagem e, embarcada em um navio fenício, aporta na costa irlandesa. A busca pelas raízes mais profundas da etimologia da palavra brasil adquire temperatura máximano interior das minas de estanho celtas, o motivo da quinta alegoria do desfile (prateada, com detalhes em vermelho). A rota em direção à Irlanda conduz o leitor-marinheiro aos levantamentos de Sergio Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso, obra utilizada por Rosa Magalhães para a elaboração do enredo gresilense de 1992, Não existe pecado abaixo do Equador. Diz o historiador, ao fazer um inventário das ditas “ilhas afortunadas” associadas ao mito da existência de um paraíso terreal:

Em alguns casos transforma-se a Ilha de São Brandão em um arquipélago, que pode incluir, como sucede no mapa de André Benincasa, anconitano, datado de 1467, a do Brasil, ou Braçile, que no século anterior, em 1367, a carta de Pizzigano colocava, por sua vez, com o nome de Ysola de Braçir, entre as chamadas “Benaventuras”. Essa fantástica ilha do Brasil, tão estreitamente vinculada a toda mitologia de São Brandão, pertence, com esta, à antiga tradição céltica preservada até os dias de hoje, e que aparentemente nada tem a ver com a presença em certas ilhas atlânticas de plantas tais como a urzela ou o sangue de drago, que dão um produto tintorial semelhante, na cor purpurina, a outro que, pelo menos desde o século IX, era conhecido no comércio árabe e italiano sob os nomes de “brasil” e “verzino”. Segundo já o mostrou decisivamente Richard Hennig, aparenta-se o topônimo antes às vozes irlandesas Hy Bressail e O’Brazil, que significariam “ilha afortunada”. Essa, melhor do que outras razões, poderia explicar a forma alternativa de “O brasil” e “Obrasil” que aparece em vários mapas. Até em cartas portuguesas como a de Lázaro Luís, datada de 1563, vê-se essa designação “obrasil” atribuída à ilha mítica. Em outra, de Fernão Vaz Dourado, existente na biblioteca Huntington e composta, segundo parece, pelo ano de 1570, já se transfere, pela forma de “O Brasil”, encimando as armas de Portugal (assim como, mais ao sul, se vê o “r. da prata” sob o escudo castelhano) para a própria terra que descobriu Pedro Álvares Cabral. Aliás, antes de 1568, em mapa do mesmo autor, incluído no atlas Palmela, temos o nome “hobrasill”, juntamente com o do cabo de Santo Agostinho, aplicado a terras compreendidas no Brasil atual. Curioso que a nova naturalização americana do designativo não impeça que, no referido atlas, continue esse “obrasill” a indicar uma ilha misteriosa localizada a SW da Irlanda e representada por um pequeno círculo vermelho atravessado de uma raia branca. 75

Tais relações entre as origens do nome do nosso país e o imaginário mítico da Irlanda são exploradas em profundidade na obra Uma ilha chamada Brasil – O paraíso

74 MAGALHÃES, Rosa. Obra citada. 75 HOLANDA, Sergio Buarque de. Visão do Paraíso. Os Motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 209.

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irlandês no passado brasileiro, de Geraldo Cantarino76. Segundo o autor, deve-se às pesquisas de Roger Casement a afirmação de que o nome do Brasil não é originário do pau-de-tinta, mas de “uma antiga crença irlandesa tão remota como a própria mente celta.”77 Em termos distintos, não haveria dúvidas, para Casement, de que “a palavra brasil só poderia ter chegado aos portugueses como uma derivação de um lendário nome celta, da mítica Hy Brasil, também conhecida como Terra Prometida, Ilha Abençoada e Terra do Sol Poente.”78 Ainda de acordo com os levantamentos de Cantarino, diferentes enciclopédias de mitologia mencionam a referida ilha, síntese de uma tradição de narrativas ficcionais que nos remetem à lendária Atlântida e a outras ilhas de fantástico apelo imaginativo. Isso fica evidente nos seguintes excertos:

(...) Há quem acredite que Hy Brasil existiu de verdade num passado distante. Para outros, a ilha faz parte de uma categoria de objetos e lugares indecifráveis, de existência duvidosa, permeando os limites entre o mundo real e o imaginário. Hy Brasil aparece, por exemplo, na Encyclopedia of Things that Never Were, como uma ilha do oceano Atlântico, “provavelmente na mesma latitude dos Açores, apesar de ter aparecido tanto ao norte quanto ao sul da Irlanda. Na Antiguidade, a ilha desfrutou de um próspero comércio de pau-de-tinta, como pau-campeche, usado para tingir tecidos dos fenícios, romanos e egípcios.” (...) Há os que dizem que a ilha não tem endereço fixo no mundo que conhecemos e nunca aparece duas vezes no mesmo lugar. Raramente é alcançada pela visão humana, com exceção apenas de crianças e sonhadores, que estão abertos para o mistério. Hoje perdida sob as ondas, no fundo do mar, e relegada ao domínio do mito – nos contam outros tantos – Hy Brasil foi um dia uma terra encantada, onde vivia tudo que era belo e misterioso, um reino de fadas e de cores que ficava além do arco-íris.79

As visões apresentadas por Cantarino dispensam comentários no que tange ao tempero carnavalesco. Evidentemente, o imaginário evocado pela mítica Hy Brasil reúne matéria das mais expressivas para a construção alegórica de um desfile de escola de samba. Tanto é assim que a crença em um paraíso terreal povoado de belezas naturais (uma profusão de frutos e flores carregados dos mais sofisticados perfumes), corpos esbeltos banhados de sol e encantamentos de toda sorte estimulou Joãosinho Trinta a

76 Nessa obra, em diálogo com o pesquisador Angus Mitchell, o autor mostra, inclusive, a presença de variantes da palavra brasil em nomes de família irlandeses: “Aproveitei que estava na Irlanda, resolvi consultar a lista telefônica e me surpreendi com o resultado. Numa rápida olhada, encontrei os seguintes sobrenomes: Brassil, Brassill, Brazier, Brazil, Brazill e Brazzill. Mitchell diz ainda que a palavra Brazil e suas muitas variações podem ser encontradas, facilmente, em antigos manuscritos irlandeses. Breasail, por exemplo, é o nome de um semideus pagão.” In: CANTARINO, Geraldo. Uma ilha chamada Brasil. O paraíso irlandês no passado brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2004, p. 33. 77 CANTARINO, Geraldo. Obra citada, p. 34. 78 CANTARINO, Geraldo. Obra citada, p. 32. 79 CANTARINO, Geraldo. Obra citada, p. 42/43.

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conceber a abertura do espetáculo que a Unidos do Viradouro apresentou no ano 2000 –uma leitura de Hy Brasil a partir da profusão de formas de Hieronymus Bosch. Nesse ponto, é fundamental compreender a síntese teórica realizada por Gustavo Barroso, base para a análise de Geraldo Cantarino. De acordo com Barroso, cristalizou-se no imaginário coletivo brasileiro uma “fácil explicação” para o nome do país: a “madeira de tinturaria – madeira em brasa –cujo comércio atraiu para o país muitos aventureiros, entre eles, portugueses, franceses e ingleses.”80 Entretanto, concluiu o pesquisador após percorrer centenas de mapas e documentos antigos, a origem do nome Brasil é mais antiga que a exploração da madeira, dizendo respeito à ilha celta associada a “boa sorte, felicidade, prosperidade, etimologia tão aceitável, de qualquer ponto de vista, senão mais, do que a outra, absolutamente materialista. Do ponto de vista poético, simbólico, mesmo histórico e sobretudo tradicional, não deve haver hesitação possível.”81 Ou seja: não apenas a hipótese mitológica parece mais verossímil, para Barroso, como mais importante sob o viés cultural em sentido amplo. Vislumbra-se, aqui, uma ponte para um passado pouco investigado, aquele que possibilita um agudo intercâmbio entre o Brasil e a Irlanda - algo estranhamente ainda não explorado no universo das escolas de samba cariocas; se já vimos homenagens a países como Alemanha, Suíça, Estados Unidos, Noruega, Dinamarca, Marrocos, África do Sul, Guiné Equatorial, Japão, Angola, Itália, Espanha, Índia, mesmo a Inglaterra (sem falar na onipresença de Portugal e França, inclusive na obra de Rosa Magalhães, como será debatido na segunda metade deste trabalho), é fato que a Irlanda, a despeito da sua importância para a compreensão etimológica do nome do Brasil, permanece desconhecida nos arredores da Marquês de Sapucaí.

82 No livro O Brasil na lenda e na cartografia antiga, Barroso afirma:

80 CANTARINO, Geraldo. Obra citada, p. 52. 81 BARROSO, Gustavo. Segredos e revelações da história do Brasil. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1961. 82 Geraldo Cantarino atribui a pouca (ou quase nenhuma) atenção brasileira dedicada à Irlanda a um “desprezo cultural” de raízes de mais de um século, construído sobre escrivaninhas inglesas e norteamericanas: “Roger Casement cita alguns desses autores, como Alice Stopford Green e Mr. J. R. Kenny, que destacaram a importância da Irlanda no cenário internacional. No entanto, argumenta Casement, nada disso foi do conhecimento de historiadores considerados, na época (início do século XX), modernos – como Washington Irving, William Hickling Prescott, William Robertson, Robert Southey – que relataram as descobertas da América para o mundo de língua inglesa. De acordo com Casement, esses acadêmicos tinham uma visão deturpada e preconceituosa da história irlandesa (...)”. In: CANTARINO, Geraldo. Obra citada, p. 36. Tal “apagamento simbólico” pode explicar a ausência de aparições irlandesas em narrativas de carnaval cujo tema são as Grandes Navegações e o “descobrimento do Brasil”.

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Nada mais curioso e interessante, portanto, do que estudar detidamente, através da abundante documentação que existe, a vida dessa palavra BRASIL, anterior, como veremos circunstanciadamente, ao descobrimento da costa brasileira por Pedro Álvares Cabral e talvez provinda também de outra fonte que não só a madeira do miolo cor de brasa, a qual, de longa data, genoveses, venezianos, pisanos e amalfitanos traziam do Oriente com as especiarias e tinha, na indústria europeia de tecidos, o mesmo relevante papel das anilinas alemãs recentemente. Era a púrpura vegetal. Árabes e persas iam-na buscar, com as monções, em Java Maior e Java Menor, nas inúmeras ilhas do antigo e esplendoroso Império Sumatrense de Çrivijaya, destruído no século XIII, do qual as magníficas ruínas de Bali, envoltas nas enrediças de jángala, ainda agora atestam a fortuna e a grandeza.

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Se há, automaticamente, dois caminhos possíveis para a análise (o que leva à extração da madeira para fins comerciais ultramarinos, mais recente e “concreto”, e o que leva à mitologia celta, perdido no tempo, envolto em lendas e magias, bastante abstrato e poético), fato é que há uma mesma matriz etimológica, o que, segundo o pesquisador, originou o mar-sem-fim de dúvidas:

Brasil pode vir tanto de brasa como de Brasail ou Bresail ou Bressail, Terra Afortunada. A simples semelhança do vocábulo irlandês dado à ilha lendária do oceano Atlântico, com o do pau-brasil, berzil ou berzino talvez tenha trazido a confusão de que resultou pensar fosse do nome da madeira que tivesse nascido o nome do país. O nome do Brasil pode ser considerado um símbolo, vem da lenda antiquíssima duma terra feliz, em celta Bressail, Hy-Bressail, O Brasil, com a intercorrência da madeira vermelha – Berzino, Berzi, Brasil, e traz consigo uma longa tradição cartográfica.84

Rosa Magalhães, em 2004, embarcou menos na fantasia que a Ilha de São Brandão evoca (a reunião de seres encantados, como fadas, sereias e leprechauns, não deu o ar da graça no cortejo gresilense) e desenhou um cenário duro, seco, metálico (imagens 25 e 26). Isso, que num primeiro momento pode parecer estranho, é coerente com a ideia-base que a narrativa expressa: a hipótese de que o nome do “país do carnaval” também é derivado das entranhas das minas celtas, do ventre da terra, e não apenas do miolo das árvores tintoriais. O estranho justificado pelo estanho.

83 BARROSO, Gustavo. O Brasil na lenda e na cartografia antiga. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1941, p. 20. 84 BARROSO, Gustavo. Segredos e revelações da história do Brasil. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1961.

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Imagem 25: Detalhe da quinta alegoria do desfile da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2004, intitulada Breazail – metal que produz o vermelho. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

Imagem 26: Detalhe da quinta alegoria do desfile da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2004, intitulada Breazail – metal que produz o vermelho. O carro representava uma mina de estanho celta. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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