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V.1.10 – Tambor africano, solo feiticeiro

Pontualmente, a Holanda também aparece em narrativas como a de 2003, sobre a pirataria (o próprio samba, de autoria de Brandãozinho, Rubens Napoleão, Darcy do Nascimento e Jorge Rita, fala nos “corsários holandeses”). A sinopse menciona: “Outras nações com menor poderio naval, como a França, a Inglaterra e a Holanda, começam a estimular a pilhagem dessas riquezas extraídas do novo mundo, sobretudo o ouro, o açúcar, o tabaco. As madeiras nobres também não eram desprezadas.”339

V. 1. 10 - Tambor africano, solo feiticeiro

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Inconteste é o fato de que Rosa Magalhães, em suas narrativas carnavalescas, mais visitou os territórios europeus e orientais do que os reinos e as nações africanos. Poucas são as incursões da artista pelo chamado “Continente Negro”, o que indica, de antemão, o predomínio dos temas filtrados pelo olhar do colonizador, branco, e a utilização de motivos orientais (ou orientalistas) enquanto ferramentas visuais permanentes. Em 1989, na Estácio de Sá, com o enredo sobre o arroz e o feijão, a artista, que debutou no carnaval enquanto assistente de uma equipe de carnavalescos que desenvolvia, no Salgueiro, um enredo de “temática afro” (Festa para um Rei Negro, 1971), faz um primeiro passeio pelos territórios africanos (e utiliza-se a expressão “africana/o” em sentido amplo devido ao fato de que é assim, genericamente, que tal espaço geográfico é, no mais das vezes, desenhado na obra da artista. Afora o Egito, a Argélia e Angola, é como se o restante do território se apresentasse unificado, generalização que reflete uma construção discursiva que há séculos embota o olhar ocidental340). A alegoria e as fantasias que expressavam o cultivo do arroz na África tribal exibiam grafismos (a inspiração da arte Bakuba) e o uso do capim desidratado enquanto material para substituir as plumas – algo destacado positivamente por Fernando Pamplona, durante a transmissão televisiva da Rede Manchete. Na sequência, outra

339 MAGALHÃES, Rosa. Nem todo pirata tem perna de pau, olho de vidro e cara de mau. Sinopse do enredo do carnaval de 2003 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA). 340 Um exemplo recente ajuda a entender o exposto: durante os Jogos Olímpicos de verão realizados no Rio de Janeiro, em 2016, uma série de “casas temáticas” foram instaladas em diferentes regiões da cidade. Na Lagoa Rodrigo de Freitas, as casas de França, Holanda e Suíça. Na Casa Daros, em Botafogo, foi instalada a “Casa do Qatar”; nas vizinhanças da Zona Sul, as casas da Grã-Bretanha, da Alemanha, da Dinamarca, da Jamaica e da Hungria. No “Porto Maravilha”, as casas de Colômbia, Austrália, Finlândia, Brasil, México e Portugal. Na Barra da Tijuca, as casas da República Tcheca, da Eslováquia, do Japão e... da África. Sim, algo genérico e homogeneizador, como se o continente africano fosse uma coisa só, simplificado nos mais desgastados estereótipos.

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alegoria expressava os usos rituais (“comidas de Santo”) do feijão e do arroz nas festas deCandomblé. Para ilustrar a afro-brasilidade das cerimônias, a carnavalesca usou búzios e esteiras. Os destaques vestiam fantasias que ilustravam os orixás, cada um com a sua respectiva cor. No ano 2000, após dedicar dois setores às riquezas da Índia (com ênfase nas especiarias, no primeiro setor, e nas sedas e nos diamantes, no segundo), a carnavalesca apresentou uma sequência de alas que traduziam visualmente as riquezas que os portugueses buscavam no solo africano:

Na África, trocavam trigo, tecidos e cavalos por ouro, marfim, escravos e pimenta malagueta, mais barata que as especiarias indianas. A dupla formada pelas especiarias e pelo ouro realmente era muito atraente. É fácil perceber o interesse pelo ouro; ele era utilizado corno moeda confiável e empregado pelos aristocratas asiáticos na decoração de templos e palácios e na confecção de roupas. Ouro e especiarias foram bens sempre muito procurados nos séculos XV e XVI, mas ainda havia outros, como a madeira, os corantes, as drogas medicinais e, pouco a pouco, um instrumento de trabalho dotado de voz: os escravos africanos.341

Nas fantasias, intituladas O marfim, Africano – Costa do Marfim, O Ouro – Costa do Ouro, Riquezas da África (Bateria), Misticismo africano (Passistas), Mama África e Ourivesaria, a predominância de variações de laranjas e amarelos – tudo pontuado de branco, preto e palha. Pingentes de ráfia de sopro e badulaques dourados ajudavam a compor um conjunto extremamente volumoso, ainda que leve. A ráfia, aliás, foi utilizada em todas as fantasias do setor. Na alegoria, que trazia Jorge Lafond, a predominância da cor marfim. Dentes, chifres, búzios, guias, palha, tudo se interconectava. Novamente, viam-se referências aos grafismos Bakuba, com girafas e guerreiros estilizados. O único enredo de Rosa Magalhães que, seguindo as problemáticas e limitadoras classificações (melhor é dizer “rotulações”) temáticas, pode ser considerado integralmente “afro” é Você semba lá... que eu sambo cá! O canto livre de Angola, de 2012, na Unidos de Vila Isabel. Devido ao sofisticado diálogo com Yinka Shonibare, que permeia a plástica de todo o cortejo, e às menções pontuais a Rubem Valentim e a Julie Taymor (imagem 97), algo já debatido neste trabalho, não parece exagerada a afirmação

341 MAGALHÃES, Rosa. Quem descobriu o Brasil foi Seu Cabral, no dia 22 de abril, dois meses depois do carnaval. Sinopse do enredo do carnaval de 2000 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA).

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de que tal enredo é um ponto fora da curva, um caso especial, uma pérola da carnavalesca sete vezes campeã da folia do Rio de Janeiro. A autora desenvolveu uma narrativa (tanto no plano da escrita quanto no plano da visualidade) a partir do ponto de vista pós-colonial, valendo-se da arte contemporânea enquanto pedra de toque. O resultado, é importante reforçar, foi um impacto: apesar de não ter vencido a disputa, a Unidos de Vila Isabel foi a grande vencedora do prêmio Estandarte de Ouro, abocanhando dezenas de outros prêmios. Rosa Magalhães, beirando os setenta anos, mostrava que sempre é possível “mudar de ares” e buscar outras linguagens (e leituras) – atualização possível, é claro, devido ao cuidado com que desenvolveu e materializou a pesquisa. A carnavalesca demorou, mas quando fez um “enredo afro” imprimiu uma assinatura tão marcante que desfiles com temáticas africanas subsequentes passaram a beber na fonte de 2012 (alguns de maneira quase explícita, caso do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2015, cujo enredo, Axé Nkenda – um ritual de liberdade, foi assinado pelo carnavalesco Cahê Rodrigues).

Imagem 97: Última alegoria do desfile da Unidos de Vila Isabel, no carnaval de 2012. Percebe-se a combinação de referências a Yinka Shonibare (estampas), O Rei Leão (grande escultura de cabeça) e Rubem Valentim (esculturas laterais). Foto do autor.

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