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VI.2.1-Pirão de areia e sopa de vento
estampar charges em jornais do país inteiro. O carnaval enquanto ferramenta de crítica política (e os desfiles da Mangueira e da Beija-Flor potencializaram isso, por caminhos distintos) estava na pauta do dia, despertando um sentimento transgressor muito em voga na década de 1980, no contexto da redemocratização, em escolas como Caprichosos de Pilares, São Clemente e Mocidade Independente de Padre Miguel. Léo Morais, o destaque que vestiu a fantasia, talvez não imaginasse o quanto a sua imagem seria reprocessada, defendida e acusada, nas redes sociais e nos portais de notícias. O carnavalesco Jack Vasconcelos, autor do enredo Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão? (título que dialoga com o samba antológico que a Unidos de Lucas cantou em 1968, Sublime Pergaminho), virava um dos personagens da folia momesca de 2018. Curioso é pensar que durante a discussão travada na UERJ, em 16 de julho de 2013, quando as ruas ainda explodiam (fragmentos de vidraças e balas de borracha das ditas “jornadas de junho”), Rosa Magalhães respondeu, ao ser questionada sobre o porquê de não mais existirem enredos críticos, nos moldes dos anos 80: “porque não há mais espaço para isso.” A artista, ladeada por Felipe Ferreira e Marcelo de Mello, declarou que não mais se sentia estimulada a desenvolver uma narrativa como aquela que havia apresentado, juntamente com Lícia Lacerda, na Imperatriz Leopoldinense, em 1984, ano da inauguração do Sambódromo. O enredo Alô, Mamãe!, para ela, havia ficado no passado: “se algum carnavalesco fizer algo naquele estilo, hoje, vai ser execrado. O público não quer mais ver aquilo, está cansado de política. Os jurados não entenderiam. Hoje ficou tudo mais sério.” O Vampiro Neoliberalista e os Manifestoches de Jack Vasconcelos provariam, poucos anos depois, que a vivacidade do carnaval é algo inapreensível. As correntes marítimas não aprisionam as ideias: mudam de maneira repentina, voraz, confundindo as rotas e os olhares dos navegadores. A própria Rosa Magalhães, em 2016, voltaria às críticas políticas – talvez não tão afiada como nos “velhos tempos”, mas disposta, sim, a questionar o presente e a desenhar as suas charges.
VI. 2. 1 – Pirão de areia e sopa de vento
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O enredo gresilense de 1984 apontava o dedo para a cara do Brasil, um país ainda governado aos golpes de cassetete – e alegre não é constatar, em tempos de intervenção federal, que pouca coisa mudou desde então. Valendo-se do símbolo do telefone (telefone
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com fio, este objeto de comunicação que envelheceu na velocidade da luz e hoje é uma legítima peça de bricabraques), as carnavalescas, donas de um estilo que podia ser classificado como “tropicalismo jocoso” (abacaxis, de fato, apareceram aos caminhões –inclusive na roupa das baianas), segundo o comentário de Fernando Pamplona, durante a transmissão da TV Manchete, transportaram para as fantasias e os carros alegóricos o clima de incerteza política que pairava sobre Brasília. O ponto de partida foi o primeiro discurso realizado na Câmara pelo recém-empossado deputado Aguinaldo Timóteo, fato narrado pelo jornalista Ancelmo Gois, no calor das eleições de 2014:
Aguinaldo Timóteo, 77 anos, não se elegeu deputado federal. Ficou com 18.839 votos, na sexta suplência da coligação do PR, de Garotinho. Em 1982, ele foi, ao lado de Brizola, recém-chegado do exílio, o deputado federal mais votado do país, com mais de 500 mil votos. No seu primeiro discurso na Câmara, pegou um telefone e ligou para a mãe. O sucesso foi tanto que “Alô, mamãe” virou enredo da Imperatriz, em 1984. Mas, no ano seguinte, votou em Maluf, o candidato da ditadura, contra Tancredo, no Colégio Eleitoral. Foi do céu ao inferno.386
O deputado desfilou no carro abre-alas, falando ao telefone (imagem 114). A alegoria apresentava um claro desenho cartunesco, com direito a um balãozinho de histórias em quadrinhos (dentro do balão, o título do enredo levemente alterado “Alôoo, Mamãe!!”). Pamplona, ao comentar a abertura do desfile, destacou o “momento de sufoco econômico que vivemos”. A fala de Aguinaldo Timóteo, na leitura das carnavalescas, sintetizava um movimento nacional: a vontade de pedir colo à mãe, diante de um cenário desolador. Um grito de socorro e um pedido de desculpas: o filho do enredo das autoras, que poderia ser qualquer brasileiro (filho da pátria), pede que a mãe o perdoe, uma vez que não conseguiria enviar o “dinheiro do mês” porque o montante havia sido “sugado por um vampiro que aparece todas as noites e leva os trocados.”387 Qualquer semelhança com a simbologia presente no desfile de 2018 do Paraíso do Tuiuti não é mera coincidência. Três décadas se foram; os vampiros são imortais? E não é por outro motivo que não este o porquê de o samba de enredo composto por Velha, Guga, Tuninho e Alvinho cantar em tom de piada: “Alô, Mamãe! / Assim não aguento / Almoçar pirão de areia / E jantar sopa de vento!”
386 http://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/alo-mamae-551699.html. Acesso em 09/03/2018. 387 LACERDA, Lícia; MAGALHÃES, Rosa. Alô, Mamãe! Sinopse do enredo do carnaval de 1984 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, presente no conjunto de textos daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA).
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