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IV. 3 – O céu não é o limite

IV. 3 – O céu não é o limite

Rio de Janeiro, 25 de novembro de 2017. Atrás de um portão de ferro pintado de verde, na Rua Prefeito Júlio de Moraes Coutinho, lado par da Avenida Brasil, nas proximidades do castelo mourisco da Fiocruz, encontra-se o “barracão de alegorias” da Acadêmicos do Cubango. Espaço grande, dividido em espaços menores: a “garagem” dos carros alegóricos, com o desafiador limite de pouco mais de 4 metros de altura (na Passarela do Samba, podem chegar a 13), o almoxarifado de aviamentos e pedrarias, um galpão para guardar esculturas compradas ou recebidas enquanto doação de outras escolas, um salão com bancadas, para a feitura dos adereços das alegorias (no segundo andar do almoxarifado de aviamentos), o almoxarifado de tecidos, uma pequenina cozinha e a sala de reuniões de diretores e carnavalescos, com três mesas de trabalho, alguns armários cheios de troféus e papeis envelhecidos, um banheirinho sem luz, uma cristaleira colonial danificada pelas chuvas (doação de uma diretora). Todos estes espaços circundam um terreno a céu aberto, onde esculturas abandonadas ardem sob o sol de 40 graus, calangos correm, assustados com o fluxo de pessoas, automóveis de dirigentes de escolas do Grupo de Avaliação (o antigo Grupo D, no qual estreei como carnavalesco, na Mocidade Unida do Santa Marta, em 2013) se revezam na tarefa de entupir os porta-malas e os bancos traseiros com restos de fantasias recebidas pela Cubango da Unidos de Vila Isabel – e repassadas sem custo algum, uma vez que descartadas. No mesmo terreno a céu aberto, o abre-alas em construção é movimentado pelos ferreiros João e Cristiano, membros da equipe de Hélcio Paim. Os mastros da Nau dos Insensatos sobem pela primeira vez: complexa estrutura de tubos metálicos, roldanas, talhas e correntes. Eu observo as formas vazadas do navio, o esqueleto, antes da madeira e de qualquer decoração (imagem 86). Os ossos do carro alegórico em contraste com o céu azul, sem um fiapo de nuvem, apenas o sol, maçarico, e o voo circular de urubus, anunciando carniça nova. Observo as formas vazadas do navio e penso que no enredo da Acadêmicos do Sossego para o carnaval de 2015 havia travessias transatlânticas: a vinda de navios do Porto de Banana, em Angola, trazendo mudas de bananeiras e corpos escravizados; e o retorno das embarcações, levando o brasileiro ananás ibá-cachi à região do Senegal – tudo retirado de Câmara Cascudo. Optamos, no entanto, por não fazer o carro alegórico (no Grupo B, à época, era permitida a apresentação de apenas um carro alegórico, costumeiramente o abre-alas) em forma de barco, inclusive pelas questões

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financeiras (a escola não possuía caixa o suficiente para “erguer” um carro do zero; preferimos, a fim de não sacrificar o orçamento das fantasias das alas, reutilizar a estrutura-base do ano anterior). A presença das viagens marítimas, ponto central para a compreensão do enredo, se via nos chapéus dos ritmistas: sobre um turbante estilizado, um barquinho de papel forrado com um tecido (oxford) estampado com mapas antigos; duas bananas de plástico insinuavam as velas do barco; sobre compridas hastes de fibra, pompons em azul ajudavam a criar um clima marítimo e carnavalesco a um só tempo –tentativa, talvez bem sucedida, de dialogar com a bateria gresilense de 1998 (imagem 87).

Imagem 86: Abre-Alas de 2018 da Acadêmicos do Cubango em construção, em 25/11/2017. Foto do autor.

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Imagem 87: Algumas cabeças das fantasias da bateria do Acadêmicos do Sossego para o carnaval de 2015, aguardando a distribuição em um dos ateliês (terreiro consagrado a Obaluaê, no bairro Viçoso Jardim, Niterói). Bananas de plástico faziam as vias de velas, sobre barquinhos de papel decorados com cartas náuticas. Foto do autor.

Conforme já foi relatado, não se viu, durante o desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2004, interpretações alegóricas das embarcações de 1500. Uma viagem marítima estrutura a narrativa de Breazail, mas a carnavalesca optou por não içar as velas. Também seguiu tal caminho em 1994, na apresentação de Catarina de Médicis na Corte dos Tupinambôs e Tabajeres. A “festa brasileira em Ruão” foi narrada com pormenores (imagem 88); a viagem dos navios franceses (Rosa Magalhães fala em “piratas”314) que levaram os cerca de cinquenta índios do litoral brasileiro para a entrada triunfal da Rainha de França na cidade de Rouen, entretanto, ficou restrita à brevidade da sinopse:

Como em 1549 o rei Henrique II e sua esposa, Catarina de Médicis, tinham visitado a cidade de Lyon, e a festa havia sido fantástica, os moradores de Ruão, a cidade a ser visitada em 1550 (somente 50 anos após a descoberta do Brasil), ficaram preocupados

314 Em O inverso das origens, a carnavalesca conta: “O início da história ficava por conta dos piratas franceses – omitidos no enredo – que costumavam visitar nosso litoral por vários motivos, entre eles o roubo de madeira tintorial. Davam-se bem com os aborígenes e com certeza foi deles a ideia de levar índios para a França.” In: MAGALHÃES, Rosa; NEWLANDS, Maria Luiza. Obra citada, p. 51.

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sem saber como fazer para superar os festejos do ano anterior. Sendo lá um porto, de onde já haviam saído vários navios para o Brasil, os franceses decidiram fazer um convite aos índios com quem se relacionavam amistosamente nas terras brasileiras - os Tupinambás e os Tabajaras. O convite foi logo aceito e cerca de 50 índios embarcaram para Ruão, onde chegaram após vinte dias de viagem, aproximadamente.315

Imagem 88: Comissão de Frente e carro abre-alas do desfile de 1994 da Imperatriz Leopoldinense, que contou, na Marquês de Sapucaí, a história da viagem de cerca de 50 índios brasileiros, levados para a França em 1550. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

Seguindo a mesma linha de raciocínio (ou a mesma rota marítima), a viagem dos navios holandeses que saíram das águas do Recife e levaram retratos da natureza brasileira enquanto presentes para Louis XIV, durante o governo de Maurício de Nassau, igualmente não foi representada em fantasias ou carros alegóricos, no desfile gresilense de 1999. O enredo propunha um salto: da corte tropical pernambucana aos candelabros opulentos de Versailles – separando as alegorias (2 e 3), quatro grupos de “nobres franceses”: com frutas, animais da fauna marinha, flores e animais terrestres, na exata sequência dos figurinos. Os enredos de 1994, 1999 e 2004 ilustram a ideia de que, apesar do inegável apreço pela representação alegórica de barcos, há enredos que, mesmo tratando de viagens ultramarinas bastante específicas, não “embarcam” em navios de ferro, madeira,

315 MAGALHÃES, Rosa. Catarina de Médicis na Corte dos Tupinambôs e Tabajeres. Sinopse do enredo do carnaval de 1994 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA).

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isopor, pintura de arte. Tomando como referência a ausência dessas heterotopias, é possível, ainda, circular um outro grupo de enredos assinados pela carnavalesca, sistema de que fazem parte aqueles que, a despeito da sugestão de grandes viagens e mirabolantes peregrinações, sagas que riscam o mundo, não especificam uma ou outra travessia. Enredos menos fincados na materialidade das páginas dos diários de navegação e mais atentos ao mito, ao delírio, à fantasia carnavalesca em sentido amplo – o que, adverte Mário de Andrade, é mais do que permitido. Podem figurar, nesse conjunto, as narrativas de 1988, 1989, 2001, 2011 e 2016. Os enredos de 1988, 1989 e 2011 guardam uma semelhança imediata: tratam de produtos fortemente ligados ao imaginário cultural brasileiro – o boi, o feijão e o arroz, a cana-de-açúcar. Os temas desfiados nos enredos (ou moídos nos engenhos mentais da artista) são simples, corriqueiros, no prato do dia-a-dia, nas cozinhas mais simples e nas mais sofisticadas. Nos três casos a autora propôs dar a volta ao mundo, passeando por diferentes épocas e civilizações – e terminando, claro, numa louvação ao Brasil. Assim, em 1988 o espectador era convidado a conhecer o Egito, berço do culto a Ápis316, e a ilha de Creta, onde Teseu matou o Minotauro; em 1989, o “extremo Oriente” (China e Japão), os reinos africanos da costa e os palácios árabes desfilavam interconectados; em 2001, o

316 O culto ao Boi Ápis é costumeiramente associado às raízes agrárias do “carnaval” em sentido amplo, mito de origem que as escolas de samba tratam de reproduzir em seus desfiles – a exemplo da narrativa de Festa Profana, da União da Ilha do Governador, em 1989, assinada por Ney Ayan; e da Parábola dos divinos semeadores, da Mocidade Independente de Padre Miguel, em 2011, assinada por Cid Carvalho. Felipe Ferreira fala do assunto, em O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro, inserindo-o no grupo das “festas do mundo antigo”: “A festa egípcia já era celebrada à beira do rio Nilo séculos antes da Era Cristã e consistia, basicamente, em uma procissão na qual a principal figura era um touro enfeitado. Seus chifres eram pintados, seu corpo envolto em fitas coloridas e coberto por ricos tecidos. O animal percorria as ruas da cidade tendo sobre ele uma criança e sendo seguido por grupos fantasiados e mascarados. A farra durava sete dias, nos quais aconteciam banquetes, danças e todo tipo de divertimentos.” O autor destaca, na sequência, que tais eventos devem ser entendidos enquanto “manifestações carnavalescas” apenas no sentido mais genérico da expressão, ligado aos ideais de excesso, inversão, “histórias estranhas, divertidas e grotescas”: “Nesse sentido, até as comemorações das colheitas, como as do trigo ou da uva, já realizadas muito antes da Era Cristã, poderiam ser aceitas como ‘carnavais’, pois suas descrições obviamente revelam a presença de ‘alegria coletiva, folguedo, folia, confusão ou desordem.” Na mesma obra, Ferreira fala da antiguidade das alegorias em forma de barco: “O costume de incorporar charretes em forma de pequenos navios às procissões também era comum em outras comemorações, como as Panatenéias que aconteciam em Atenas. É a presença, nas festas, desses pequenos barcos com rodas que acabou por fazer com que alguns pesquisadores considerassem tais celebrações como um exemplo de folia carnavalesca da Antiguidade, ao imaginar que o nome ‘Carnaval’ teria origem em carrus navalis, ou seja, um carro em forma de navio. Hipótese que, anos mais tarde, foi suplantada por outra teoria, que associa a palavra Carnaval a carne vale, ou ‘adeus à carne’ (...).” Ainda que no campo do fabulístico, é interessantíssima a constatação de que a recorrência de navios na obra de Rosa Magalhães está ligada a uma tradição ancestral – das procissões em louvor a Ísis, no Egito, às oferendas para Iemanjá, no Rio Vermelho, passando pelos Triunfos renascentistas, como se pode ver em pinturas da época. Ver: FERREIRA, Felipe. O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro, p. 19, 20 e 21.

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leitor se via conduzido do Oriente Médio à Europa medieval, deslizava em uma gôndola na Veneza dos Doges e desembarcava num canavial pernambucano, tomava um gole de birita nas cidades históricas de Minas Gerais e terminava brincando carnaval – no Morro

da Mangueira, escola fundada por Cartola e Carlos Cachaça, que levava a pinga no nome. Heterotopias e heterocronias: no carnaval, o que é pouco é bobagem. Os enredos de 2011 e 2016 gestaram desfiles um tanto heterodoxos, a começar pelas temáticas iniciais: cabelos e palhaços. Estreando na Unidos de Vila Isabel depois de uma rápida passagem pela União da Ilha do Governador, Rosa Magalhães desenvolveu, em 2011, uma narrativa completamente fragmentada, tingida de uma certa ironia: em um desfile sobre fios de cabelo, não se viu um fio condutor de raízes fortes, a exemplo do que foi amplamente debatido com relação a Breazail. A ausência de maior coesão é algo observável no texto da sinopse de enredo, assinado a quatro mãos (Rosa Magalhães e Alex Varela): sem brilhantismo (ou brilhantina), trata-se de uma sequência não-linear de nomes (mitos, lugares, personagens históricos) explicados sem qualquer profundidade, conforme se depreende do seguinte trecho:

Os índios Hopi do Arizona acreditavam que o corte do cabelo tinha que ser feito de maneira coletiva, durante as festas de solstício de inverno, para não perderem a força vital.

O primeiro corte de cabelo do Príncipe Herdeiro dos Incas coincidia com o momento em que era desmamado ao completar dois anos de idade. No mesmo momento em que cortava o cabelo, fortalecendo-o, recebia o nome, tornando-se uma pessoa, fato que acontecia numa grande festa coletiva. Um caso individual da força do cabelo é a história bíblica de Sansão e Dalila. Ao contrário das histórias relatadas nos dois parágrafos acima, Sansão perdeu os poderes quando lhe cortaram os cabelos. As tranças e os cabelos longuíssimos têm como simbolismo a submissão. A trança dos chineses, a das mulheres russas e, até mesmo, a de Rapunzel, fábula dos irmãos Grimm, provam este fato. Porém, podem ser também símbolos de salvação, como a de Lady Godiva, que se vestiu só com seus longos cabelos e livrou seu povo dos pesados impostos.317

A competência artística da carnavalesca se fez notar em fantasias e alegorias caprichadas, o que garantiu à escola um excelente conjunto visual – a começar pela impactante abertura, com três gigantescos elefantes indianos (imagem 89); faltou, porém, o quê a mais: o jegue escondido na história, o monstro Jascônio transportando D. João

317 MAGALHÃES, Rosa; VARELA, Alex. Mitos e histórias entrelaçados pelos fios de cabelo. Sinopse do enredo do carnaval de 2011 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos de Vila Isabel, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA).

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VI, as formas de Bosch e Gaudí no subsolo do pau-brasil. O próprio título, Mitos e histórias entrelaçados pelos fios de cabelos, exibe uma obviedade incomum na trajetória em estudo – aspecto também observável no título do enredo de 2014 da Estação Primeira de Mangueira (que se valeu de uma rima nada sofisticada). Em outras palavras: debaixo dos caracóis do enredo da Vila Isabel havia pouco substrato – o que, em se tratando das amarrações de Rosa Magalhães, soa burocrático e desperta questionamentos: estaria a carnavalesca desconfortável por ter de desenvolver um tema patrocinado por uma multinacional de cosméticos? Ou seria o desconforto proveniente da divisão (imposta?) da autoria do enredo com um historiador assumidamente ligado à família que então administrava a agremiação azul e branca?

Imagem 89: Abertura do desfile da Unidos de Vila Isabel, em 2011. O carro abre-alas, conduzido por três imensos elefantes indianos, era dividido em duas partes, que se chamavam: O começo do Universo na tecedura dos cabelos de Shiva, segundo a tradição hindu; e Da cabeleira de Ganga surge o Rio Ganges. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

Sem dúvidas, a narrativa desenvolvida para a São Clemente, em 2016, intitulada Mais de mil palhaços no salão, é mais coesa e aprofundada que a de 2011. O enredo viaja por diferentes tempos, lugares e contextos, mas não apenas as transições são mais suaves

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como o próprio texto é mais saboroso do ponto de vista histórico-literário. A seguinte passagem não deixa mentir:

Quando os Milagres e os Mistérios saíram do interior das igrejas, os artistas que circulavam solitários pelas cortes e castelos passaram a se encontrar nas feiras em torno dos feudos, e foram criadas verdadeiras companhias de saltimbancos. As feiras viram ponto de encontro de artistas de todas as artes e habilidades – dançarinos de corda, volantins, malabaristas, jograis, trovadores, adestradores de animais, pelotiqueiros, músicos, domadores de ursos, dançarinos, prestidigitadores, bonequeiros e acrobatas. Os espetáculos dos Mistérios e Moralidades incorporaram mais um personagem cômico: o rústico. Até mais ou menos 1500, a comicidade desse tipo de espetáculo estava a cargo do Diabo e do Vice. O Vice era um camponês velhaco, canalha, fanfarrão, covarde, e representava todas as fraquezas humanas. Por algum motivo, ele acabava se deparando com o Diabo, sempre acompanhado por um séquito de pequenos demônios e metido em situações cômicas, que o transformava em figura ridícula. Aparece então a palavra clown, para designar o rústico. E ele passou a ser um tipo com características bem definidas. Continuava um grosseirão, meio caipira, mas ganhou esperteza, sua linguagem evoluiu, adorava palavras difíceis. Em 1768, o sargento inglês Philip Astley construiu um anfiteatro ao ar livre, onde pela manhã dava aulas de equitação e apresentava espetáculos equestres. Foi ele quem teve a ideia que iria revolucionar o mundo dos espetáculos: num picadeiro de 13 metros de diâmetro, mesclou exercícios equestres com proezas dos artistas de feira. O espetáculo, baseado na disciplina militar e na valorização da destreza e do perigo, deixava a platéia muito tensa. Era preciso que o espectador tivesse momentos de relaxamento - e é aí que surge o palhaço do circo. O clown, o campônio de quem os artistas itinerantes sempre gostaram de caçoar, veio a ser o protótipo do bufão do circo.318

A transição das feiras medievais para a Londres de Jorge III (segunda metade do Século das Luzes) não se dá aos solavancos – a navegação é tranquila, fluida feito um bom espetáculo de circo. Fluidez que faltou à escola, durante a passagem pela Passarela do Samba: problemas de harmonia e evolução, aliados a um samba de enredo pouco empolgante, prejudicaram o cortejo; por conseguinte, a agremiação amarela e preta amargou, na quarta-feira de cinzas, um apático 9º lugar. O oposto se viu no ano anterior, 2015, quando a São Clemente desfilou o enredo A incrível história do homem que só tinha medo da Matinta Pereira, da Tocandira e da Onça Pé-de-Boi, homenagem a Fernando Pamplona. A “aprendiz” traduzia, reinterpretava e atualizava, na Sapucaí, a obra do “mestre” que a levou para o carnaval319:

318 MAGALHÃES, Rosa. Mais de mil palhaços no salão. Sinopse do enredo do carnaval de 2016 do Grêmio Recreativo Escola de Samba São Clemente, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA). 319 Os jornalistas Fábio Fabato e Luiz Antonio Simas narram, em Pra tudo começar na quinta-feira: “Depois das aulas e pitos práticos do ‘papai’ Pamplona na construção do Pega no ganzê (Salgueiro, 1971), o título pelo Império Serrano em 1982 (ao lado de Lícia Lacerda) foi a segunda maior lição recebida por Rosa Magalhães no começo da estrada. Criou corpo e pintou a franja para seguir adiante.” In: FABATO, 218

proposta coerente e carregada de sutilezas. O enredo, embriagado de poesia, tratava de uma viagem: da cidade de Rio Branco, capital do Acre, onde Pamplona cresceu em meio a lendas e mitos aterrorizantes (imagem 90), à Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, onde Pamplona assistiu ao primeiro desfile de escola de samba da sua vida e se deixou apaixonar pelo Acadêmicos do Salgueiro. A sinopse narra:

Em Rio Branco era assim, um florestão envolvendo a cidade. Ninguém adentrava na mata - "Tá doido, seu?" Era habitada pela bruxa Matinta Pereira, que calava o uirapuru, mas que sumia com a chuvarada, por um bicho brabo, o gogó de sola, de dentada perigosa feito cobra, pela formiga tocandira, pela onça do pé de boi, que todo mundo jura que existia, e com pé de boi e tudo. Pois foi lá nesse lugar tão longe que nosso personagem passou a infância. Foi crescendo, até que um dia chegou a hora de voltar para o Rio de Janeiro, sua terra natal, e onde passaria o resto de sua vida. No Lido é que começou a brincar carnaval, ouvindo "Mamãe eu quero" e "Touradas em Madri". O bloco de sujo de que fazia parte ensaiava no cemitério. A molecada se encontrava perto da quadra IV, que ainda estava em construção, e os defuntos ali enterrados não reclamavam do barulho. "A avenida Rio Branco era um deslumbramento só" - mão dupla, tudo decorado, cheia de grupos fantasiados. Entre os carros, desfilavam os cordões, grupos e blocos com muitos pierrôs, arlequins, tiroleses, holandeses, e muitas colombinas também. Passa o tempo, passa a guerra, passa a ditadura de Vargas, o tempo vai correndo e nosso herói vai se tornando mais adulto e mais valente. Essa avenida Rio Branco, dos desfiles carnavalescos, era a mesma que abrigava o Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional, o Museu e a Escola de Belas Artes. E lá foi ele, atraído pelas artes, para a tal escola, e também para o teatro, onde trabalhou por muito tempo. Foi desse local, numa janela do andar superior, seu camarote exclusivo, que viu pela primeira vez um desfile de escola de samba, com Natal reclamando e a Portela evoluindo ali, naquela mesma avenida. Um dia, foi convidado para fazer parte do júri das escolas de samba. Aceitou. E foi também na Avenida Rio Branco que, encarapitado num palanque de madeira, viu um desfile bastante sui generis. "A primeira escola quebrou o eixo do carro. Que entre a segunda. Mas a segunda só entraria se a primeira entrasse. Então que entre a terceira. E nada da terceira, e nada da quarta também - Às onze e meia da noite, chega alguém avisando que a quinta iria desfilar - até que enfim." A quinta era o Salgueiro, apresentando um enredo sobre Debret - o que cativou nosso jurado: em vez de "Panteão de Glória", "Batalhas de Tuiuti", etc., cantava um artista - Debret. Foi desse dia em diante que nosso personagem se tornou carnavalesco e salgueirense - as cores vermelho e branco, ainda por cima, o remetiam ao time de futebol lá do Rio Branco, quando ainda era menino.320

Fábio; SIMAS, Luiz Antonio. Pra tudo começar na quinta-feira. O enredo dos enredos. Rio de Janeiro: Mórula, 2015, p. 152. Alexandre Medeiros discorre, em As Três Irmãs: “O ingresso (de Rosa Magalhães) no mundo do carnaval foi em 1970, ao trabalhar como figurinista no barracão do Salgueiro. Chegou sem saber muito bem o que faria. A artista foi compor uma equipe que tinha o líder, Fernando Pamplona, e mais Maria Augusta, Arlindo Rodrigues e Joãosinho Trinta. O enredo era ‘Festa para um Rei Negro’, com o qual a escola foi aclamada campeã em 1971.” In: DINIZ, Alan; FABATO, Fábio; MEDEIROS, Alexandre. As Três Irmãs. Como um trio de penetras “arrombou” a festa. Rio de Janeiro: Novaterra, 2012, p. 156/158. 320 MAGALHÃES, Rosa. A incrível história do homem que só tinha medo da Matinta Pereira, da Tocandira e da Onça Pé-de-Boi. Sinopse do enredo do carnaval de 2015 do Grêmio Recreativo Escola de 219

Construindo uma ponte imaginária entre a capital Rio Branco e a Avenida Rio Branco, a carnavalesca navegou por mares tranquilos – mas, assim como nas demais narrativas elencadas aqui, não apresentou a embarcação, um Ita no Norte (Itaquicé), que trouxe Pamplona ao Rio de Janeiro, em viagem de 45 dias marcada por sabores, cores, descobertas, aventuras de menino. 321 Curiosamente, coube a Fernando Pamplona o elogio ao “navio inexistente” mais comentado da obra de Rosa Magalhães: a barca francesa Splendide, vinda de Argel, que desembarcou 14 dromedários em Fortaleza, em 24 de julho de 1859322. Justamente a alegoria que representava o navio, a sétima do desfile de 1995, quebrou, tão logo entrou na avenida, durante a apresentação oficial da Imperatriz Leopoldinense. Rosa Magalhães narra o episódio em um documentário produzido pela LIESA, em 2002 –o que é transcrito por Fábio Fabato e Luiz Antonio Simas: “os diretores fizeram ‘tchum’ e, por mágica, a alegoria sumiu.”323 Sumiu e não causou qualquer comprometimento ao desfile, segundo os jurados – tanto que a escola terminou bicampeã. Sumiu e nunca foi esquecida, em especial pelos torcedores da Portela, que, após uma apresentação lírica e apoteótica (desfilou o enredo Gosto que me enrosco, de José Félix), dava o título de campeã como certo – mas terminou a apuração em segundo lugar. No desfile das campeãs daquele ano, transmitido pela extinta TV Manchete, a sétima alegoria cruzou a Sapucaí sem polêmicas nem avarias. Mamulengos nordestinos carregavam em suas cores o imaginário das batalhas entre mouros e cristãos – a mesma

Samba São Clemente, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA). 321 Pamplona conta, em sua autobiografia: “Pegamos um Ita, o Itaquicé, vapor enorme e adeus! Adeus floresta grande e mal-assombrada, adeus ‘jabuti’, barquinho em que passageiros, remando, atravessavam o Rio Acre para o ‘outro lado’, adeus coroa de flores feita de papel crepom. (...) Enfrentando o misterioso mar, passamos por São Luís, tomando refresco de açaí. Brincando de esconder no navio, meti-me por baixo de um escaler no tombadilho superior sem guarda-corpo. A mão rápida de um taifeiro fez com que este escrito não terminasse em Belém do Pará; vi, de longe, Natal e, em Recife – que tinha porto -, parentes vieram a bordo nos visitar; em Salvador, além da costumeira venda de redes, havia um estranho batuque no cais, uma roda de gente dentro da qual dois negros faziam uma ginástica esquisita, cantavam com um acompanhamento melódico (mas monocórdico), que saíam de arcos parecidos com os dos índios. Achei bacana e, na ocasião, ninguém me explicou o que era aquela dança esquisita, a tal da capoeira! Depois de quarenta e cinco dias da partida de Rio Branco chegávamos ao Rio de Janeiro.” In: PAMPLONA, Fernando. O encarnado e o branco. Rio de Janeiro: NovaTerra, 2013, p. 20/21. 322 O desembarque dos animais é narrado por Jota Efegê em Figuras e coisas do carnaval carioca: “Trazidos pelo navio Splendid, numa viagem de 38 dias, o desembarque dos camelus bactrianus dromedarius, como alguns jornais da terra esbanjando erudição zoológica os trataram, causaram grande rebuliço. Enormes, mastigando continuamente, os estranhos animais, com suas corcovas, não tiveram acolhida festiva. O povo apinhado no cais, influenciados pelas beatas, tinha-os como monstros salvos do Dilúvio. Apontavam para eles como se fossem anticristos. E, esconjurando-os, benziam-se: ‘vote, credo!’. In: EFEGÊ, Jota, Obra citada, p. 236. 323 FABATO, Fábio; SIMAS, Luiz Antonio. Obra citada, p. 155.

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temática observada na ala do tabuleiro, analisada por Felipe Ferreira. Pamplona, comentarista da Manchete, explicava aos telespectadores que aquele era o carro que não havia participado do desfile oficial. E que aquele carro tinha um problema de leitura: nomeado A chegada do camelos, não se via camelo algum. Pouco depois, o professor de Rosa Magalhães explicou às gargalhadas: os animais estavam ali, sim, inteligentemente bem posicionados. Das escotilhas do navio, saiam os pescoços dos bichos, como se assustados estivessem com as justas dos folguedos populares. Tirava o mestre o chapéu para a aprendiz.

Imagem 90: Visão frontal do carro abre-alas da São Clemente, no desfile de 2015. A grande escultura da feiticeira Matinta Pereira representava os medos do menino Fernando Pamplona, o homenageado do enredo, que cresceu em terras acreanas e pegou um Ita com destino ao Rio de Janeiro. Ao fundo, as águias do Theatro Municipal, localizado na Avenida Rio Branco – local de onde Pamplona vislumbrou o primeiro desfile de escola de samba da sua vida. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

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