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II. 3. 3 – Pau-Brasil

II. 3. 3 – Pau-Brasil

Rio de Janeiro, 18 de outubro de 2017. Na semana passada, os protótipos (o primeiro modelo de cada fantasia de ala a ser apresentada no desfile vindouro) da Acadêmicos do Cubango foram oficialmente finalizados e fotografados para divulgação. Não houve qualquer descanso, porém, para o autor-carnavalesco (ou seria um “carnavalesco-autor”?): já pensando nos adereços do carro abre-alas, um grande veleiro, caminhava, 31 graus na cuca, pelos arredores da Uruguaiana, centro em convulsão do Rio, carregando, ao lado de minha mãe, sacolas com organzas, filós e tules - material para fazer mar. Eis que me deparo, na esquina com a rua Buenos Aires, com uma gigantesca pintura a colorir a lateral de um prédio (imagem 33). Inúmeros troncos cortados, vazando, os interiores vermelhos de uma floresta a sangrar. Talvez Amazônia, talvez pau-brasil. Não sei da autoria como não sei do dono da mala, preciso voltar. Registrei a foto para o andar da tese:

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Imagem 33: No centro fervente do Rio, em 18/10/2017, os troncos escorrem vermelhos. Foto do autor.

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Uma verdejante floresta de pau-brasil: assim a carnavalesca Rosa Magalhães definiu o setor de fantasias que antecedia a alegoria 5 do desfile gresilense de 2004 (imagens 34, 35 e 36). A sucessão de figurinos (nomeados, em ordem crescente, Floresta de pau-brasil, Cisalpina echinata, Flor do pau-brasil, O verde da mata e Sementes vermelhas do pau-brasil) conduzia o olhar do espectador à imponente “fortaleza” de Américo Vespúcio (sobre o chassi do carro alegórico, uma construção de pedra, com torres de vigia e canhões, tudo na cor branca – o que fazia com que ela “saltasse” em meio à profusão de verdes). Tamanho destaque dado à árvore do pau-brasil se justifica, uma vez que, segundo a explicação da própria carnavalesca, com base nas leituras de Eduardo Bueno, trata-se do primeiro monopólio, da primeira privatização, do primeiro produto tributado e da primeira espécie ameaçada de extinção da história do Brasil. O pau-brasil, no enredo de Rosa Magalhães, é um tronco de cuja casca escorrem pioneirismos, todos significativos para a compreensão das nossas mazelas. Sérgio Buarque de Holanda vai ainda mais longe e associa o corte do pau-brasil ao início do tráfico negreiro e à comercialização ultramarina de espécimes animais:

Foi o pau-brasil, também, um dos atrativos dos comerciantes franceses que percorreram, já a esse tempo, o nosso litoral, e uma das causas das fricções que se suscitaram aqui entre eles e os portugueses. Pouco se sabe do trato de pau de tinta que então se desenvolveu. Contudo, a julgar pelo resultado de estudos recentes, divergiriam muito os métodos utilizados pelos dois povos. Ao passo que os marinheiros lusitanos recebiam-no por intermédio das suas feitorias costeiras, o que deveria dificultar o contato com os naturais da terra, dado que os toros se acumulavam nas mesmas feitorias antes e depois da arribada dos navios, os tripulantes das embarcações francesas, ao contrário, tratavam diretamente com as tribos indígenas, procurando familiarizar-se com seus hábitos. Algum tráfico de escravos africanos também se deu, certamente, nos primeiros tempos da exploração do nosso litoral. As grandes araras de cores vistosas, que nele se achavam em abundância e parecem ter impressionado vivamente os europeus da época, também chegaram a tornar-se objeto de comércio: desse fato deriva um dos nomes com que o Brasil aparece mencionado em certos mapas e em outros documentos contemporâneos. Uma embarcação armada por Loronha e alguns sócios, que saiu de Lisboa em fevereiro de 1511, a Nau Bretoa, levou de regresso uma carga composta de pau-brasil, escravos, tuins, gatos, saguis e papagaios. Era quase tudo o que daria a terra por aqueles tempos.131

131HOLANDA, Sérgio Buarque de. Livro Terceiro –O advento do homem branco. Capítulo I –As primeiras expedições. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (direção). História Geral da Civilização Brasileira. Tomo I – A Época Colonial. Volume 1 – Do descobrimento à expansão territorial. 16ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008, p. 104/105.

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Imagem 34: Fantasia de baianinha, no desfile gresilense de 2004. Intitulada Floresta de Pau-Brasil, a ala expressava, nas cores dos tecidos utilizados pela carnavalesca Rosa Magalhães, o esplendor da Mata Atlântica brasileira, nos idos de 1500. Detalhe para o amarelo da flor do pau-brasil. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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Imagem 35: Segundo casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira da Imperatriz Leopoldinense, em 2004, com fantasia intitulada Pau-Brasil. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

Imagem 36: Visão de conjunto da ala das Baianinhas da Imperatriz Leopoldinense, em 2004 – profusão de folhas e flores para expressar uma floresta de pau-brasil. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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Sérgio Buarque direciona as suas lentes analíticas para o caráter predatório da exploração do pau-brasil, produto cujo ciclo extrativista oficializa o domínio português, colonial e violento, em terras brasileiras. A historiadora Mary Del Priore desenvolve entendimento semelhante, apresentando um importante “resumo” sobre o corte do pau-etinta:

Para os recém-chegados, a atividade possível vinha da exploração do pau-brasil, bela árvore que tem entre 10 e 15 metros de altura que se espalhava nas matas, do Rio Grande do Norte ao Rio de Janeiro. E a extração da Caesalpnia echinata, com suas perfumadas flores de pétalas amarelas e vermelhas, se fazia junto com os índios. Primeiro eles ensinavam e depois ajudavam a abater, cortar e transportar até as praias e naus a preciosa madeira em troca de espelhos, quinquilharias e pequenas facas. Do ibirapitanga132 , seu nome original, se extraía um pigmento capaz de colorir tecidos e ser usado como tinta para pintura de telas e papel, além de permitir a fabricação de móveis. O pau-brasil, assim chamado pela cor de brasa em seu miolo, foi trazido da Índia pelos árabes desde o século XI, através do Mar Vermelho e do Egito, espalhandose pelos centros manufatureiros da Europa. Notícias do século XII indicam sua presença na Itália, na França e em Flandres. No século XIII, passava, olímpico, às alfândegas de Gênova, Ferrara e Módena. A Espanha passou a importá-lo e em Portugal, desde o reinado de d. Duarte e d. Afonso V, já era empregado. Seu valor no mercado europeu justificava o interesse em arrancá-lo de nossas matas. Segundo Gaspar Correia, em seu Lendas da Índia, Pedro Álvares Cabral já teria levado consigo um primeiro carregamento. Do nascer ao pôr do sol, grupos que incluíam estrangeiros – franceses ou ingleses – se atarefavam na atividade que, quando se fazia como contrabando, era realizada às escondidas, numa pequena baía ou praia abrigada. Afinal, o pau-brasil era monopólio da Coroa e sobre sua extração pesavam impostos dos quais se tentava escapar. Datam de 1505 as primeiras contas da Feitoria de Antuérpia, encarregada da distribuição oficial de pau-brasil: cerca de 20 mil quintais por ano. Carregada em Cabo Frio, a preciosa madeira seguia junto com papagaios, periquitos, macacos e, sempre, índios. O escambo era realizado nas dependências de feitorias, galpões elevados e cercados de estacas para prevenir ataques inimigos. Ao norte, na longa costa, seguia, porém, o contrabando com outros parceiros: franceses e espanhóis.133

Não se pode deslocar o comércio do pau-brasil, portanto, do início do longo processo de apresamento de índios, roda de mortandade que hoje, nos termos de Darcy

132 É necessário registrar que a Imperatriz Leopoldinense apresentou, no carnaval de 1977, o enredo Viagem Fantástica às Terras de Ibirapitanga, desenvolvido por Max Lopes, cuja sinopse, assinada pela “comissão carnavalesca”, diz o seguinte: “Viagem Fantástica às Terras de Ibirapitanga é o enredo que a Imperatriz Leopoldinense apresenta para o carnaval de 1977. Este enredo vem como continuação do carnaval de 1976, quando apresentou Por mares nunca dantes navegados. O carnaval passado tratou da descoberta do Brasil, da saída dos navegadores de Portugal, que, através de heroísmo e fé, partem por mares nunca dantes navegados em busca de outras terras. Suas naus cortando a branca espuma chegam, afinal, à grande ilha, onde tornam um sonho em realidade. Já no carnaval de 1977, a comissão carnavalesca procura dar seguimento a este trabalho. Viagem Fantástica às Terras de Ibirapitanga é o desbravamento pelo sertão misterioso e enfeitiçado. A preciosa terra do pau-e-tinta desponta como uma região tão sonhada das minas fabulosas e de tesouros embriagantes.” Disponível para consulta no seguinte sítio: http://www.galeriadosamba.com.br/carnavais/imperatriz-leopoldinense/1977/6/. Acesso em 18/03/2018. 133 DEL PRIORE, Mary. Obra citada, p. 27/28.

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Ribeiro e Manuela Carneiro da Cunha, deve ser considerado um genocídio. Tal dimensão violenta, porém, não aparece em Breazail, algo nos moldes do observado em outras narrativas da carnavalesca em estudo, conforme o apontado em A Antropofagia de Rosa Magalhães (e que será aprofundado nos próximos capítulos). O pau-brasil, no enredo da artista, é um símbolo de brasilidade cuja celebração evoca a esperança. É isso o que ela sugere na justificativa oferecida aos jurados: “Este foi o tema escolhido pela Imperatriz para festejar o carnaval e esperar que o Brasil se torne de novo a terra do pau-brasil”134 . Não parece descabida a afirmação de que a leitura desenvolvida por Rosa Magalhães mais se aproxima daquela desfiada por Oswald de Andrade no Manifesto da Poesia Pau-Brasil, originalmente publicado no Correio da Manhã de 18 de março de 1924. O poeta, homenageado pela artista no desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2002 (tanto o Manifesto Antropófago quanto a peça O Rei da Vela mereceram destaque, naquela apresentação), redigiu um manifesto de notório teor nacionalista, exaltando as “coisas nossas”, como o carnaval, por meio de uma “poesia de exportação”. O final do texto é particularmente instigante:

Bárbaros crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil.135

Observa-se, no trecho destacado, a aglutinação de uma série de elementos que, juntos, evocam um sentido de brasilidade fincado na harmonia entre contrários. Os “bárbaros meigos” trazem os plumeiros dos “índios de Catarina de Médicis”, depois refutados no Manifesto Antropófago. Já o excerto “A floresta e a escola” evoca as infindáveis discussões sobre a oposição entre natureza e cultura, basilares para a moderna antropologia. Ao juntar em uma mesma sentença os termos “cozinha”, “minério” e “dança”, o poeta utiliza saberes tradicionais (a culinária e os bailados, construções socioculturais que ajudam a construir a identidade de um povo) para “cercar” um elemento em estado bruto, “o minério”, termo que abre ao leitor uma gama de reflexões sobre a ideia de extrativismo primário. Ao final, “a vegetação”: a fauna brasileira

134 Trecho retirado do Livro Abre-Alas do carnaval de 2004, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval - LIESA. 135 ANDRADE, Oswald de. Manifesto da Poesia Pau-Brasil. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro. Apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 8ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 1985, p. 331.

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enquanto imagem-síntese, elemento poderoso para a compreensão do que é ser brasileiro, matéria-prima da proposição poética. Muito antes do manifesto oswaldiano, porém, o pau-brasil já tingia páginas e despertava discussões. A celeuma mais famosa foi levantada pelo Frei Vicente do Salvador e estudada com brilhantismo por Eneida Leal Cunha. No artigo Pau-brasil, bárbaro e nosso, a autora explica que o nome do Brasil gerava debates hermenêuticos já nos idos de 1600. Segundo a pesquisadora da UFMG, o Frei Vicente de Salvador contrapunha a madeira do pau-brasil à madeira das cruzes católicas, alegando que a excessiva valorização do econômico, nos primeiros tempos de colonização (o “culto” à madeira tinteira, portanto), gerava o enfraquecimento da madeira da cruz de Cristo e condenava a terra recém ocupada pelos portugueses ao fracasso espiritual. Do paraíso ao inferno, graças ao pau-e-tinta:

O sentido da queda, a marca originária decorrente da transgressão e da perturbação da hierarquia, é exposto pelo autor no confronto dos dois símbolos: a cruz, a verdade legitimadora e única capaz de garantir a estabilidade; e o pau-brasil, o ilegítimo, pragmático e precário. O contraste entre o que “deu tinta e virtude a todos os sacramentos da Igreja” e o que “tinge panos” é um contraste entre extremos, e, se a convivência harmônica entre esses extremos, entre o divino e o mais prosaicamente humano, era possível e produtiva quando ordenados e submetidos à hierarquia imaginária, a inversão aqui ocorrida interdita um destino venturoso e estável para a colônia. A partir daí, o texto se desdobra, evidenciando um elenco de outros e análogos pares de alternativas e escolhas desastrosas, porque decorrentes também de análogas falsificações do princípio.136

O pensamento do religioso franciscano ajuda a compreender a dimensão simbólica que o pau-brasil adquiriu enquanto produto-síntese das terras “recém-descobertas”, oscilando entre os mitos edênicos e as tentações dos demônios137 (a adaptação da ideia de “queda”, a expulsão de Adão e Eva dos jardins do Paraíso, para a “Terra dos Papagaios”138). Mary Del Priore chega a dizer que Vicente do Salvador, o “Heródoto brasileiro”, foi o nosso primeiro “historiador pessimista”:

136 CUNHA, Eneida Leal. Pau-Brasil, bárbaro e nosso. In: CUNHA, Eneida Leal. Estampas do Imaginário. Literatura, história e identidade cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p. 26/27. 137 Não curiosamente, o mesmo imaginário povoado por demônios que tentavam selvagens e colonizadores aparece no enredo desenvolvido por Rosa Magalhães em 2002, Goitacazes: Tupi or not Tupi, in a South American Way! No segundo carro alegórico do desfile patrocinado por Campos, viam-se esculturas de tais criaturas demoníacas, reproduções carnavalescas das ilustrações feitas por Theodore De Brypara os escritos de Jean de Léry, viajante calvinista francês. Tais associações comprovam que entre os enredos de 2002 e 2004 existem inúmeras conexões e recorrências simbólicas – daí a possibilidade de se afirmar que a obra de Rosa Magalhães constitui um sistema fechado. 138 Eneida Leal Cunha afirma que “a questão flagrada e central para Frei Vicente do Salvador no nível simbólico, na forma de nomear a terra, constitui uma desordem, uma perturbação relevante na continuidade 104

Não faltou quem comparasse a nossa natureza “farta e dadivosa” ao paraíso terreal. A região litorânea aparecia na imaginação de nossos primeiros cronistas como uma extensa planície regada por cursos d’água, a brilhar sob sol permanente. E essa idílica paisagem foi sendo lentamente modificada pela presença da agricultura. Expulsos ou chacinados seus habitantes nativos, as bordas das densas matas começaram a dar espaço aos campos ondulantes do primeiro produto trazido do exterior: a cana. Vindas da Ilha da Madeira, chegavam, então, as primeiras mudas. Mas, contra os otimistas, havia os pessimistas. Nosso primeiro historiador, frei Vicente de Salvador, foi um deles. Para ele, essa “porção imatura da terra” se identificava às regiões infernais. Pois, se antes era a abençoada Terra de Santa Cruz que, só graças ao nome, santificaria seus habitantes, doravante seria Brazil. E Brazil vinha de brasa, de fogo, do vermelho de Satã e do inferno. Lúcifer levara a melhor ao ver assim denominado o novo território.139

A escolha equivocada (movida por interesses distanciados dos princípios religiosos cristãos, alicerçados na caridade e no desprendimento material) do nome do território colonizado seria, segundo a verborragia de Vicente do Salvador, simplesmente fatal. O destino do Brasil, a partir de então, estaria condenado, manchado pela tinta vermelha da cobiça e da exploração desnaturada dos recursos originais oferecidos pelo Novo Mundo, lugar de tentações infinitas e de ritos aterrorizantes. Eneida Leal Cunha fala que o religioso encaravao comércio do pau-brasil enquanto materialização do bíblico “pecado original”, gênese da “instabilidade” do presente e do futuro da colônia. Dos miolos dos troncos não escorria apenas o pigmento cor de sangue, mas “inversões de valores republicanos”, como “a sobreposição do que é particular ao que é público”140 , e relações de mestiçagem e compadrio.141 A autora também elenca dois aspectos implícitos da obra de Vicente de Salvador:

e na hierarquia desejáveis por esse imaginário, ao dar existência histórica e historiográfica à nova terra.” In: CUNHA, Eneida Leal. Obra citada, p. 26. 139 DEL PRIORE, Mary. Obra citada, p. 37/38. 140 CUNHA, Eneida Leal. Obra citada, p. 27. 141 Sobre isso, Mary Del Priore apresenta uma leitura certeira, destacando que “na tradição tribal, a única forma de se relacionar pacificamente com estranhos era integrando-os numa relação de parentesco” (p. 28), ou seja: casamentos entre mulheres índias e homens portugueses se tornavam corriqueiros nas terras recéminvadidas, o que garantia, simbólica e faticamente, o controle lusitano sobre o produto a ser explorado. Entre os galhos, os troncos e as raízes das árvores de pau-brasil, enredavam-se, portanto, relações sociais das mais complexas e significativas para a “formação do povo brasileiro” (expressão cara a Darcy Ribeiro). A “estratégia matrimonial”, para Del Priore, não teria sido uma imposição europeia, mas um acordo mútuo que “funcionou como um modo de organizar a transição da produção coletiva para a de excedentes regulares – o pau-brasil, sendo o principal interesse do lado europeu – ou a prestação de serviços, como o reparo de naus em troca de instrumentos de ferro e quinquilharias” (p. 28). É da mesma autora a seguinte afirmação sintética: o pau-brasil “promoveu a mestiçagem” (p. 36). In: DEL PRIORE, Mary. Obra citada, p. 28 e 36. 105

Em primeiro lugar, a indesejada relevância do pau-brasil sobre a santa cruz comporta, além do conflito entre o sagrado e o profano, a diferença e a hierarquia entre o que é europeu e o que não o é, e a heresia está não só em submeter o divino ao interesse humano e mundano, mas também, e talvez fundamentalmente, em subverter o imaginário cristão europeu e o seu símbolo pela adesão ao que lhe é exterior e natural da nova terra. Em segundo, a constatação de que o nome, que designa exclusivamente o espaço físico, é um símbolo que institui a nova existência geográfica sem designar uma coletividade; nomeiase o lugar, o espaço, a partir daquilo que nele justifica a sua existência para terceiros, como se fosse a terra desprovida de população nativa. E nomeia-se, a contragosto do historiador, a partir do valor de troca da natureza. 142

Ou seja: o pensamento de Vicente de Salvador expressa, ainda, centelhas do eurocentrismo que permanece a opor civilização e barbárie, pureza e mistura, cidade e selva, cozido e cru, cristianismo e religiões de matriz afro-ameríndia, inúmeros pares binomiais que contribuem para o fortalecimento dos neocolonialismos contemporâneos143 - fagulhas perigosas que, séculos depois, ainda são capazes de causar incêndios. Na terminologia de Silviano Santiago, ao “destruir” os conceitos de “unidade” e “pureza”, a formação das sociedades latino-americanas questiona os códigos socioculturais do colonizador, que, paulatinamente, “se deixam enriquecer por novas aquisições, por miúdas metamorfoses, por estranhas corrupções, que transformam a integridade do Livro Santo e do Dicionário e da Gramática europeus. O elemento híbrido reina.”144 O que o enredo de 2004 sugere, nas entrelinhas serpentinadas, é que tamanho manancial de contradições e questionamentos identitários pode ser condensado na imagem do pau-brasil–daí a pertinência da expressão “estampas do imaginário”,cunhada por Leal Cunha. Apesar de não retratar alegoricamente tais visões “desencantadas” dirigidas ao pau-brasil, não se pode dizer que o enredo de Rosa Magalhães é unilateral na sua leitura. Ao contrário: conforme já foi exposto, nos fragmentos anteriores, a autora explica que o nome dado às terras então colonizadas pode, apenas pode, ser proveniente da árvore de madeira tintorial, havendo outras e mais antigas hipóteses (a linha de investigações que

142 CUNHA, Eneida Leal. Obra citada, p. 27/28. 143 A respeito disso, é interessante observar a reflexão de Silviano Santiago: “O neocolonialismo, a nova máscara que aterroriza os países do Terceiro Mundo em pleno século XX, é o estabelecimento gradual num outro país de valores rejeitados pela metrópole, é a exportação de objetos fora de moda na sociedade neocolonialista, transformada hoje no centro da sociedade de consumo. Hoje, quando a palavra de ordem é dada pelos tecnocratas, o desequilíbrio é científico, pré-fabricado; a inferioridade é controlada pelas mãos que manipulam a generosidade e o poder, o poder e o preconceito.” In: SANTIAGO, Silviano. O entrelugar do discurso latino-americano. In: Uma literatura nos trópicos. Ensaios sobre dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 15. 144 SANTIAGO, Silviano. Obra citada, p. 16.

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nos leva às minas de estanho celtas e às embarcações dos reis fenícios). Por outro lado, é evidente que a artista, ao menos no setor aqui analisado, mitifica a árvore de flores amarelas, convertendo-a em “metáfora vegetal” e símbolo absoluto de “brasilidade” –tronco espinhoso, sob as lentes de Antonio Cicero. As definições de Brasil a partir da natureza tropical (comuns durante o romantismo indianista de autores como José de Alencar, que assumia ser um apaixonado leitor de James Fenimore Cooper145) têm sido sistematicamente refutadas por alguns ensaístas brasileiros contemporâneos, caso de Silviano Santiago e do recém-eleito imortal Antonio Cicero, para quem é preciso “rejeitar o clichê que faz do homem tropical um escravo da natureza, das circunstâncias ou das paixões que sofre.”146 Segundo o autor, o Brasil

não quer ser descrito pelas metáforas orgânicas e, sobretudo, vegetais, cujo protótipo é o famoso cedro de Herder, de raízes fincadas no solo ancestral. Originalmente uma elipse, a expressão “Brasil” funcionava como metonímia do país que continha pau-brasil. Mas de maneira nenhuma deve o pau-brasil ser tomado como metáfora do Brasil. Quando comparamos uma nação a uma árvore, estamos enfatizando os aspectos concluídos e herdados da sua vida cultural. (...) Antes de tudo, “Brasil” remete a “brasa”. É evidente que não devemos nem podemos prescindir da linguagem figurada, já que o seu emprego faz parte da ars inveniendi e trata-se, aqui, da descoberta do Brasil, isto é, da inventio Brasilis. Preferimos, contudo, um célebre tropo americano (americano ma non troppo, feito tudo americano, pois foi Tocqueville, se não me engano, quem primeiro o empregou) e dizemos que o Brasil é o verdadeiro melting pot, o crisol, que os Estados Unidos não chegaram a ser, em que se dão tanto a promiscuidade quanto a miscigenação das mais diversas culturas e raças -- americanas, europeias, africanas, asiáticas -- que modificam, relativizam, instrumentalizam e fecundam umas as outras. O crisol, ao contrário da árvore, consiste no âmbito da mudança, no lugar de fusão e separação, expansão e contração, composição e decomposição, condensação e rarefação, onde nada jamais permanece o mesmo. Obviamente, mesmo a metáfora do crisol não é inteiramente adequada, pois, neste, diferentes metais se fundem em uma única liga enquanto, no Brasil, o intercurso das diversas raças e culturas resulta na multiplicação combinatória de códigos genéticos e culturais. Talvez devêssemos, por isso, ter preferido a imagem de um laboratório.147

Em outras palavras, o teórico refuta a visão retrospectiva presenta na metáfora do pau-Brasil e defende a visão prospectiva representada pelo crisol. O ensaio é citado por Alberto Pucheu nas notas que complementam o artigo O “Carnaval Carioca (1923)”, de

145 A temática foi amplamente debatida no capítulo Peri beijou Ceci, ao som d’O Guarani – um gesto de brasilidade, da dissertação A antropofagia de Rosa Magalhães. 146 CICERO, Antonio. Brasil feito brasa. Artigo originalmente proferido na Literaturhaus de Frankfurt, em outubro de 1994, por ocasião da Feira Internacional do Livro. Disponível em http://www.geocities.ws/fusaoracial/FusaoRacial_A_Cicero.htm. Acesso em 22/07/2017. 147 CICERO, Antonio. Obra citada.

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Mário de Andrade, que abre a coletânea de mesmo nome, e se apresenta enquanto contraponto à faceta mais conhecida de Rosa Magalhães, amante das comparações com a natureza exuberante. No desfile de 1999, campeão, havia um setor inteiro dedicado às plantas brasileiras, representando o volume Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae Icone Vegetalium da coleção de pinturas elaboradas por Albert Echkout a pedido de Maurício de Nassau, durante o Brasil-holandês do século XVII. O esplendor vegetal também aparece, com notável expressividade, nas narrativas de 1994, 1996, 2002 e 2006 (nos últimos dois casos, diretamente ligadas ao “ideal romântico” dos autores José de Alencar e Alexandre Dumas, respectivamente). No enredo de 2004, a contradição é interna, estruturada nas alegorias: se ao final ocorre a glorificação do pau-brasil, no decorrer do desfile há um laboratório (a segunda alegoria, inspirada no inferno de Bosch) e um caldeirão fervente (o abre-alas, onde a feiticeira mexia um caldeirão), que não deixa de ser uma variação do crisol. Não se pode esquecer, ainda, do conteúdo do Instinto de Nacionalidade, o ensaio em que Machado de Assis, em 1873, de certa forma antecipa o núcleo das discussões agora colocadas na mesa (ou no caldeirão borbulhante, ao gosto da feiticeira). Saiu da pena machadiana o famoso trecho em que a “identidade cultural” de Shakespeare é posta em causa: “e perguntarei mais se o Hamlet, o Otelo, o Júlio César, a Julieta e Romeu têm alguma coisa com a história inglesa nem com o território britânico, e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um gênio universal, um poeta essencialmente inglês.”148 A conversa entre o Bruxo e o Bardo me remete ao enredo (abortado) sobre Nova Friburgo, cidade mencionada por Silviano Santiago em O entre-lugar do discurso latino-americano (o autor cita “New England, Nueva España, Nova Friburgo, Nouvelle France, etc.”149 a fim de ilustrar a tentativa da empreitada colonialista de fazer da América um simulacro, uma cópia do modelo europeizante, em detrimento das identidades locais, subjugadas a ferro e fogo). Nos galhos do pau-brasil, incontáveis são os novelos – e as sincronicidades que me levam navegando.

148ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Instinto de Nacionalidade. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/355080/mod_resource/content/1/machado.%20instinto%20de%2 0nacionalidade.pdf. Acesso em 11/09/2017. 149 SANTIAGO, Silviano. Obra citada, p. 15.

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