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I – Por mares nunca dantes navegados
I - Por mares nunca dantes navegados...
«Mas cá onde mais se alarga, ali tereis Parte também, co’o pau vermelho nota; De Santa Cruz o nome lhe poreis; Descobri-la-á a primeira vossa frota.
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Luís de Camões – Os Lusíadas (Canto X, 140)
Nice, 2 de fevereiro de 2017. Dia da Rainha do Mar, Mãe de todos os peixes. Não há areia na praia, mas pedras. Noite fria, água congelante. Do outro lado do Mediterrâneo, a Argélia e a Tunísia, de onde partiram os dromedários para a primeira expedição científica brasileira – as minhas memórias de 1995, o jegue escondido na história. De falta de mandinga o carnaval não morre? É fato que inúmeras escolas de samba, inclusive das ditas “grandes”, do Grupo Especial do Rio de Janeiro, estão vendo as suas alas de Baianas (obrigatórias desde o regulamento de 1933, uma vez que sintetizam a matriz espiritual do samba, o legado de Ciata) esvaziadas progressivamente devido ao avanço das igrejas neopentecostais e da conversão que não tolera os terreiros (as origens das “quadras” de ensaios), demonizando os saberes afro-ameríndios que enredam o tecido cultural em que as agremiações sambistas se veem amarradas desde os míticos nascimentos, num tempo de chão de estrelas, cabrochas, barracões de zinco – idílios que alimento, porque não vivi. Apesar das ameaças, felizmente, os mais elaborados despachos oferecidos a Exus e Pombagiras continuam a disputar espaço, na encruzilhada entre as ruas Carlos Xavier e Henrique Braga, Oswaldo Cruz e Madureira, em frente à entrada do pavilhão onde mais de 30 escolas de samba dos grupos “menores”, que desfilam na Estrada Intendente Magalhães, muito longe da Sapucaí, constroem os seus carros alegóricos (que, via de regra, são feitos com sobras de carnavais passados, doações da Cidade do Samba – do lixo que se faz o “luxo”, à la Joãosinho Trinta). São tantas e tão fartas as oferendas, garrafas, taças, alguidares, que a visão da encruzilhada antecipa uma visão carnavalesca: carros alegóricos multicoloridos (com destaque para o vermelho) enfileirados na concentração (imagem 1). Admirador que também sou de Pedro Arcanjo, faço coro a Caetano Veloso e me entendo enquanto “ateu que vê milagres” – Jorge Amado, afinal, sabia das coisas. Acredito, e bem, nas mandingas das esquinas do mundo. Na cidade de João do Rio, Lima Barreto e Machado de Assis, a conexão com o carnaval
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potencializou o meu sincretismo: ano após ano insiro novos elementos no panteão do meu altar (que, dependurado tortamente, não passa de uma caixa de frutas).
Imagem 1: Oferendas na encruzilhada entre as ruas Carlos Xavier e Henrique Braga, na semana que antecedeu o carnaval de 2016. Foto do autor.
Em meados de novembro de 2013, quando entrei na Sala Guimarães Rosa, na Faculdade de Letras da UFRJ, para a entrevista (arguição de memorial e anteprojeto) de seleção para o Doutorado em Ciência da Literatura, carregava em um dos bolsos da calça o colar de sementes de pau-brasil adquirido durante a Cúpula dos Povos, evento paralelo à Rio+20, realizado no Aterro do Flamengo, em junho de 2012. Apertei as sementes durante a entrevista e, depois, nada aliviado, devolvi o colar ao seu lugar de adoração: o torso nu da imagem de São Sebastião, o líder da milícia do altar-caixote, junto a um brilhoso Oxóssi confeccionado no barracão da Mocidade Independente de Padre Miguel pelo aderecista Diney Lima. Um manto vermelho-brasil para o santo que dá nome à cidade – cuja igreja, a poucos passos da casa em que eu morava, na Tijuca, guarda a pedra fundacional do Rio e os ossos de Estácio de Sá. O colar foi a minha mandinga e a minha mandinga vingou: ocorre que fui aprovado, e em primeiro lugar, para falar de Breazail e do braseiro que nos deu o nome (supostamente, porque tudo são suposições). O colar, uma infelicidade, foi corroído pelos bichos e não sobreviveu à mudança realizada dias antes da viagem para Nice, de onde escrevo tais ruminações, na condição de “doutorandoexilado”, intercambista, que se vê distante dos sambas, dos batuques, dos ensaios, das últimas confusões que antecedem os desfiles (e como é estranho e opaco trocar o verão
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pelo inverno e acompanhar pela tela a catarse!). Ruínas, a matéria-prima. A cepa das melhores narrativas e das memórias mais sofisticadas.
No campo específico dos estudos voltados para o universo das escolas de samba do Rio de Janeiro, não parece equivocada a afirmação de que Rosa Magalhães, Fernando Pinto e Joãosinho Trinta, cada um ao seu modo, são os artistas que mais rebuscadas narrativas de enredo levaram para as avenidas dos desfiles, pouco se curvando às facilidades do gênero, como biografias lineares e roteiros turísticos (os chamados “enredos CEP”, muito debatidos na contemporaneidade – tanto mais quando a contraditória figura do “patrocinador” entra em cena, alimentando espinhosas celeumas). Há, sobre as criaçõesdacarnavalesca, poucos artigosacadêmicosencontradosem revistas de faculdades de Artes (como “Rosa de Ouro nunca foi de brincadeira”: a presença da arte erudita no carnaval de Rosa Magalhães, de Gustavo Krelling e Dulce Osinski, e O imaginário barroco de Rosa Magalhães, de Mário de Carvalho, ambos publicados pela Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares – TECAP UERJ) e trechos de livros (como O Marquês e o Jegue – estudo da fantasia para escolas de samba, de Felipe Ferreira– atualização da dissertação de Mestrado em História da Arte defendida na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA – UFRJ), em 1996, sob o título O marquês, o jegue, a princesa e o corta-jaca: um estudo sobre a expressão plástica da cultura erudita nas fantasias de carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro). Há, ainda, a produção teórica da própria realizadora – em especial os dois livros dedicados ao processo de pesquisa e confecção de carnavais: Fazendo Carnaval, de 1997, e o recente O inverso das origens, de 2014, escrito em parceria com a historiadora Maria Luiza Newlands. Não há, porém, um estudo vertical que se proponha a analisar (melhor, no caso deste estudo, é dizer “mapear” ou “percorrer”) o conjunto de narrativas da autora sob a ótica (desfocada?) da literatura, algo análogo ao que Milton Reis Cunha Júnior fez com a volumosa produção de Joãosinho Trinta, nos cursos de Mestrado e Doutorado em Teoria Literária do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ1 . Com osolhos voltados para tal esfingee ciente das limitações de uma pesquisaque já pressupõe incorporado o espírito crítico mais lacunar e menos ortodoxo, mais envenenado de paixão e menos acorrentado aos cânones, tem início essa empreitada – que também é uma
1 Tratam-se dos trabalhos intitulados Paraísos e Infernos na poética do enredo escrito de Joãosinho Trinta (dissertação de Mestrado, defendida em 2006) e A rapsódia brasileira de Joãosinho Trinta: um grande leitor do Brasil! (tese de Doutorado, defendida em 2010), ambos orientados por Frederico Augusto Liberalli de Góes.
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viagem, um diário de navegação, um exercício de deslocamento e reprocessamento do meu próprio olhar, que, aqui, se vê na condição de imigrante, se vê refletido estrangeiro. *
Viagem oficialmente iniciada em 2012, quando ingressei no curso de Mestrado em Ciência da Literatura, na área de concentração Teoria Literária, da referida UFRJ. Dois anos depois, em fevereiro de 2014, era defendida a dissertação A Antropofagia de Rosa Magalhães, texto em que levantei questionamentos sobre onze narrativas da professora aposentada da Escola de Belas Artes (e carnavalesca em plena atividade, o que torna a viagem um tanto imprevisível), justamente aquelas que abarcam operíodo de 1992 a 2002. O enredo de 2002, Goitacazes: Tupi or not Tupi, in a South American Way!, atuou como centro da investigação e guiou as discussões sobre as demais obras. Em resumo, a pesquisa por mim desenvolvida se ocupou de debater, com foco no desfile de 2002 (tomado como emblema de parte do universo simbólico da autora), três eixos temáticos observáveis nas narrativas dos enredos apresentados nos dez primeiros anos em que Rosa Magalhães esteve à frente do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense (GRESIL): o índio (tópico investigado no capítulo O índio é acima de tudo um forte), o senso de brasilidade (aspecto desenvolvido no capítulo Viva nós, os brasileiros!) e a própria antropofagia cultural (o tema que permeou as mais de 300 páginas da dissertação e que foi liquidificado na conclusão da pesquisa, intitulada O índio e o alaúde, Macunaíma com Flash Gordon). A autora concebeu uma série de enredos que tratam de um Brasil mestiço cujo símbolo maior, o índio (que aparece em oito das onze narrativas analisadas, sendo o personagem-central da obra apresentada em 2002), se desdobra, mito-Macunaíma, em diferentes facetas, predominando o selvagem romântico alencariano, a personificação de um “bom selvagem” imperial2 - o índio “cavaleiro”, de alma nobre, operístico, “topinambou” , na terminologia poética de Jorge de Lima, em
2 Havia, durante o Império, uma íntima relação entre as coroas e os cocares: o índio foi um símbolo bastante utilizado pelos Imperadores (especialmente Pedro II) a fim de solidificar o imaginário do “Império tropical”, uma nação “coesa e valorosa” (a despeito dos inúmeros – e sangrentos – conflitos internos) que redescobria as suas raízes míticas por meio do indianismo romântico (apesar do genocídio dos povos ameríndios de que falam autores como Manuela Carneiro da Cunha) representada pelo esplendor da natureza. Curiosa e sintomaticamente, a utilização de tal imaginário selvagem permanece viva quando se trata de representar/sintetizar o Brasil em determinadas esferas –a exemplo dos cartazes afixados nos editais da Faculdade de Letras da Université Nice Sophia-Antipolis, em Nice - França, em janeiro de 2017, quando teve início o meu Doutorado-sanduíche: convidando os estudantes para pesquisas de pós-graduação no Brasil, uma profusão de araras, papagaios, palmeiras e grafismos indígenas. Ver: SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador. D. Pedro II, um monarca nos Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil – História, Direitos e Cidadania. São Paulo: Editora Claro Enigma, 2012.
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Invenção de Orfeu. O selvagem diametralmente oposto aos famigerados “tapuias”3, em resumo. Além disso, dialogou com artistas “eruditos” e “populares”, fundindo referências provenientes de círculos culturais distintos4 (flertando, inclusive, com o que há de mais massivo e “mercantilizável”, como o cinema de Hollywood e os musicais da Broadway5 - e tal apropriação e posterior ressignificação com vistas à Passarela do Samba pode ser entendida como representante do caráter antropofágico da obra da carnavalesca e das escolas de samba enquanto entidades plurais e polifônicas, dinâmicas por natureza, em permanentes conflitos e negociações).6 Por fim, no recorte temporal interpretado há as peças para a montagem de uma determinada visão de Brasil que se apresenta condensada
3 O pesquisador Mário de Carvalho também atentou para a faceta indianista romântica da produção carnavalesca de Rosa Magalhães, afirmando: “O carnaval de RM, enquanto forma e tema, remete ao ‘tropicalismo’ iniciado pelos românticos do século XIX. Podemos encontrar em suas criações uma imagem do Brasil paradisíaco, representações do índio forte e belo, a exuberância da fauna e da flora; o índio descrito por Michel de Montaigne (1533-1592) e mais tarde por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) em sua teoria do bon sauvage. Para o iluminista Rousseau, o ameríndio tornara-se uma referência do bom selvagem, pronto para a ‘civilização’. Esse ‘bom selvagem’ foi o fruto do imaginário de todos os grandes leitores dos cadernos de viagens que se propagaram no século XVI; o ameríndio é, de certa maneira, um personagem híbrido, feito a partir de inúmeras descrições dos homens ‘primitivos’ vivendo na ‘idade de ouro’ natural. Deus é revelado pela natureza; por consequência, o ser natural é profundamente ‘bom’. Esta visão romântica dos ‘selvagens’ foi alimentada pelos exploradores e missionários que acreditavam encontrar o paraíso perdido. Paraíso apresentado em formas e cores nas concepções alegóricas da carnavalesca. No Brasil, a temática romântica nas artes plásticas foi influenciada pela literatura e pela história do país. As imagens produzidas por artistas, no século XIX, como Victor Meireles, Rodolfo Amoedo, Augusto Rodrigues Duarte e Pedro Américo evocam uma noção de ‘brasilidade’ que nascia nas obras literárias de autores românticos – José de Alencar, Iracema (1865), O Guarani (1857), Ubirajara (1874); Gonçalves Dias, I-Juca–Pirama (Últimos Cantos, 1851); Gonçalves de Magalhães, Confederação dos Tamoios (1856).” In: CARVALHO, Mário de. O Imaginário Barroco de Rosa Magalhães. In: Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares (TECAP – UERJ), Estudos de Carnaval, v.11, n. 02, 2014, p. 123/124. Disponível no sítio: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/tecap/article/view/16344/12167. Acesso em 15/11/2015. 4 Alfredo Bosi teoriza sobre a situação da cultura universitária brasileira, a cultura fora da universidade, a indústria cultural, a cultura popular e as relações entre as culturas brasileiras em seu texto Cultura brasileira e culturas brasileiras, parte constituinte do livro Dialética da Colonização. Ver BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 5 O exemplo mais recente desse diálogo é proveniente do desfile elaborado para a Unidos de Vila Isabel, em 2012, quando, para ilustrar o final do enredo Você semba lá... que eu sambo cá! O canto livre de Angola, a autora misturou referências ao artista anglo-nigeriano Yinka Shonibare, ao musical da Broadway O Rei Leão e ao artista plástico brasileiro Rubem Valentim. Tal episódio, discutido no artigo Hibridismo cultural em desfile: as cores da diáspora e os diálogos interartes no carnaval carioca, publicado nos anais do XII Enecult (2016), será melhor questionado no decorrer deste trabalho. 6 Felipe Ferreira explica que “as escolas de samba contemporâneas têm procurado encontrar caminhos que as permitam articular seus velhos sentidos nas novas formas de desfiles que se impõem. Conceitos importantes para a definição destes grupos, os discursos da tradição, da raiz e do pertencimento ao espaço da cultura popular vêm sendo questionados pelas novas formas assumidas pelos desfiles, reflexos por sua vez das negociações de interesses entre as próprias escolas, o poder público, o poder empresarial, a intelectualidade e, não menos importante, os participantes ou componentes. Se alguns desses poderes parecem ter voz mais ativa atualmente, é importante lembrar que as escolas existem como resultado do equilíbrio negociado de todos os atores e que o processo de hegemonia não se dá pela imposição de um conceito sobre o outro, mas pela negociação entre as partes.” In: FERREIRA, Felipe. Escolas de samba: uma organização possível. In: FERREIRA, F. Escritos carnavalescos. Coleção Circuitos da Cultura Popular – Vol. 07. Rio de Janeiro: Aeroplano editora, 2012, p. 179/180.
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e amadurecida (inclusive ironicamente refutada no trecho que trata do Manifesto oswaldiano7) na narrativa de 2002, segundo a qual o nosso país é um lugar onde os antagonismos se equilibram (a “harmonização dos contrários” associada à sobreposição de oposições do barroquismo, nos termos de Mário de Carvalho8), alegre, miscigenado e heróico - visão esta que aproxima Rosa Magalhães das teorizações sociológicas da primeira metade do século XX (vide a tônica de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, sintetizada no quinto carro alegórico do desfile gresilense de 2001, que representava um engenho colonial na narrativa sobre a cana-de-açúcar e a cachaça) e a afasta, consecutivamente, das visões contemporâneas desenvolvidas pelos teóricos do conflito, preocupadas em entender o Brasil enquanto nação multiplamente partida, permeada de preconceitos, segregada em guetos, classes e grupos étnicos (algo desenhado por Darcy Ribeiro em O povo brasileiro e colorido com vivas tintas no exaustivo ensaio Brasil: uma biografia, de Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Starling – prosa de fôlego que percorre um arco temporal que vai dos ditos “primeiros tempos” às manifestações contra o segundo mandato de Dilma Rousseff, em março de 20159). De antemão, é preciso deixar claro que as reflexões apresentadas em A Antropofagia de Rosa Magalhães certamente figuram enquanto sustentáculos da presente obra (a começar pela revisão teórica, quase academicista, das ideias de “enredo” e “carnavalesco” - que não serão revisitadas), o que não quer dizer que este trabalho é uma continuação (a despeito do fato de que, se pensarmos na imediata sucessão temporal de Mestrado e Doutorado, há, sim, uma continuidade) ou mesmo uma “expansão temática” .
7 No texto de apresentação do enredo, composto por fragmentos literários (o que revela a experimentação estética já na redação da história a ser contada), a carnavalesca adotou a voz de Oswald de Andrade e declarou guerra ao “índio tocheiro, afilhado de Catarina de Médicis”. Ironicamente, o enredo desenvolvido em 1994 tratava exatamente dos “tupinambôs e tabajeres” que encantaram a própria, a rainha francesa Catarina de Médicis. Tal “aparente paradoxo”, debatido na dissertação A Antropofagia de Rosa Magalhães, revela uma notável plasticidade autoral. 8 Ver CARVALHO, Mário de. Obra citada, p. 122. 9 Nos últimos parágrafos do livro, as autoras lançam provocações que, três anos depois, se mostram escancaradas: “São várias as questões que tornam este livro uma obra aberta. O Brasil consolidará a República e os valores firmados na Constituição de 1988? Conseguirá manter um crescimento sustentável sem dilapidar suas riquezas naturais? Que papel desempenhará no cenário internacional? Claro que não há por que transformar uma conclusão num ponto final, muito menos numa cartilha de uso imediato. Toda história é aberta, plural, e permite muitas interpretações. A que tentamos desenhar aqui mostrou o quanto vem sendo difícil a nossa construção cidadã. De toda forma, os desafios para que se altere o imperfeito republicanismo no Brasil são muitos: a sua persistente fragilidade institucional, a corrupção renitente, o bem público pensado como coisa privada. A grande utopia quem sabe ainda seja acolhermos os valores que têm como direção a construção do que é público, do que é comum. Talvez comece nesse desafio mais um capítulo na história do Brasil. Afinal, feita a opção democrática, também a República pode recomeçar.” In: SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa M. Brasil: uma Biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 507/508.
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Os eixos esmiuçados na dissertação atendiam ao viés investigativo concedido à análise específica das onze narrativas selecionadas (foi levado em conta, por exemplo, o fato de que todas as obras foram concebidas para uma única escola de samba, a Imperatriz Leopoldinense, do bairro de Ramos, havendo, sim, indícios de que a “identidade” da escola, tema debatido por Felipe Ferreira, Vinícius Natal e Alexandre Medeiros10 , afetou a concepção dos enredos, obras que não são “autônomas”, mas produzidas para uma instituição – ou seja, amarradas à ideia de “tradição” e dependentes de um suporte administrativo e de um determinado corpo de desfilantes), o que não necessariamente se aplica ao conjunto integral das narrativas da autora – e aqui aparecem as primeiras pistas falsas, os primeiros dromedários cambaleando com patas quebradas, as primeiras ilhas disfarçadas de baleias. Se o último trecho dá a entender que o objetivo da pesquisa é “dar conta” da obra carnavalesca de Rosa Magalhães, classificando e “engavetando” teoricamente a integralidade das narrativas de enredo desenvolvidas pela autora em mais de trinta anos dedicados ao carnaval carioca (com passagens por escolas tão díspares como Portela, Império Serrano, Estácio de Sá, Acadêmicos do Salgueiro, Imperatriz Leopoldinense, União da Ilha do Governador, Unidos de Vila Isabel, Estação Primeira de Mangueira, São Clemente, entre outras11), isso não é verdade. A começar pelo fato de que tal perspectiva
10 Ver: FERREIRA, Felipe. O Marquês e o Jegue. Estudo da fantasia para escolas de samba. Rio de Janeiro: Altos da Glória, 1999; MEDEIROS, Alexandre. A Heráldica do Império Leopoldinense. In: DINIZ, Alan.; FABATO, Fábio; MEDEIROS, Alexandre. As Três Irmãs. Como um trio de penetras “arrombou” a festa. Rio de Janeiro: Novaterra, 2012, p. 24/27; NATAL, Vinícius. Samba e Cultura – Práticas de Resistência do Departamento Cultural da Imperatriz Leopoldinense (1967-1973). In: Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares – Estudos de Carnaval. V. 9, n. 1. Rio de Janeiro: Faperj, 2012. 11 Antes da vitória do Império Serrano de 1982, a carnavalesca também teve passagens pela Beija-Flor de Nilópolis e pela Portela (escola para a qual retornaria, em 2017) – momentos nebulosos e até polêmicos (na Beija-Flor, a artista desenhou os figurinos da escola para o desfile de 1974, cujo enredo, Brasil ano 2000, se insere na condenada trilogia em homenagem à “política desenvolvimentista” pós-64; em outras palavras, uma trilogia pró-ditadura). Tanto na Beija-Flor quanto na Portela, porém, a autoria dos enredos não é de Rosa Magalhães (na escola de Nilópolis, Manuel Antônio Barroso; na escola de Oswaldo Cruz e Madureira, Hiram Araújo e Departamento Cultural) – fato defendido pela artista, em seus depoimentos, e comprovado nos registros da época (no caso da Beija-Flor, a realizadora é enfática ao alegar que sequer “criava” os figurinos, mas única e tão somente seguia as ordens do autor do enredo – tendo chegado à escola por indicações e aceitado o trabalho de modo descompromissado, “por ser mais uma incursão” em um contexto cuja estrutura era “muito incipiente”). Tais experiências carnavalescas não serão investigadas por este motivo, assim como não será enfatizada a passagem pela Comissão de Carnaval encabeçada por Maria Augusta Rodrigues e formada, na década de 1980, para desenvolver os primeiros desfiles da Tradição, escola dissidente da Portela). Expandindo a leitura, Rosa Magalhães também emprestou a sua arte para desfiles carnavalescos de São Paulo, tendo passagens pelas escolas Barroca da Zona Sul (2003), para a qual desenvolveu um enredo sobre o jogador de futebol Pelé (que automaticamente contrasta com a “linhagem enredística” construída no carnaval carioca) e Dragões da Real (2014), agremiação que desfilou o enredo Um museu de grandes novidades, sobre o “universo pop” das décadas de 1970 e 1980. Sobre o período dos enredos governistas da Beija-Flor, é importante a leitura de Os porões da contravenção, de Aloy Jupiara e 23
totalizante (de acordes enciclopedistas) não é condizente com o caráter eminentemente fragmentário da ensaística e da crítica de arte. Ora, uma narrativa de enredo de escola de samba é um texto fraturado de origem, sendo insuficiente a classificação planificadora (que pode adquirir, inclusive, um teor necrófilo12). É óbvio que “planificar o terreno” é possível (há, inclusive, livros que se propõem exatamente a classificar enredos a partir de definições temáticas, taxonomia pura), mas, espoca o witz romântico, será isso o desejável? Mais: será isso o desejável em um trabalho oficialmente enraizado no campo da Teoria Literária, um pedaço da gigantesca seara das Artes, nos fronteiriços espaços dos Estudos Culturais? As rotulações (tão criticadas por Félix Guattari13) dão conta de uma tempestade de proporções shakespearianas? Assim como um roteiro cinematográfico, um libreto de ópera ou um texto teatral, uma “sinopse” de escola de samba é necessariamente incompleta, uma vez que o texto escrito centraliza apenas uma das três leituras que um desfile demanda: além da narrativa impressa em papel (apresentada ao público e ao corpo de jurados no Livro Abre-Alas, anualmente editado pela Liga Independente das Escolas de Samba (LIESA) e disponibilizado na Internet14), há o conjunto visual (a tradução da narrativa em fantasias e carros alegóricos) e o samba-enredo ou samba de enredo (a transformação do texto do artista-carnavalesco em letra e melodia, por obra de outros artistas, os compositores – às vezes, sob encomenda; às vezes, mediante concurso, evento que mobiliza inúmeras parcerias, demanda grande investimento financeiro e traz à baila agentes de outros territórios simbólicos, todos interdependentes, compondo um quadro-mosaico no mais das vezes conflituoso, propício para as investigações etnográficas). Nesse sentido, a avaliação do quesito enredo é seguramente complicada, posto que trabalha com diferentes níveis de leitura e interpretação, no intercâmbio (nem sempre claro) entre as linguagens
Chico Otavio. No livro, os autores mencionam a passagem da carnavalesca pela escola de Nilópolis, afirmando o seguinte: “Para o carnaval de 1974, os desenhos foram feitos pelas jovens Rosa Magalhães –mais tarde, carnavalesca campeã no Império Serrano, na Imperatriz Leopoldinense e na Vila Isabel – e Lícia Lacerda, ex-alunas da Escola de Belas Artes da UFRJ. Em 1975, Augusto de Almeida foi o figurinista; o carnavalesco Júlio Matos, que passara pela Mangueira e pelo Paraíso do Tuiuti, criou as alegorias.” In: JUPIARA, Aloy; OTAVIO, Chico. Os porões da contravenção. Jogo do bicho e ditadura militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado. Rio de Janeiro: Record, 2015, p. 88. 12 Trata-se da adaptação de um termo utilizado por Paulo Freire, teórico preocupado com o caráter “necrófilo” (expressão que extrai das reflexões de Erich Fromm) das práticas educacionais nãoproblematizadoras, que tendem a matar e a dissecar o “objeto” de estudo, não dialogando com ele – e, consecutivamente, não compreendendo o contexto e o dissenso nem exercitando a criatividade. Ver FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2010. 13 Ver GUATTARI, Félix. Caosmose. Um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 2012. 14 O conjunto de Livros Abre-Alas está disponível para consulta (mediante agendamento prévio) no Centro de Memória do Carnaval - LIESA.
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verbais, visuais, musicais, corporais, entre outras – estamos, sim, no pantanoso terreno dos sentidos e dos afetos, das impressões que se chocam com as pretensões racionalistas, das tensões inerentes à própria ideia de “carnaval” em sentido amplo15 . O samba, afinal, é o dono do corpo.16 Aqui, é delineado um dos princípios regentes deste trabalho: ao se debruçar sobre as narrativas de enredo de Rosa Magalhães, não apenas os textos escritos (especificidade que no caso da dissertação de Milton Reis Cunha Júnior, que fala em “texto-mestre”, está bastante clara no título –um recorte metodológico possível e bem justificado pelo autor17) são considerados. Levam-se em conta, para além das textualidades escritas (sinopses, justificativas apresentadas aos jurados), os demais elementos audiovisuais que ajudam a compor um desfile, como o samba de enredo, as fantasias, os carros alegóricos, as coreografias das comissões de frente, etc., entendendo-se que o desfile em si é a obra de arte assinada pela realizadora, uma “obra de arte total”, conforme o defendido por autores como Isaac Caetano Montes18, na esteira do wagneriano conceito de gesamtkunstwerk (esgrimido por Silviano Santiago, para se pensar a Semana de Arte Moderna de 192219 , um evento plural, polifônico, intersemiótico; e por Paulo Herkenhoff, para se
15 Não se fala, aqui, do caso específico dos desfiles das escolas de samba, tampouco da ideia de “carnaval carioca” cujas raízes nos levam ao século XIX e a pontos nevrálgicos como o “Congresso das Sumidades Carnavalescas” de 1855, tudo brilhantemente investigado por Felipe Ferreira em Inventando carnavais: o surgimento do carnaval carioca no século XIX e outras questões carnavalescas. Fala-se do conceito amplo de “carnaval” enquanto festa popular de abrangência planetária associada, numa tradição mitificadora, aos ritos agrários (Saturnais, Lupercais, Bacanais) de Egito, Grécia e Roma, em oposição, no contexto medieval, ao período da Quaresma – os 40 dias de penitência que antecedem a Páscoa cristã. O tema não apenas nos remete aos estudos de Mikhail Bakhtin como guia os nossos olhos ao imaginário tão bem traduzido no quadro A luta entre o Carnaval e a Quaresma, de Pieter Bruegel, o Velho, e às narrativas utópicas, ponto que ainda será amplamente debatido. 16 Ver SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. 17 No mais recente evento dedicado ao pensar carnavalesco realizado na Faculdade de Letras da UFRJ, a reunião do “Observatório do Carnaval”, em 5 de abril de 2018, Milton Cunha declarou que jamais se proporia a analisar academicamente um desfile que não pelo enfoque da narrativa contida na sinopse (textomestre), uma vez que, para ele, quando o enredo escrito pelo carnavalesco se converte em samba e ganha a avenida dos desfiles, tudo se torna um “redemoinho”, uma “vertigem”, algo envolvido pelo “mistério”. O palestrante enfocou a ideia de mistério, creditando a forças sobrenaturais a “loucura” do carnaval. Este trabalho não se propõe a decifrar tal mistério, mas se aventura a bailar poeticamente com ele. 18 Importante é a leitura de A “obra de arte total” do carnaval: multiplicidade artística e hibridação nos desfiles contemporâneos das escolas de samba, dissertação defendida em 2014 no Programa de PósGraduação em Artes (PPGARTES) da UERJ. Disponível em: http://www.bdtd.uerj.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=7319. Acesso em 22/12/2015. Ver ainda: MONTES, Isaac Caetano. A “obra de arte total” das escolas de samba. Particularidades de um carnaval operístico. In: Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares (TECAP – UERJ), Estudos de Carnaval, v.13, n. 2, 2016. Disponível no sítio: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/tecap/article/view/19180/22162. Acesso em 25/10/2015. 19 Ver: ROUANET, Sergio Paulo. A vingança do Bispo Sardinha. In: ROUANET, Sergio Paulo. Mal-estar na Modernidade. Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 339.
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compreender a obra de Arthur Bispo do Rosário20). A utilização de fotografias e desenhos, bem como de frames das transmissões televisivas (responsáveis pela “filtragem” do espetáculo e transposição do cortejo pulsante para as limitações da tela, editando e ressignificando o objeto, traduzindo-o para linguagem diversa e projetando-o, sob embalagens pasteurizadas, para todo o globo), é outra estratégia investigativa a ser considerada (já amplamente utilizada em A Antropofagia de Rosa Magalhães). Evidentemente, a seleção dos dados acompanhará as necessidades do próprio andamento do trabalho, sendo que em nenhum momento será desconsiderado o fato de que a escrita em si (e de si) é parte do que se vai apreendendo. Em outras palavras: valendo-se do cabedal epistemológico dos estudos contemporâneos de cultura enquanto sistema dinâmico e mutante (e não um acúmulo de objetos e valores ou algo estanque e imutável, passível de ser guardado em um arquivo), o processo de escrita converte-se em experimento de fragrância antropológica, não havendo um método de análise fechado, albergado (ou asfixiado) pelo rigor das Ciências Exatas. Se há, pois sim, um longo processo prévio de coleta de materiais, seleção de corpus, prospecção bibliográfica, realização de entrevistas, entre tantos procedimentos hermenêuticos e dialógicos com fins didáticos, é fato que a escrita, a práxis reflexiva, não é menos imprevisível que o oceano a ser navegado; os mapas são desenhados e as rotas previamente traçadas, mas ainda não se pode saber dos percalços da viagem, do canto e do silêncio das sereias. O caráter ensaístico e o apreço pelas experimentações, portanto, são condicionantes da aventura intelectual ora iniciada, que, mais do que abraçar os canônicos pilares da “Ciência da Literatura” (nome de inegável força positivista), iça as velas com a intenção de desbravar territórios desconhecidos, para, a partir de tal movimento associado à loucura21, na contramão da lógica reinante, redesenhar os mapas do mundo, (de)formando em papel as visões trabalhadas por Rosa Magalhães. O diálogo com outras áreas do conhecimento é parte fundamental do processo: não se trata de um bloco
20 Nas palavras do crítico de arte, “O conceito wagneriano de Gesamtekunstwerk, surgido em 1849 em Das Kunstwerk der Zukunft, apontava para uma arte total que incorporasse a contribuição unificada de todas as artes. Embora Bispo do Rosário não fizesse uma correlação entre as diversas linguagens artísticas, o conjunto da obra aproximaria a produção de alguns elementos que conformam a concepção contemporânea de Gesamtekunstwerk.” Ver: HERKENHOFF, Paulo. A Vontade de Arte e o Material Existente na Terra dos Homens. In: ARAUJO, Emanoel (et al.). Arthur Bispo do Rosário. Rio de Janeiro: Réptil, 2012, p. 163. 21 É o que explica Marta Dantas, ao analisar a obra de Arthur Bispo do Rosário: “O marinheiro é aquele ser transportado por uma obsessão telúrica: a busca de novas terras, de continentes virtualmente originais, de lugares não inventariados. Embarcar num navio pode ser uma viagem sem retorno ou uma reintegração à ordem cósmica.” In: DANTAS, Marta. Arthur Bispo do Rosário. A Poética do Delírio. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 28.
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(carnavalesco) unificado, mas de construção porosa, aberta às interpenetrações – e é válido esclarecer que tal perspectiva plural e transdisciplinar foi o importante “desafio” lançado quando da defesa de A Antropofagia de Rosa Magalhães. Da banca avaliadora composta pelos professoresFrederico Augusto Liberalli de Góes (orientador), Luiz Felipe Ferreira (coorientador), Martha Alkimin de Araújo Vieira e Samuel Sampaio Abrantes (a mesma configuração da banca de qualificação deste trabalho, durante a qual o pedido de “liberdade criativa” se mostrou mais intenso e carregado de urgência) partiram provocações que, de pronto aceitas e lentamente regurgitadas, aqui se convertem em munição reflexiva: é possível teorizar sobre algo tão multifacetado quanto uma narrativa carnavalesca sem cair nas “armadilhas teóricas” que não dão conta de tamanha complexidade? Como aplicar conceitos elaborados em contextos diversos, distantes do calor dos “barracões” (os lugares – via de regra insalubres, à exceção da Cidade do Samba22 – em que são confeccionadas as fantasias e as alegorias apresentadas nos cortejos), a um estudo cujo “objeto”, além das dimensões inapreensíveis (é uma festa popular; é um evento realizado em cerca de oitenta minutos, sem repetição23; é um espetáculo vivo, em movimento, uma procissão que impede qualquer tentativa de congelamento), é dinâmico e depende da interrelação com outros elementos (os foliões, o dinheiro, os demais profissionais das equipes de criação – ferreiros, carpinteiros, escultores, pintores de arte, costureiros, modelistas, coreógrafos, iluminadores, aderecistas, etc., os fornecedores de materiais, a diretoria, os compositores, a música, a dança, as esculturas, as vestimentas, o público, o corpo de jurados, a transmissão
22 Mesmo a Cidade do Samba, o complexo de 14 barracões com 4 andares cada um, inaugurado em 2006, se revelou um lugar bastante problemático com relação à infraestrutura. Em 7 de fevereiro de 2011, um incêndio de grandes proporções consumiu um bloco de 4 barracões; os sistemas antichamas não funcionaram e os desfiles de Portela, União da Ilha e Acadêmicos do Grande Rio se viram bastante comprometidos (a última perdeu absolutamente tudo). Em 31 de agosto de 2017, um escultor da São Clemente morreu eletrocutado, no quarto andar do barracão da escola, reacendendo as discussões sobre segurança do trabalho e precarização das instalações elétrica e hidráulica. O acidente fatal levou a Justiça do Trabalho a intervir na Cidade do Samba, interditando as “fábricas” por semanas e submetendo as escolas a rigorosas vistorias. Diante desse cenário, não é preciso dizer das condições encontradas nos barracões das escolas dos grupos de acesso. Sobre a criação da Cidade do Samba, ver: BARBIERI, Ricardo José de Oliveira. Cidade do Samba: do barracão de escola às fábricas de carnaval. In: CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro; GONÇALVES, Renata (orgs.). Carnaval em múltiplos planos. Rio de Janeiro: FAPERJ/Aeroplano, 2009, p. 125/144. 23 É possível argumentar que os desfiles do sábado das campeãs, quando as 6 primeiras colocadas se reapresentam, na Marquês de Sapucaí, expressam uma “repetição”. É fato, no entanto, que tais desfiles, uma vez que não estão sujeitos à avaliação do júri, muitas vezes não se apresentam completos. Além disso, não há a surpresa do ineditismo, o susto, a expectativa, aspectos subjetivos que afetam, sim, a apreensão da obra.
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televisiva, as críticas jornalísticas, os patrocinadores e os contraventores,o Poder Público, etc.) para se materializar, mambembe, na avenida?24 São tantas variantes sobre o mesmo asfalto riscado que pode haver uma confusão entre a ideia fluida de enredo e a noção de espetáculo25 que os desfiles cada vez adquirem mais, termos que cintilam polêmicos em qualquer discussão sobre os rumos das escolas de samba e os cenários por elas historicamente disputados, ocupados, despejados. Clarificando a prosa, é fato que um estudo dedicado a levantar questões sobre a obra de uma artista como Rosa Magalhães não pode fazer vistas grossas ao fato de que um desfile de escola de samba também é pensado enquanto espetáculo audiovisual – um verdadeiro conglomerado de saberes e ofícios passível de ser atravessado pelos mais distintos olhares artísticos. Aqui, porém, entende-se que o quesito enredo é algo mais específico, apenas uma parte do espetáculo como um todo: uma narrativa que se vale do texto escrito, uma história a ser contada com o auxílio de outros elementos. Isso não quer dizer, é importante reforçar (e amarrar mais forte esse nó) ainda durante o embarque, que o trabalho enfocará apenas essa dimensão analítica (os textos escritos de Rosa Magalhães e a tradução deles em fantasias e carros alegóricos, por exemplo), uma vez que não se quer (entende-se que não se pode, sob o risco do esquartejamento de uma obra de arte) perder de vista o desfile como um todo. Dessa forma, é óbvio que a análise não raro deixará a materialidade das folhas de papel de lado e buscará voos menos concretos, trazendo para o “redemoinho” (a provocação de Milton Cunha) elementos, dados, agentes, vivências e até intuições que não cabem em palavras de tinta. É o risco da navegação em mar bravio. Questões enoveladas como as apresentadas acima adquirem coloração ainda mais intensa em se tratando das criações de Rosa Lúcia Benedetti Magalhães, a filha única de um casal de grande importância para a intelectualidade brasileira do século XX: a escritora Lúcia Benedetti (que inovou as narrativas teatrais infantis e escreveu, entre
24 Tais pontos impulsionaram as mesas do I Seminário Sonhar não custa nada ou quase nada? – Horizontes dos Desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, ocorrido nos dias 24 e 25 de junho de 2015, no Auditório 113 da UERJ. Felipe Ferreira e Milton Reis Cunha Júnior destacaram o caráter transitório dos festejos e assinalaram a necessidade de se pensar a problemática a partir da perspectiva dos foliões – a razão de ser da festa, mas que, infelizmente, permanece à margem das instâncias decisórias e das investigações acadêmicas. 25 Com relação à ideia de “espetáculo”, fundamental para a redação dessa tese foi a participação no seminário Création Theatrale et Théorie du Spectacle, oferecido pelo professor Jean-Pierre Triffaux, de nome artístico Rabanel, no primeiro semestre de 2017, na Université Nice Sophia Antipolis. Triffaux, autor de Génie du Carnaval – Quand le savoir bascule, apresentou, aos estudantes, diferentes concepções sobre as contemporâneas noções de “espetacularização da vida”, com destaque para as festas de carnaval (o carnaval de Nice, em especial). Sobre o tema, ver: RABANEL. Génie du Carnaval – Quand le savoir bascule. Paris: L’Harmattan, 2016.
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inúmeros trabalhos, o libreto da ópera A Menina das Nuvens, com música de Heitor Villa Lobos26) e o jornalista (e imortal da ABL, além de membro do corpo de jurados do primeiro concurso oficial de escolas de samba, ocorrido em 1932, e um dos “pais” da figura do Rei Momo27) Raimundo Magalhães Júnior – também ele um autor teatral, cronista, biógrafo, pesquisador (são famosos os estudos sobre Machado de Assis) e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Tendo nascido em meio aos livros e convivido com a nata da música e das letras brasileiras do século passado (a artista revelou, em depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MISRJ), em 26 de novembro de 2014, que frequentavam a casa da família, em Copacabana, nomes como Jorge Amado, Raquel de Queiroz, Manuel Bandeira, Dias Gomes, Dorival Caymmi e o vizinho Villa Lobos, os quais considerava “amigos”, apesar das idades contrastantes), não é de estranhar o pendão artístico e o gosto pela vida acadêmica – é membro da Academy of Television Arts and Sciences e acumula diplomas de Pintura, Cenografia e Letras, sem falar nos incontáveis prêmios (entre eles, o Emmy Awards conquistado pela abertura dos Jogos Pan-Americanos de 2007). No carnaval do Rio de Janeiro, a bagagem familiar (o “baú de papai”, na terminologia da professora Beatriz Resende, ao discorrer com brevidade sobre o trabalho de Rosa Magalhães durante a conferência Este bloco é seu país, proferida pelo professor Fred Góes, na Faculdade de Letras da UFRJ, em 11 de junho de 201528) e o acúmulo de vivências (viagens, leituras, graduações) gestaram dezenas de enredos inusitados, marcados pelo rigor bibliográfico
26 A ópera foi pela primeira vez encenada em 1960 (a estreia ocorreu em 29 de novembro, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro), após o falecimento do compositor (Villa Lobos deixou a vida em 17 de novembro de 1959). Em 2015, o Municipal carioca apresentou uma nova montagem da ópera, com regência de Roberto Duarte, direção de cena de William Pereira e cenários e figurinos de Rosa Magalhães – um belo reencontro da filha com a obra da mãe. Lúcia Benedetti foi homenageada pela escola de samba Unidos de Lucas, no carnaval de 2014; na ocasião, o enredo Missicofe, Missicofe, Dari, Dari foi assinado por Rosa Magalhães e visualmente desenvolvido por Mauro Leite. 27 O narrador do fato é o cronista Jota Efegê: “De gestação rápida, momentânea, que ocorreu na própria sala da redação na praça Mauá, entre mesas e máquinas de escrever, um redator de Turfe, o volumoso Morais Cardoso, paramentado em real vestimenta (que o caricaturista Fritz dizia ter sido confeccionada por ‘modesta costureira de teatro’ e o imortal Magalhães Júnior afirma ter conseguido com o maestro Silvio Piergile no Teatro Municipal), empunhou o cetro e pôs na cabeça a coroa indicativa de sua soberania. Era ele o Rei Momo, o deus corporificado. E sob o tradicional vive le roi!, gritado pelo cronista carnavalesco Palamenta, em uníssono com repórteres e contínuos, rumou ao elevador para a consagração da cidade, que o recepcionou com serpentinas, com chuvas de confetes e jatos de lança-perfumes (que ainda eram permitidos). Desta brincadeira, nada mais que brincadeira, se originaria uma dinastia que aí está vigente, sucedendo-se na desistência ou morte das personagens reais, dos Momos que nos três dias que lhe são dedicados são vivados nos bailes, nas ruas, e presidem todos os acontecimentos relacionados com o carnaval.” In: EFEGÊ, Jota. Figuras e coisas do carnaval carioca. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1982, p. 158/159. 28 O texto da conferência está disponível em eBook no seguinte sítio: https://www.amazon.com.br/Estebloco-%C3%A9-seu-pa%C3%ADs-ebook/dp/B01FBBRNAM.
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(notável quando se pensa o cuidado com as fontes históricas), pelo não-comodismo e pela verve literária (evidente quando se observam o manuseio de romances como Dom Quixote e Os Três Mosqueteiros e a utilização deles não apenas para ilustrar o narrado, mas para estruturar o projeto – no caso, os enredos de 2010 e 2006, respectivamente). É do filósofo Michel Onfray a ideia de que “a viagem começa numa biblioteca. Ou numa livraria.”29
Isso, de saída, explica o espírito desbravador da artista. Sobre os diálogos literários dos enredos da carnavalesca, ponto que obviamente interessa a um trabalho desenvolvido em Teoria Literária, há nuances e gradações. Alguns dos enredos desfiados ao longo da trajetória de sucesso (a autora contabiliza sete campeonatos, sendo a “maior campeã da Era Sambódromo”, como se diz por costume) são integralmente literários, a exemplo de Uma delirante confusão fabulística, sobre a obra do dinamarquês Hans Christian Andersen, desenvolvido na Imperatriz Leopoldinense, em 2005, e Dom Quixote de La Mancha, o cavaleiro dos sonhos impossíveis, sobre o romance de Miguel de Cervantes, apresentado na União da Ilha do Governador, em 2010. Outros têm a Literatura como ponto de partida e fio condutor (em outras palavras, a Literatura estrutura e conduz enredos históricos), caso de Um por todos e todos por um, da Imperatriz Leopoldinense, em 2006, que partia de Alexandre Dumas e do romantismo francês para a saga de Giuseppe e Anita Garibaldi, no Brasil e na Itália. Um terceiro tipo tem a Literatura como fundamento e horizonte, caso de Catarina de Médicis na corte dos Tupinambôs e Tabajares, da Imperatriz Leopoldinense, que, no carnaval de 1994, recriou a festa brasileira realizada em Ruão, em 1550, e terminou com os ensaios de Michel de Montaigne e as elucubrações de Rousseau; em 2002, na mesma escola e seguindo linha semelhante, a artista materializou o enredo Goitacazes: Tupi or not Tupi, in a South American way!, conquistando um polêmico terceiro lugar. O enredo, patrocinado pela prefeitura de Campos dos Goytacazes (município do norte fluminense que entrou na Justiça após o desfile, na tentativa de reaver o dinheiro investido, cerca de 2 milhões de reais, sob a alegação de que as “coisas da cidade”, como as plataformas de petróleo, os canaviais e o doce típico chuvisco, não teriam sido apresentadas nas fantasias e alegorias), tratava, como esboçado anteriormente, da antropofagia: dos rituais indígenas descritos pelos viajantes europeus ao Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade e ao neoantropofagismo da Tropicália, passando por O Guarani, de José de Alencar, e
29 ONFRAY, Michel. Teoria da viagem. Poética da geografia. Porto Alegre: L&PM Editores, 2015, p. 25. 30
Macunaíma - o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade – para tudo terminar, carnavalescamente, na figura-síntese de Carmen Miranda (a tensão entre a Pequena Notável e a Brazilian Bombshell, “nem samba nem rumba”30). O rápido “passar de olhos” por parte do universo criativo da autora revela um desafio imediato: em existindo inúmeras portas, qual delas escolher para a entrada? Como dar os primeiros passos, entre tão espiraladas serpentinas? Qual a chave a ser utilizada para abrir as caixas reflexivas? Se no decênio enfocado no Mestrado saltavam aos olhos os eixos temáticos já apresentados, é fato que no restante da obra da artista há outras encruzilhadas. No caso dos enredos de Rosa Magalhães, as sinopses em si, independentemente do samba e do visual, apresentam profundos diálogos intertextuais e marcas ensaísticas, não ficando limitadas à meta de contar uma história. Mapear as estratégias narrativas e os eixos temáticos da autora não é um exercício fácil, mas a tarefa pode muito contribuir para os estudos sobre os limites da autoria, as fissuras das narrativas, as conflitantes e complementares visões de Brasil, o papel do carnaval carioca no contexto do que se entende por “cultura brasileira”, os procedimentos de tradução visual do texto escrito, a ressignificação de símbolos e conceitos, a circularidade da cultura, a figura do carnavalesco enquanto “artista anfíbio”, na terminologia de Néstor García Canclini31, ou “mediador cultural”, conforme propõem Mikhail Bakhtin e os antropólogos Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti e Nilton Santos32. Acima de tudo, pode contribuir para que os preconceitos acadêmicos que tendem a menosprezar pesquisas ligadas à cultura popular brasileira (em cujo círculo estão inseridos o carnaval carioca e as narrativas das escolas de samba) sejam minimizados, refutando a tendência
30 Sobre a questão, ver SOUZA, Eneida Maria de. Nem samba nem rumba. In: Crítica Cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. 31 Ver CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da Modernidade. São Paulo: EDUSP, 1998, p. 361. 32 Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti discorre sobre a “temática da circularidade entre os diversos níveis de cultura indicada por Mikhail Bakhtin (1987), do permanente diálogo, visto não necessariamente como harmonioso entendimento, entre as chamadas cultura popular e de elite.” A autora observa que os barracões das escolas de samba são ambientes de circulação cultural (a ideia de que a cultura não é algo dado, estanque, parado, morto, mas construído socialmente, mutante e mutável, como apregoa a teoria cultural hodierna). Nesse patamar, o carnavalesco pode ser entendido enquanto “mediador cultural”, ponte entre diferentes universos de saberes. Ver CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: Editora UFRJ / MinC / Funarte, 1994, p. 30. Nilton Santos comunga desse entendimento e, valendo-se das teorizações de Leopoldo Waizbort, defende que a figura do carnavalesco é um exemplo das “’novas profissões’ de caráter fluido” contemporâneas; ele complementa a interpretação com a ideia de que “a presença e a influência marcantes do carnavalesco (...) atuando como mediador sociocultural, têm a ver com a predominância e consolidação do código letrado, formal também no contexto das escolas de samba.”In: SANTOS, Nilton. A arte do efêmero – Carnavalescos e mediação cultural no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Apicuri, 2009, p. 67-68.
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de automática desvalorização dos principais “produtos” do país (eles próprios constructos sócio-históricos, populares e/ou massivos, diversos e desiguais), como o samba e o carnaval, a MPB como um todo, os saberes das comunidades tradicionais, a literatura de cordel, as narrativas orais de matriz indígena ou africana, o futebol, as religiões afrobrasileiras, as telenovelas e adaptações literárias para o cinema e a televisão, etc.33 Mas, como ocorre em qualquer travessia, é preciso um ponto de partida e um norte mais ou menos definido, ainda que no meio do caminho o perder-se seja fundamental e o caminhante goze da liberdade de desbravar carreiros não previstos inicialmente, feito o poeta Mário de Andrade, espécie de guia espiritual deste périplo, no extasiante Carnaval Carioca. Se no Mestrado o desfile de 2002 foi transformado em matriz hermenêutica, a centelha capaz de incendiar o combustível teórico injetado na pesquisa de Doutorado é o enredo de 2004, de título simples (na contramão do que a autora, à época, fazia) e curioso: Breazail. Assim como ocorreu em 2002, trata-se de um enredo desenvolvido para a escola de samba Imperatriz Leopoldinense, patrocinado por um município do estado do Rio de Janeiro: em 2002, Campos do Goytacazes; em 2004, Cabo Frio. Também a exemplo de 2002, a autora não enveredou pelo viés turístico e deu um “drible” (expressão que ela refutou jocosamente no Seminário Joãosinho Trinta, o Rei-Mendigo do carnaval, ocorrido no Espaço Cultural Finep, em 7 de novembro de 201234) nos investidores,
33 Alfredo Bosi discute a problemática do colonialismo intelectual em Dialética da Colonização, mostrando que há um fosso entre o saber universitário e a realidade social brasileira, predominando a crença de que apenas o conhecimento cultivado nas Academias é digno de análise, num ciclo de retroalimentação que impede o diálogo com “o mundo exterior”. Eduardo Guerreiro Brito Losso enfoca a questão da subserviência no artigo Niilismo e experiência dionisíaca em Mário de Andrade, mostrando que diversos teóricos tentaram definir a questão, conferindo a essa tendência de desvalorização diferentes nomes; para Roberto DaMatta, trata-se de uma “recorrente visão negativa de nós mesmos (...)”; Roberto Schwarz fala que almejamos uma vida cultural “inautêntica e postiça”, dada o apreço pelo estrangeiro e a aversão às coisas de cá; Antonio Candido e João Luiz Lafetá preferem a expressão “pré-consciência pessimista do subdesenvolvimento.” Mário de Andrade definira o fenômeno como “mania de inferioridade nacional.” Sucintamente, tem-se o “complexo de vira-latas” de Nelson Rodrigues. Na atualidade, sem dúvidas o “produto” que mais é vitimado pelo preconceito acadêmico é o funk carioca e o seu universo circundante, sobre o qual alguns pesquisadores, não sem enfrentar resistência, têm se debruçado. Ver: LOSSO, Eduardo Guerreiro Brito. Niilismo e experiência dionisíaca em Mário de Andrade. In: GUERREIRO, Eduardo; PUCHEU, Alberto (org.). O Carnaval Carioca de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Beco do Azougue Editorial, 2011, p. 63-99. Ainda sobre o debate, Néstor García Canclini chega a afirmar que “o poder universitário e profissional dos historiadores da arte e dos artistas costuma defender-se exaltando a singularidade do próprio campo e desmerecendo os produtos dos competidores (artesanato e meios massivos). Ao contrário, os especialistas nas culturas ‘ilegítimas’ – folcloristas, comunicadores massivos –tentam legitimar seus espaços atacando as posições elitistas dos que se ocupam da arte culta e do saber universitário. A fronteira entre esses campos se tornou mais flexível. Considera-se cada vez mais legítimo que os universitários reestruturem seu capital simbólico em espaços da cultura massiva e da popular, sobretudo se têm traços equivalentes aos do mundo intelectual.” In: CANCLINI, N. G. Obra citada, p. 359. 34 Na ocasião, o mediador Fábio Fabato, jornalista e autor de uma série de publicações não-acadêmicas sobre as escolas de samba, questionou a carnavalesca sobre o enredo patrocinado de 2002, classificando 32
procurando algo relacionado ao lugar capaz de gestar uma pesquisa inovadora. Em 2002, encontrou os índios goitacá e a antropofagia; em 2004, o pau-brasil e a cor vermelha. Outra semelhança: ambos os desfiles não foram campeões e amargaram posições “ruins” se comparadas à média do período 1992 – 2004 (nesse lapso, foram conquistados cinco primeiros lugares e três vice-campeonatos; a pior colocação foi o sexto lugar de 199735 , depois da qual aparece o quinto lugar de Breazail). Uma diferença para com o enredo de 2002 reside no fato de que o município de Cabo Frio não quis reaver o dinheiro investido e nenhuma polêmica de ordem judicial eclodiu fechados os portões da dispersão do Sambódromo, na rua Frei Caneca - ou seja: aparentemente, Cabo Frio aprovou o chapéu. Breazail é a obra escolhida enquanto chave por uma série de motivos. Rosa Magalhães partiu do fato de que a primeira feitoria portuguesa da América foi fundada pelo navegador Américo Vespúcio, entre 1503 e 1504, na localidade da atual Cabo Frio, para desenvolver uma narrativa sobre o pau-brasil, primeiro produto de exportação brasileiro, possível origem do nome do nosso país e, na visão dela, principal símbolo vegetal da natureza brasileira (em outras palavras: de imediato, parece claro que a autora mantém a linha de enredos que tratam da formação identitária do Brasil, das nossas origens enquanto nação e dos nossos símbolos “primitivos” – uma narrativa fundacional). A sinopse do enredo, a partir dessa premissa, passeia pela Europa das feiticeiras e dos alquimistas (dialogando visualmente com Francisco de Goya e Hieronymus Bosch ponto levantado por Gustavo Krelling e Dulce Osinski, que deve ser expandido), vai à China dos Mandarins e dos Guerreiros de Xian, desembarca na Fenícia dos comerciantes de tecidos, atravessa as minas de estanho celtas (donde se extrai uma das hipóteses para o nome Brasil) e, finalmente, cruza o Atlântico e aporta em Cabo Frio, na fortaleza de Américo Vespúcio. Não, o final não é este – trata-se de um “finalmente, quase”. O final e mais instigante ponto do enredo é o diálogo com Thomas More e a materialização alegórica da alegórica ilha Utopia (neologismo que se popularizaria imensamente, estimulando uma linha de narrativas utópicas36), em um setor de formas e cores inspiradas
como “drible” a opção narrativa materializada pela artista; Rosa Magalhães, aos risos, disparou que não fez drible algum: “eu estudei muito!” O debate (do qual também participaram Fernando Pamplona, Maria Augusta Rodrigues, Milton Cunha, Aydano André Motta e Geraldo Carneiro) está disponível em vídeo no seguinte sítio: https://www.youtube.com/watch?v=oqnUW--7a-s. Acesso em 28/09/2015. 35 De 1992 a 2004, somente em 1997 a Imperatriz não desfilou no sábado das campeãs. A “Rainha de Ramos” ficou fora do pódio porque a segunda alegoria do desfile sobre a compositora Chiquinha Gonzaga, que representava um presépio, quebrou dentro da Passarela, prejudicando a apresentação. 36 Vide a obra Utopia – a história de uma ideia, de Gregory Claeys. Nela, o autor passeia pelos grandes modelos utópicos da história, dos jardins árabes às ilhas fantásticas de More e Swift, desembocando nos 33
na arquitetura de Antoni Gaudí e nas criações de Gabriel Joaquim dos Santos, artista popular brasileiro. Seguindo o exemplo do que fez em 1994, quando encerrou o enredo com Dos canibais, de Michel de Montaigne, Rosa Magalhães optou por fechar a narrativa com um texto clássico, comparando a Utopia de More ao Brasil e subvertendo a geografia, provocando a desgeograficação macunaímica e a desterritorialização de que fala Canclini37 . Indiscutivelmente, uma opção narrativa das mais expressivas – seja no plano visual, seja no plano da escrita. No que tange ao segundo plano, em especial, notase outro paralelo com a narrativa de 2002: assim como Goitacazes: Tupi or not Tupi, in a South American Way!, o enredo Breazail foi apresentado à imprensa, aos compositores e aos demais segmentos da escola Imperatriz Leopoldinense na forma de uma colagem de fragmentos, pedaços narrativos desgarrados (ou “degredados”) - uma continuidade estilística, portanto, que muito se difere do padrão “engessado” do gênero.
38 Não bastasse, o enredo reúne uma lista de elementos que também são observáveis em inúmeras outras narrativas da autora, o que não necessariamente expressa uma “repetição” (algo semelhante ao que foi exposto, em A Antropofagia de Rosa Magalhães, com relação à recorrência da figura do índio – apesar de aparecer em oito das onze narrativas abordadas, nunca é o mesmo índio, havendo variações estéticas e temáticas, transformações e hibridações com diferentes objetivos). O primeiro e importante ponto é justamente a ideia de viagem, algo explorado à exaustão pela carnavalesca. O passeio por
falanstérios socialistas e nas distopias literárias e cinematográficas. As proposições de Claeys serão analisadas no decorrer do trabalho. 37 Para Canclini, a combinação dos processos de descolecionamento e desterritorialização é uma estratégia para abrir os signos culturais e refutar a visão que tende a compartimentalizar a cultura em gavetas taxativas. Nas palavras dele, “a história da arte e da literatura formou-se com base nas coleções que os museus e as bibliotecas alojavam quando eram edifícios para guardar, exibir e consultar coleções.” Hoje, tais construções são revistas pelas teorias bibliotecológica e museológica, uma vez que bibliotecas e museus no formato “tradicional” parecem anacrônicos. Ver CANCLINI, N. G. Obra citada, p. 302/303. Diante disso, é válido pensar o papel de Rosa Magalhães enquanto artista que tantas vezes materializou na Passarela do Samba o apreço (inclusive as construções em si) por coleções museológicas e bibliotecas, a exemplo do que fez em 1999, quando exaltou a coleção de pinturas holandesas (que forma o Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae do título da narrativa) descoberta por acaso no interior da Biblioteca Jaguelônica, em Cracóvia, na Polônia. 38 Complementam tal ideia de “narrativa em pedaços” dois depoimentos da carnavalesca Rosa Magalhães. Ao pesquisador Felipe Ferreira, então mestrando em História da Arte pela EBA, a artista revelou, em entrevista publicada no Anexo 7 da dissertação defendida em 1996, que gosta de “juntar fragmentos e criar com os pedaços”: “às vezes eu vejo a roupa e digo: ‘Eu quero esta calça aqui com aquela manga dali.’” A entrevista completa está disponível em FERREIRA, F. O Marquês, o Jegue, a Princesa e o Corta-Jaca: um estudo sobre a expressão plástica da cultura popular e da cultura erudita nas fantasias de carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro, f. 202. Já em depoimento informal concedido a mim, em 4/10/2012, no barracão da Unidos de Vila Isabel, na Cidade do Samba, a artista deixou claro que “gosta dos pedaços” e de “misturar referências”, dos paradoxos e da ironia: “eu sou assim (irônica), aí vai para o enredo.” A análise de tais aspectos é aprofundada nos demais estudos acadêmicos que se debruçam sobre a obra da artista, textos que serão investigados ao longo das próximas páginas.
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diferentes continentes, culturas e paisagens naturais (que, no conjunto, gerou uma apresentação heterodoxa – a ponto de um dos assistentes da artista, o figurinista Mauro Leite, confidenciar, durante a apresentação dos protótipos das fantasias da escola de samba Portela, em 15 de setembro de 2014, que não gosta “daquilo, não; muito confuso”39) encontra em Breazail a expressão máxima, uma vez que, depois de percorrer Europa, Ásia, África e América, viaja, ao final, para o não-lugar por excelência, a Utopia. Curiosamente, apesar de abordar a travessia do Atlântico e a chegada dos colonizadores ao Brasil, a autora não utilizou qualquer representação imagética de navio, um símbolo basilar do sistema construído em mais de trinta narrativas – detalhe que merece investigação cuidadosa. Também as leituras do medievo europeu, do imaginário asiático e dos primeiros episódios da colonização brasileira (com destaque para as “metáforas vegetais”, nos termos de Eduardo Bueno40) são aspectos desdobráveis de forte apelo investigativo. A presença do ideário utópico é igualmente convidativa, guiando o leitor a uma tradição de narrativas instigantes, como A Nova Atlântida, de Francis Bacon, A Cidade do Sol, de Tommaso Campanella, O Paraíso Perdido, de John Milton, entre outras –todas ligadas à busca por lugares fantásticos que mantém algum vínculo com a realidade (ou, na definição de Michel Foucault, lugares que “mantém com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou inversa”41). Mais do que isso: uma tradição de
39 O evento foi realizado em um restaurante da Urca e contou com a presença da carnavalesca Rosa Magalhães (que preparava o desfile de 2015 da escola de samba São Clemente) e do seu figurinista Mauro Leite. Ambos foram convidados porque o então carnavalesco da Portela, Alexandre Louzada, decidiu inovar e pediu um desenho de fantasia a cada um dos carnavalescos do Grupo Especial do Rio de Janeiro; tais fantasias, concebidas exclusivamente para a Portela, ilustrariam o último setor do enredo ImagináRIO – 450 janeiros de uma cidade surreal, sobre a recriação da paisagem carioca a partir dos olhos de Salvador Dalí (no caso, a recriação do carnaval das escolas de samba a partir dos olhos de outros artistas que atuam no mesmo contexto). Justamente o desenho assinado por Rosa Magalhães, um arlequim inspirado na girafa em chamas de Dalí, foi o escolhido para ser executado e exposto na festa de apresentação dos protótipos –ou seja: uma das fantasias da Portela, cujo projeto foi concebido por Alexandre Louzada, foi idealizada por Rosa Magalhães (aqui, as discussões sobre os limites da autoria cintilam feito paetês). A convite de Alexandre Louzada, eu pude me sentar na mesa em que estavam ele, Milton Cunha, Rosa Magalhães, Maria Augusta Rodrigues e Mauro Leite Teixeira. Curioso, não perdi a oportunidade de conversar com o figurinista sobre o desfile de 2004, Breazail, e tamanha foi a minha surpresa ao descobrir que ele não aprecia o visual da apresentação, considerando-o “confuso” e “misturado”: “aquilo é muito a cabeça da Rosa, eu não faria daquele jeito” – afirmou. Justamente tal “confusão”, mistura de referências, lugares e tempos, é um dos pontos que mais me fascinaram em 2004 e continuam a me fascinar tantos anos depois; a heterodoxia da apresentação, as arestas narrativas e o não-enquadramento nos padrões usuais, tudo isso é interessante do ponto de vista literário. 40 Ver BUENO, Eduardo (org.). Pau-Brasil. São Paulo: Axis Mundi Editora, 2002, p. 34 e 36. 41 FOUCAULT, Michel. Outros Espaços (Conferência no Círculo de Estudos Arquitetônicos. 14 de março de 1967). In: MOTTA, Manoel Barros da. (org). Estética: literatura e pintura, música e cinema. Coleção Ditos & Escritos III. Rio de Janeiro/São Paulo: Forense Editora, 2001, p. 414/415.
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narrativas que está pelas raízes amarrada ao conceito genérico de carnaval42 , aspecto trabalhado por autores como Gregory Claeys, Christopher Kendrick e Felipe Ferreira, com fulcro nas páginas de Mikhail Bakhtin. O diálogo com Foucault, nesse ponto, é especialmente estimulante: o filósofo francês, no texto Outros espaços, apresenta e desenvolve em uma série de princípios o conceito de heterotopia, utilizado pelo ensaísta Alberto Pucheu enquanto ferramenta para se analisar o poema Carnaval Carioca, de Mário de Andrade. O exercício intelectual de Pucheu revela a possibilidade de se aplicar a “teoria” foucaultiana (que é mais poética que teórica em sentido estrito – Outros espaços figura entre os sensíveis e experimentais minuetos de Foucault, longe do rigor formal) a algo profundamente cambiante como as manifestações carnavalescas do Rio de Janeiro –o que, é evidente, não é o bastante, mas uma estratégia possível. Com a carta náutica (o enredo de 2004, Breazail) e a bússola (a reflexão de Foucault, em diálogo com autores das mais diferentes áreas) em mãos, podem-se traçar as primeiras rotas, sinuosas, com vistas aos destinos, portos e entrepostos, a serem alcançados. Realizada a análise da narrativa de 2004 (com especial atenção para os diálogos com Américo Vespúcio e Thomas More) e dos princípios foucaultianos, poderá ser desenhado, em um horizonte teórico não livre do fog das incertezas, um arcabouço mais ramificado do conceito estruturante de utopia (distopia e, principalmente, heterotopia). Depois, e atrelado ao eixo ou à rota anterior, deve-se desbravar o imaginário de viagem presente na obra da carnavalesca - que é, como já aventado, pontuada de travessias e deslocamentos reais e/ou simbólicos: voos e navegações entre continentes e novos mundos, inclusive em direção às fronteiras da galáxia (no caso do enredo de 1998, Quase no ano 2000, de fundo distópico e colorido inusitado). Os múltiplos e recorrentes navios, os embarques e os desembarques, as diásporas: da observação do ideário das viagens será possível extrair importantes perguntas (quiçá respostas) para se compreender a plasticidade das narrativas de enredo de Rosa Magalhães, dificilmente fincadas em um lugar único, flagrantes os limiares. Tais movimentos rumo a outros destinos (outros espaços, outras culturas e outros povos) se entrelaçam, estabelecidos os intercâmbios, com “olhares estrangeiros” que sobre o Brasil se projetam – e dessa questão por vezes
42 Tais relações históricas entre as “utopias” e o carnaval em sentido amplo gerou uma rica discussão após as apresentações da mesa Music and Arts, ocorrida em 26 de outubro de 2014, durante o The Society for Utopian Studies 39th Annual Meeting, em Montréal, QC. Na ocasião, apresentei o trabalho The “utopia’s ground” in “Breazail”, contemporary carnival heterotopia, justamente sobre a presença da obra de Thomas More em um enredo carnavalesco levado à Marquês de Sapucaí. As discussões levantadas e as imbricações que a temática suscita servirão de espinha dorsal para os capítulos vindouros.
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espinhosa (afinal, atrelada a conceitos indóceis como etnocentrismo, exotismo, orientalismo, hibridismo, transculturalidade, entre outros também unidos sob o manto dos estudos pós-coloniais) brotam os últimos tópicos a serem desdobrados: por um lado, o outro (a Indonésia, a China, a Índia, o Egito, a Noruega, a Dinamarca, a Holanda, a Áustria, a França, a Espanha, a Argélia, o Caribe, os Estados Unidos, Portugal, Angola... a lista de carimbos é grande); pelo outro, o eu (os múltiplos Brasis existentes no “arraiá de cá”, figurando expressivas as metáforas vegetais, a presença do elemento indígena, a celebração festiva da mestiçagem, a crítica política embebida de galhofa e a devoção ao próprio carnaval). De quais Brasis, enfim, fala a intérprete Rosa Magalhães, autora que, sobre o asfalto da Sapucaí, expressa a sua arte e projeta os seus mapas, atlas particulares? Há um projeto intelectual delineado por debaixo dos lamês e dos bordados? O “movimento de retorno à origem”43, o que ele traz no bojo? Parafraseando Flora Süssekind, teórica bastante atenta às investigações identitárias e às construções das narrativas fundacionais, “a obsessão pela origem – entendida como começo histórico – o que pode trazer consigo?”44 Se Breazail pode ser compreendido enquanto “utopia regressiva”, é fato que também acena para o futuro, convertendo-se em “utopia prospectiva” – um complexo movimento de mão-dupla. Sem contar, é claro, que a obra da artista, ainda na esteira das teorizações de Süssekind, expressa como nenhuma outra, no cenário do carnaval carioca, o “olhar-de-fora”45 que sobre o Brasil se deposita há mais de 500 anos, conceito que oferece ao leitor um guia de referências escritas e imagéticas - dos primeiros cronistas (parte da matéria-prima intelectual de Goitacazes: Tupi or not Tupi, in a South American Way!) aos intérpretes do Brasil que permanecem a revolver o solo da História –dialogando com os textos fundacionais e reatualizando-os (ritualizando-os também). Muito se diz do caráter europeizante, notadamente francês, presente nas criações de Rosa Magalhães (ao menos dez narrativas de enredo assinadas pela autora dialogam explicitamente com a França, incluindo a de 2017, Onisuáquimalipanse, integralmente situada em paragens francesas – aspecto investigado durante o período de mobilidade acadêmica na Université Nice Sophia Antipolis, sob orientação de Béatrice Bonhomme e Jean-Pierre Triffaux); é possível mensurá-lo? Retornamos, pois, à primeira pergunta deste
43 SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui. O narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 15. 44 SÜSSEKIND, Flora. Obra citada, p. 15. 45 SÜSSEKIND, Flora. Obra citada, p. 21.
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bloco (de quais Brasis a artista fala?), cujo sumo é o mesmo da seguinte provocação de Süssekind:
E, se é problemática essa fundação de uma imagem original, singular, de Brasil, é igualmente difícil olhar para a paisagem brasileira real, que lá está de fato, quando o ponto de vista a ser adotado para fitá-la é pré-dado, quando o modo de vê-la se acha previamente determinado por toda uma série de crônicas, relatos, notícias, romances, por uma sucessão de miradas, estrangeiras ou não, que lhe demarcam os contornos, tonalidades, sombreados.46
É o objetivo central da tese, portanto, pensar a obra de Rosa Magalhães enquanto produto de uma intérprete de país importante para o questionamento da(s) nossa(s) singularidade(s). Ao fazer da Passarela do Samba o suporte das suas leituras, ao participar dos cortejos enquanto figurante (em 2009, 2014, 2015, 2016 e 2017 a carnavalesca tomou parte nos desfiles que assinou representando personagens dos enredos – uma espectadora/torcedora do próprio desfile, uma baiana da lavagem do Bonfim, uma foliã dos bailes do Theatro Municipal da década de 1950, uma camponesa medieval e uma pintora da corte de Louis XIV, respectivamente), ao sobrepor camadas estéticas e recortar tempos e espaços em mosaicos heterotópicos, converte-se em uma narradora do deslocamento (o movimento da viagem, em diálogo com o universo das utopias e das heterotopias), do entrechoque, dos olhares cruzados sobre o amplo conceito de Brasil e suas ramificações (identidade nacional, brasilidade, tradição, etc.). Tendo por núcleo reflexivo o enredo Breazail, narrativa fundacional das mais tortuosas e capilarizadas, deve-se expandir a visão para o conjunto de textos escritos e visuais confeccionados pela artista, para que, ao final, ganhe maior relevo a ideia pressuposta de que são os carnavalescos, profissionais de funções híbridas e contornos indefinidos, leitores e intérpretes do Brasil capazes de gestar projetos de notáveis envergaduras estéticas e teóricas. Mas tal movimento não será feito de modo linear, seguindo a cronologia exata da trajetória artística da autora; o que se objetiva é a tessitura de uma rede caleidoscópica, idas e vindas no tempo e no espaço, valorizando-se mais os pontos de contato inusitados e menos, muito menos, os rigores formalistas. Velas ao vento e âncoras levantadas, o oceano. Importante é grifar, diante dos necessários questionamentos que tem aparecido cada vez mais durante os eventos dedicados à discussão dos desfiles das escolas de samba, que este trabalho não se propõe
46 SÜSSEKIND, Flora. Obra citada, p. 32.
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a fazer um recorte a partir dos estudos de gênero. Penso que não cabe a mim a pretensão de redigir uma tese sobre as representatividades femininas no indiscutivelmente machista universo transitado. O que posso é expor o inevitável desconforto e denunciar a permanência das relações patriarcalistas - que se espraiam feito lesmas sobre vigas enferrujadas. Tenho a plena consciência de que, enquanto carnavalesco que também sou, ocupo um lugar contraditório, excludente e privilegiado. No quadro das 13 escolas de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro, em 2018, apenas 4 mulheres assinaram enredos: Rosa Magalhães, Annik Salmon (que dividiu a função, na Unidos da Tijuca, com Hélcio Paim e Marcus Paulo), Bianca Behrends (juntamente com Marcelo Misailidis, Laíla, Cid Carvalho, Victor Santos, Rodrigo Pacheco e Leo Mídia, na Beija-Flor de Nilópolis) e Márcia Lage (que dividiu a função com o marido Renato Lage, na Acadêmicos do Grande Rio). Nesse mesmo grupo, no total, leem-se os nomes de 19 homens – ou seja, uma proporção mais de quatro vezes maior. Lícia Lacerda, Maria Augusta Rodrigues e Lilian Rabello não mais assinam desfiles. No primeiro grupo de acesso, agora Série A, 16 carnavalescos foram anunciados para 2018 – nenhuma mulher. Somando-se os dois primeiros grupos (Especial e Série A), temos 35 homens e tão somente 4 mulheres. Acredito, diante desse panorama tremendamente desigual, que desenvolver uma sequência de dissertação e tese sobre a obra da carnavalesca mulher que mais duradoura carreira tem apresentado é, sim, um ato político por si só; não ousaria, e assumo inclusive as minhas limitações teóricas, esboçar maiores leituras através das lentes dos estudos feministas, sob o risco iminente da contradição performativa. Também é preciso grifar que o exercício de escrita será acompanhado, na linha da ousadia cobrada diante de A Antropofagia de Rosa Magalhães (cobrança reforçada em face da qualificação deste trabalho, conforme já foi elucidado), do experimento artístico de cartografar o sistema simbólico da narradora-carnavalesca a partir do meu olhar embriagado de realizador (carnavalesco) que bebe das mesmas fontes, ou seja: redigir uma espécie de diário de navegação (menos com o compasso geográfico e mais com o impulso poético – análogo ao observável no sensível texto em que Foucault desenha os princípios da heterotopia) a fim de ilustrar e reprocessar (antropofágica e autofagicamente) as rotas percorridas pela artista nos enredos concebidos e materializados ao longo da sua trajetória e as rotas percorridas por mim enquanto navegador cujas trajetórias artística e acadêmica também convergem para o entrelugar (Onfray fala em “entremeio”): o “estrangeiro” no carnaval carioca (fala, Mário de
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Andrade!), o brasileiro pesquisador na França, durante o intercâmbio em Nice (que se viu obrigado a assistir aos desfiles através do televisor, como nos tempos anteriores a 2008), o escritor literário a disputar o mesmo espaço e o mesmo tempo com o narrador de enredos de escolas de samba, o pesquisador universitário ao lado do carnavalesco – que aceitou assinar, ao lado de Gabriel Haddad, o projeto artístico do desfile de 2018 da Acadêmicos do Cubango (cujo enredo de nossa autoria, O Rei que bordou o mundo, apresentaria, no sábado de carnaval de 2018, a vida e a obra de Arthur Bispo do Rosário sob um viés mitopoético, aparecendo, na abertura, a imagem-síntese da “Nau dos Insensatos”, Das Narrenschiff, retratada por Hieronymus Bosch e descrita por Michel Foucault em sua História da Loucura). Tal empreendimento, que objetiva extravasaro texto escrito (a arte, afinal, é um “movimento para fora” que permite à vida o respirar diante das claustrofobias cotidianas - a lição não-domesticadora de Nuno Ramos, para quem as migrações entre linguagens fazem girar as engrenagens artísticas47) e as amarras formais de uma tese convencional, poderá deslocar o olhar do leitor e auxiliar os navegantes a encontrar possíveis (e transitórias - migrantes) reinterpretações do universo investigado e das perguntas norteadoras da tarefa, além de transformar a empreitada em algo assumidamente pessoal, autobiográfico (também é de Ramos a ideia de que “o artista é um especialista de si”) pleno de um fazer poético único e inimitável. Penso com mais entusiasmo nas proposições de Michel Onfray, para quem “no centro da viagem não há outra referência senão o eu.”48 Diz o filósofo, invocando Montaigne, que “a viagem supõe uma experimentação em nós que tem a ver com exercícios costumeiros entre filósofos antigos: o que posso saber de mim? O que posso aprender e descobrir a meu respeito se mudo de lugares habituais e modifico minhas referências?”49 Tem vozes riobaldianas o trabalho iniciado, sujo de grafite, borracha, aquarela, nanquim e, por óbvio, sujo do tempo da escrita (também assumo que este é um trabalho datado, com esboços apagados ainda ferindo o papel – menos um quadro e mais uma prancha, na definição precisa de DidiHuberman50). Trata-se de um outro movimento dedicado a pensar as narrativas de Rosa
47 Ver a entrevista com o artista plástico e filósofo no programa Diverso. Disponível no seguinte sítio: https://www.youtube.com/watch?v=fzlOAmvc4EA. Acesso em 10/09/2017. 48 ONFRAY, Michel. Obra citada, p. 78. 49 ONFRAY, Michel. Obra citada, p. 75. 50 Fala o autor: “O quadro é uma obra, um resultado em que tudo já foi trabalhado; a tábua (prancha), esta, é um dispositivo onde tudo poderá sempre ser trabalhado. Um quadro se pendura nos cimácios de um museu; uma tábua se reutiliza sem cessar para novas banquetas, novas configurações. (...) A tábua (prancha) se mostra inicialmente como um campo operatório do ‘dispars’ e do móvel, do heterogêneo e do aberto.” In: DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas do impossível – Warburg, Borges, Deleuze, Foucault. In: 40
Magalhães e a acionar, ainda que refém de um certo romantismo, centelhas criativas e provocativas; disposto a reavivar, enfim, as reminiscências carnavalescas do autor, relampejantes - ao gosto de Murilo Mendes e de Walter Benjamin, conforme o ensinado na sexta tese sobre o conceito de história51; ao gosto de Friedrich Schiller e de João Guimarães Rosa; ao gosto de tão diversos artistas como Arthur Bispo do Rosário e, por que não?, a própria Rosa Magalhães. O trabalho em si, a tese também veste a fantasia, pouco disposta, Colombina dividida, a responder demais. Deve-se frisar, finalmente, que as páginas seguintes são provenientes de uma vivência que transborda as bibliotecas – e, novamente, explode em fogos a influência mariana. 52 Vestir as fantasias enquanto folião, sentir a profusão de cheiros e sabores das “barraquinhas” dos arredores da Central do Brasil e do Balança-mas-não-cai (mistura de frituras, canjas, cerveja, cachaça), pisar o asfalto ou as pedras (da Passarela do Samba, da Avenida Rio Branco, da Estrada Intendente Magalhães, da Place Masséna e das pontes de Veneza) e os pisos encardidos das quadras após os ensaios (inclusive escorregar no lodo e cair sentado em plena quadra da Mangueira, quase fraturando o braço, no ensaio de 21 de janeiro de 2017, noite de calor intenso, o último de que participei, às portas de fechar as malas, cruzar o oceano e desembarcar sonolento em uma França abaixo de zero), ouvir os barulhos das máquinas de costura e das soldas forjando o ferro no interior dos barracões, dividir o trabalho de escrita e leitura com o ofício de riscar e colorir desenhos, transitar por espaços tão híbridos quanto podem ser um ateliê de fantasias que funciona em uma fábrica abandonada de nome alemão (Bhering) aos pés do Morro do Pinto, no Santo Cristo, ou num terreiro de Candomblé consagrado a Obaluaê, uma “quadra” de escola de samba que também o espaço ocupado (disputado) por uma feira de
ARTIÈRES, Philippe; BERT, Jean-François; GROS, Frédéric; REVEL, Judith (dir.). Michel Foucault. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 235. 51 Ver BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996, p. 224. 52 Mário de Andrade confessou ao amigo Carlos Drummond de Andrade, em carta enviada em 1924, que a experiência física, corporal, da tempestade em forma de carnaval carioca o fez perceber que um sorriso da folia podia valer uma biblioteca. Nas palavras do artista: “Eu conto no meu Carnaval Carioca um fato a que assisti em plena avenida Rio Branco. Uns negros dançando o samba. Mas havia uma negra moça que dançava melhor que os outros. Os jeitos eram os mesmos, mesma habilidade, mesma sensualidade, mas ela era melhor. Só porque os outros faziam aquilo um pouco decorado, maquinizado, olhando o povo em volta deles, um automóvel que passava. Ela, não. Dançava com religião. Não olhava pra lado nenhum. Vivia a dança. E era sublime. Este é um caso em que tenho pensado muitas vezes. Aquela negra me ensinou o que milhões, milhões é exagero, muitos livros não me ensinaram. Ela me ensinou a felicidade.” Disponível no sítio http://www.revistabula.com/1466-uma-carta-de-mario-de-andrade-para-carlos-drummond/. Acesso em 16/10/2015.
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hortifrutigranjeiros53, ou no galpão em que dúzias de escolas de samba cariocas, no coração de Madureira, constroem as suas alegorias e ouvem os sambas entoados pelos rádios misturados aos cânticos de louvor dos cultos evangélicos que ocorrem no mesmo espaço54 , tudo isso abastece os porões de conflitos, afetos, paixões, queimaduras e manchas de cola – o que garante generosas doses de sensibilidade (e tensão, um trunfo) ao périplo iniciado. Negar tal importância acadêmica (que sequer é paralela, mas fundante) é amputar o trabalho de seu componente mais visceralmente poético; é higienizar e/ou aplainar um terreno expansivo, político, ambíguo, distante das soluções tranquilas e das conclusões numericamente elencáveis – se o farei, ao final, será imbuído de um espírito provocador, munido, os bolsos cheios, das leituras de Foucault e Benjamin. Sem falar em Guimarães Rosa – os prefácios de Tutaméia, a terra candente. Oswald, sempre, e Mário – cujas cartas me enternecem a cada leitura madrugueira. Injustificável seria assim não enxergar um processo que se propõe a questionar a obra de uma artista que não hesita ao afirmar que também extrai o seu material reflexivo das andanças e vivências realizadas ao redor do globo, como anteriormente pincelado; que esboçou, em suas narrativas, as memórias afetivas dos quitutes das “tias” baianas55, das aventuras em terras marroquinas56 , do
53 As peripécias dessa história (a confecção do desfile de 2015 da escola de samba niteroiense Acadêmicos do Sossego, cujo enredo se chamava Banananás) foram narradas no artigo Bananas e abacaxis nos “quintais” do carnaval carioca: impressões etnográficas sobre a produção de um desfile de escola de samba da Estrada Intendente Magalhães, disponível para leitura no seguinte sítio: http://www.pragmatizes.uff.br/revista/index.php/ojs/article/view/130. Acesso em 27/09/2017. 54 Ver: MOTTA, Aydano André. Olha a desigualdade aí, gente! Disponível no sítio: http://projetocolabora.com.br/inclusao-social/olha-a-desigualdade-ai-gente/. Acesso em 22/05/2016. 55 O seguinte trecho é de saboroso tempero literário: “Essas baianas têm o status de ‘tias’ e são em geral grandes cozinheiras. Deste modo, o canto da quadra reservado para elas é um convite à gula. Nos ensaios, cada uma chega com a sua sacolinha, de onde saem coxinhas de galinha, rissoles, empadinhas que se desmancham na boca e outras guloseimas, sem esquecer dos quindins, simplesmente divinos. Na Portela, havia a ‘tia’ Vicentina, encarregada da cozinha, que era imbatível na sopa de ervilha com costelinhas de porco salgadas, verdadeiro pitéu servido depois das três horas da manhã.” MAGALHÃES, Rosa. Fazendo Carnaval. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1997, p. 113. 56 O teor cronístico deste excerto sobre o enredo de 1995, Mais vale um jegue que me carregue que um camelo que me derrube, lá no Ceará, é evidente: “A cidade de Fez ainda conserva suas muralhas e as casas são muito juntas, para minorar o calorão. Foi visitando essa cidade, onde os automóveis são proibidos de circular, que completei o que ouso chamar de meu ciclo exploratório de transportes alternativos. A pequena vila é situada numa encosta, tendo no seu topo um hotel elegante onde os carros ficam estacionados. De manhã cedo, a temperatura estava amena e fui descendo ladeira abaixo, olhando tudo o que podia. Às onze e meia da manhã, o sol era de lascar, a temperatura já havia atingido os 40 graus. Meu guia havia me dito que ao meio-dia o calor já estaria na faixa de 46 graus e teríamos de ficar no hotel até as quatro da tarde, esperando refrescar. Quando me lembrei disso, olhei para o alto do morro e calculei a distância que já havia percorrido. Um estirão de tirar o fôlego, desanimei de voltar a pé. Neste exato momento, surgiu um menino tocando um burrico com uma varinha e gritando: ‘Táxi?’ Um pedaço de tecido de listras coloridas amarrado na barriga do animal à guisa de cela e nada mais. Rédeas, também não tinha. Depois dessa rápida análise 42
entretom (auto)biográfico impresso em objetos aparentemente triviais, como um faqueiro da família57 - as reminiscências em potência inflamáveis, a areia do Saara nas solas dos sapatos e os sulcos cartografados na pele, de mochilas e patuás, baixo-relevos. Deslocar o olhar para tais sutilezas, algas marinhas na superfície da água, sargaços e fura-buchos, é parte indissolúvel dessa missão teórico-investigativa. O sambar dessa tese, talvez malandro, tem muito de um veneno sem nome, aquele que somente os amantes da folia conhecem e não é comercializável nas drogarias, um trago de coisa velha, maquiagem de camarim de teatro, misturado a vestido novo e a chuvas de água-de-cheiro. Para além da textura fria das páginas lisas dos livros, as rugosidades58 que desfiam dos lamês e dos rendões, nas saias que rodam e varrem serpentinas, os rasgos, as ranhuras, as cicatrizes nas mãos e nos pés é que podem contar histórias. A colcha de cetim verde, com flores coloridas bordadas, que a minha mãe retirava do armário apenas em dias de carnaval, para cobrir a cama – a “grande cama dos pais”, um oceano heterotópico: nessa colcha de retalhos eu deito e refaço os desenhos da infância. Volto aos meus sete anos, quando ousei fugir de Irati e migrei para o Rio de Janeiro: imitava Rosa e Renato, desfiava os meus enredos, olhava para além da serra e dos contornos do Morro da Santa.
Que sopre o vento, e que seja bom de navegar!
da situação, respirei fundo e disse, cheia de certeza – ‘Táxi!’, chamando pelo garoto.” MAGALHÃES, Rosa; NEWLANDS, Maria Luiza. O inverso das origens. Rio de Janeiro: NovaTerra, 2014, p. 69. 57 Escreveu a carnavalesca, sobre Carmen Miranda: “Na minha infância, tinha convivido de certa forma com ela, através de objetos do cotidiano doméstico. Minha mãe, quando morou nos Estados Unidos, precisava mobiliar a casa de forma econômica. E a Carmen, que já era sua amiga, estava querendo mudar a decoração da casa dela. Minha mãe comprou várias coisas suas de segunda mão. Lembro do abajur de pé de marfim e dos talheres de metal prateado. Cada vez que minha mãe comentava que os talheres tinham sido de Carmen Miranda, sumia um, levado de suvenir. Hoje, só tenho uma colher para contar a história.” MAGALHÃES, Rosa; NEWLANDS, Maria Luiza. Obra citada, p. 168. 58 Importante é observar o conceito de rugosidade de Milton Santos, assim definido pelo geógrafo: “Chamemos de rugosidade ao que fica do passado como forma, espaço construído, paisagem, o que resta do processo de supressão, acumulação, superposição, com que as coisas se substituem e acumulam em todos os lugares.” In: SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção. 4. Ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012, p. 140.
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