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III. 3 – As distopias e o pop-nostalgia

III. 3 – As distopias e o pop-nostalgia

Rio de Janeiro, 16 de julho de 2013, Auditório do Instituto de Artes da UERJ. Em encontro promovido pelo Centro de Referência do Carnaval e pelo Departamento Cultural da UERJ, com a participação do professor Felipe Ferreira e do jornalista d’O Globo Marcelo de Mello, Rosa Magalhães concordou com a ideia de Ferreira de que a obra por ela desenvolvida pode ser considerada “barroca”, uma vez que o barroco é parte da pósmodernidade. Muito detalhadamente, Ferreira explicou que algumas características do barroco (dinamismo, contraste, dramaticidade, incompletude, movimento, opulência, sobreposições, acúmulo, decoração excessiva, originalidade, ousadia, entre outras) são detectáveis no contexto pós-moderno (usou como exemplo, inclusive, a sobreposição de imagens nas páginas da Internet). Iluminou-se a ideia de que o conceito de “barroco”, tanto mais no contexto carnavalesco das escolas de samba do Rio de Janeiro268, não é algo atrelado ao passado, empoeirado, arcaico, em oposição às tecnologias do agora. De certa forma, Ferreira aprofundou, diante da convidada ilustre, as proposições defendidas em artigo publicado na Revista de Carnaval de 2009 da Imperatriz Leopoldinense, intitulado Rosa Magalhães: Pós-Modernidade Barroca. No artigo, o autor afirma: “muito mais que barroca, a carnavalesca (...) pode ser definida como uma artista pós-moderna, por sua capacidade de acumular, sobrepor e justapor referências reunidas em toda uma vida ligada à cultura, às artes e ao ensino.”269

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No mesmo encontro ocorrido na UERJ, naquela noite de inverno carioca, Felipe Ferreira questionou Rosa Magalhães sobre a presença de elementos da cultura pop em

268 Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, em Carnaval Carioca: dos bastidores ao desfile, fala da “primazia do visual” em um desfile de escola de samba e atenta para o fato de que é impossível apreender as alegorias em sua totalidade: no barracão nunca estão prontas, na concentração estão desmontadas, no desfile estão em movimento, ou seja, formam um todo complexo cujo decifrar por inteiro não é permitido ao observador. Evocando autores estrangeiros (Arnold Hauser, Walter Benjamin, Jeanne Marie Gagnebin) e nacionais (Hiram Araújo, Frederico de Moraes, Ferreira Gullar), a pesquisadora defende que as escolas de samba do Rio de Janeiro são “manifestações barrocas”. Citando Hauser, discorre: “Haveria portanto alguns traços gerais nesse barroco revalorizado, que mencionados neste contexto soam particularmente carnavalescos. São eles: a substituição do absoluto pelo relativo; a valorização do incompleto ou do desconexo em formas que ‘parecem poder continuar em todas as partes que transbordam de si mesmas. Todo o firme e o estável entra em comoção’; o caráter improvisado: ‘Em última instância – diz Wolffin –existe a tendência a apresentar o quadro não como coisa do mundo que existe por si, mas como um espetáculo transitório no qual o espectador teve precisamente a sorte de participar do momento... Interessa que o conjunto do quadro apareça como não pretendido’”. In: CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Obra citada, p. 154/155. 269 FERREIRA, Felipe. Rosa Magalhães: Pós-Modernidade Barroca. In: Imperatriz Leopoldinense –Revista de Carnaval 2009. Rio de Janeiro: Gráfica Formato3, 2009, p. 34.

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alguns dos seus carnavais, algo que julgava bastante divertido, pertinente e coerente – a confirmação de que a autora, diferentemente do que pode sugerir uma leitura simplista, jamais se deixou aprisionar em um conceito estético antiquado; ao contrário, procura dialogar, ao máximo, com a contemporaneidade.270 Para ilustrar o seu raciocínio, Ferreira utilizou como exemplo o desfile da Estácio de Sá de 1987, assinado por Rosa Magalhães e Lícia Lacerda, cujo enredo, O ti-ti-ti do sapoti, contava a história do fruto originário do México que, depois de chegar ao Brasil, ganhou o gosto popular – inclusive a mesa de D. João VI, Leopoldina e demais membros da corte portuguesa, que, de acordo com a letra do samba (de autoria de Darcy do Nascimento, Djalma Branco e Dominguinhos do Estácio), “se empapuçaram” de tanto comer. O carro abre-alas da agremiação do Morro de São Carlos exibia o símbolo que gira na bandeira da escola, o leão. Mas não se tratava de um leão qualquer, e sim de uma releitura do leão da Metro-Goldwyn-Mayer, a famosa “MGM Studios”, empresa norteamericana de comunicação de massa, fundada em 1924, famosa pelas megaproduções cinematográficas. O anúncio da empresa, no início da exibição dos filmes por ela produzidos e distribuídos, ganhou o imaginário coletivo mundial: um leão, dentro de uma moldura redonda dourada (com as inscrições “Ars Gratia Artis”, ou seja, “A arte pela arte”), entre rolos de filme também na cor do ouro, ruge ferozmente duas vezes – inegável demonstração de força e poder, dadas as ancestrais simbologias do ouro e do leão, o “Rei dos animais”. Na alegoria que abria o cortejo estaciano (imagem 60), uma grande cabeça de leão, os dentões à mostra, saía de uma moldura de rolos de filme (em branco e preto). As patas do animal agarravam as películas, enquanto as composições, com plumeiros em amarelo e vermelho, incendiavam a avenida com seus “requebros febris” (a visão eternizada de Silas de Oliveira). Mas não se tratava, e eis o pulo do gato (ou do leão, todos felinos), de uma referência gratuita, banal: ao contrário, a evocação do universo do cinema ajudava a contar o enredo da escola, uma vez que a seiva (ou o látex, como também é chamado) do sapotizeiro é utilizada para a fabricação de gomas de mascar – os populares chicletes, tão presentes nas bombonieres dos cinemas e nas próprias produções das décadas de 1950 e

270 Pensar a obra de Rosa Magalhães em cotejo com as criações de Adriana Varejão pode ser um exercício dos mais interessantes. Varejão ressignifica elementos coloniais, como azulejos portugueses e anjos barrocos, inserindo-os no contexto da arte contemporânea e levantando, com isso, inúmeras discussões sobre as visões de “identidade nacional” e sobre as feridas abertas (não à toa apresenta peças que simulam a carne viva) de nosso passado (tão recente) patriarcal, agrário, escravocrata, machista e racista. Ver: VAREJÃO, Adriana. Entre carnes e mares. Rio de Janeiro: Cobogó, 2009.

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1960: os “rebeldes sem causa” mascavam chicletes e estouravam bolas271, inserido o produto industrializado (juntamente com a brilhantina, as jaquetas de couro, as lambretas, os óculos escuros, o milk-shake e a jukebox) em um imaginário de juventude, transgressão e rebeldia.

Imagem 60: Detalhe do abre-alas da Estácio de Sá, no carnaval de 1987, sobre o sapoti. O leão, símbolo da escola, foi ressignificado e transformado no leão da Metro (ou vice-versa, ao gosto carnavalesco). Foto: Delfim Vieira. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/carnaval/carnaval-historico/cuidado-leaoesta-solto-na-avenida-15071167.html. Acesso em 13/03/2018.

A transformação do leão-símbolo da Metro, multinacional da cultura de massa, no leão-símbolo da Estácio de Sá, agremiação carnavalesca da cultura popular carioca, é, para Felipe Ferreira, um belo exemplo da plasticidade de Rosa Magalhães. O processo de ressignificação “matava três coelhos”: apresentava o símbolo da escola, mexendo com os brios da comunidade apaixonada; começava a desenhar o enredo a ser contado, materializando na avenida o espírito de uma época; e despertava nos espectadores um sentimento de feliz nostalgia – o que, na visão de Ferreira, é o ponto mais interessante. De acordo com o pesquisador, é uma estratégia da artista a utilização de elementos vintage, capazes de acionar o “inconsciente coletivo” (termo bastante trabalhado por Maria Augusta Rodrigues, nas palestras que profere) e mexer com a memória afetiva de uma coletividade. Além da abertura do desfile da Estácio de Sá de 1987, Ferreira

271 No desfile da Estácio havia, inclusive, uma ala cuja fantasia representava “bola de chiclete”.

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mencionou, na mesa da UERJ, a apresentação do Salgueiro de 1991 e os desfiles gresilenses de 1998, 2000, 2005 e 2007. Em 1991, o Acadêmicos do Salgueiro levou para a Marquês de Sapucaí o enredo Me masso se não passo pela Rua do Ouvidor, contando a história de um rua que sintetiza o Centro do Rio de Janeiro e as transformações pelas quais a cidade passou – da fundação aos dias atuais, merecendo destaque o período imperial e a Belle Époque. Um dado interessante observado nas justificativas redigidas pela carnavalesca, no Livro Abre-Alas daquele ano, é que, objetivando unificar esteticamente a narrativa, ela optou por um leitmotiv:

O desenvolvimento do tema traduz-se também nos trajes. Para tal, imaginamos como motivo central uma flor. Ora é impressa no tecido, ora possui volume, ora é romântica, ora é pós-moderna. A flor assume a função de um “leitmotiv”, acompanhando todo o desenrolar do enredo. Assim foram criadas estamparias cujo tema é um só, mas que vai sofrendo mudanças à medida que o tempo passa. Do rococó, passando pelo neoclássico, até os dias de hoje. Os modelos também fazem parte desta passagem de tempo, juntamente com o esquema cromático. As roupas leves visam uma melhor evolução para a Escola.272

Nas alegorias, especialmente a partir da Terceira Parte do enredo (a Primeira Parte tratava da abertura da rua, no final do século XVI, chamada Desvio do Mar; a Segunda Parte, do período em que a Família Real portuguesa viveu no Rio, na primeira metade do século XIX), amontoados de objetos antigos davam ao desfile um ar de antiquário ou grande bazar. Sucediam-se os seguintes elementos alegóricos: Carro Nº 5 – Carro da Moda; Carro Nº 6 – A Livraria; Carro Nº 7 – A Confeitaria; Carro Nº 8 – A Joalheria; Carro Nº 9 – A Relojoaria; Carro Nº 10 – O Fotógrafo; Carro Nº 11 – Carro das Cocotes; Carro Nº 12 – Da 1º de Março falta um passo para a Rua do Ouvidor; Carro Nº 13 – O Bonde; Carro Nº 14 – O Carnaval; Carro Nº 15 – Rua do Ouvidor hoje. Especialmente nas alegorias 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 13 e 14 viam-se elementos de épocas passadas, fixados nas nossas memórias (imagem 61). Relógios dos mais variados tipos (a autora informa que a rua possuía 33 relojoeiros), bibelôs de porcelana, lambe-lambes, móveis coloniais, tudo conferia à apresentação salgueirense um ar nostálgico – na letra do samba de enredo, composto por Sereno, Diogo e Luiz Fernando, “a nostalgia do Rio que era mais feliz.”273

272 Informações presentes no Livro Abre-Alas de 1991, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA. 273 De certa maneira, o mesmo espírito do enredo salgueirense motivou a carnavalesca a pensar a narrativa assinada para o Império Serrano, no Grupo de Acesso A, em 2010. Desenvolvido em parceria com Mauro Leite Teixeira e Andréa Vieira, o enredo João das ruas do Rio partia das narrativas de A alma encantadora 172

O acúmulo de objetos ajudava o público a compreender a importância da Rua do Ouvidor, que, de acordo com o texto da sinopse do enredo, era comparável às Ruas Vivienne, em Paris, Regent Street, em Londres, e Broadway, em Nova York. Nas palavras de um viajante estrangeiro (de nome desconhecido), citado na sinopse, “as três, combinadas, dão como resultado a Rua do Ouvidor”, um exemplo “para aliviar o trânsito da Broadway”.274

Imagem 61: Alegoria que representava as Relojoarias, no desfile do Acadêmicos do Salgueiro, em 1991. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

A mesma fragrância nostálgica, cheiro bom de sachê de guarda-roupa, ajudou a colorir os desfiles da Imperatriz Leopoldinense dos anos 2000, 2005 e 2007. Na traseira da última alegoria de Quem descobriu o Brasil foi Seu Cabral, no dia 22 de abril, dois meses depois do carnaval viam-se esculturas que remetiam aos desenhos carnavalescos de J. Carlos e uma caricatura de Lamatine Babo, compositor de inúmeras marchinhas (entre elas, aquela que inspirou a carnavalesca a criar o título do enredo apresentado, trocando “inventou” por “descobriu”) e personagem homenageado pela Imperatriz Leopoldinense, sob o risco de Arlindo Rodrigues, no desfile campeão de 1981 – ou seja:

das ruas para contar as mudanças pelas quais passou o centro da cidade; assim como no desfile sobre a Rua do Ouvidor, a última alegoria do Império Serrano mostrava uma rua carioca contemporânea, com ambulantes, flanelinhas, camelôs, “cenário natural do dia a dia”, conforme o samba de Marcelo Ramos, Henrique Hoffmann, Paulinho Valença, William Black e Popeye. 274 MAGALHÃES, Rosa. Me masso se não passo pela Rua do Ouvidor. Sinopse do enredo do carnaval de 1991 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA).

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nostalgia em dose dupla. Em 2005, no desenvolvimento do enredo sobre a obra de Hans Christian Andersen, viam-se ilustrações de livros infantis da segunda metade do século XIX (carro abre-alas), além de porcelanas chinesas (alegoria 3) e antigos brinquedos de crianças (alegoria 5), como caixinhas de música com bailarinas giratórias, palhaços de mola, blocos de montar, ursos de pelúcia e soldadinhos de chumbo (imagem 62). Em 2007, a fim de abrir o enredo sobre a história do bacalhau e a mitologia da Noruega com maior apelo popular, a carnavalesca reviveu na Sapucaí o excesso tropicalista dos programas de Abelardo Barbosa, o Chacrinha275, que, entre frutas, paetês, plumas e cartas de baralho, atirava pedaços do peixe aos presentes no auditório - e certamente deixou saudade (uma vez que não mais se viu tal irreverência espalhafatosa na televisão brasileira). Pode ser inserido nessa galeria de “antiguidades”, ainda, o fusca cor-de-rosa que ajudava a compor a alegoria dedicada à infância, no desfile da Estácio de Sá de 1987.

Imagem 62: Brinquedos infantis no desfile em homenagem a Hans Christian Andersen. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

275 Chacrinha, que já havia aparecido no cortejo gresilense de 2002, conforme visto em A Antropofagia de Rosa Magalhães, voltou à Sapucaí em 2018, no desfile da Acadêmicos do Grande Rio, desenvolvido por Renato Lage e Márcia Lage. O enredo, intitulado Vai para o trono ou não vai?, propôs uma colagem de imagens e canções que marcaram as décadas de 1960, 1970 e 1980. Problemas graves com o último carro alegórico (que não participou do desfile, terminando guinchado) esfacelaram a harmonia e a evolução da escola – que, inesperadamente, terminou a apuração de quarta-feira de cinzas rebaixada para a Série A (algo que nem o melhor vidente poderia prever). Foi a prova dos nove: a “lenda” de que o “Velho Guerreiro” traz “má sorte” carnavalesca (comenta-se, nos bastidores da folia, que enredos que falam do personagem estão fadados ao insucesso – caso dos dois desfiles gresilenses mencionados, da apresentação do Paraíso do Tuiuti, em 2017, e do desfile que eu e Gabriel Haddad assinamos em 2015, na Acadêmicos do Sossego, sobre a banana e o abacaxi) foi comprovada e posta em ata. Ata que, por vezes, termina rasgada – caso observado no pós-carnaval de 2018, quando a LIESA anulou os rebaixamentos de Império Serrano e Grande Rio, “virando a mesa” pelo segundo ano consecutivo.

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O enredo e o desfile de 1998 formam um caso sensivelmente mais complexo – o que obriga o leitor a uma análise cuidadosa. Em Quase no ano 2000 (imagens 63, 64, 65 e 66) não apenas o “pop nostalgia” (o conceito cunhado por Ferreira – e apresentado na mesa da UERJ – para tentar explicar a utilização dos elementos antigos, nas narrativas visuais de Rosa Magalhães) se faz presente (o pequenino avião de madeira a girar em torno de um grande planeta, no carro abre-alas; a presença de personagens de séries e filmes de ficção científica de diferentes épocas, na quarta alegoria; as referências explícitas aos quadrinhos de Flash Gordon, no primeiro setor) mas o conceito de distopia – e aqui o diálogo com Breazail, enredo que carnavaliza a Utopia de Thomas More, ganha vivacidade. Aparentemente um ponto fora da curva, tanto mais se o referencial adotado for “apenas” o conjunto de narrativas desenvolvido para a Imperatriz Leopoldinense, Quase no ano 2000 recebeu, na conclusão de A Antropofagia de Rosa Magalhães, comentários que merecem ser revisitados – e expandidos, à luz do conceito de distopia debatido por teóricos como Raymond Williams e Gregory Claeys. Escrevi, na dissertação de Mestrado defendida em 2014:

O enredo Quase no ano 2000 é um dos mais significativos nós do conjunto de narrativas observado porque parece, à primeira vista, um corpo estranho, um bicho-de-pé no pé do bicho-papão. Na verdade, o enredo apresenta um processo de construção e desenvolvimento visual semelhante aos demais, mudando apenas (não totalmente, vide o índio na última alegoria e o setor dedicado às flores e às belezas naturais; o ideal de unificação/pacificação social também se fez presente, não em escala nacional, mas global – donde brota a noção um tanto desgastada de “aldeia global”) o leque de referências. No primeiro setor do desfile, havia fantasias referentes a Tempos Modernos, de Charlie Chaplin, Asas do Desejo, de Wim Wenders, e Metrópolis, de Fritz Lang, indiscutivelmente cult movies do cinema autoral. No mesmo setor, brincava a ala Flash Gordon, referência despreocupada a um produto da cultura de massa. Na alegoria 04, Homem na Lua, personagens de filmes hollywoodianos disputavam o espaço cênico: Super-Homem, Darth Vader, os extraterrestres da série Homens de Preto, todos cantavam e dançavam com os rostos encobertos por máscaras importadas dos parques temáticos da Flórida. É como se na estante de Rosa Magalhães a série Guerra nas Estrelas dividisse a mesma prateleira com filmes de arte alemães; os quadrinhos de Flash Gordon figurassem ao lado de Macunaíma, o que não é surpreendente, afinal, os círculos culturais não são estanques, muito menos incomunicáveis (a já debatida ideia de circularidade e mediação cultural) – quantos são os casos de obras consideradas “menores” que, com o passar do tempo, ganham o status de cults, sendo redescobertas e ressignificadas num outro contexto?276

O que não foi debatido, naquele trabalho, é o caráter distópico que pode ser depreendido do enredo de Rosa Magalhães. De acordo com Gregory Claeys, “muito se

276 BORA, Leonardo Augusto. Obra citada, f. 304/305.

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discutiu se a ficção científica é exatamente uma parte da utopia, ou se, na verdade, a utopia é apenas um ramo da ficção científica.”277 Datado de 1929, o termo “ficção científica” foi criado por Hugo Gernsback, editor que abriu as portas para grandes nomes do gênero, como Isaac Asimov (Eu, robô), Arthur C. Clarke (2001) e Robert Heinlein (Tropas estelares). Desde então, ocupou espaços importantes, nas livrarias e salas de projeção, consolidando-se enquanto gênero bastante provocativo e ganhando uma legião de fãs (leitores e espectadores) apaixonados. Para Claeys,

Com a definição apresentada aqui, em que utopia, em resumo, é basicamente a representação formal de uma linha da tradição da comunidade ou cidade-estado ideal, a ficção científica é um subgênero em que há predominância dos temas ciência e tecnologia – utopicamente, quando expresso de maneira positiva, ou distopicamente, quando usado de modo negativo. (...) O gênero ficção científica cativou a imaginação popular de uma maneira nunca alcançada pela ficção utópica. O cinema e a televisão modernos foram invadidos pela ficção científica, e, desde o início do século XX, revistas e romances de ficção científica tiveram imenso apelo popular, e até grandes cultos, como a cientologia, surgiram do fascínio pelo espaço sideral e por óvnis. Na verdade, o espaço é a fronteira final da humanidade, o último domínio conquistável (e talvez até o último domínio que será conquistado). No mundo moderno, a especulação teológica foi, de modo geral, substituída pela especulação sobre ciência e tecnologia.278

A visão descarnada de futuro presente em Metrópolis, de 1927 (portanto anterior à divulgação do termo cunhado por Gernsback), se tornou um exemplo de distopia urbana: a exploração do operariado e o triunfo das máquinas são apenas alguns fios desencapados, numa usina de questões fumegantes. Alfredo Suppia desenvolveu uma análise comparativa de Metrópolis e Blade Runner, observando as visões de cidade presentes nas películas de Fritz Lang e Ridley Scott. Para o autor, Fritz Lang “vale-se da verticalidade como metáfora do conflito de classes, uma vez que o operariado, oprimido por jornadas de trabalho desumanas, amontoa-se nos subterrâneos, enquanto a burguesia goza de toda a tecnologia e segurança da superfície.”279 A arquitetura da cidade exibida na tela, portanto, expressa uma ideia de conflito e opressão: “a cidade torna-se um palco aberto aos mais ousados experimentos plásticos do cineasta-arquiteto Fritz Lang.”280 Na segunda alegoria do desfile assinado por Rosa Magalhães, em 1998, o que se via era justamente isso: sobre altos edifícios espelhados, decorados com criaturas gargulescas, os

277 CLAEYS, Gregory. Obra citada, p. 163. 278 CLAEYS, Gregory. Obra citada, p. 163. 279 SUPPIA, Alfredo. A Metrópole Replicante. Construindo um diálogo entre Metrópolis e Blade Runner. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2011, p. 39. 280 SUPPIA, Alfredo. Obra citada, p. 39.

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soberanos de Metrópolis dançavam; nos esgotos, entre engrenagens, parafusos e roldanas, um grupo de operários exibia coreografia robótica – exemplo de teatralização, algo bastante utilizado pela carnavalesca ao longo de sua trajetória profissional. Uma visão sintética, portanto, da ideia central do filme – cujo próprio título se refere à urbanidade. O mesmo argumento comparativo apresentado por Suppia, em seu livro publicado em 2011, é utilizado pela artista, na sinopse do enredo de Quase no ano 2000:

O cinema ajudou a construir o imaginário do ano 2.000. Mas, agora que ele está aí, há que se reconhecer que a representação feita do futuro não se parece nem um pouco com o fim do milênio real. Metrópolis, de Fritz Lang, é a prova de que o cinema tomava o futuro como seu assunto desde os seus primórdios. Os robôs, o simulacro mecânico e mais tarde eletrônico do ser humano, já era elemento essencial no clássico Metrópolis, e continuou firme e forte nas cinco décadas seguintes. Blade Runner ou o Caçador de Andróides traz de volta a importância desta inexistente conquista tecnológica. Engrenagens, porcas, parafusos e circuitos de robôs representam os prazeres da dominação sem culpa, ou a escravidão sem culpa.281

O duelo entre homens e máquinas também foi traduzido na quinta alegoria do desfile, um tabuleiro de xadrez. A carnavalesca encenava os 2 matches de 6 partidas de xadrez disputados entre Garry Kasparov, campeão mundial capaz de analisar 3 jogadas por segundo, e o supercomputador Deep Blue, desenvolvido pela IBM (International Business Machines, empresa norte-americana do ramo da informática) para analisar 200 milhões de posições por segundo, em 1996 e 1997. No confronto de 96, o enxadrista nascido em Baku, no Azerbaijão, venceu por 4 a 2; em 97, depois de uma atualização do software de Deep Blue, a máquina levou a melhor e venceu o homem por 3¹/² a 2¹/² - um evento inédito, capaz de despertar as mais instigantes discussões filosóficas. A atualidade do enredo de 1998 se torna flagrante, mostrando que Rosa Magalhães não pretendia, apenas, investigar as visões de futuro construídas no passado, mas analisar o “hoje” (que hoje é o hoje de 20 anos atrás) e projetar um futuro harmonioso, multiculturalista, sem desigualdades, com a natureza preservada. Em O inverso das origens, a autora analisa a própria obra e discorre sobre as referências utilizadas:

Uma das mágicas do século 20, o cinema, também tratou da evolução do homem e da tecnologia. Os filmes de ficção espacial vêm da época de Meliés, com astronautas sem capacetes e tripulantes que mais se pareciam com as vedetes de musicais da época. O

281 MAGALHÃES, Rosa. Quase no ano 2000. Sinopse do enredo do carnaval de 1998 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA).

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filme Metrópolis, de Fritz Lang, não é só uma obra-prima como arte cinematográfica, pois plasticamente é belíssimo, mas condena também a massificação do homem, o trabalho automatizado. Podemos compará-lo, embora sob outro enfoque, ao filme em que Charles Chaplin trabalha numa fábrica. São tantos gestos mecânicos que, no final, de tão condicionado a fazer movimentos repetidos, ele se torna hilariante até para comer, e é aí que reside a crítica. Os figurinos da primeira parte do enredo para o desfile carnavalesco de 1998 foram inspirados nos filmes de Flash Gordon, do início da era cinematográfica. Os operários de Metrópolis e o robô-mulher, com traços art-déco, não poderiam ficar de fora dessa representação do século 20. A comissão de frente se encaixava nesse capítulo. (...) O homem na Lua e o módulo lunar foram o assunto de outro carro alegórico. E, de novo, o imaginário dos artistas da sétima arte foi explorado. Personagens de Jornada nas Estrelas, de Homens de Preto e seres estranhíssimos, embora nenhum deles tenha sido visto de verdade até hoje, juntaram-se ao astronauta. A inteligência artificial foi representada pelo jogo de xadrez em que Kasparov perdeu para o computador Deep Blue. Mas o Deep Blue só sabia jogar xadrez – as peças do jogo eram as diversas alas. Quis fazer um plotter com o jogo de xadrez. Procurei em vários livros, na Internet, e não encontrei nenhuma imagem que me agradasse, que mostrasse um confronto bonito das peças brancas e pretas. O jeito foi comprar um jogo de xadrez e montá-lo – também com a ajuda de um manual – como se a partida fosse começar. Tirei a foto, iluminada pelo abajur da sala, e foi assim que o plotter central do carro ficou pronto.282

Ainda que não fale em “distopias”, é ponto pacífico que obras como Metrópolis, e mesmo a derrota de Kasparov para o supercomputador da IBM, expressam o imaginário distópico, marcado por características opostas às dos conceitos de igualdade, liberdade, humanidade. Jerzy Szachi, em As Utopias, também não utiliza o termo distopia, mas fala em utopias negativas ou contra-utopias. Para ele, existe uma linha tênue entre o utópico e o distópico, uma vez que “a felicidade de alguns continua a ser a infelicidade de outros.”283 O autor destaca a “flexibilidade dos valores utópicos”, mas admite não possuir referenciais teóricos mais aprofundados para analisar as “utopias negativas”. Raymond Williams, diferentemente, desenvolve análise cuidadosa da literatura e da cinematografia distópicas em Cultura e Materialismo, falando em “novos paraísos e infernos” (terminologia cara a Joãosinho Trinta, vide o enredo desenvolvido para a Unidos do Viradouro, no ano 2000). Segundo o teórico britânico, a “ironia última e mais questionável” das distopias reside na apropriação (e ressignificação, com fins autoritários) que elas fazem de conceitos utópicos, como a palavra comunidade284 . O lema

282 MAGALHÃES, Rosa; NEWLANDS, Maria Luiza. Obra citada, p. 111/112. 283 SZACHI, Jerzy. Obra citada, p. 114. 284 Não curiosamente, o termo “comunidade” é dos mais utilizados no universo das escolas de samba, a fim de exaltar a coesão e a força de um determinando contingente de desfilantes. A Beija-Flor de Nilópolis é o caso mais comentado: a escola da Baixada Fluminense se orgulha em dizer que “é uma escola de comunidade”, inserindo a palavra nos seus sambas de enredo. As teias sociais observáveis por debaixo de tal conceito, porém, isso é trabalho para longas etnografias.

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do Estado em Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, é “Comunidade, estabilidade, identidade”. Diante do cenário de opressão, é característica dos “heróis distópicos” o desejo de ruptura, a necessidade da rebelião:

Como nas fases finais da ficção realista, a autorrealização não pode ser encontrada no relacionamento ou na sociedade, mas na ruptura, na fuga: o caminho que o selvagem toma na ficção de Huxley, como os milhares de heróis da ficção realista tardia, ao deixar o antigo lugar subterrâneo, as pessoas conhecidas, a família conhecida, ou como tantos heróis da ficção científica, correndo aos locais abandonados para escapar da máquina, da cidade, do sistema.285

Ganha reforço, aqui, a ideia de que a presença de índios brasileiros no último setor (e na última alegoria, sob a simbologia da onça negra) do desfile gresilense de 1998 não é algo aleatório: ao olhar para as comunidades tradicionais e defender a preservação dos recursos hídricos do planeta (e dos biomas como um todo), Rosa Magalhães esboça e arte-finaliza um posicionamento político (que permanece na pauta do dia) e confirma o caráter distópico da obra apresentada. Nos subterrâneos do enredo, parafraseando Jorge Amado, dançava a liberdade.

Imagens 63 e 64: Detalhes da quarta alegoria do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 1998, intitulada “O homem na Lua”. A presença de personagens cinematográficos da série Star Wars, de George Lucas, pode ser entendida enquanto exemplo do pop-nostalgia de que fala Felipe Ferreira. Fonte: transmissão televisiva da TV Globo.

285 WILLIAMS, Raymond. Obra citada, p. 282.

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Imagem 65: Detalhes da fantasia da Comissão de Frente da Imperatriz Leopoldinense, em 1998. Como a própria Rosa Magalhães narrou, em O inverso das origens, mistura de soldados gregos com pássaros tropicais e personagens de Flash Gordon. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

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Imagem 66: Detalhes da fantasia da Bateria da Imperatriz Leopoldinense, em 1998. Para representar o Computador, a carnavalesca Rosa Magalhães criou um figurino a partir da “estética do acúmulo”. Bolas de acetato (planetas?) sobre compridas varas de pesca bailavam pela avenida, construindo um visual bastante impressionante – o que levou o júri do Estandarte de Ouro a premiar, pela primeira vez, uma bateria como melhor ala do ano. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

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