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VI.2.3 –A carne é fraca, é isso aí

VII. 2. 3 – A carne é fraca, é isso aí

Em 1988, ao final do enredo O boi dá bode, desenvolvido para a Estácio de Sá, Rosa Magalhães apresentava um aglomerado de faixas, comendas, medalhas, brasões, broches e rosáceas. Eram os prêmios dos “bois de raça” que virariam peças de exportação – o que não deixava de ser uma crítica à postura de “vaca de presépio” (tema da alegoria que antecedia os “bois premiados”) adotada pela política brasileira diante do capital estrangeiro. Os figurinos e os adereços do carro (imagem 116) dialogavam com a obra Bovinocultura: sociedade do boi, de Humberto Espíndola, artista mato-grossense. A instalação de 100 metros quadrados foi apresentada ao público enquanto “arte ambiental” (o conceito de Hélio Oiticica390) na XI Bienal Internacional de São Paulo, em 1971 (imagens 117 e 118). A autora adaptava, para o contexto do carnaval carioca, o universo simbólico de um artista plástico contemporâneo que pretendia, com a sua produção, criticar a cultura mercantilizada da agropecuária do Brasil:

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A produção de Humberto Espíndola parte do tema do boi, visto como símbolo da riqueza de Mato Grosso. Em Bovinocultura, realiza um retrato sarcástico da sociedade do boi, que é principalmente moeda e símbolo de poder. Em seus primeiros trabalhos, Espíndola apresenta o animal envolto em penumbra, provocando estranheza. A efígie do boi, em suas telas, é colocada em um primeiro plano, ou isolada em um oval central, ganhando a dimensão de nobreza de um retrato. Em Glória ao Boi nas Alturas (1967), utiliza uma deliberada frontalidade do animal, em torno do qual se acumulam máscaras, imprimindo ao quadro um ritmo dinâmico. Alguns quadros possuem um sentido simbólico, com a utilização das cores da bandeira brasileira. Em outros, emprega crachás e medalhas, que remetem a exposições agropecuárias. Como nota o crítico Frederico Morais, Espíndola humaniza o boi, para denunciar a vontade de poder do ser humano, como ocorre em O Tirano (1984). Já na série Arqueologia do Boi - Boi Branco (1993), destacam-se o uso de tonalidades rebaixadas e o caráter mágico. O artista realiza posteriormente gravuras geradas e

Lage) relação com a escola. (...) (Renato) concordava com a necessidade de o carnavalesco se profissionalizar, mas assinalava também a dificuldade de unir as pessoas: ‘o carnaval é um show, então é uma competição muito grande, um quer engolir o outro. Por exemplo a ideia de fazer um piso salarial. O carnavalesco tem a liberdade de negociar o contrato. Sempre brigamos por um bom contrato. Só não consegue melhor porque os outros não fazem. Aí eles falam em mercado, ora, o mercado não existe.’ A situação era, em suma, a seguinte: o contrato se fechava abaixo de suas expectativas, entretanto no decorrer do ano ganhavam no final mais do que o negociado. Na expressão de Lilian, a relação adquiria desse modo uma feição ‘super-paternalista’ que a incomodava. (...) Cabe lembrar a natureza muito particular desse contrato: ‘É mais na palavra – comenta Renato – bem poucos fazem’”. In: CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Obra citada, p. 64/65. 390 Ver OITICICA FILHO, César (org.). Hélio Oiticica – Museu é o mundo. Rio de Janeiro: Beco do Azougue editorial, 2011.

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coloridas em computador, nas quais obtém grande potência no colorido, como em Vaca Escada (2001).391

Imagem 116: Penúltima alegoria do desfile de 1988 da Estácio de Sá, intitulada Boi premiado. Rosa Magalhães dialogava com Humberto Espíndola para tecer uma crítica à postura dos pecuaristas e políticos brasileiros em face do capital estrangeiro. Fonte: transmissão televisiva da TV Globo.

Imagem 117: Instalação Bovinocultura: Sociedade do boi, de Humberto Espíndola, exposta na XI Bienal Internacional de São Paulo, em 1971. Fonte: http://www.humbertoespindola.com.br/005-obras-088.htm. Acesso em 17/03/2018.

391 ESPÍNDOLA, Humberto. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2018. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa8706/humbertoespindola. Acesso em: 11/03/2018. ISBN: 978-85-7979-060-7. Sobre a produção do artista, ver ainda: ESPÍNDOLA, Humberto. 20 anos de bovinocultura. Apresentação Idara Negreiros Duncan Rodrigues; comentário Mário Pedrosa, Mario Schenberg, Jayme Maurício, Roberto Pontual, Clarival do Prado Valladares, Aline Figueiredo, Frederico Morais, Maria da Glória Sá Rosa. Campo Grande: Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, 1987.

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Imagem 118: Na instalação Bovinocultura: Sociedade do Boi, Humberto Espíndola criticava a política brasileira, utilizando, para isso, de faixas, chifres e prêmios concedidos a “bois de raça”. Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra11793/bovinocultura-sociedade-do-boi-instalacao. Acesso em: 11/03/2018.

No mesmo desfile, o último carro alegórico trazia um enorme fogão, com panelas de todos os tipos (inclusive uma chaleira e um verdíssimo chuchu). Sobre as panelas, “fervendo”, um grupo de travestis e Drag Queens expressava a brincadeira do final da narrativa: o boi, quando morre, vira vaca.392 A autora não apenas se referia ao prato “vaca atolada”, feito com carne bovina e mandioca, como à ideia de que a “vaca brasileira” havia ido para o brejo: recessão econômica, desilusões governamentais, instabilidades, tudo contribuía para o entendimento de que o “boi” havia dado “bode” – aparecendo a transgressão enquanto ferramenta política de luta. As “vacas” da alegoria, além disso, desnudavam o corpo gay no universo carnavalesco, algo trabalhado por autores como Samuel Abrantes393 e Fabiano Gontijo.394

392 Nas palavras da autora: “Já tivemos boi voador, boi-bumbá, boi de mamão, boi de cara preta que pega menino que tem medo de careta, tem boi magro, gordo, boi na entressafra, boi de cabresto, boi com abóbora, boicote ao boi. E quando não acreditamos em algo dizemos que é mais fácil um boi voar! Mas às vezes, o BOI DÁ BODE... e ainda por cima, quando morre... vira vaca.” In: MAGALHÃES, Rosa. O boi dá bode. Sinopse do enredo do carnaval de 1988 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Estácio de Sá, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA). 393 Ver: ABRANTES, Samuel. Samile Cunha. Transconexões, memórias e heterodoxia. Rio de Janeiro: Rio Books, 2014. 394 Ver: GONTIJO, Fabiano. O Rei Momo e o arco-íris: homossexualidade e carnaval no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2009.

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Tal universo ganharia mais purpurina no desfile mangueirense de 2014. O sexto setor de A festança brasileira cai no samba da Mangueira exaltava a Parada Gay de São Paulo enquanto festa popular que ocupa, todos os anos, a mais famosa avenida da Terra da Garoa. Rosa Magalhães e Oswaldo Martins, os autores do enredo, transformaram a Sapucaí em uma tribuna a favor dos direitos LGBTQI, daí a pertinência do trecho:

Respeitar a diversidade é hoje, principalmente nas grandes metrópoles, garantir às pessoas o direito a suas escolhas individuais e ao pleno exercício dos direitos civis inerentes à vida contemporânea. Símbolo da diversidade, o arco-íris foi adotado pela comunidade gay, alvo da homofobia, como escudo de defesa dos preconceitos que, embora ilegais, permanecem visíveis na sociedade. Sair do armário, da expressão em inglês “out of the closet”, representa libertar-se do medo e assumir sua orientação sexual. A Parada Gay, que se repete em vários pontos do país, é hoje uma festa popular que arrasta multidões.395

A alegoria Saindo do armário nada mais era que um imenso closet, com sapatos de salto, batons, bolsas e espelhos. Composições vestindo casacos pretos entravam em portas de armários e saíam trajando fantasias de ícones do mundo gay, como Carmen Miranda, Madonna, as drags do musical australiano Priscilla (imagem 119). As panelas de O boi dá bode davam lugar aos estojos de maquiagem.

Imagem 119: Detalhe da penúltima alegoria do desfile de 2014 da Estação Primeira de Mangueira, visão carnavalizada para a expressão “sair do armário”. Foto: Wigder Frota. Acervo pessoal.

395 Justificativa do sexto carro alegórico de 2014 da Estação Primeira de Mangueira, encontrada no Livro Abre-Alas daquele ano. Disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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