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II. 3. 2 – Cabo Frio, o cenário do clímax
II. 3. 2 – Cabo Frio, o cenário do clímax
26 de março de 2017, um domingo ensolarado em Paris. Descansava no Musée Rodin, depois de caminhar pelas redondezas. O jornalista Renan Rodrigues apresenta, no jornal O Globo, a notícia de que fui contratado, juntamente com Gabriel Haddad, para o desenvolvimento do desfile de 2018 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos
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do Cubango, da Série A do carnaval carioca. A matéria, intitulada Cubango aposta em novos carnavalescos, também informava aos leitores que o “enredo” da agremiação niteroiense já estava definido: o bicentenário de Nova Friburgo, cidade da região serrana do estado do Rio de Janeiro. Nas palavras de Renan Rodrigues:
Na última quinta-feira, a escola anunciou que o enredo será o bicentenário do município de Nova Friburgo. Pelé (o então presidente da escola119) divulgou o tema após uma reunião com representantes da prefeitura. A sinopse, entretanto, ainda não foi divulgada. Segundo Bora, a pesquisa ainda está sendo desenvolvida e, por isso, não pode dar pistas sobre a narrativa que será adotada: -É possível desenvolver uma narrativa interessante, que saia do roteiro tão discutido no universo carnavalesco. É a primeira vez que desenvolveremos um enredo a partir de um tema previamente acertado pela diretoria da escola. Ainda não podemos revelar por quais caminhos seguiremos nessa viagem, mas certamente haverá surpresas. 120
Fato é que ambos, Gabriel e eu, aceitamos, naquela ocasião, o desafio de desenvolver um enredo a partir de um tema patrocinado (ao menos havia a promessa de patrocínio) – os 200 anos da fundação de Nova Friburgo. E fato é que permanentemente, quando discutíamos, via internet (eu participava do intercâmbio em Nice e acompanhava o processo à distância), os rumos da narrativa, invocávamos as trilhas de Rosa Magalhães. De antemão, informamos à diretoria da escola que não nos interessava o desenvolvimento linear de um “enredo CEP”, a convencional sequência “índios-colonizadores-escravospontos turísticos-comidas típicas-comemoração da data festiva”, com poucas variações
119 Não se sabia, até então, que, depois de mais de uma década de eleições por aclamação, a escola passaria por um pleito presidencial com chapas concorrentes (situação, encabeçada por Olivier Pelé, e oposição, encabeçada por Rogério Belisário). A chapa de oposição, “Resgata Cubango”, sagrou-se vencedora, em 7 de maio de 2017, pondo fim ao período de 16 anos da administração Pelé – o presidente que nos havia contratado e que havia alinhavado a parceria com o município de Nova Friburgo. A mudança administrativa ocasionou a mudança do enredo: os carnavalescos, mantidos no posto, puderam apresentar uma “narrativa autoral”, livre do incerto patrocínio oferecido por empresários da cidade serrana. Optamos, então, por Arthur Bispo do Rosário. 120 RODRIGUES, Renan. Cubango aposta em novos carnavalescos. Gabriel Haddad e Leonardo Bora farão estreia na Sapucaí em 2018. Jornal O GLOBO: 26/03/2017. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/bairros/cubango-aposta-em-novos-carnavalescos-21112505. Acesso em 25/08/2017.
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(às vezes, com direito a bolo de aniversário e arabescos de glacê). Desejávamos, na linha dos enredos de Rosa Magalhães, encontrar um “fio condutor” (expressão que vem sendo debatida à exaustão, diga-se121)inusual –algo que descolasse o olhar do leitor já na leitura da sinopse. Em uma das vitrines parisienses, na Avenue de la Bourdonnais, vislumbrei uma imagem-síntese para as ideias que se firmavam (imagem 29). O caminho encontrado, sob o título Sonhos de uma corte de verão (imagem 30), promovia o diálogo entre Machado de Assis e William Shakespeare, união emoldurada por diversas manifestações carnavalescas (das máscaras de Veneza às batalhas de flores de Nice, ou seja: a utilização das minhas pesquisas e vivências, durante o Sanduíche). Descobrimos, em nossas pesquisas, que Nova Friburgo, ainda na primeira metade do século XIX, era um dos mais disputados polos carnavalescos da elite fluminense, devido às condições climáticas mais próximas dos termômetros europeus e ao fato de que a corte desejava um destino fixo, com infraestrutura urbana adequada, para as temporadas de veraneio. Na cidade serrana foram organizados bailes venezianos e cortejos de gôndolas, batalhas de flores e desfiles de corsos iluminados – tentativas suntuosas de reproduzir, em solo brasileiro, os festejos d’além-mar. Terminaríamos o enredo (basicamente uma leitura da história do carnaval de Nova Friburgo) celebrando o triunfo das manifestações populares sobre as importações elitistas: os “homens selvagens” (brincantes que se vestem com folhas e galhos coletados nas matas, tradição entre os moradores de Rio
121 Observa-se, nos últimos anos, o uso da expressão “fio condutor” para simplesmente maquiar “enredos CEP” convencionais. Por exemplo: a utilização de um personagem famoso (músico, escritor, artista plástico, esportista, etc.) para justificar o desenvolvimento de um determinado tema patrocinado por estados, municípios ou países, sendo que, via de regra, tal personagem apenas aparece no início e no final da apresentação, quando muito, não desempenhando qualquer função narrativa que não a de “mestre de cerimônia”. Um caso recente, bem resolvido plasticamente e bem avaliado pelo júri da LIESA (4ª colocada), foi o da Unidos da Tijuca, no carnaval de 2015. A agremiação do Morro do Borel, sob a batuta dos carnavalescos Annik Salmon, Carlos Carvalho, Hélcio Paim, Marcus Paulo e Mauro Quintaes, cantou o enredo Um conto marcado no tempo – o olhar suíço de Clóvis Bornay, sobre a Suíça, com patrocínio da companhia aérea SWISS. No desfile, lendas e contos medievais, celebrações de inverno, relógios, canivetes, chocolates, um grande passeio pelo país europeu, em suma. Na comissão de frente e na última alegoria, porém, homenagens a Clóvis Bornay, importante carnavalesco da história da folia carioca (uma referência pertinente, organicamente ligada ao contexto da Sapucaí, portanto), cujo pai era suíço. Trata-se de uma abordagem bastante diferente daquela desenvolvida por Rosa Magalhães no carnaval da Imperatriz Leopoldinense de 2006, por exemplo, quando, para falar da história de Santa Catarina, a artista narrou as aventuras de Giuseppe e Anita Garibaldi sob o olhar do escritor Alexandre Dumas. Garibaldi, no enredo gresilense, era um “fio condutor” que costurava toda a narrativa, da comissão de frente (vencedora do prêmio Estandarte de Ouro daquele ano) à última alegoria – e não apenas na comissão de frente e na última alegoria. É possível dizer, a partir de tais breves apontamentos, que existe uma gama de possibilidades muito grande (ou melhor é dizer elástica?) quando o assunto é a utilização de um “fio condutor” diferenciado para a narrativa de um enredo patrocinado por alguma localidade. Quase tudo é possível – o fato da cantora Maysa possuir uma casa de praia em Maricá, no litoral do Rio de Janeiro, foi o bastante para que a artista “conduzisse” o enredo da Acadêmicos do Grande Rio de 2014, patrocinado por aquele município e assinado por Fábio Ricardo.
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Bonito do Lumiar), inspirados nas manifestações carnavalescas dos camponeses da Friburgo suíça, continuam a brincar o carnaval pelas trilhas da cidade; gondoleiros e folias niçoises, diferentemente, desapareceram na neblina da história, restando os relatos e as fotos.
Imagem 29: Em uma vitrine da Avenue de la Bourdonnais, uma imagem-síntese. Foto do autor.
Os papéis de Machado e Shakespeare, em tal contexto? Também descobrimos que o Bruxo passou o carnaval de 1879 em meio aos festejos serranos, uma vez que lá ele estava hospedado para tratamento médico (a cidade tinha fama de “taumaturga”, com águas e ares milagrosos; Machado, extremamente abatido e cansado dos afazeres burocráticos, seguiu prescrição médica e subiu a serra, realizando aquela que talvez tenha sido a primeira viagem da sua vida). Pesquisas registram que foi em Nova Friburgo que o escritor deu início ao romance que representa uma virada estética na sua obra: Memórias Póstumas de Brás Cubas. Escrito com a “tinta da galhofa”, a história, que narra as
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peripécias de um inescrupuloso “malandro” da época a partir do olhar do além-túmulo, é um exemplo de inversão carnavalesca. No enredo que apresentamos à diretoria do GRES Acadêmicos do Cubango, Machado de Assis lia, em Nova Friburgo, durante os festejos de Momo, trechos do Bardo inglês, celebrando, ao final, a eterna capacidade criativa do povo brasileiro – por mais que importemos tendências, nada supera a brotação de “gênios da raça”, o caso de Joaquim Maria (a ruptura tão debatida com o modelo do romance romântico francês). Antropofagia antes de 1928: Tupy or not Tupy, that is the question. Mas a prosa dessa tese é sobre outros bailes e outros piparotes...

Imagem 30: Cartaz do enredo que então desenvolvíamos, Gabriel Haddad e eu, para a Acadêmicos do Cubango.
Conforme o explicado na Introdução deste trabalho, o enredo desenvolvido pela carnavalesca Rosa Magalhães para o desfile gresilense de 2004, Breazail, carrega algumas similaridades com aquele apresentado em 2002, Goitacazes: tupi or not tupi, in a South American Way! Além do caráter de “narrativa fundacional”, voltada para os primórdios da colonização brasileira, ambos os enredos foram desenvolvidos a partir da
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assinatura de contratos de patrocínio oferecidos por municípios do estado do Rio de Janeiro: Campos dos Goytacazes, em 2002, e Cabo Frio, em 2004. Apenas no período de 1992 a 2009, quando Rosa Magalhães esteve à frente da Imperatriz Leopoldinense, 10 dos enredos apresentados na Passarela do Samba foram materializados mediante algum suporte financeiro: às vezes, de países (Áustria, Holanda, Dinamarca, Noruega); às vezes, de cidades ou estados brasileiros (Ceará, Santa Catarina, Campos, Cabo Frio); às vezes, ainda, de empresas (açúcar União, em 2001) ou da própria municipalidade do Rio - caso do enredo de 2008, João e Marias, sobre os 200 anos da chegada da família real portuguesa, em 1808. Na ocasião, as escolas de samba dos grupos Especial e de Acesso que falassem do bicentenário da vinda de D. João VI ao Rio de Janeiro ganhariam subvenção maior da prefeitura da cidade, que objetivava festejar a data em pleno carnaval. Escolas como Lins Imperial, Império da Tijuca, Renascer de Jacarepaguá, São Clemente e Mocidade Independente de Padre Miguel conseguiram desenvolver a efeméride sob os mais criativos recortes (a escola do Morro da Formiga, no Grupo de Acesso A, enfocou a criação do Jardim Botânico; a escola da Vila Vintém, no Grupo Especial, desfiou o sebastianismo e a ligação do mito lusitano com a figura de D. João VI122). A concepção de narrativas carnavalescas a partir das assinaturas de contratos de patrocínio não é algo raro ou esporádico, portanto, na trajetória da carnavalesca. Após o longo “casamento” com a Imperatriz Leopoldinense e uma rápida passagem pela União da Ilha do Governador, Rosa Magalhães precisou desenvolver, na sequência, três narrativas patrocinadas para a Unidos de Vila Isabel: Mitos e histórias entrelaçados pelos fios de cabelo, em 2011, com patrocínio da empresa de cosméticos capilares Pantene; Você semba lá... que eu sambo cá! O canto livre de Angola, em 2012, com auxílio financeiro do país africano (que, segundo os relatos da própria carnavalesca, não se concretizou conforme o acordado – algo semelhante ao ocorrido em 1999, quando o dinheiro holandês que financiaria o enredo Brasil, mostra a sua cara em... Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae não saiu da palavra e gerou complicações de logística); e A Vila canta o Brasil celeiro do mundo – água no feijão que chegou mais um!, com patrocínio da empresa química BASF, conhecida pela fabricação de fertilizantes e pesticidas. Em resumo: o enredo de 2004, tema deste passeio, pode ser inserido em uma
122 Sobre tal enredo, assinado pelo carnavalesco Cid Carvalho, ver: SILVA, Claudicélio Rodrigues da. Um turista aprendiz na terra do carnaval ou Sobre um colecionador de imaginários. In: GUERREIRO, Eduardo; PUCHEU, Alberto (org.). O Carnaval Carioca de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Beco do Azougue Editorial, 2011, p. 135-155.
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teia ampla e não se trata, em absoluto, de uma exceção. Explicado isso, deve-se frisar que a pesquisa não se estenderá aos desdobramentos tantos (jurídicos e políticos, inclusive) da relação pouco pacífica entre artistas e patrocinadores. Tais aspectos ganharam visibilidade em A Antropofagia de Rosa Magalhães por uma questão óbvia: após o desfile gresilense de 2002, a entidade patrocinadora, a prefeitura de Campos, quis reaver judicialmente o dinheiro concedido à escola, alegando o não-cumprimento do contrato. Uma vez que tais conflitos não ocorreram em 2004, discussões mais acaloradas não ganharão o cortejo.123 Cabo Frio decidiu patrocinar o desfile da Imperatriz Leopoldinense para divulgar nacionalmente o “aniversário de 400 anos do município”, onde, em 1503, havia sido instalado o primeiro assentamento colonial da América – a feitoria (ou “fortim”, nas palavras de Alberto Leal124) construída a mando de Américo Vespúcio. A edificação está diretamente ligada, é claro, ao ciclo extrativista do pau-brasil, conforme explica o pesquisador Riccardo Fontana:
Foi o historiador brasileiro Francisco Adolpho de Varnhagen que, em 1865, encontrou o manuscrito inédito sobre a viagem da nau Bretoa no ano de 1511 e concluiu que era um instrumento de prova convincente para supor que a fortaleza de Vespúcio podia ser realmente localizada em Cabo Frio. A Feitoria da Nau Bretoa já operava havia alguns anos, tendo como objetivo o tráfico de pau-brasil e de índios, e se encontrava numa ilha perto do “porto de Cabo Frio”. E ainda: um dos armadores da nau era Fernão de Loronha, que se tinha associado a outros mercadores para a exploração da “Terra de Santa Cruz”, em 1502, com a
123 Para a compreensão das dimensões culturais e econômicas do assunto, é fundamental a leitura do artigo Bumba meu Fusca, de Felipe Ferreira, originalmente publicado n’O Pasquim e presente na coletânea Escritos carnavalescos. No texto, o pesquisador destaca que mais do que nas assinaturas dos contratos de patrocínio, o possível problema da prática reside no dirigismo, ou seja, na obrigatoriedade de que o artistacarnavalesco faça marketing na Passarela do Samba. É por isso que o autor lança o seguinte questionamento: “Não seria mais digno e simples se a veiculação de anúncios nas escolas de samba fosse permitida e regulamentada? Por que não se fazer como nos teatros, onde o patrocínio de uma peça não implica elogio do patrocinador durante o espetáculo?” In: FERREIRA, Felipe. Bumba meu Fusca. In: Escritos carnavalescos, p. 194. 124 Leal é autor do livro Cabo Frio, 1503, que se propõe a apresentar ao leitor (sem mergulhos históricos aprofundados e com direito a algumas distorções flagrantes) uma visão panorâmica da história da cidade litorânea, dos “primeiros tempos” à contemporaneidade. Sobre os rituais antropofágicos, por exemplo, o autor parece analisar acriticamente os relatos dos cronistas, o que se observa no trecho em que explica que a ingestão da carne humana “provocava repulsa natural entre os civilizados” (p. 71), sem qualquer problematização de ares etnográficos. Ainda sobre os tupinambá, afirma: “embora hospitaleiros com visitantes, osíndios eram extremamente inconvenientes, apoderando-se sem cerimônia de quaisquer objetos interessantes, que passavam de mão em mão entre os familiares e amigos para serem admirados e, algumas vezes, surrupiados dos donos” (p. 67). O festival de visões simplistas e anacrônicas (inclusive sem referências, o que dificulta a compreensão dos dados apresentados e confere ao texto um aspecto puramente factual) faz com que a obra não seja utilizada enquanto leitura basilar para este trabalho. Ver: LEAL, Alberto. Cabo Frio, 1503. Rio de Janeiro: Editora Batel, 2012, p. 67 e 71.
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obrigação de construir uma fortaleza para a instalação e defesa do tráfico de pau-brasil e de índios daquele litoral, por um período de três anos. Uma outra publicação de Varnhagen (1865) trouxe à luz outro manuscrito inédito sobre a questão, que reforçou a sua intuição anterior. Trata-se do Islario general de todas las islas del mundo, escrito por Alonso de Santa Cruz, por volta de meados do século XVI.125
De acordo com os relatos de Santa Cruz, coletados por Varnhagen e apresentados por Riccardo Fontana, Américo Vespúcio fundou, na baía junto ao cabo chamado Frio e a um “rio muito grande” , uma “casa”, onde deixou vinte e quatro marinheiros munidos com armas e artilharia pesada (canhões). Além disso, informa Santa Cruz, Vespúcio teria abastecido a construção com mantimentos para seis meses (donde se deduz que havia uma ideia de permanência ou retorno). O destino dos marinheiros, porém, não teria sido dos melhores: mortos (devorados?) pelos índios, praticamente nada se sabe sobre eles. André Thevet, figura carimbada no enredo gresilense de 2002, escreveu sobre o caso:
... Esta região maravilhosa (Cabo Frio) foi descoberta e povoada por portugueses. Deramlhe estes o seu nome atual... e construíram ali um forte, pretendendo fixar residência no local, em virtude da amenidade do clima. Mas, pouco tempo depois, por razões que ignoro, os selvagens que viviam nos arredores mataram e devoraram os portugueses, como costumavam fazer com seus inimigos. (...) Cabo Frio, que fica a umas quarenta léguas aquém do rio onde morávamos (Guanabara) e onde antes tinham morado também os portugueses, é o lugar onde eles foram tão maltratados pelos tupinambás, selvagens da região; não houve nenhum que não fosse morto, massacrado e comido, numa manhã, durante a qual essas infelizes pessoas estavam despreocupadas; esses vieram para roubar e apoderar-se das poucas mercadorias que possuíam em sua pequena fortaleza, sem respeitar senhores, servidores, mulheres e crianças. 126
As linhas de Thevet, conforme o analisado em A Antropofagia de Rosa Magalhães, carregam nas tintas “sensacionalistas”, oferecendo ao leitor uma narrativa pulsante (não é difícil entender o porquê de tais relatos terem se popularizado entre as camadas médias da população letrada da Europa de então). O cronista francês adiciona aos dados a presença de mulheres e crianças no interior da “fortaleza”, algo que historicamente soa pouco provável. Que a região, apesar de bela, não oferecia a “hospitalidade” ideal, isso não se discute. Tanto era assim que os historiadores Sérgio Buarque de Holanda e Olga Pantaleão discorreram sobre o “triste fim” das tentativas de fixação francesas. De acordo
125 FONTANA, Riccardo. Obra citada, p. 103/105. 126 THEVET, André. Les singularités de la France Antarctique e La cosmographie universelle. In: FONTANA, Riccardo. Obra citada, p. 106.
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com os levantamentos deles, os franceses, no que tange à construção de fortes, tiveram a mesma sorte dos lusitanos (ou seja: o fracasso):
Ainda quando (os franceses) deixassem de construir feitorias permanentes, à maneira dos portugueses, preferindo negociar diretamente com os naturais, nem por isso era menos de temer a ameaça por eles representada. O próprio fato de estenderem-no sobre o imenso litoral, onde lhe fora dado reconhecer os bons abrigos, os sítios mais cômodos e produtivos, as tribos mais dóceis ao seu cobiçoso afã, longe de o desservir, resguardava melhor seu trato com os indígenas. Contudo, a fundação de estabelecimentos fixos deveria, no correr do tempo, representar um paradeiro e uma consequência naturais para aquelas atividades. No Cabo Frio, onde as matas de brasil não são menos notáveis do que no Nordeste, e onde, por volta de 1548, constava que vinham a resgatar sete ou oito naus francesas cada ano, tentariam construir um fortim, que todavia não estava destinado a durar muito.127
Eduardo Bueno, para quem a “fortaleza” não deveria passar de uma paliçada miserável128 , é mais direto em sua leitura e diz que os marinheiros de Vespúcio foram “trucidados”:
O sucesso das cartas de Vespúcio foi instantâneo e duradouro. Uma década depois, elas inspiraram o inglês Thomas Morus a escrever o clássico A Utopia. Lançado em 1516, o livro se baseava em fatos narrados na carta em que Vespúcio descreve sua segunda viagem ao Brasil, em 1503, quando deixou 24 homens numa feitoria em Cabo Frio. Morus transportou a ação para uma ilha (talvez Fernando de Noronha) e imaginou que os exilados dariam início a uma sociedade perfeita. Na vida real, os homens de Vespúcio foram trucidados pelos índios. 129
Na visão poética do enredo de Rosa Magalhães, porém, os marinheiros (representados na sexta alegoria do desfile, com vestes em preto e branco) não só sobreviveram às adversidades do Brasil de 1504 como exploraram o território tupiniquim,
127 HOLANDA, Sérgio Buarque de; PANTALEÃO, Olga. Livro Quarto – A ameaça externa. Capítulo I –Franceses, holandeses e ingleses no Brasil Quinhentista. I. Franceses e Holandeses. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (direção). História Geral da Civilização Brasileira. Tomo I – A Época Colonial. Volume 1 –Do descobrimento à expansão territorial. 16ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008, p. 166. 128 Nas palavras do autor: “Apesar de Vespúcio ter usado o termo ‘fortaleza’, tratava-se apenas de uma feitoria: simples paliçada erguida em torno de um casebre e de algumas roças. Foi o primeiro estabelecimento lusitano no Brasil – um posto avançado da civilização europeia em meio à floresta tropical. (...) Em 1986 os historiadores Márcio Werneck da Cunha e Penha da Silva Leite encontraram a base de uma muralha de pedra em Cabo Frio, que julgaram ser vestígios da feitoria de Vespúcio, que teria, assim, pelo menos os alicerces feitos de rocha. Ainda não está comprovado que se trata das ruínas do mais antigo estabelecimento europeu fundado no Brasil, mas, de qualquer modo, Werneck e Silva Leite conseguiram que o local fosse registrado junto à Divisão de Proteção Legal do Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC).” In: BUENO, Eduardo. Náufragos, traficantes e degredados. As primeiras expedições ao Brasil. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, p. 49. 129 BUENO, Eduardo. Brasil, uma história. Cinco séculos de um país em construção. São Paulo: Leya, 2013, p. 38.
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chegando, finalmente, à ilha da Utopia. A letra do samba de enredo entoado pelos desfilantes assim descreve a “aventura”:
Viagem ao Novo Mundo Deu a Vespúcio a primazia De erguer em Cabo Frio Fortaleza e feitoria Depois partiu com nosso pau-brasil Deixando aos marinheiros poesia Visão do infinito, lugar mais bonito Era o chão da Utopia...
Nas justificativas apresentadas ao júri, a artista redigiu o seguinte:
No Brasil, (o pau-brasil) existia em abundância. E embora sendo outro tipo da mesma árvore, era muito mais barato. Bastava extrair e levar. Foi com esse intuito que Vespúcio veio a Cabo Frio, a serviço do Rei de Portugal. Levou 5.000 toras de pau-brasil e deixou aqui 24 marinheiros cuja embarcação havia naufragado. 130
As toras de pau-brasil apareciam na alegoria, juntamente com fantasias de composições que procuravam criar um ambiente selvagem, numa profusão de folhas e cipós em tons de verde. As flores e as sementes do pau-brasil, nas cores amarela e vermelha, respectivamente, também se faziam notar, bem como o brasão de Américo Vespúcio, bordado em um estandarte. Na saia frontal do carro alegórico, um emaranhado de raízes e troncos cortados, exibindo os interiores cor de brasa (imagens 31 e 32). Ali, em forma de espuma, isopor, arame, tinta e purpurina, a síntese de um sem-fim de discussões identitárias – a começar pela ideia de “metáfora vegetal”.
130 Trecho retirado do Livro Abre-Alas do carnaval de 2004, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval - LIESA.
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Imagem 31: Detalhe da sexta alegoria do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2004, leitura carnavalizada da “fortaleza” construída por Américo Vespúcio em Cabo Frio. Os miolos vermelhos dos troncos de paubrasil merecem destaque. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.

Imagem 32: Sexta alegoria da Imperatriz Leopoldinense, no desfile de 2004, intitulada O forte em Cabo Frio construído por Vespúcio. Na frente do carro, viam-se inúmeros troncos de pau-brasil cortados (os miolos cor de brasa), com raízes à mostra – imagem bastante interessante para se pensar a verticalidade do mergulho empreendido pela carnavalesca Rosa Magalhães, que, por meio do enredo Breazail, buscou as mais profundas raízes de nossa “brasilidade” – a começar pelos questionamentos sobre o nome Brasil. Foto: Wigder Frota. Arquivo pessoal.
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