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II. 4. 3 – O heterotópico Carnaval Carioca: invocando Mário de Andrade

II. 4. 3 – O heterotópico Carnaval Carioca: invocando Mário de Andrade

Rio de Janeiro, 2 de fevereiro de 2008, sábado de carnaval. Dia da Rainha do Mar, Mãe de todos os peixes. Desembarquei no Galeão e caí na loucura do Centro, depois de observar, pela primeira vez, os contornos da Igreja da Penha, o Pão de Açúcar, o Cristo Redentor de costas, a Barreira do Vasco. O destino do táxi (e o taxista reclamava muito, aos palavrões, de certa maneira me acusando e culpando por tê-lo feito “pegar um rabo de foguete” – depois viria a entender que taxistas reclamões não são uma raridade, no Rio de Janeiro), o Hotel Belas Artes (imagem 45), na Rua Visconde do Rio Branco (hoje, um ponto de referência: a rua de trás do “Babado da Folia”, a principal loja de materiais carnavalescos da cidade, administrada pelo lendário Chiquinho Pastel220). O Campo de Santana, as cotias, o relógio da Central do Brasil. Estava, enfim, no Rio de Janeiro! As modinhas de Vidinha, os buscapés – as Memórias de um Sargento de Milícias, a metade materna do meu nome de batismo (a minha mãe não sabia que o futuro sogro, que ela não viria a conhecer, se chamara Leonardo Bora; antes de conhecer o meu pai, já havia decidido o nome do primeiro filho, leitora risonha das aventuras do memorando). Eu carregava três livros: Memórias, pelo destino, A encantadora alma das ruas, de João do Rio, e Discurso de primavera e algumas sombras, de Carlos Drummond de Andrade. O livro que alberga Alegria, entre cinzas. No quarto daquele hotel barato (em relação aos demais pacotes turísticos para os dias regidos por Momo), a parede de chapiscos e o ar condicionado barulhento, a roupa de cama levemente puída e o banheiro sem “amenidades”, eu tive uma crise de choro. Era medo. Não era a “emoção de conhecer a Cidade Maravilhosa”, uma coisa adocicada. Estranhamento, sim. Mas, principalmente, medo. Era um misto de medo do mundo e pavor de gostar demais – porque depois, na

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220 Personagem importante para a história da Mocidade Independente de Padre Miguel, na “era” Castor de Andrade. Chiquinho Pastel ou Chiquinho do Babado (como é atualmente conhecido) é mencionado pelas autoras Bárbara Pereira e Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, em seus livros sobre a escola da Zona Oeste. Segundo Pereira, ao falar das criações do carnavalesco Fernando Pinto, coube a Chiquinho a tarefa de colocar na avenida o primeiro carro acoplado da história dos desfiles das escolas de samba: “O carro ‘Nave-Mãe’ era formado por três composições, o primeiro carro alegórico acoplado da história do carnaval. O responsável por fazer a empreitada dar certo era Chiquinho, admirador confesso das loucuras de Fernando Pinto.” In: PEREIRA, Bárbara. Estrela que me faz sonhar. Histórias da Mocidade. Coleção Cadernos de Samba. Rio de Janeiro: Verso Brasil, 2013, p. 76. Já Maria Laura Cavalcanti narra uma cena que teria acontecido no barracão da Mocidade (do qual Chiquinho era diretor), durante os preparativos para o carnaval de 1992: “O carro ‘Infinita noite dos sonhos’, o Abre-Alas da escola, tinha como elemento central uma grande estrela recortada em madeira, decorada com luz neon e espelhos. Esse carro estava pronto e suas luzes e movimento já haviam sido testados. Ficara tão lindo que, como me contou um dos encarregados do almoxarifado, Chiquinho se emocionara a ponto de sair dando tiros para o alto.” In: CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Obra citada, p. 158.

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terça-feira, eu precisaria voltar (e Curitiba não era mais, havia sido). Logo chegaram, carregando fantasias, Rafael Mikaiá e alguns amigos de São Paulo, com quem eu desfilaria na Lins Imperial, escola de samba do Grupo de Acesso (cujo enredo, de autoria de Eduardo Gonçalves, narrava a chegada da Família Real portuguesa, em 1808, sob a ótica de Pedro I, uma criança embarcada em um navio). Seríamos jornaleiros, de chapéus e de sandálias. Ninguém eu conhecia pessoalmente: Orkut, MSN, mídias virtuais. Depois, pegamos fantasias do Império da Tijuca, na casa de um certo Thiago Lacerda, gresilense, nos arredores do Maracanã – hoje, um bom amigo de sambas e conversas. Curiosamente, eu viria a morar, de 2012 a 2017, na mesma rua em que ele morava (e ainda mora): Campos Sales, Tijuca, a rua da sede do América (hoje abandonada). Vejo tudo entrelaçado: o meu tapete Gobelin. Chovia. Quando chegamos na Sapucaí, a entrada subterrânea para o Setor 3 tumultuada, a multidão começou a cantar É Hoje!, clássico da União da Ilha do Governador que seria reeditado no desfile insulano daquela noite, assinado por Jack Vasconcelos221 . Os fogos explodiam e anunciavam a Estácio de Sá. O primeiro desfile de escola de samba que eu vi, no Rio de Janeiro, foi A história do futuro, concebido por Cid Carvalho. Mistura de signos do zodíaco, ciganos, Nostradamus, bruxarias. A Lins Imperial foi a quarta escola a se apresentar, depois de Estácio, Ilha e Cubango. Não vi, por conta disso, o desfile da Cubango – homenagem à primeira bailarina negra do Theatro Municipal, Mercedes Baptista. Muitos problemas e a agremiação de Niterói terminaria rebaixada. Também seria rebaixada para o Grupo de Acesso B (que naquela época desfilava na mesma Marquês de Sapucaí, na terça-feira gorda) a Lins Imperial, devido à quebra de uma alegoria (que estava imediatamente à frente da ala em que eu desfilava –estreei correndo para evitar um buraco, portanto) e ao estouro do tempo regulamentar. Veio, então, uma chuva torrencial. Que depois intermitente, chata. Que no desfile da última escola, o Império Serrano, que homenageava Carmen Miranda (pela segunda vez222) sob a pena de Márcia Lage, decidiu trovejar de vez: choveu de afogar as canelas.

221 Originalmente, enredo desenvolvido por Max Lopes, em 1982, a partir do livro homônimo escrito em parceria pelo jornalista e historiador Haroldo Costa e pelo cartunista Lan. 222 A escola já havia homenageado a Pequena Notável no carnaval de 1972, quando o carnavalesco Fernando Pinto desfiou o enredo Alô, Alô! Taí Carmen Miranda! Naquele ano, a escola foi campeã – e levou diferentes artistas para interpretar a “rainha das bananas”, como Marília Pêra e Leila Diniz. O samba, de autoria de Wilson Diabo, Heitor Rocha e Maneco, interpretado a plenos pulmões pela cantora Marlene, virou um hit da escola da Serrinha: “Cai, cai, cai, cai... quem mandou escorregar? Cai, cai, cai, cai... é melhor se levantar!”

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O samba, gostoso, bradava: “Luz, divina luz, eu quero ouvir o seu cantar!”223 Para mim, arrebatador. Um triunfo! Ruy Castro, biógrafo da “portuguesinha que virou Rainha”, depois escreveu: “Os garotos saíram cantando o samba como se estivessem indo para uma batalha em que o único resultado possível era vencer ou vencer. Ao observá-los, eu não sabia se o que escorria de seus olhos eram lágrimas ou chuva. Empolgado, fui atrás.”224 Também fui – e acho que não mais voltei.

Imagem 45: Hotel Belas Artes, no Centro do Rio, o endereço da primeira viagem. Foto do autor.

223 Composição de autoria de Marcão, Marcelo, Vando, Chupeta, Henrique, William, Celso e Zé Paulo. 224 Artigo Com Império Serrano na Avenida, originalmente publicado na Folha de S. Paulo e, no ano seguinte, na Revista de Carnaval do Império – que ascendeu ao Grupo Especial. Disponível para consulta no seguinte sítio: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0502200811.htm. Acesso em 13/11/2017. 135

Rio de Janeiro, 10 de fevereiro de 1923, sábado de carnaval. Mário de Andrade chegava à então capital da República, oriundo de São Paulo. Não sei quais livros carregava na mochila. Desembarcou no Rio de Janeiro com intuito triplo: conhecer o carnaval da cidade (especialmente os “famigerados cordões”225); visitar, em Petrópolis, o amigo Manuel Bandeira; e retornar a Sebastianópolis para rever parentes que moravam em Botafogo. Tudo isso o escritor narrou, posteriormente, em carta endereçada a Bandeira, conforme descreve Alberto Pucheu em O “Carnaval Carioca (1923)”, de Mário de Andrade. Carta que pedido de desculpas: o choque vivenciado naquele sábado foi tão intenso, contraditório e revelador que Mário desistiu de subir a serra e tampouco lembroudos parentes que viviam na Dona Mariana. Entregou-se à folia das ruas, gozando, feito um folião qualquer, de todos os prazeres do frenesi momesco. O resultado literário de experiência tão ardente foi o longo poema Carnaval Carioca (1923), que se tornou um importante retrato poético do carnaval do Rio de Janeiro do início da década de 1920 –quando, no alto do Corcovado, ainda não existia o Cristo Redentor, inaugurado em 1931, coroando o Art Déco.

Escreve Pucheu sobre o fato:

Chegando às 13:00 do sábado de carnaval na avenida Rio Branco, o poeta acabou deixando amigos e familiares de lado, caindo no samba dos cordões durante os quatro dias de carnaval. A respectiva carta, de grande importância para o poema, é a desculpa pedida por Mário a Manuel pela ausência e sua justificativa desta. O poema é uma condensação criadora e, portanto, poeticamente transfigurada do que ocorreu nesses 4 dias e não apenas na virada da terça para quarta-feira de cinzas, tempo em que se passa o “Carnaval Carioca”.226

O que se observa, no poema dedicado a Bandeira, é uma sucessão de fragmentos: sensações, cheiros, movimentos, gracejos, canções, tudo se mistura em uma espécie de

225 Nas palavras de Mário de Andrade: “Foi assim. Desde que cheguei ao Rio disse aos amigos: Dois dias de carnaval serão meus. Quero estar livre e só. Para gozar e para observar. Na segunda-feira, passarei o dia com Manuel, em Petrópolis. Voltarei à noite para ver os afamados cordões. Meu Manuel... Carnaval!... Perdi o trem, perdi a vergonha, perdi a energia... Perdi tudo. Menos minha faculdade de gozar, de delirar... Fui ordinaríssimo. Além do mais: uma aventura curiosíssima. Desculpa contar-te toda esta pornografia. Mas... Que delícia, Manuel, o Carnaval do Rio! Que delícia, principalmente, meu Carnaval! Se estivesses aqui, a meu lado, vendo-me o sorriso camarada, meio envergonhado, meio safado com que te escrevo: ririas. Ririas cheio de amizade e de perdão.” In: MORAES, Marcos Antonio de (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: EdUSP / IEB, 2001, p. 84. 226 PUCHEU, Alberto. O “Carnaval Carioca (1923)”, de Mário de Andrade. In: GUERREIRO, Eduardo; PUCHEU, Alberto (org.). Obra citada, p. 27.

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redemunho – o que evoca, é claro, a embriaguez carnavalesca. As exclamações iniciais dão o tom do êxtase:

A fornalha estrala em mascarados cheiros silvos

Bulhas de cor bruta aos trambolhões

Setins sedas cassas fundidas no riso febril...

Brasil!

Rio de Janeiro!

Queimadas de verão! E ao longe, do tição do Corcovado a fumarada das nuvens pelo céu227

Na sequência, o poeta expressa em texto a sua “desconstrução intelectual”228 - o carnaval carioca, que o puxava pelos pés para o calor das pedras das ruas, desafiava convicções até então inabaláveis:

Carnaval...

Minha frieza de paulista Policiamentos interiores, Temores da exceção... E o excesso goitacá pardo selvagem! Cafrarias desabaladas

Ruínas de linhas puras Um negro, dois brancos, três mulatos, despudores...

227 ANDRADE, Mário de. Carnaval Carioca (1923). In: GUERREIRO, Eduardo; PUCHEU, Alberto (org.). Obra citada, p. 6. 228 Na carta enviada a Manuel Bandeira, Mário de Andrade narra tal “desconstrução” de modo explícito: “Sabes: fiquei enojado. Foi um choque terrível. Tanta vulgaridade. Tanta gritaria. Tanto, tantíssimo ridículo. Acreditei não suportar um dia a funçanata chula, bunda e tupinambá. Cafraria vilíssima, dissaborida. Última análise: “Estupidez”! Assim julguei depois de dez minutos que não ficaria meia hora na cidade. Mas, por isso talvez que tanto tenho sofrido dos julgamentos levianos, jurei para mim olhar sempre as coisas com amor e procurar compreendê-las antes de as julgar. Comecei a observar. Comecei a compreender. Uma conversa iluminava-me agora sobre uma ridícula baiana eu há pouco vira. A pobreza de uns explicava-me a brincadeira de outros. Admirei repentinamente o legítimo carnavalesco, o carnavalesco carioca, o que é só carnavalesco, pula e canta e dança quatro dias sem parar. Vi que era um puro! Isso me aconteceu e me extasiou. O carnavalesco legítimo, Manuel, é um puro. Nem lascivo, nem sensual. Nada disso. Canta e dança. Segui um deles uma hora, talvez. Um samba num café. Entrei. Outra hora de gastou. Manuel: sem comprar um lança-perfume, uma rodela de confete, um rolo de serpentina, diverti-me 4 noites inteiras e o que dos dias me sobrou do sono merecido. E aí está porque não fui visitarte. Estou perdoado.” In: MORAES, Marcos Antonio de (Org.). Obra citada, p. 84/85.

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O animal desembesta aos botes pinotes desengonços No heroísmo do prazer sem máscaras supremo natural.

Tremi de frio nos meus preconceitos eruditos Ante o sangue ardendo do povo chiba frêmito e clangor Risadas e danças Batuques maxixes Jeitos de micos piricicas Ditos pesados, graça popular... Ris? Todos riem...229

Ao que parece, a “descoberta” do riso despudorado fez com que Mário se atirasse à folia feito as “serpentinas que saltam dos autos em monóculos curiosos”. Os “olhos novos” do brincante de primeira viagem contemplaram, no caldeirão fervente do Rio de Janeiro, cenários comparáveis àqueles dos textos clássicos, sagas e epopeias que se avolumavam nas bibliotecas. Combinando referências ao sabor dos batuques e dos temperos das “baianas faceiras”, canta:

Onde que andou minha missão de poeta, Carnaval? Puxou-me a ventania, Segundo Círculo do Inferno, Rajadas de confetes Hálitos diabólicos perfumes Fazendo relar pelo corpo da gente Semíramis Marília Helena Cleópatra e Francesca. Milhares de Julietas!

Domitilas fantasiadas de cow-girls, Isoldas de pijamas bem franceses, Alsacianas portuguesas holandesas... Geografia! Êh liberdade! Pagodeira grossa! É bom gozar!230

229 ANDRADE, Mário de. Obra citada, p. 6. 230 ANDRADE, Mário de. Obra citada, p. 9.

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O sentimento de gozo, extravasamento, perpassa cada linha do poema, que termina, exatamente como um fim de carnaval, com o cansaço e o sono, o corpo largado no espaço, a cama, as pernas que não mais aguentam, a vida voltando à rotina:

O poeta se debruça no parapeito de granito. A rodelinha de confeti cai do chapéu dele, Vai saracotear ainda no samba mole das ondas.

Então o poeta vai deitar.

Lentamente se acalma no país das lembranças A invasão furiosa das sensações. O poeta sente-se mais seu. E puro pelo contato de si mesmo Descansa o rosto sobre a mão que escreverá.

Lhe embala o sono

A barulhada matinal de Guanabara...

Sinos buzinas clácsons campainhas Apitos de oficinas Motores bondes pregões no ar, Carroças de rua, transatlânticos no mar... É a cantiga-de-berço. E o poeta dorme.

O poeta dorme sem necessidade de sonhar.231

Diante da sobreposição de tempos e espaços em um mesmo poema (e em um mesmo acontecimento transformado em poema, o carnaval da cidade do Rio de Janeiro),

231 ANDRADE, Mário de. Obra citada, p. 17.

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Alberto Pucheu aciona Michel Foucault e enxerga nas teorizações das heterotopias um possível caminho de análise. A explicação de Pucheu é longa e merece cuidadosa leitura:

O vínculo da nossa cidade com outros tempos e espaços justapostos, que seriam, a priori, incompatíveis com ela e entre si, também é apresentado ao longo do poema, estabelecendo, pela fenda de uma atopia e de um anacronismo inerentes ao carnavalesco e à própria cidade, uma heterotopia e uma heterocronia. Na segunda parte do poema, em uma criança fantasiada que se agarra à mãe por medo dos desejos que sente, o deus amoroso grego Eros ou o latino Cupido se encontra com o mundo indígena na concretude da língua portuguesa (“Amor curumim abre as asas de ruim papelão. / Amor abandonou as setas sem prestígio”). Enquanto isso, na terceira, Roma se materializa na Avenida Rio Branco, “Roma imperial se escarrapacha no anfiteatro da Avenida”. O anfiteatro romano se torna carioca. A avenida se torna romana. Um outro espaço é criado. Havendo no poema uma exclamação por uma “Geografia!”, extremamente peculiar, na medida em que tal verso de uma só palavra seguida da exclamação vem imediatamente após a menção do segundo círculo do Inferno dantesco, que, além do mais, acata mulheres das mais diversas regiões e tempos, e outras espalhadas pelo mundo, como “Alsacianas portuguesas holandesas”, há nele o que, futuramente, nos prefácios a Macunaíma, Mário conceitualizará como “desgeograficação”, um processo pelo qual “a gente não escuta as proibições da ciência ou da realidade”, um procedimento pelo qual se “desrespeita a geografia” em nome de uma “embrulhada geográfica proposital”. Se tanto a “desgeograficação” e a consequente descronificação quanto a heterotopia e a consequente heterocronia cosmopolitas abertas pelo carnaval lidam com o espaço e o tempo da percepção sensível misturados aos imaginativos, às nossas resistências e primeiras inclinações, é para que sua dimensão exterior, suspendendo o que diz respeito à interioridade individual para então reconfigurá-la, nos arraste, como diz Foucault, “para fora de nós mesmos, em cujo espaço decorre precisamente a erosão de nossa vida, de nosso tempo, de nossa história, esse espaço que nos corrói e nos sulca é também um espaço heterogêneo”. Juntando o real e o mítico no ponto de partida da Avenida Rio Branco, instaurando uma ruptura decisiva com o espaço e o tempo convencionais, infringindo tanto a lógica, em nome de uma “alogica sistematica” (como dirá num dos prefácios a Macunaíma), quanto o excesso naturalizante da literatura brasileira, o carnaval carioca é um acontecimento heterotópico e heterocrônico por excelência que se dá na heteroglossia do poema.

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Pucheu entende que, assim como os jardins botânicos, os tapetes persas, os teatros e os cinemas, as avenidas por onde desfilam as manifestações carnavalescas do Rio de Janeiro podem ser entendidas enquanto heterotopias: lugares reais capazes de concentrar uma série de tempos e espaços (reais, irreais, míticos, ficcionais, enfim) em um mesmo feixe de intensas conexões.

Que o carnaval carioca, desde o século XIX, convida os foliões às viagens mais delirantes, isso não é novidade. Muito já foi escrito e debatido sobre a capacidade criativa dos agentes envolvidos na construção da festa momesca – algo que pode nos levar a

232 PUCHEU, Alberto. Obra citada, p. 33/34.

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tradições mais antigas, a exemplo da impactante visão do Triunfo da Arquiduquesa Isabella, ocorrido em Bruxelas, em 31 de maio de 1615, desfile circular que contou com inúmeros carros alegóricos (inclusive um navio puxado por cavalos marinhos e seguido por elefantes aquáticos), cáfilas de camelos e esculturas articuladas de unicórnios e hipogrifos233. Os temas mitológicos nos Ranchos, as campanhas heróicas nas Grandes Sociedades, os “Homens Selvagens”na agressividadedos Cordões234, os corpos indóceis, enfim, e as tramas narrativas cintilantes de lamês. Pucheu sublinha as referências à Comédia de Dante235 e fala que um anfiteatro romano “se torna carioca”, assim como “a avenida se torna romana”. Curiosamente, em crônica de fevereiro de 1949, intitulada Os Romanos, Rubem Braga exalta o potencial criativo do fazer carnavalesco ao narrar a passagem de um grupo bastante humilde de foliões, negros, fantasiados de personagens da Roma Antiga:

Foi no Leblon, no domingo de sol, e não era escola de samba nem rancho direito, era apenas uma tentativa de rancho, sem mulheres, sem música própria. Eram quase todos negros e mulatos, quase todos muito fortes e vestidos da maneira mais imaginosa, com saiotes e escudos e capacetes com muitos dourados e prateados, e de espada na mão. Cantavam o samba estranho Maior é Deus do Céu e no estandarte estava escrito assim: “Henredo o Império Romano.” Todos achamos graça nesse H que dava ao enredo, que afinal não era enredo nenhum, uma súbita solenidade, sugerindo graves palavras históricas e heroicas, hostes de hunos, hierofantes, hieróglifos e hierarquias. E era muito guerreira a marcação da bateria –e Júlio César, com seu capacete de papel prateado de dois palmos de altura acima do pixaim, e brandindo com o enorme braço negro uma espada de ouro, nunca esteve tão soberbo na sua glória. (...) Bem-aventurados os que fazem o carnaval, os que não fogem nem se recolhem, mas enfrentam as noites bárbaras e acesas, bem-aventurados os gladiadores e Césares e

233 A pintura de Denys van Alsloot, de 1616, pode ser vista no Victoria and Albert Museum, em Londres. 234 Leitura obrigatória é Cordões, crônica de João do Rio presente em A alma encantadora das ruas. No texto, o autor se despe, evocando passagens de Dorian Gray: “Um cheiro estranho, misto de perfume barato, fartum, poeira, álcool, aquecia ainda mais o baixo instinto da promiscuidade. A rua personalizava-se, tornava-se uma e parecia, toda ela policromada de serpentinas e confetti, arlequinar o pincho da loucura e do deboche. Nós íamos indo, eu e o meu amigo, nesse pandemônio. (...) O cordão vinha assustador. À frente, um grupo desenfreado de quatro ou cinco caboclos adolescentes com os sapatos desfeitos e grandes arcos pontudos corria abrindo as bocas em berros roucos. Depois um negralhão todo de penas, com a face lustrosa como piche, a gotejar suor, estendia o braço musculoso e nu sustentando o tacape de ferro.” In: RIO, João do. Cordões. In: A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008, p. 141/142. 235 A Divina Comédia já foi traduzida em diferentes enredos, nos desfiles de Rio e São Paulo. Em 2006, a Renascer de Jacarepaguá, escola de samba do Grupo de Acesso carioca, cantou A Divina Comédia Brasileira, enredo pontuado de críticas sociais, desenvolvido pelo carnavalesco Lane Santana; em 2017, no Grupo Especial, foi a vez do Acadêmicos do Salgueiro levar Dante, Virgílio e Beatriz para a Marquês de Sapucaí – o enredo, A Divina Comédia do Carnaval, assinado por Renato Lage, Márcia Lage e Diretoria Cultural, dialogava com João do Rio e comparava os círculos de Inferno, Purgatório e Paraíso às manifestações carnavalescas da cidade. Em São Paulo, no ano de 1999, a Rosas de Ouro desfilou A Divina Comédia de um Folião, sob a pena de Raul Diniz.

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Chiquitas e baianas, e que a vida depois lhes seja leve na volta do sonho em que se esbaldam!236

Também Drummond, em Alegria, entre cinzas, poema que li, no Hotel Belas Artes, fala da sobreposição de tempos e espaços, no turbilhão de Momo – em outra época, quando o Cristo Redentor já se mostrava encarapitado. Diz o poeta:

Mas a última célula da memória

registra ainda o ranger de babilônias em rouco marulhar de som e selva:

cataratas humanas de Iguaçu, pavões, califas de Bagdá e Realengo desfilam entre rainhas gaditanas com torres de marfim no cocuruto, pescadores portam jacarés personalizados como cheques, homens de Neandertal voltam à origem e, emergindo do mar de plástico e sarrafos, Iemanjá Dandalunda Janaína crioula cor de prata rabeia com tiques de sereia perto do cartorial Palácio da Justiça.237

Curioso é que, assim como Mário de Andrade, Drummond revela ao leitor o ano em que o poema foi escrito, 1974, uma vez que utiliza fragmentos poéticos dos desfiles ocorridos na Avenida Presidente Antônio Carlos enquanto demarcadores de tempo. O poeta explicitamente menciona os carnavais apresentados pela escola de samba campeã naquele ano, Acadêmicos do Salgueiro (que, sob a batuta de Joãosinho Trinta, cantou O Rei de França na Ilha da Assombração238), pela vice-campeã Portela (que levou ao

236 BRAGA, Rubem. Os Romanos. In: 200 Crônicas Escolhidas. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 172/173. 237 DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Discurso de primavera e algumas sombras. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 109/110. 238 Trata-se do primeiro campeonato conquistado pelo carnavalesco maranhense, aprendiz de Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues. O enredo é uma heterotopia pronta e para muitos pesquisadores (como Milton Cunha e João Gustavo Melo) insere o surrealismo nas narrativas das escolas de samba do Rio de Janeiro: aos olhos do “Rei-menino”, as palmeiras da ilha de São Luís do Maranhão se tornavam 142

público os belíssimos samba e enredo O mundo melhor de Pixinguinha) e pela terceira colocada Império Serrano (cujo enredo Dona Santa, Rainha do Maracatu foi desenvolvido por Fernando Pinto):

Pequeno Luís Rei de França do Salgueiro despe a magnificência, pede a bênção ao pai, bombeiro hidráulico, na oficina. Meio-dia.

Clóvis Bornay bate o ponto no Museu. Volta ao circo o elefante imperial que transportava Dona Santa do Maracatu. (...) Lamê enlameado na sarjeta. Strass.

Stress.

Liza Minelli passou entre passistas? Frank Sinatra não veio, como sempre. O mundo-melhor de Pixinguinha e o mundo-melhor dos utopistas dissolvem-se na mesma inconclusão.239

A menção aos “utopistas” não é aleatória. O poeta, observador atento das múltiplas facetas do carnaval carioca (do esplendor forjado nos barracões aos lamês agora enlameados na sarjeta, a efemeridade e a fragilidade de uma festa popular), dialoga com a tradição utópica e aponta para o aspecto mais doloroso da folia: fatalmente, ela termina. A “utopia carnavalesca”, heterocronia, vê nas cinzas um ponto final. Ainda que haja, sempre, “uma promessa de alegria.”240 E não sai das minhas retinas, ao pensar em tais

candelabros, os papagaios amarelos voavam enquanto anjos, os azulejos compunham palacianas galerias envoltas por mistérios: o Touro Negro coroado (Dom Sebastião, cujo reino jazia submerso, na Praia dos Lençóis); a carruagem da cruel Nhá Jança; a “serpente de prata que rodeia a ilha”, como escreveram os compositores Zé Di e Malandro. A construção de tal desfile é narrada, com uma romantização compreensível, no longa-metragem Trinta (2014), do diretor Paulo Machline, com Matheus Nachtergaele no papel principal. 239 DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Obra citada, p. 108 e 110. 240 DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Obra citada, p. 111.

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passagens, a imagem em relampejo de uma praça no Valqueire, talvez fosse no Campinho, eu juro não sei o nome, no amanhecer da quarta-feira de cinzas do carnaval de 2015, quando eu estava tonto e sequer guiava os meus passos: os postes, as casas, os muros, tudo estava decorado com os estandartes que havíamos confeccionado para o abrealas da Mocidade Unida do Santa Marta do ano anterior, na homenagem a Caymmi. Diante do emaranhado de raízes poéticas, o questionamento que brota, tão verde quanto a visão de Rosa Magalhães para a floresta de pau-brasil, não poderia ser outro: pode-se considerar a Passarela do Samba Professor Darcy Ribeiro, Marquês de Sapucaí, um espaço heterotópico e heterocrônico? Mais: pode-se considerar a narrativa gresilense de 2004 uma expressão carnavalesca passível de análise a partir dos princípios de Foucault (teórico francês que, seguramente, encontraria no carnaval carioca êxtase semelhante ao vivenciado por Mário, em 1923)? As respostas, é evidente, são positivas. Sim, o Sambódromo do Rio, palco aberto em linha reta projetado por Niemeyer, recebe, ano após ano, festivais de lugares e tempos e histórias e estórias e viagens extraordinárias. Sim, o enredo desenvolvido por Rosa Magalhães, em 2004, subverte tempo e espaço e propõe uma “desgeograficação” radical. Mas não, a dispersão não começa aqui. Ao contrário. Feito a Estação Primeira de Mangueira, em 1984, Supercampeã do ano de inauguração do Sambódromo, com enredo sobre Braguinha costurado por Max Lopes, é hora de fazer a curva, sob o arco da Apoteose, e retornar ao rio de asfalto, do avesso, de lá pra cá, a contrapelo, expandindo os apontamentos pintados de vermelho a outras narrativas da autora de Breazail.

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