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V.1.4 – Folias geladas

de 2006, apresentou uma releitura do carro perdedor (ou melhor: do carro que ganhou o “primeiro prêmio de segunda categoria”335), o castelo medieval repleto de morcegos. Dialogava em profundidade com a história do carnaval de Nice e reforçava, indiretamente, o caráter francês da narrativa – e do sangue de Garibaldi.

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Rosa Magalhães se especializou em materializar paisagens geladas na Passarela do Samba, figurando enquanto uma das artistas carnavalescas que mais vezes precisou transportar geleiras e nevascas para o calor do Rio de Janeiro. É claro que o fascínio dos olhos tropicais pelas neves eternas não é surpreendente. Talvez a mais famosa leitura de paragens congeladas já apresentada na Marquês de Sapucaí, o Carro da Rússia do desfile de 1992 da Unidos do Viradouro, sobre os povos ciganos (o enredo se chamava A magia da sorte chegou), não foi assinada por Rosa Magalhães, mas por Max Lopes – alegoria eternizada na memória coletiva devido ao incidente ocorrido tão logo a geleira ganhou a área de dispersão, na Praça da Apoteose: um incêndio nunca antes observado durante um desfile de escola de samba. Felizmente, o ocorrido não gerou vítimas. O “carro dos cachorros” (forma como a alegoria ficou conhecida, devido às esculturas de huskies siberianos), porém, foi consumido pelas chamas e se transformou em um amontoado de ferros retorcidos e isopor derretido. O contraste entre o fogo e o gelo, sem qualquer gravidade, foi visualmente traduzido por Rosa Magalhães no segundo carro alegórico do desfile de 2007 (imagem 92), sobre o bacalhau. De nome complexo, Muspilheim e Nifheim, a alegoria explicava que, segundo a mitologia nórdica, nos primórdios do mundo existiam duas regiões: uma ao Sul, cheia de chamas, e uma região gelada que ficava ao Norte – uma terra de temperaturas baixíssimas, praticamente inabitável. Do choque entre as forças naturais teria surgido a Terra. As cores explosivas das lavas vulcânicas emolduravam um fiorde branco – e o carro seguramente conseguiu expor ao público a força da natureza da Noruega. Componentes batiam com batutas em pequenas tinas com tinta alaranjada, espirrando-a intencionalmente na brancura do gelo. Um carro em (des)construção, enquanto desfilava.

335 FERREIRA, Felipe. Obra citada, p. 265.

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Imagem 92: Segundo carro alegórico do desfile de 2007 da Imperatriz Leopoldinense, sobre o bacalhau e a mitologia da Noruega. Intitulada Muspilheim e Nifheim, a alegoria mostrava o choque entre as lavas vulcânicas e as neves eternas. Foto: Wigder Frota. Acervo pessoal.

Viajando para a Dinamarca, no enredo de 2005, a autora se valeu de um conto de Hans Christian Andersen, A Rainha da Neve, para conceber a segunda alegoria do desfile e as fantasias do primeiro setor de brincantes. O acento literário se faz notar no nome dado à fantasia da Ala Estrela Solitária: O Sol aparece timidamente. As demais fantasias do setor, intituladas Geleiras, Duendes da neve, Rainha da Neve (baianas) e Súditos da Terra Gelada, conduziam o olhar do espectador para a cenografia do carro alegórico, uma geleira de formas pontiagudas confeccionada, em grande parte, com material acrílico de box de banheiro. Ironicamente, as composições femininas de tal alegoria vestiam minúsculos biquínis – que representavam, talvez, cristais de gelo. O apresentador Fernando Vannucci, que narrou, por muitos anos, os desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro para a TV Globo, também falou em “ironia” ao se referir à terceira alegoria do cortejo gresilense de 1996. Intitulado O passeio de trenó na neve do Tirol – a Festa do Sol, o carro trazia o ator Jorge Lafond, negro, representando a brancura da neve. Assim como em 2005, o conjunto de alas que antecedia a alegoria expressava um universo gelado (no caso, a neve dos Alpes austríacos): Damas no inverno,

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Nobres no inverno, Flocos de neve e Festa do Sol na neve. Muito comentado, naquele ano, foi o fato de que a alegoria “fez nevar” em plena Sapucaí: o carro expelia pequenos flocos de espuma, “efeito especial” que Rosa Magalhães encontrou em São Paulo, na decoração natalina de um shopping-center, conforme o narrado no encontro organizado pelo Centro de Referência do Carnaval, na UERJ, em 16 de julho de 2013. Em 2011, no primeiro desfile assinado para a Unidos de Vila Isabel, a carnavalesca apresentou outra paisagem gelada: a segunda alegoria, O corte de cabelo coletivo nas festas de solstício de inverno, levou à Passarela do Samba as pradarias onde viviam os índios Hopi, não faltando totens, cocares e cabanas típicos dos povos indígenas norte-americanos. A descrição do carro diz o seguinte:

A segunda alegoria tem como tema os dramas rituais para o corte de cabelo dos Hopi. No solstício de inverno, durante o Soyál, o primeiro Kachima (dançarinos mascarados) aparece na aldeia cambaleando como uma criança muito nova; ele e a cerimônia simbolizam o renascimento da vida. É neste período que os Hopi acreditam que o corte de cabelo deve ser feito de maneira coletiva durante os cerimoniais, para não perderem a força vital. A alegoria apresenta a paisagem de uma região das Grandes Planícies e Pradarias, onde vivem os Hopi, durante o inverno, coberta de neve. Observam-se imagens de tendas, as habitações dos nativos, e esculturas com representações da arte Hopi. 336

Não foi uma geleira das mais inspiradas, mas o resultado plástico da alegoria tampouco comprometeu a narrativa visual do desfile. Quebrando o gelo, a combinação de amarelo e rosa – uma marca registrada da autora. No mesmo desfile, uma ala feminina representava as tranças russas, abusando das peles e das referências ao frio moscovita. Apesar do rico apelo imagético e das notáveis tradições literária e cinematográfica (sem falar na joalheria e, claro, no balé), a Rússia praticamente não aparece nas narrativas de Rosa Magalhães. Importante é registrar que, embora nós, brasileiros, estejamos habituados com o carnaval em pleno verão, com temperaturas elevadas, corpos desnudos e praias lotadas, o carnaval europeu ocorre no inverno, em meio a paisagens geladas – logo, a presença da neve, nas narrativas estudadas, não deixa de ser algo carnavalesco, ainda que sob o olhar estrangeiro (percepção que fortalece o argumento de que Rosa Magalhães se utiliza de filtros estrangeiros para desenhar as suas visões de Brasil). A importação de fantasias venezianas para o calor dos trópicos certamente já causou inúmeros desmaios.

336 Justificativa presente no Livro Abre-Alas de 2011, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA.

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