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VI.1.4 – Pianópolis – Rua do Ouvidor

vibrantes (cítricas) e grandes esculturas articuladas (os famosos “bonecões de Parintins”). No intercâmbio de saberes que, desde o final da década de 1990, ocorre entre os “galpões” da ilha do Amazonas e os barracões do Rio de Janeiro, Rosa Magalhães se viu inserida –e desenvolveu uma leitura sensível, ainda que sem novidades ou maiores proposições.

Imagem 104: Alegoria alusiva ao Festival de Parintins, no Amazonas, presente no desfile de 2014 da Estação Primeira de Mangueira, sobre festas populares. Fonte: http://blogdoraymondh.blogspot.com.br/2014/03/analise-o-que-vi-dos-desfiles-das.html. Acesso em 13/03/2018.

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VI. 1. 4 – Pianópolis - Rua do Ouvidor

Se o Sul e o Norte tão pouco aparecem, o Rio Antigo é o cenário glorioso de algumas narrativas de enredo da autora. Em 1991, no Acadêmicos do Salgueiro, a Rua do Ouvidor é tomada como síntese de uma cidade em transformação, aparecendo a Belle Époque enquanto cereja civilizacional – perfumes e bombonieres, apesar dos ratos e das remoções. A sucessão de imagens apresentadas em fantasias e carros alegóricos compunha um imaginário efervescente, fluxo contínuo de pessoas, tendências, jóias, guloseimas, excessos, importações. E música, muita.De modo que não parece equivocada uma comparação entre a leitura de Rosa Magalhães e as Memórias da Rua do Ouvidor de Joaquim Manuel de Macedo. Flora Süssekind apresenta Macedo enquanto “cronista viajante”, assim sintetizando a obra por ele elaborada:

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É também como registros de viagens curtas, de casa em casa, quarteirão a quarteirão, que o narrador das Memórias da rua do Ouvidor se refere aí às suas crônicas. Principalmente a partir do momento em que passa a falar da moderna rua do Ouvidor de seu tempo. “Eia, pois, a viajar!”: é com esse convite que inicia a descrição minuciosa da rua, as suas lojas, modistas e confeitarias. E as imagens ligadas sobretudo às viagens marítimas se sucedem de folhetim a folhetim. “Apenas sujeitas a frequentes ventos contrários no encontro de importunos amoladores”, lê-se a certa altura. “Ancoremos aqui por hoje”, diz-se noutro dia para “fechar” a crônica. “Um caminhante, homem de experiência, dizia aos companheiros de jornada: - devagar, que eu tenho pressa”, conta o narrador macediano, noutro momento. E aproveita por definir o ritmo de passeio ao léu característico à crônica: “Eu não digo o mesmo aos meus leitores, porque em viagem pela rua do Ouvidor não há meio de andar depressa.”358

Também não é outra que não a Rua do Ouvidor a via por onde passou o cordão que levou João do Rio, em 1906: “Era em plena Rua do Ouvidor. Não se podia andar. A multidão apertava-se, sufocada. Havia sujeitos congestos, forçando a passagem com os cotovelos, mulheres afogueadas, crianças a gritar, tipos que berravam pilhérias.”359 A rua convulsionava e o cronista sentia na pele (e nos pisões sobre os sapatos importados) o misto de sensações que o carnaval proporcionava. O resultado da experiência é uma “crônica etnográfica”, das mais expressivas para se pensar a visão dos cordões de outrora. Pois tal espírito cronístico se faz presente nos menores detalhes do desfile do Salgueiro de 1991, revelando a capacidade da autora de viajar pelos diferentes tempos e pelas múltiplas facetas de “apenas” uma rua da cidade. Tal espírito é o motor do enredo desenvolvido para o Império Serrano, em 2010 – a sinopse é assinada por Rosa Magalhães; o desfile, em parceria com Mauro Leite e Andréa Vieira. João das Ruas do Rio é uma assumida declaração de amor à cidade do Rio de Janeiro – e, em específico, à vida que fervilha nas regiões centrais de Sebastianópolis. Dialogando com A alma encantadora das ruas, um dos livros que eu trouxe comigo, no desembarque de 2008, a carnavalesca exclama sem qualquer pudor: “Amo as ruas do Rio, tal como João do Rio, do Rio de Janeiro, a casa de todos nós!!!!”360 O final do texto bem revela de um olhar direcionado para as pequenas coisas, estilhaços e fragmentos de imagens cotidianas:

O tempo passou, surgiram novas ruas cheias de arranha-céus, novos bairros, novos transportes. Mas o asfalto ferve de gente e... de ambulantes.

358 SÜSSEKIND, Flora. Obra citada, p. 130/131. 359 RIO, João do. Obra citada, p. 140. 360 MAGALHÃES, Rosa. João das Ruas do Rio. Sinopse do enredo do Grêmio Recreativo Escola de Samba Império Serrano para o carnaval de 2010. Disponível no seguinte sítio: http://www.galeriadosamba.com.br/carnavais/imperio-serrano/2010/4/. Acesso em 13/03/2018.

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São pipoqueiros, tapioqueiros, vendedores de acarajé, milho verde, olha a pamonha! O vassoureiro equilibra todo tipo de vassouras e espanadores, pastéis, churros, empadas, a caminhonete vende cachorro-quente com as coberturas mais inusitadas de petit-pois e maionese, panos de chão clareados, burro-sem-rabo com pilhas de sacos de papel e jornal, e latinha de cerveja amassada, nas esquinas flores e plantas para todos os gostos, óculos de grau se misturam a colares de retalhos, bijuterias e relógios - só fica sem saber das horas quem quiser! Carregadores para celulares, protetores para o sol, balas de todo tipo e as frutas da estação, em oferta especial. Os flanelinhas guardam as vagas, o garoto insiste em lavar os vidros, um cantor vende seus próprios CDs, e nesse circo armado nas ruas, os malabaristas fazem as suas demonstrações de equilíbrio e agilidade, entre um sinal e outro.361

Em 1997, ao contar a vida e a obra de Chiquinha Gonzaga, a artista novamente passeou pelo imaginário do Rio Antigo, ganhando as ruas menos abastadas e adentrando nos salões da República, do jovem Theatro Municipal às escadarias do Palácio do Catete. Ao falar do próprio trabalho, em O inverso das origens, Rosa Magalhães mais uma vez abraça o autobiográfico e desenha um breve retrato da sua infância e juventude:

Chiquinha Gonzaga foi uma mulher com uma vida tão mirabolante que isto sem dúvida a fez merecer virar enredo de escola de samba. Tanto sua vida quanto sua obra foram dignas de registro. Nascida em uma família relativamente abastada, afilhada do Duque de Caxias, começou a compor ainda criança, pois desde pequena já era boa pianista. Casouse cedo, teve filhos e seu marido obrigou-a a acompanha-lo em viagem à Guerra do Paraguai, para a qual fazia transporte de soldados. Impedida pelas circunstâncias de levar o piano para o navio, Chiquinha levou um violão, instrumento tido na ocasião como inferior. Uma senhora de família tocando um violão era quase uma blasfêmia. Pois foi esse violão tão pouco chique que lhe fez companhia durante o exílio no mar. O marido detestava o instrumento, vendo-o de certa forma como um concorrente, já que a jovem esposa lhe dedicava atenção demais. Ao voltar para o Rio, Chiquinha recebeu um ultimato do marido ciumento: ou a música ou ele. A resposta dela foi surpreendente: “Fico com a minha música.” Com esta decisão, começava a vida artística de Dona Francisca, e as agruras que também a esperavam. A cidade do Rio de Janeiro era conhecida como Pianópolis, tal a quantidade de pianos e de moças e senhoras que se dedicavam ao estudo musical. Eu mesma ainda pertenci às últimas gerações em que estudar música e piano fazia parte da formação feminina. Entrei para as aulas de piano com seis anos e lá fui eu, aos trancos e barrancos, até a harmonia e a leitura das partituras. Uma façanha para a dedicada professora, que enchia meus cadernos com estrelas douradas cada vez que eu tocava alguma melodia razoavelmente bem (...). No auge da Bossa Nova, eu achei que um violão seria tudo de bom que alguém poderia querer. Até minha mãe ganhar um violão. Tentei aprender, mas também não deu certo. Cheguei à conclusão de que ouvir é uma coisa muito boa, tocar são outros quinhentos. Pelo menos, foi assim que pude conhecer, digamos, com uma certa intimidade, os instrumentos preferidos da Chiquinha.362

361 MAGALHÃES, Rosa. Idem. 362 MAGALHÃES, Rosa; NEWLANDS, Maria Luiza. Obra citada, p. 96.

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Não faltaram, no desfile, as lojas que vendiam instrumentos musicais, máscaras e partituras, uma homenagem estendida, graças ao imaginário evocado por Chiquinha Gonzaga, à memória urbana e à história pública do Rio de Janeiro que também era Pianópolis. Assim como em 1991 e em 1993, a carnavalesca fazia rebrotar, na Passarela do Samba, os antigos carnavais de rua, os bailes de mascarados, o espírito dos cordões (psicografado por João do Rio) que percorria as ruas e vielas do Centro. A Praça Tiradentes, importante ponto de referência, nas proximidades do Campo de Santana (o monumento a Pedro I foi carnavalizado pela artista, na última alegoria da Imperatriz Leopoldinense do desfile de 1996), ganhou a Sapucaí de maneira indireta: além dos inúmeros teatros que existiam no local (hoje, o Carlos Gomes e o João Caetano ainda sobrevivem), conta a autora que as máscaras importadas da Europa eram comercializadas “por incrível que pareça, em uma loja na Rua da Imperatriz, junto à Praça Tiradentes, onde morou Chiquinha.”363

O desfile sobre Chiquinha Gonzaga, e é a própria carnavalesca quem destaca isso, também representou o definitivo abraçar das dramatizações em carros alegóricos. Atores vestidos de soldados encenaram, na sexta alegoria do cortejo, a ação policial que encerrou a apresentação do musical A Corte na Roça, espetáculo em cuja trilha sonora a compositora havia inserido o maxixe e o lundu, ritmos considerados impróprios – e até mesmo perigosos, a exemplo dos cucumbis. Nos termos da artista:

Os soldados invadiam o teatro, munidos de cassetetes, e faziam parar o espetáculo. A fantasias deles era muito simples, um uniforme cáqui com boné. O efeito ficou bom e, a partir de então, com a ajuda de um diretor teatral, João Batista, comecei a fazer pequenas intervenções teatrais na apresentação dos carros alegóricos. Essas intervenções foram evoluindo ao longo do tempo. Em Quase no ano 2000, de 1998, operários da fábrica de Metrópolis eram robotizados, até que, na Antropofagia do carnaval de 2002, um carnaval inteiro acabou povoado de atores e atrizes representando.364

A presença da teatralização viria a se tornar uma das marcas mais expressivas do trabalho da carnavalesca, estratégia apropriada por outros profissionais, nem sempre com o mesmo sucesso365 .

363 MAGALHÃES, Rosa; NEWLANDS, Maria Luiza. Obra citada, p. 98. 364 MAGALHÃES, Rosa; NEWLANDS, Maria Luiza. Obra citada, p. 98/99. 365 O julgador Madson Oliveira, do quesito Alegorias e Adereços, despontuou em 0,1 décimo o trabalho apresentado pela Beija-Flor de Nilópolis, no desfile de 2018, sob a seguinte justificativa: “O conjunto alegórico apresentado pela agremiação foi quase todo teatralizado, com pouca carnavalização, arriscando264

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