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V.1.12- Tutti-multinacional
Imagem 98: Vista frontal da alegoria Éden, a oitava do desfile gresilense de 1992. Notam-se referências à estética pré-colombiana e à natureza tropical das Américas (papagaios, maracujás, folhas, um tamanduá), mas as esculturas que representam Adão e Eva, com pintura corporal indígena, são inspiradas em projetos renascentistas de Michelângelo. Fonte: MAGALHÃES, R. Fazendo Carnaval, p. 10.
V. 1. 12 - Tutti-multinacional
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Ainda versando sobre a ideia de “exploração”, o músico Paulinho da Viola, Príncipe do Samba, comentarista do carnaval de 1987 pela TV Globo, discorreu sobre o teor crítico do enredo O ti-ti-ti do sapoti. Segundo ele, as carnavalescas Rosa Magalhães
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e Lícia Lacerda foram muito inteligentes ao levarem para a Sapucaí uma narrativa prosaica que terminava com uma crítica à “multinacionalização” de produtos típicos do “terceiro mundo” – caso do sapoti, transformado em goma de mascar nas indústrias norteamericanas. A matéria-prima barata, cultivada no “quintal da vida”342 e no “quintal do mundo”, é apropriada pela multinacionalização do capital (as corporações sediadas em terra estrangeira) e convertida em um símbolo da cultura de massa estadunidense, figurando no mesmo combo em que estão inseridos os blockbusters, a Coca-Cola, o hotdog e a pop-corn dos cinemas Multiplex. A leitura de Paulinho da Viola é pertinente, mas não deve ocultar o fato de que o enredo em questão também homenageia a cultura cinematográfica dos Estados Unidos – basta lembrarmos do leão da Metro no carro abrealas, algo já explicado no corpo da tese (a noção de pop nostalgia). Está-se diante, mais uma vez, não de uma dicotomia, mas de uma visão de mundo que parte da ideia de complementaridade – algo mais espinhoso que um simples “equilíbrio de contrários”, nos termos schwarzianos (defasados, para Eneida Maria de Souza) explorados em A Antropofagia de Rosa Magalhães, com relação à Tropicália e ao universo temático das composições de Caetano Veloso. Talvez a ironia (fina) de Rosa Magalhães resida mais é nesse lugar de difícil classificação, um não-lugar de fala ou um entre-lugar temático (o que nos leva, automaticamente, ao conceito de Silviano Santiago): a mesma mão que afaga conduz o olhar do leitor a uma crítica subjacente. As baianas daquele desfile (imagem 99), trajadas de Estátua da Liberdade (com perucas brancas, tochas nas mãos, panos da costa dourados que imitavam as vestes drapeadas da escultura e babados cujos degradês dialogavam com o colorido das gomas de mascar), personificam tal “entrave” extremamente rico do ponto de vista da crítica cultural: a mais tradicional ala de um cortejo de Escola de Samba, composta pelas “matriarcas” da agremiação, encarnava o símbolo máximo dos Estados Unidos da América, o centro nervoso do capitalismo financeiro e dos neocolonialismos do século XX.343
342 Referência à letra do samba de enredo defendido pela Estácio de Sá, em 1987, de autoria de Darcy do Nascimento, Djalma Branco e Dominguinhos do Estácio. A letra canta: “E hoje no quintal da vida sou criança; / me dá que o sapoti é meu!” 343 O exemplo ajuda a problematizar o conceito de “pureza” tantas vezes invocado durante discussões identitárias envolvendo os “mitos de origem” das escolas de samba do Rio de Janeiro. O que a carnavalesca diz, por debaixo dos babados em degradê, é que a “pureza” inexiste e que as tradições são maleáveis.
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Imagem 99: Ala das Baianas da Estácio de Sá, durante o desfile de 1987, assinado por Rosa Magalhães e Lícia Lacerda. Foto: Antônio Nery. Fonte: Jornal Extra, 5/02/2015. Disponível para consulta em: https://extra.globo.com/noticias/carnaval/carnaval-historico/serie-especial-capitulo-5-estacio-de-sa-viraescola-grande-15244404.html. Acesso em 15/03/2018.
O apreço de Rosa Magalhães por Carmen Miranda, exposto no final do enredo de 2002 (imagem 100), ajuda a problematizar a questão e a compreender as opções criativas da autora. Ora, ninguém potencializou mais os arquétipos (e estereótipos) da brasilidade no exterior (principalmente nos Estados Unidos) que a “Pequena Notável”; por outro lado, ninguém foi tão acusada de “americanização” e “deturpação da cultura popular brasileira” quanto ela, vaiada sem parcimônia no mesmo palco que a consagrou, o Cassino da Urca. Simone Pereira de Sá, cuja tese de doutoramento trata das facetas complementares de Carmen (a empresária de visão que agenciou compositores e promoveu o samba brasileiro no exterior e a “secretária” da América, “macaquita” de Tio Sam rotulada como “rumbeira”), defende que a junção desses rostos contraditórios nada mais é que o produto de um gesto heterofágico “que se caracteriza pela disponibilidade e abertura para o ‘outro’”.344
Tal movimento de abertura (que não é necessariamente “pacífico”, mas o disputar de um espaço) também é debatido por Eneida Maria de Souza, autora que se utiliza das contradições de Carmen Miranda para pensar o lugar de fala latino-americano no contexto
344 SÁ, Simone Pereira de. Baiana Internacional. O Brasil de Carmen Miranda e as lentes de Hollywood. Rio de Janeiro, 1997, 230 f. Tese de Doutorado - Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, p. 201.
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global contemporâneo. São provocativas e necessárias as leituras manipuladas por ela, especialmente a proposição de que “suspeitar das sínteses conciliadoras e do lugar fixo dos saberes é um alerta para se entender este nosso conturbado e esfuziante conflito de ideias.”345 No corpo de Carmen Miranda e nos corpos das baianas da Estácio bailavam questões ainda flamejantes.

Imagem 100: Drag Queen vestida de Carmen Miranda, no último setor do desfile gresilense de 2002. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.
345 SOUZA, Eneida Maria de. Nem samba nem rumba. In: Crítica Cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p. 159.
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