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II. 4. 2 - Utopias e heterotopias: Michel Foucault, navegador
II. 4. 2 – Utopias e heterotopias: Michel Foucault, navegador
Após a publicação de Utopia, em 1516, passou-se a falar em um novo “gênero literário” (conceito utilizado com a sabedoria do anacronismo): a literatura utópica. Gregory Claeys explica tal movimento com extrema clareza, na obra Utopia – A história de uma ideia. Para ele, “o estudo da utopia foca três domínios: o pensamento utópico, a limitada literatura utópica e as tentativas práticas de encontrar comunidades melhoradas.”182 Nesse campo tão amplo, alerta o autor, é difícil trabalhar com apenas uma definição de “utopia” (o risco permanente do reducionismo). Tem-se um conjunto de variantes tão grande quanto o mar aberto: “ideais positivos de sociedades muito melhoradas; seus opostos satíricos negativos; às vezes chamados de antiutopias ou distopias; vários mitos de paraíso, eras de ouro e ‘ilhas dos abençoados’; e retratos de pessoas primitivas vivendo em um estado natural (...)”183 . Quando fala em “pessoas primitivas vivendo em um estado natural”, automaticamente me vem à cabeça um trecho do samba de enredo que a Imperatriz Leopoldinense, sob a batuta de Rosa Magalhães, cantou em 1999, samba este que foi entoado pela quadra da escola na noite de 16 de outubro de 2017, segunda-feira, durante a escolha do samba de enredo para o carnaval de 2018 (que tratou do bicentenário do Museu Nacional – ecos do Manifesto da Poesia Pau-Brasil no enredo desenvolvido pelo carnavalesco Cahê Rodrigues). Em 1999, quando levou para a Marquês de Sapucaí o enredo Brasil, mostra a sua cara em... Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae, o samba da escola de Ramos, de autoria de César Som Livre, Waltinho Honorato, João Estevam e Eduardo Medrado, cantava: “Homens felizes vivendo nas matas / imagens do meu país”. Começa, aqui, um questionamento mais amplo – expansão interpretativa da obra Breazail. Até que ponto o conceito fluido e incomensurável de utopia pode ser aplicado à obra de Rosa Magalhães? Diz Gregory Claeys que “a utopia explora o espaço entre o possível e o impossível.”184 Jerzy Szachi, por sua vez, destaca que é praticamente impossível definir o número de obras artísticas (e literárias em sentido estrito) que podem ser enquadradas
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182 CLAEYS, Gregory. Obra citada, p. 11. 183 CLAEYS, Gregory. Obra citada, p. 12. 184 CLAEYS, Gregory. Obra citada, p. 15.
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no gênero utópico185. Para ele, “não só o exemplo de Thomas More estimulou imitadores, como o rótulo de utopia passou a ser aplicado a escritos de autores antigos, como por exemplo à República de Platão.”186 A mesma ideia é defendida por Umberto Eco, para quem a obra de Thomas More não deve ser compreendida de forma autorreferente. Nos termos do escritor italiano, “é com More que surge a descrição deste não lugar: da ilha, de suas cidades e edifícios. E outros lugares utópicos serão descritos, por exemplo em A Cidade do Sol, de Tommaso Campanella (1602), ou na Nova Atlântida, de Francis Bacon (1627)” .
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Se pensarmos nas narrativas de matriz oral, a tradição de “lugares ideais” onde reinam a harmonia social e a felicidade nos convida a escavar, ainda mais, o terreno do passado. Felipe Ferreira fala sobre isso, ao associar tais narrativas fantásticas às origens medievais do carnaval. Destaca o autor, analisando pinturas de Pieter Bruegel, a importância da crença no “País da Cocanha”188:
Uma outra história muito difundida na Europa medieval, a chamada lenda do país da Cocanha, também faz parte do imaginário carnavalesco daquela época. Neste lugar de sonho a vida seria perfeita, pois nada faltaria aos seus habitantes. Ninguém sabia ao certo onde se encontrava essa região maravilhosa, mas todos sabiam de cor as coisas fabulosas que existiam por lá: doces cresciam em árvores, frangos assados voavam prontos para serem comidos, o vinho jorrava das fontes, bolos caíam do céu. O próprio palácio real era feito de açúcar, as ruas eram pavimentadas com massa de torta e, nas lojas, as comidas eram distribuídas de graça. Os habitantes desse país abençoado eram praticamente imortais, pois lá não havia guerra e, assim que alguém atingisse 50 anos, voltava imediatamente a ter 10 anos de idade. Essa ideia de abundância e de barriga cheia estava diretamente associada ao que as pessoas pensavam do tempo carnavalesco medieval. Os dias festivos anteriores à Quaresma eram como se, por algum tempo, o Reino da Cocanha existisse de verdade. Brincar o carnaval era, desse modo, similar a deixar-se levar por todo tipo de prazeres ou exageros, num mundo que representava o exato contrário da dureza e da penúria da vida cotidiana de então. 189
185 A despeito da dificuldade da missão, ela foi abraçada pelo professor Lyman Tower Sargent, da University of Missouri – St. Louis. Durante o primeiro dia da 17th International Conference of the Utopian Studies Society / Europe, na Universidade Nova de Lisboa, Tower Sargent apresentou o trabalho de banco de dados que vem desenvolvendo, a fim de catalogar obras de todo o mundo que tratam do tema utopia. 186 SZACHI, Jerzy. Obra citada, p. 2. 187 ECO, Umberto. Obra citada, p. 307. 188 A Cocanha foi transformada em carro alegórico durante o desfile de 2012 do Império da Tijuca, escola do Morro da Formiga. Na ocasião, o carnavalesco Severo Luzardo Filho desenvolvia o enredo Utopias, viagens aos confins da imaginação, cujo título é mais do que elucidativo. Na sinopse apresentada aos compositores e à imprensa, o autor situa a Cocanha na mesma linha de lugares fantásticos em que podem ser vistos Foxville, Calonack, Avalon, Kradac, Cantahar e Benzalém. 189 FERREIRA, Felipe. O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 34/35. 123
Umberto Eco e Gregory Claeys também discorrem sobre a Cocanha, inserindo-a na linha das utopias e dos lugares lendários. De acordo com o segundo, complementando o exposto por Felipe Ferreira, “em Cuccagna, a versão italiana dessa fantasia de glutonia e saciedade, existem pontes feitas de salame, rios de leite e vinho e montanhas cobertas de requeijão.”190 Eco, por sua vez, informa que há uma série de poemas medievais que se referem a este Paraíso terrestre em “forma totalmente materialista”191. Interessante é o
fato de que pairava a ideia de que para se chegar à Cocanha era preciso realizar uma longa viagem: “28 meses por terra e mar”192 . A associação com o carnaval não passa despercebida: “a liberdade de que se goza em Cocanha é tal que, como no carnaval, as coisas podem ser viradas de ponta-cabeça e um aldeão pode zombar de um bispo.”193
Muito ainda poderia ser dito das obras acima mencionadas e dos aspectos carnavalizantes que elas possuem, mas mais importante, agora, é guiar a embarcação por outras correntes marítimas, a fim de verticalizar a reflexão sobre a obra de Rosa Magalhães. Afinal, como bem provocou Michel Foucault (e aqui tal personagem, finalmente, entra em cena), vivemos uma época de supervalorização do espaço em que mais do que problematizar as utopias é preciso lançar olhos para as heterotopias, que, na terminologia por ele cunhada, nada mais são que
lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da sociedade, e que são espécies de contra-posicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e investidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis.194
Com uma notável inclinação poética (o autor fala no caráter heterotópico de lugares como o “fundo do jardim” e a grande cama dos pais195), Foucault desenvolve uma
190 CLAEYS, Gregory. Obra citada, p. 116. 191 ECO, Umberto. Obra citada, p. 289. 192 ECO, Umberto. Obra citada, p. 290. 193 ECO, Umberto. Obra citada, p. 291. 194 FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 415. 195 Nas palavras do autor: “As crianças conhecem perfeitamente esses contra-espaços, essas utopias localizadas. É o fundo do jardim, com certeza, é com certeza o celeiro, ou melhor ainda, a tenda de índios erguida no meio do celeiro, ou é então – na quinta-feira à tarde – a grande cama dos pais. É nessa grande cama que se descobre o oceano, pois nela de pode nadar entre as cobertas; depois, essa grande cama é também o céu, pois se pode saltar sobre as molas; é a floresta, pois pode-se nela esconder-se; é a noite, pois pode-se ali virar fantasma entre os lençóis; é, enfim, o prazer, pois no retorno dos pais, se será punido.” In: FOUCAULT, Michel. O Corpo Utópico, As Heterotopias. Posfácio de Daniel Defert. São Paulo: Institut Français / N-1 Edições, 2013, p. 20.
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série de princípios a fim de explicar o conceito de heterotopia196 . Mais precisamente, o filósofo alicerça cinco pilares interpretativos, dentre os quais o terceiro e o quarto197 saltam aos olhos e merecem uma cuidadosa leitura, posto que muito contribuem para o entendimento que se quer sustentar. Diz o terceiro princípio, sem rodeios: “em geral, a heterotopia tem como regra justapor em um lugar real vários espaços que, normalmente, seriam ou deveriam ser incompatíveis.”198 A fim de ilustrar o postulado, o autor menciona o teatro, em cujo palco transitam as mais exóticas cenografias (“uma série de lugares estranhos”), e o cinema, em cuja tela é projetado “um novo espaço de três dimensões”. Também é mencionado por Foucault aquele que talvez seja o mais antigo exemplo de heterotopia: o jardim, “criação milenar que tinha certamente no Oriente uma significação mágica”199. É bela a explicação de que os antigos tapetes persas reproduziam, nos seus desenhos entretecidos de saberes dos mais notáveis, jardins de inverno que reuniam, em um mesmo espaço, os quatro elementos naturais, as quatro estações do ano e os quatro cantos do mundo. Diz o filósofo que a compreensão disso é fundamental para a percepção poética da simbologia dos tapetes voadores – “tapetes que percorriam o mundo”200 . A sequência do texto é igualmente preciosa:
O jardim é um tapete onde o mundo inteiro vem consumar sua perfeição simbólica e o tapete é um jardim móvel através do espaço. Era parque ou tapete aquele jardim descrito pelo narrador das Mil e Uma Noites? Vê-se que todas as belezas do mundo acabam por se juntar nesse espelho. O jardim, desde os recônditos da Antiguidade, é um lugar de utopia. Temos a impressão talvez de que os romanos se situam facilmente em jardins: é fato que os romanos nasceram, sem dúvida, da própria instituição dos jardins. A atividade romanesca é uma atividade jardineira.201
Do excerto de Foucault, quatro pontuações me ocorrem – ouso, aqui, tecer um pequeno tapete com fragmentos de memórias.
196 Aqui, é válido destacar que também é interessante a análise do conceito de heterotopia conforme a visão de Henri Lefebvre, que faz diferenciações para com as ideias de utopia e isotopia. Ver: LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. 197 O primeiro princípio das heterotopias diz respeito ao fato de que elas expressam uma certa universalidade humana, ou seja: provavelmente, não há qualquer sociedade livre de construções heterotópicas; já o segundo princípio desenvolve a ideia de que as heterotopias são produtos sócio-históricos e dinâmicos, podendo haver apagamentos, alterações, interrupções e retomadas. 198 FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 24. 199 FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 24. 200 FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 24. 201 FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 24.
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1997: na Casa Velha, a casa da minha infância, no final do bairro de Rio Bonito, em Irati, havia um jardim de margaridas, um roseiral202 e um quintal tão imenso que eu perdia as tardes entre os pessegueiros, as macieiras, as pitangueiras, as laranjeiras, as barbas dos parreirais. Nos fundos desse quintal, e não me lembro ao certo como, se exibia um cacho de orquídeas - que eu julgava (e ainda julgo?) a mais bela imagem do mundo. Na companhia dessas orquídeas, brancas de miolos roxos, eu construía narrativas –viajava continentes e planetas (inclusive comi um crisântemo, contemplando o HaleBopp). Desfiava enredos, livros, compunha sambas. Rabiscava ideias, algumas eu apagava. Preferia os carnavais nos jardins às funções no interior da casa. Havia um tapete persa, na sala principal – imitação, fabricado no Brasil. Os desenhos eram árabes, daí o termo “arabescos”. Sobre o imenso tapete, nas tardes de verão, eu e o meu irmão Luiz Fernando construíamos escolas de samba. Miniaturas de desfiles, com bonecos de superheróis, utensílios de cozinha, as louças das cristaleiras (que a minha Nonna polia), brinquedos em geral. Algodão que virava plumas, luzes de Natal para a iluminação. Cavalos nunca faltaram: sobre o imenso tapete, o tapete imitado, eu imitava Rosa Magalhães. Mimesis. 1999: no desfile da Imperatriz Leopoldinense assinado por Rosa Magalhães, Brasil, mostra a sua cara em... Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae, além da profusão de animais e vegetais (inclusive orquídeas, também presentes em 1998 e em 2004, os desfiles mais citados neste trabalho), havia tapeçarias – os tapetes Gobelins, encomendados por Louis XIV, que reproduziam retratos da Pernambuco colonial pintados por Albert Eckhout. Maurício de Nassau havia presenteado o Rei francês, em 1678, com ilustrações que retratavam os tipos humanos, os animais e os vegetais observados no Brasil Holandês. Segundo a sinopse de enredo redigida pela carnavalesca, as tapeçarias “foram produzidos entre 1687 – 1730, com o título de Petites e Grandes Indes.”203 Alguns desses tapetes estão em exposição no Museu de Arte de São Paulo (MASP) e no Instituto Ricardo Brennand, no Recife.
202 Não é por acaso, afinal, a paixão por Alice’s adventures in Wonderland, de Lewis Carroll, obra que analisei, em diálogo com Luis Alberto Warat e Joãosinho Trinta, na monografia de Direito defendida em 2010, sob orientação de Vera Karam de Chueiri. Ver: BORA, Leonardo Augusto. O Direito pego pelo rabo. Aliceando Themis. Monografia (Bacharelado em Direito) – Graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, 2010. 203 MAGALHÃES, Rosa. Brasil, mostra a sua cara em... Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae. Sinopse do enredo do carnaval de 1999 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA). 126
2017: a mais comentada imagem do desastroso carnaval de 2017 (marcado pela simbólica negação da entrega das chaves da cidade a Momo, pelo prefeito recémempossado Marcelo Crivella, bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus; por acidentes de variadas ordens e gravidades – um deles, infelizmente, culminando na morte da jornalista Liza Carioca; e por confusões envolvendo notas e justificativas – brigas que renderam infindáveis discussões sobre os critérios a serem utilizados para o julgamento do quesito Enredo) foi a de um tapete voador “pilotado” por Aladdin, o clímax da apresentação da Mocidade Independente de Padre Miguel – sagrada campeã, juntamente com a Portela, em reunião extraordinária realizada pela LIESA na noite de 5 de abril, após a confirmação de um erro objetivo no caderno de julgamento (o jurado Valmir Aleixo, ao atribuir conceito à escola da Zona Oeste, descontou 1 décimo do quesito Enredo, observando a ausência de uma musa em frente à alegoria 4; tal musa, na verdade, havia sido promovida a Rainha de Bateria, Camila Silva, o que havia sido previamente esclarecido no caderno de erratas enviado à Liga, cuja leitura foi desconsiderada pelo julgador). O “tapete mágico das Mil e Uma Noites” (um drone pilotado por controle remoto) foi exaustivamente fotografado e comentado na imprensa, considerado, por analistas como Milton Cunha, a mais inventiva solução cênica do ano – uma “sacada” dos coreógrafos Jorge Teixeira e Saulo Finelon, em parceria com o carnavalesco Alexandre Louzada.
2017: no mesmo ano em que um tapete sobrevoou a Marquês de Sapucaí, Rosa Magalhães revisitou o imaginário cortesão de Louis XIV, no desfile imediatamente anterior ao da Mocidade Independente. À frente da única agremiação da Zona Sul carioca a figurar no Grupo Especial, a preta e amarela São Clemente, do bairro de Botafogo, a artista desfiou o enredo Onisuáquimalipanse – envergonhe-se quem pensar mal disso, sobre as relações do Rei Sol com o seu Ministro das Finanças, Nicolas Fouquet, que havia construído, com dinheiro público, o suntuoso Château de Vaux-le-Vicomte, inspiração para a futura construção do Palácio de Versalhes (o que custou a prisão do Ministro, acusado de “desvio de verbas”). No desfile, a terceira alegoria retratava os jardins do palácio construído por Fouquet (imagem 43) – uma profusão de verdes proveniente da utilização de materiais baratos: filó de armação e TNT. A descrição apresentada pela carnavalesca no Livro Abre-Alas afirma o seguinte:
Os Jardins de Le Nôtre - No jardim de Vaux-le-Vicomte, Le Notre usa com maestria os recursos da perspectiva na composição paisagística. Aproveitando seus conhecimentos 127
sobre plantas, Le Notre criou espaços rigorosamente desenhados com vegetação e flores. A Arte da Topiaria foi exaustivamente utilizada na confecção destes espaços externos.204
Imagem 43: Alegoria Os Jardins de Le Nôtre, no desfile de 2017 da São Clemente. Foto: Cris Gomes e A. Pinto. Fonte: http://revistacarnaval.com.br/2017/03/01/especial-galeria-de-fotos-do-desfile-da-saoclemente/. Acesso em 10/03/2018.
Costurados tais retalhos, começa-se a perceber que os símbolos utilizados por Michel Foucault para a explicação do terceiro princípio das heterotopias compõem um universo discursivo que dialoga diretamente com os desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro e com a obra de Rosa Magalhães, em específico205. Partamos, pois, para o quarto princípio. Esclarece o autor:
Ocorre que as heterotopias são frequentemente ligadas a recortes singulares do tempo. São parentes, se quisermos, das heterocronias. Sem dúvida, o cemitério é o lugar de um tempo que não escoa mais. De modo geral, em uma sociedade como a nossa, pode-se dizer que há heterotopias que são heterotopias de tempo quando ele se acumula ao infinito: os museus e as bibliotecas, por exemplo. Nos séculos XVII e XVIII, os museus e as bibliotecas eram instituições singulares; eram a expressão do gosto de cada um. Em contrapartida, a ideia de tudo acumular, a ideia de, em certo sentido, parar o tempo, ou antes, deixa-lo depositar-se ao infinito em certo espaço privilegiado, a ideia de constituir
204 Livro Abre-Alas de 2017, Volume 2 - Segunda-feira, disponível para consulta no seguinte sítio: http://liesa.globo.com/material/carnaval17/abrealas/Abre-Alas%20-%20Segunda-feira%20%20Carnaval%202017%20-%20Atual.pdf. Acesso em 12/11/2017. 205 Uma curiosidade preciosa é o fato de que, na linguagem carnavalesca, dá-se o nome de “tapete” para a visão panorâmica da sequência de alas desfilando em uma escola. O bom uso da cor em cada segmento de desfilantes garante um “belo tapete”; do contrário, diz-se que “o tapete da escola não funcionou”.
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o arquivo geral de uma cultura, a vontade de encerrar todos os tempos em um lugar, todas as épocas, todas as formas e todos os gostos, a ideia de constituir um espaço de todos os tempos, como se este próprio espaço pudesse estar definitivamente fora do tempo, essa é uma ideia totalmente moderna: o museu e a biblioteca são heterotopias próprias à nossa cultura.206
Foucault começa a desenvolver a noção de heterocronia, ou seja, a sobreposição de tempos em um mesmo espaço – a capacidade de justaposição de épocas distintas em um mesmo lugar real. Ao falar sobre as pretensões “arquivologistas” dos museus e das bibliotecas, impossível é não pensar nas elucubrações de Néstor Canclini, para quem os modernos museus de História Natural nada mais fazem do que apresentar uma “visão monumentalizadora”, linear e profundamente agarrada a ideais opostos (como civilização e barbárie, natureza e cultura, binarismos já apontados neste trabalho), para com a história de uma determinada nação. O início com a “pré-história”, a passagem pelos “povos primitivos”, a marcação dos momentos-chave da história nacional, o fechamento com a noção de totalidade (e homogeneidade, e planificação) de um povo. Escrevi, em A Antropofagia de Rosa Magalhães:
Néstor Canclini, ao questionar a teoria museológica que insiste em exposições evolucionistas e guiadas/roteirizadas, mostra que isso tende a enfraquecer o componente artístico do museu como espaço de vivência – e a expansão desse apontamento ao espaço da Passarela do Samba é possível e necessária.207
Mas Foucault não se restringe a observar tais espaços facilmente associados à “cultura erudita”, capazes de albergar diferentes tempos a um só tempo. O filósofo expande a leitura do quarto princípio e afirma ao leitor que, “em contrapartida, há heterotopias que são ligadas ao tempo, não ao modo da eternidade, mas ao modo da festa: heterotopias não eternitárias, mas crônicas.”208 Tais “heterotopias não eternitárias”, diferentemente do observado nos museus e nas bibliotecas, espaços via de regra fechados (e à mercê da poeira), ganham vivamente os espaços de cultura popular209 – o que é
206 FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 25. 207 BORA, Leonardo Augusto. A Antropofagia de Rosa Magalhães. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura – Teoria Literária) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014, f. 311. 208 FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 25. 209 Deve-se bordar com paetês a ideia de que ao falar em “cultura popular” tal trabalho não pretende se restringir a uma ou outra definição terminológica (o que é possível, a começar pelas “categorias residuais” – o “popular” enquanto resto de “outras culturas”, algo “menor”). Ao contrário, valoriza-se a plurivocidade de sentidos da expressão, na linha proposta por teóricos como John Storey. É dele a seguinte passagem: “hoje, William Shakespeare é visto como o epítome da alta cultura, embora no século XIX sua obra fosse considerada como parte do teatro popular. O mesmo se pode dizer da obra de Charles Dickens, e, por 129
exemplificado, pelo autor, a partir da observação das feiras, “estes maravilhosos sítios vazios à margem das cidades, por vezes mesmo no centro delas, e que se povoam uma ou duas vezes por ano com barracas, exposições, objetos heteróclitos, lutadores, mulheresserpentes e profetisas da boa fortuna.”210 Não parece descabida uma expansão de tais ideias para o espaço da Marquês de Sapucaí, no coração do Rio de Janeiro, onde não apenas desfilam dezenas de escolas de samba, em fevereiro ou março, mas diversos outros eventos (inclusive maratonas de pregações evangélicas e festivais de música eletrônica) ocorrem no decorrer de um ano; para o Bumbódromo de Parintins, na Ilha Tupinambarana, onde os bois Caprichoso (azul) e Garantido (vermelho) duelam anualmente, cantando lendas e personagens amazônicos; para o Parque do Povo, em Campina Grande, onde bailam as atividades do “maior São João do mundo”; ou para a “Cidade do Rock”, construída de dois em dois anos, desde 2011, na Barra da Tijuca, para sediar o megaevento Rock in Rio.211 Depois de discorrer sobre o quinto princípio das heterotopias (segundo o qual elas possuem um sistema de aberturas e fechamentos212 para com o mundo exterior, podendo existir, em alguns casos, a necessidade de ritos de passagem ou movimentos iniciáticos/de purificação), Foucault apresenta a essencialidade do conceito:
Elas são a contestação de todos os outros espaços, uma contestação que pode ser exercida de duas maneiras: ou como nas casas de tolerância de que Aragon falava, criando uma ilusão que denuncia todo o resto da realidade como ilusão, ou, ao contrário, criando outro espaço real tão perfeito, tão meticuloso, tão bem disposto quanto o nosso é desordenado, mal posto e desarranjado; é como este último que funcionaram, ao menos no projeto dos homens, durante algum tempo – principalmente no século XVIII – as colônias. Seguramente, as colônias tinham uma grande utilidade econômica, mas existiam valores imaginários que lhes eram agregados e, sem dúvida, estes valores eram devidos ao
semelhança, que o filme noir cruzou a suposta fronteira entre cultura popular e alta cultura: em outras palavras, o que surgiu como cinema popular é hoje salvaguardado por acadêmicos e clubes de cinéfilos.” In: STOREY, John. Teoria Cultural e Cultura Popular. Uma introdução. São Paulo: Edições SESC, 2015, p. 22. 210 FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 25. 211 Também é interessante pensar o festival de música eletrônica Tomorrowland, tema da pesquisa de Cássio Lopes da Cruz Novo. Ver: NOVO, Cássio Lopes da Cruz. Tomorrowland, o “lugar do amanhã” compreendido hoje: espaço, cultura e lugares míticos e simbólicos. In: Anais do XI Encontro Nacional da ANPEGE. A diversidade da geografia brasileira: escalas e dimensões da análise de ação. Disponível em: http://www.enanpege.ggf.br/2015/anais/arquivos/6/185.pdf. Acesso em 17/03/2018. 212 Para o autor, tal sistema se divide em três: isolamento (heterotopias fechadas, nas quais só se entra obrigado – caso das colônias penais), abertura (heterotopias abertas a todos os membros de uma determinada sociedade, caso dos shoppings, resorts e parques temáticos – ainda que exista, é claro, a mediação financeira e os impeditivos derivados dela) e abertura aparente (heterotopias que exigem rituais iniciáticos: aparentemente, convidam a todos para o seu interior; na prática, porém, somente os iniciados tem completo acesso a elas – caso das igrejas, dos terreiros, mesmo de uma agremiação carnavalesca – vide a noção de “comunidade” e a polêmica exigência de carteirinhas).
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prestígio próprio das heterotopias. Foi assim que, nos séculos XVII e XVIII, as sociedades puritanas inglesas tentaram fundar na América sociedades absolutamente perfeitas (...). 213
Eis que se torna ainda mais evidente a percepção de que a teoria de Michel Foucault contribui para o entendimento do universo simbólico desenhado, no contexto do carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro, por Rosa Magalhães. A narrativa de Breazail, o núcleo interpretativo deste trabalho, retrata em cores vivas o desejo português de fundar uma colônia no território d’além-mar (projeto que, diferentemente das colônias inglesas mencionadas pelo filósofo e mesmo das colônias espanholas, nos demais territórios do continente americano, abandonou qualquer grande pretensão urbanista ou educacional e descambou para a exploração desmedida dos recursos naturais - do paubrasil às minas de ouro e diamantes - e da monocultura da cana-de-açúcar, moenda para a construção de uma sociedade eminentemente agrária, patriarcal, escravocrata e híbrida, nos termos de Gilberto Freyre214). Na “fortaleza” de Vespúcio, de qualquer maneira, havia, para além das pedras e da vegetação, um projeto heterotópico: demarcar o “território selvagem” e transferir para cá, nos brasões dos estandartes (imagem 44) e na guarnição dos marinheiros, os ideais expansionistas do Império lusitano – os “sonhos de conquista” de D. Manuel. Mas intrinsecamente unida à noção de “colônia” está a de “metrópole” – e a ponte entre tais opostos era feita, simbólica e materialmente, na madeira das embarcações. Tal percepção não escapa aos olhos de Foucault, para quem “o navio é a heterotopia por excelência”215. Ainda segundo o autor, um barco é “a nossa maior reserva de imaginação”216 e “um pedaço de espaço flutuante, lugar sem lugar, com vida própria, fechado em si, livre em certo sentido, mas fatalmente ligado ao infinito do mar (...)”217 . Parafraseando um dos mais famosos sambas de enredo da história do Salgueiro, Peguei um Ita no Norte, entoado em 1993 e rebatizado “Explode Coração”, “em cada porto que passa”, um tripulante de um navio “vê e retrata em fantasias” a multiculturalidade de um povo218 . Ao final de sua viagem ensaística, Foucault decreta; “civilizações sem barcos são como crianças cujos pais não tivessem uma grande cama na qual pudessem brincar;
213 FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 28. 214 Ver: FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. São Paulo: Global Editora, 2011, p. 65. 215 FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 30. 216 FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 30. 217 FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 30. 218 Samba composto por Demá Chagas, Arizão, Celso Trindade, Bala, Guaracy e Quinho.
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seus sonhos então se desvanecem, a espionagem substitui a aventura, e a truculência dos policiais, a beleza ensolarada dos corsários.”219
Piratas e corsários, aliás, que nunca faltaram no imaginário carnavalesco de Rosa Magalhães.

Imagem 44: Composição da sexta alegoria do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2004, O forte em Cabo Frio construído por Vespúcio, representando, justamente, o navegador Américo Vespúcio fincando o brasão do Império Português nas terras de Cabo Frio – a encenação carnavalesca de um marco fundacional, a personificação da metrópole dominando a colônia. Foto: Henrique Matos. Centro de Memória do Carnaval – LIESA.
219 FOUCAULT, Michel. Obra citada, p. 30.
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